UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Realizado por: Diogo Filipe Dias Marques Lopes Orientado por: Prof. Doutor Arqt. Rui Manuel Reis Alves Constituição do Júri: Presidente: Orientador: Arguente: Prof. Doutor Arqt. Joaquim José Ferrão de Oliveira Braizinha Prof. Doutor Arqt. Rui Manuel Reis Alves Prof.ª Doutora Arqt.ª Helena Cristina Caeiro Botelho Dissertação aprovada em: 20 de Maio de 2015 Lisboa 2015 U N I V E R S I D A D E L U S Í A D A D E L I S B O A Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes Lisboa Março 2015 U N I V E R S I D A D E L U S Í A D A D E L I S B O A Faculdade de Arquitectura e Artes Mestrado Integrado em Arquitectura A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes Lisboa Março 2015 Diogo Filipe Dias Marques Lopes A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em Arquitectura. Orientador: Prof. Doutor Arqt. Rui Manuel Reis Alves Lisboa Março 2015 Ficha Técnica Autor Orientador Diogo Filipe Dias Marques Lopes Prof. Doutor Arqt. Rui Manuel Reis Alves Título A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Local Lisboa Ano 2015 Mediateca da Universidade Lusíada de Lisboa - Catalogação na Publicação LOPES, Diogo Filipe Dias Marques, 1990A construção da frente ribeirinha de Lisboa : dois casos exemplares / Diogo Filipe Dias Marques Lopes ; orientado por Rui Manuel Reis Alves. - Lisboa : [s.n.], 2015. - Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura, Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa. I - ALVES, Rui Manuel Reis, 1964LCSH 1. Frentes marítimas - Portugal - Lisboa 2. Terminais marítimos - Portugal - Lisboa 3. Energias de Portugal - Edifícios 4. Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Teses 5. Teses – Portugal - Lisboa 1. 2. 3. 4. 5. Waterfronts - Portugal - Lisbon Marine Terminals - Portugal - Lisbon Energias de Portugal - Buildings Universidade Lusíada de Lisboa. Faculdade de Arquitectura e Artes - Dissertations Dissertations, Academic – Portugal - Lisbon LCC 1. NA9053.W38 L67 2015 AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Arquitecto Rui Alves, por ter aceite orientar-me neste percurso. À Sílvia Preto, pela dedicação na revisão do texto; à D.ª Catarina Graça, pela disponibilidade prestada na formatação e referenciação da presente dissertação. Aos meus amigos, em particular à Alina Gomes, à Joana Martins e ao Tiago Frazão, meus companheiros nestes últimos anos. Aos meus professores que contribuiram para a minha formação, em particular ao Professor Mestre Arquitecto António Verd Herrero, por ainda hoje reconhecer que me ensinou muito mais do que desenhar; pela constante dedicação em todas as aulas na construção de “jóvenes educadores”. Aos meus pais e à minha irmã, obrigado por tudo; por tentarem aguentar a “esferovite” que invadiu constantemente a casa, pelas paredes revestidas com folhas cheias de esquissos e marcas de fita-cola, pelas marcas do x-acto nas várias secretárias, pelas maquetes que se apoderaram de todos os espaços vazios, pela paciência, pela dedicação, pelo esforço, por me incentivarem constantemente, pelas criticas; principalmente por nunca duvidarem. Muito obrigado a todos. APRESENTAÇÃO A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes A presente dissertação procura sintetizar a evolução urbana da frente ribeirinha de Lisboa, compreendida entre Santa Apolónia e a Boavista, desde o século XVII até à actualidade. Interessa-nos compreender a evolução da malha e estrutura urbana, das muralhas que outrora delimitaram a cidade e da composição do edificado que constitui o corpo das docas ribeirinhas que definem o seu limite. Procuramos apresentar uma síntese histórica e evolutiva acompanhada por um conjunto de plantas que permitem auxiliar e facilitar o estudo deste lugar de grande importância, pelo qual nutrimos uma enorme empatia, pela sua dimensão e relevância histórica, que reflecte a cultura de um enorme povo. Enquanto estudantes de arquitectura e arquitectos, os desenhos e as plantas configuram alguns dos principais elementos essenciais do desenvolvimento da nossa actividade; porém, é essencial compreender e reflectir sobre os estudos e influências que se exprimem no método criativo da concretização da planta, do corte e do alçado. O processo de criação da cidade reflecte o pensamento de quem a desenvolve, o conhecimento histórico da sua origem e evolução, do desenho, da forma e construção dos seus limites. Exploramos o tema da construção da frente ribeirinha de Lisboa através de dois exemplos - de dois concursos que abrangem uma área considerável do lugar de estudo: o Terminal de Cruzeiros de Lisboa, inserido na frente ribeirinha do bairro de Alfama e a Nova Sede da EDP sobre o aterro da Boavista. Por fim, complementamos o estudo sobre o qual dissertamos com dois casos práticos desenvolvidos no último ano de formação académica: um conjunto residencial sénior em Alfama e uma escola de música em Santa Catarina. Palavras-chave: Frente Ribeirinha, Evolução Urbana, Terminal de Cruzeiros, Nova Sede da EDP. ABSTRACT The construction of Lisbon’s riverfront: two exemplary cases Diogo Filipe Dias Marques Lopes This dissertation seeks to synthesize the urban development of the riverfront of Lisbon, between Santa Apolónia and Boavista, from the seventeenth century to the present day. We are interested in understanding the evolution of the mesh and urban structure, of the walls that once delimited the city and of the composition of the buildings which constitutes the body of the riverside docks that define its limits. We present an evolutionary and historical synthesis accompanied by a group of architectural plans that allow and facilitate the study of this place of great importance, for which we nourish a huge empathy because of its size and historical significance by reflecting the culture of a great people. As students of architecture and architects, the drawings and plans constitute some of the main elements for the development of our business; however, it is essential to understand and reflect on the studies and influences who express themselves in the creative method of implementation of the plan, section and elevation. The city's creative process reflects the thinking of who develops it, the historical knowledge of its origin and evolution, design, shape and boundaries construction. We explore the theme of Lisbon’s riverfront building through two examples - two competitions that cover a considerable area of the site of our study: the Cruise Terminal of Lisbon, located on the riverfront of the Alfama neighborhood and the New EDP Headquarters on the Boavista’s embankment. Finally, we complement the study on which we discourse with two practical cases developed in the last year of academic training: a senior housing complex in Alfama and a music school in Santa Catarina neighborhood. Keywords: Riverfront, Urban Evolution, Cruise Terminal, New EDP Headquarters. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Aldeia neolítica na Alemanha (cerca de 2000 a.C.). ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 17). ........................................................................................ 24 Ilustração 2 – Aldeia contemporânea nos Camarões (África). ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 20). ............................................................................................... 25 Ilustração 3 – Atenas unida por longos muros a Pireu, e planta de Atenas. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 104). .......................................................................... 27 Ilustração 4 – Planta da Acrópole de Atenas. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 90). ......................................................................................................................... 28 Ilustração 5 – Mileto, no século V a.C. por Hipódamo depois das Guerras Persas (colónia grega na actual Turquia). ([Adaptado a partir de:] Benevolo, 1993, p. 116). . 31 Ilustração 6 – Timgod, Plano de assentamento romano. ([Adaptado a partir de: Lamas, 2011, p. 145). ................................................................................................. 31 Ilustração 7 – A cidade de Olisipo Felisitas Julia – actual Lisboa durante o período romano. (Figueiredo, 2014)......................................................................................... 32 Ilustração 8 – Elemento decorativo de origem romana, presente na embasamento da torre sineira norte, da Sé de Lisboa, onde antes se encontrava a mesquita islâmica e o fórum romano. (Ilustração nossa, 2015)...................................................................... 34 Ilustração 9 – Planta da cidade circular de Bagdad, (Iraque), em 762 d.C.. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993)....................................................................................... 35 Ilustração 10 – Hieróglifo egípcio que indica cidade. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993). ......................................................................................................................... 35 Ilustração 11 – Lisboa medieval, dentro das muralhas. ([Adaptado a partir de: Marques, Gonçalves, Andrade, 1990, p. 58 - 59). ....................................................... 36 Ilustração 12 – A cidade ideal de Vitruvio, ilustrações concebidas a partir dos seus textos. ([Adaptado a partir de: Rosenau, 1988)......................................................... 38 Ilustração 13 – Três gravura com representações de Roma em diferentes períodos, produzidas em 1527, (da esquerda para a direita), Roma quadrada como foi imaginada, Roma no tempo de Sérvio Túlio e Roma no tempo de Augusto. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 138 - 139). ................................................................. 39 Ilustração 14 – Modelos de cidade ideal renascentista. ([Adaptado a partir de: Lamas, 1993). ......................................................................................................................... 39 Ilustração 15 – A formação do Ring de Viena, Áustria. ([Adaptado a partir de: Lamas, 1993, p. 202). ............................................................................................................. 42 Ilustração 16 – Levantamento de 1650. (Tinoco, 1650). ............................................. 60 Ilustração 17 – Planta de Lisboa Anterior ao Terramoto: estudos parciais e planta. (Freitas, 1850-1860?). ................................................................................................ 62 Ilustração 18 – Planta de Lisboa Anterior ao Terramoto. ([Planta, 1800-1850?). ........ 62 Ilustração 19 – Proposta de reconstrução 1758. (Mardel, Santos, 1758). ................... 63 Ilustração 20 – Planta de Lisboa 1770. (Planta, 1770). ............................................... 64 Ilustração 21 – Carta Topográfica da Cidade de Lisboa Comprehendida entre Barreiras. ([Adaptado a partir de:] Fava,1808-1832?). ............................................... 65 Ilustração 22 – Planta nº 51- Terreiro do Paço, Filipe Folque, 1856. ([Adaptado a partir de: Viegas, Tojal, 2000, p. 85). .................................................................................. 66 Ilustração 23 – Planta 11 E, Praça do Município - Praça do Comércio, Silva Pinto. ([Adaptado a partir de: Viegas, Tojal, 2005, p. 73). .................................................... 68 Ilustração 24 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1650. (Ilustração nossa, 2014). . 70 Ilustração 25 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1755. (Ilustração nossa, 2014). . 71 Ilustração 26 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1770. (Ilustração nossa, 2014). . 72 Ilustração 27 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1858. (Ilustração nossa, 2014). . 73 Ilustração 28 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1911. (Ilustração nossa, 2014). . 74 Ilustração 29 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 2015+. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................................................................... 75 Ilustração 30 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 16501755. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................... 76 Ilustração 31 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 17551770. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................... 77 Ilustração 32 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 17701858. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................... 78 Ilustração 33 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 18581911. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................... 79 Ilustração 34 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 19112015+. (Ilustração nossa, 2014).................................................................................. 80 Ilustração 35 – Implantação da nova sede da EDP na frente da Boavista. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009).................................................................................................. 83 Ilustração 36 – A nova sede da EDP, vista a partir do cais fluvial do Cais do Sodré. (Ilustração nossa, 2014). ............................................................................................ 84 Ilustração 37 – As duas torres em construção, configuração do vazio central. (Ilustração nossa, 2014). ............................................................................................ 85 Ilustração 38 – A nova sede da EDP vista a partir do miradouro de St. Catarina, durante a construção do esqueleto estrutural. (Ilustração nossa, 2014)...................... 86 Ilustração 39 – Maqueta da nova sede da EDP, onde é perceptível a forma empenada, o corpo horizontal que une as duas torres, e entrada no embasamento da torre da direita, Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009, p. 199). .. 87 Ilustração 40 – Diagramas da composição das fachadas, Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009). .......................................................................... 89 Ilustração 41 – Estrutura da fachada. (Ilustração, nossa, 2014). ................................. 90 Ilustração 42 – Perfis de betão de revestimento da fachada. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................................................................... 90 Ilustração 43 – Pormenor dos elementos de encaixe da fachada. (Ilustração nossa, 20014). ....................................................................................................................... 90 Ilustração 44 – Composição da fachada. (Ilustração nossa, 2014). ............................ 90 Ilustração 45 – A fachada de vidro ainda sem os perfis de betão. (Ilustração nossa, 2014). ......................................................................................................................... 91 Ilustração 46 – A estrutura e o revestimento. (Ilustração nossa, 2014). ...................... 95 Ilustração 47 –A torre nascente e a ponte. (Ilustração nossa, 2014). .......................... 95 Ilustração 48 – A torre poente e a ponte. (Ilustração nossa, 2014). ............................ 95 Ilustração 49 – Aço, betao e vidro. (Ilustração nossa, 2014). ...................................... 95 Ilustração 50 – (De baixo para cima) Plantas dos pisos -1, 1, 2. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009)........................................................................................................... 96 Ilustração 51 – (De baixo para cima) Plantas dos pisos, 3, 4, 5. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009)........................................................................................................... 97 Ilustração 52 – Edifício Carrión, Madrid, conhecido pela população local e estrangeira por edifício Schweppers. (Ilustração nossa, 2013). ................................................... 102 Ilustração 53 – Ortofotomapa com a proposta do plano urbano do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010)........................ 107 Ilustração 54 – Planta tipo do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). ................................................................................. 107 Ilustração 55 – (Da esquerda para a direita) claustro de Cartuxa de Galluzzo no Val d’ Ema (Florença), cela / unidade de composição do claustro, planta da modulo de composição das Emmeuble - Villas. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). ....................................................................................................................... 108 Ilustração 56 – (Da esquerda para a direita) Vista do interior do pátio do pavilhão de L’Esprit nouveau, perspetiva da fachada de um conjunto de Emmeuble - Villas. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). ........................................... 108 Ilustração 57 – (À esquerda) Plantas tipo das tipologias modulares que compõem os edifícios propostos do plano de pormenor da Boavista, (À direita) vista da fachada de um dos edifícios propostos do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). ................................................................................. 108 Ilustração 58 – Maquete volumétrica da proposta e do seu entorno. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). .................................................................................................... 111 Ilustração 59 – Maquete volumétrica da proposta para a nova sede da EDP e do conjunto residencial. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). ......................................... 111 Ilustração 60 – Maquetes volumétricas das propostas. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). ....................................................................................................................... 111 Ilustração 61 – Vista do interior do “espaço nave”. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). ................................................................................................................................. 112 Ilustração 62 – Planta térrea da proposta para a nova sede da EDP e para a envolvente do plano da Boavista. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). ..................... 112 Ilustração 63 – Ortofotomapa com a proposta para o plano de pormenor do aterro da Boavista. (Amador, 2014). ........................................................................................ 115 Ilustração 64 – Plantas da proposta para a nova sede da EDP. (Amador, 2014). ..... 115 Ilustração 65 – Perspectivas do projecto, para a nova sede da EDP. (Amador, 2014). ................................................................................................................................. 116 Ilustração 66 – Vistas da maqueta da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). ....................................................................................................................... 119 Ilustração 67 – Esquissos da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). .. 119 Ilustração 68 – Vista da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). .......... 120 Ilustração 69 – Planta da proposta urbana para o plano de pormenor do aterro da Boavista e para nova sede da EDP. (Cruz, 2013). .................................................... 123 Ilustração 70 – Esquissos da proposta para a nova sede da EDP. (Cruz, 2013)....... 123 Ilustração 71 – Modelos da proposta para a nova sede da EDP. (Cruz, 2013). ........ 124 Ilustração 72 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), edificado, 1650-17551770. (Ilustração nossa, 2014). ................................................................................. 133 Ilustração 73 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), edificado, 1855-19112015+. (Ilustração nossa, 2014)................................................................................ 134 Ilustração 74 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). .......................................................................................... 135 Ilustração 75 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), 1858-1911-2015+. (Ilustração nossa, 2014). .......................................................................................... 136 Ilustração 76 – Localização do plataforma /cais do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (João Luís Carrilho da Graça Arquitectos, 2011). ......................................... 138 Ilustração 77 – Localização do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (João Luís Carrilho da Graça Arquitectos, 2011). ....................................................................... 140 Ilustração 78 – Perspectiva do plano do Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). .................................................................................................... 142 Ilustração 79 – Maqueta com vista do alçado poente do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). ........................................................................ 143 Ilustração 80 – Maqueta com vista do alçado poente do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). ........................................................................ 144 Ilustração 81 – Maqueta do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). ....................................................................................................................... 145 Ilustração 82 – Axonometria do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010)...................................................................................................... 146 Ilustração 83 – Planta do piso superior do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010). ..................................................................... 147 Ilustração 84 – Planta do piso térreo do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010). ......................................................................................... 147 Ilustração 85 – Cortes e alçados do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010)................................................................................................ 148 Ilustração 86 – Embarcação atracada junto à Gare Marítima de Alcântara que se encontra à direita ( fotografia tirada da varanda do piso superior). ([Adaptado a partir de: Henriques, 2013, p.4). ....................................................................................... 154 Ilustração 87 – Pormenor da cobertura do núcleo central da gare marítima de Alcântara. (Ilustração nossa, 2014)........................................................................... 154 Ilustração 88 – O barco, a grua e a galeria. (Ilustração nossa, 2014). ...................... 155 Ilustração 89 – Entrada da gare maritime da Rocha do conde de Óbidos. (Ilustração nossa, 2014). ............................................................................................................ 155 Ilustração 90 – Pormenor da gare de Alcântara. (Ilustração nossa,2014). ................ 155 Ilustração 91 – Entrada da gare maritime de Alcântara. (Ilustração nossa, 2014). .... 155 Ilustração 92 – Axonometria da proposta, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Byrne, Mateus, 2010). ........................................................ 159 Ilustração 93 – Perspetivas da proposta a partir da cidade, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). ................................................. 160 Ilustração 94 – Perspetiva da proposta a partir do rio, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). ................................................. 160 Ilustração 95 – Plantas e cortes do projecto, Guillermo Vazques Consuegra, 2010. ([Adaptado a partir de: Vasqués Consuegra, 2010). ............................................... 163 Ilustração 96 – Perspetiva do projecto a partir da cidade e maqueta da proposta, Guillermo Vazques Consuegra, 2010 ([Adaptado a partir de: Leal, 2010)............... 164 Ilustração 97 – Plantas e cortes da proposta, ARX Portugal, 2010. ([Adaptado a partir de: ARX Portugal, 2010). ......................................................................................... 167 Ilustração 98 – Maquetas e perspetivas do projecto a partir do rio e da cidade, ARX Portugal, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010)................................................. 168 Ilustração 99 – Cortes do projecto, Zaha Hadid, 2010. ([Adaptado a partir de: Zaha Hadid, 2010). ............................................................................................................ 171 Ilustração 100 – Vista do projecto a partir do rio e vista do interior do Terminal, Zaha Hadid, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). ................................................... 172 Ilustração 101 – Gravura da cidade de Lisboa compreendida pelas muralhas. ([Adaptado a partir de: Matos, 2012). ..................................................................... 175 Ilustração 102 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), edificado, 1650-17551770. (Ilustração nossa, 2014).................................................................................. 182 Ilustração 103 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), edificado, 1858-19112015+. (Ilustração nossa, 2014)................................................................................ 183 Ilustração 104 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). .......................................................................................... 184 Ilustração 105 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). .......................................................................................... 185 Ilustração 106 – Maquetas de estudo. (Ilustração nossa, 2012). ......................... 190 Ilustração 107 – Características do edificado envolvente, sítio de Alfama. (Ilustração nossa, 2012). ............................................................................................................ 191 Ilustração 108 – Planta de localização da proposta na frente ribeirinha de Alfama. (Ilustração nossa, 2013). .......................................................................................... 192 Ilustração 109 – Perfil de Alfama, com a localização da proposta e o projecto do novo Terminal de Cruzeiros. (Ilustração nossa, 2013). ...................................................... 192 Ilustração 110 – Diagramas. (Ilustração nossa, 2013). ............................................. 193 Ilustração 111 – Plantas das tipologias das residências sénior. (Ilustração nossa, 2013). ....................................................................................................................... 194 Ilustração 112 – Plantas; planta térrea, planta tipo e planta de coberturas. (Ilustração nossa, 2013). ............................................................................................................ 195 Ilustração 113 – Alçado principal (Sul) e corte do projecto. (Ilustração nossa, 2013). ................................................................................................................................. 196 Ilustração 114 – Ortofotomapa com a localização das intervenções, S. Catarina e Boavista. (Ilustração nossa, 2013). ........................................................................... 201 Ilustração 115 – Planta de localização das intervenções. Miradouro de S. Catarina. (Ilustração nossa, 2014). .......................................................................................... 201 Ilustração 116 – Diagramas de estudo da composição e construção da bancada exterior. (Ilustração nossa, 2013). ............................................................................. 202 Ilustração 117 – Plantas do edifício da escolar de música. (Ilustração nossa, 2013). 203 Ilustração 118 – Alçados e cortes do edifício da escolar de música. (Ilustração nossa, 2013). ....................................................................................................................... 204 Ilustração 119 – Plantas dos pisos -1 e -2 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). ....................................................................................................................... 205 Ilustração 120 – Plantas dos pisos 1 e 0 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). ....................................................................................................................... 206 Ilustração 121 – Plantas dos pisos 3 e 4 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). ....................................................................................................................... 207 Ilustração 122 – Alçados do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). ............. 208 Ilustração 123 – Corte do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). ................. 209 SUMÁRIO: 1. Introdução ........................................................................................................... 19 2. A cidade .............................................................................................................. 21 2.1. Origem e evolução da cidade ...................................................................... 23 2.2. O desenho, a forma e a construção da cidade ............................................ 45 2.3. Uso e vivência da cidade ............................................................................. 50 2.4. Limite e fronteira da cidade ......................................................................... 54 2.5. Estudo das cartas e levantamentos da cidade............................................. 59 3. Frente ribeirinha da Boavista – Nova Sede da EDP – Aires Mateus .................. 81 3.1. A nova sede, a Imagem do Território ........................................................... 98 3.2. Nova Sede da EDP - Concurso ................................................................. 103 3.2.1. Proposta de Carrilho da Graça .......................................................... 104 3.2.2. Proposta de Gonçalo Byrne ............................................................... 109 3.2.3. Proposta de ARX Portugal ................................................................. 113 3.2.4. Proposta de Souto Moura .................................................................. 117 3.2.5. Proposta de Graça Dias e Egas Vieira............................................... 121 3.3. Transformação do limite ribeirinho da Boavista ......................................... 125 4. Frente ribeirinha de Alfama - Terminal de Cruzeiros de Lisboa – Carrilho da Graça .......................................................................................................................... 137 4.1. O Terminal de Cruzeiros e as Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos. ................................................................................................. 150 4.2. Terminal de Cruzeiros de Lisboa – Concurso ............................................ 156 4.2.1. Proposta de Gonçalo Byrne e Manuel Aires Mateus .......................... 157 4.2.2. Proposta de Guillermo Vazques Consuegra ...................................... 161 4.2.3. Proposta de ARX Portugal ................................................................. 165 4.2.4. Proposta de Zaha Hadid .................................................................... 169 4.3. Transformação do limite ribeirinho na colina do castelo ............................ 173 5. Projectos académicos ....................................................................................... 187 5.1. Alfama - Residência e Habitação Sénior ................................................... 188 5.2. Miradouro de Santa Catarina - Escola de Música e Jardim ....................... 197 6. Considerações Finais ........................................................................................ 211 Referências .............................................................................................................. 213 Bibliografia ................................................................................................................ 219 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 1. INTRODUÇÃO O objectivo da arquitectura – a função da arquitectura – consiste em tornar imperceptível a dificuldade de cobrir um grande vão, ou de controlar a contraditória relação entre interior e exterior, entre protecção e abertura, entre luz e penumbra: ou ninguém se sentirá “em casa”. Desenvolver um projecto consiste em ultrapassar a perene oposição entre natureza e criação humana. Tudo deverá surgir inevitavelmente evidente. O inesperado e surpreendente depressa se transforma em banal. (Siza, 2009, p. 329). No seu sentido mais puro, Siza Vieira1 descreve muito do que procuramos com esta dissertação: o prazer do engano, do controlo, da relação, da protecção que nos conforta e a que chamamos CASA. Mas que CASA? A casa do quotidiano, onde nos refugiamos e, em simultâneo, a casa da sociedade e da civilização: a cidade. Estas palavras recordam-nos a cidade onde não nascemos, mas onde crescemos, que todos os dias nos ensina, nos esconde segredos e nos leva a desvendá-los, aprendemos constantemente, e certamente que assim continuará esta relação de dependência – mais nossa que dela. A curiosidade pessoal, e o interesse demonstrado durante boa parte da nossa experiência de vida, obteve continuidade durante o nosso percurso académico, culminando num desfecho interessante e curioso materializado sob a forma desta dissertação. Este trabalho pretende reflectir sobre o conhecimento da cidade de Lisboa, complementando e finalizando parte do percurso académico e fechar este ciclo, que de modo algum pretende ser conclusivo, mas sim um momento de reflexão e síntese da aprendizagem dos últimos anos. Muito do que está presente neste trabalho resulta de questões nossas, que foram aparecendo durante o estudo da cidade [e das cidades] e que são inerentes à arquitectura. 1 Siza Vieira (Matosinhos, 1993), Arquitecto português, formado pela Escola de Belas-Artes do Porto, onde mais tarde leccionou. Iniciou a sua actividade profissional ainda durante a formação académica junto do arquitecto Fernando Távora, com quem mais tarde colaborou. Possui uma vasta obra construída, em território nacional e no estrangeiro; igualmente publicada, quer em livros de sua autoria, como em artigos e revistas reconhecidas. Foi condecorado com inúmeros prémios nacionais e internacionais, destacandose o Prémio Mies van der Rohe (1988), Prémio Wolf de Artes (2001), Medalha de Ouro do RIBA (2009), Leão de Ouro-Bienal de Arquitectura de Veneza (2002 e 2012), e a maior distinção para um arquitecto: o prémio Pritzker (1992), o primeiro entregue a um arquitecto português. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 19 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares É inevitável o estudo da cidade – quase obrigatório e a nosso ver sempre nos fascinou a sua dimensão, o impacto que provoca e que assume no território, e a dependência da humanidade sobre estas estruturas. Da metodologia de trabalho resultam seis capítulos: nos capítulos 1 e 2 pretendemos desenvolver as questões levantadas no estudo da cidade resultantes do percurso académico, bem como explorar os conceitos que caracterizam este tema, partindo da história como referência inicial, na procura dos métodos e meios de desenvolvimento desde o desenho, à localização, à relação do corpo/estrutura urbana com os territórios, e ainda a definição da forma e do limite, da apropriação do espaço, da função e do uso, convergindo num estudo mais específico e incisivo: o das plantas e levantamentos da cidade, compreendido entre o século XVII e a actualidade. O estudo das plantas e levantamentos acompanha todo o desenvolvimento desta dissertação e complementa a informação recolhida, funcionando como um instrumento de trabalho levado a cabo por nós com o objectivo de facultar um meio de estudo da informação, ao comparar o desenvolvimento da frente urbana da cidade, em confronto com o rio durante um período de tempo relevante e caracterizado por fortes transformações. Do estudo da cidade de Lisboa rapidamente se procurou balizar e determinar um lugar [ou lugares contínuos] onde concentrámos as nossas dúvidas e questões no estudo da construção da frente ribeirinha. A delimitação do território de estudo é determinada pela implantação dos projectos académicos de 5º ano [capítulo 5], que coincide com os dois casos de estudo inseridos dentro deste trabalho [capítulos 3 e 4]. Foi do nosso interesse concentrar o estudo dos exemplos em concursos que futuramente terão um enorme impacto na consolidação e na vivência do espaço que compreende a frente ribeirinha: o concurso para o novo terminal de cruzeiros e o concurso para a nova sede da EDP, que resultam em dois importantes e interessantes exemplos da construção desta franja da cidade, no limite mais icónico da urbe. Por fim, o caso prático [capítulo 5] procura apresentar um conjunto de soluções académicas inseridas dentro deste contexto, tendo sido fundamental na construção e estruturação deste tema. Pretendemos ainda apresentar pequenas propostas inseridas dentro da malha urbana consolidada, ao renovar o tecido e introduzindo vitalidade; ambicionando contagiar um sítio e por sua vez o lugar, sendo estas pequenas acções capazes de transformar o todo. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 20 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2. A CIDADE A cidade enquanto estudo, consiste num tema muito abrangente e muito vago. O objectivo não se trata de a estudar exaustivamente mas de procurar desenvolver algumas questões levantadas durante o percurso académico. Deste modo, o presente estudo da cidade procura ir de encontro ao desenvolvido no trabalho prático, referente à frente ribeirinha, propondo-nos neste capítulo complementar algumas questões a consolidar os capítulos seguintes. Procuramos sintetizar a evolução história da cidade em geral, exemplificando e comparando, sempre que possível, com a cidade de Lisboa e a respectiva frente ribeirinha. Assim, a história da cidade contribui como início deste estudo, levantando novas questões sobre a mesma, desde a sua construção, o modo como se insere no território, como é desenhada e utilizada, quais os usos e funções que lhe atribuímos bem como a sua evolução no tempo e no espaço. Falar da história da cidade e compreender o seu aparecimento e evolução é simultaneamente falar da origem da civilização e da própria evolução da humanidade, tal como Aldo Rossi expressa numa das suas mais célebres obras: A Arquitectura da Cidade. Assim como os primeiros homens construíram para si habitações e, na sua primeira construção procuraram realizar um ambiente mais favorável à sua vida, construindo um clima artificial, assim também contrariam segundo uma intencionalidade estética. Iniciaram a arquitectura a um tempo com os primeiros traços da cidade; a arquitectura é assim congénita com a formação da civilização e é um factor permanente universal e necessário. (Rossi, 1977, p. 23). Construir cidade é construir um mundo próprio do Homem, um mundo “artificial” dentro de outro preexistente, é uma interpretação da natureza recriada pela nossa acção. Está claro como a historia da humanidade modelou as cidades, os territórios, a sua forma, os métodos e modelos da sua construção, os hábitos e costumes, as tradições. A cidade e o Homem transformaram-se reciprocamente e foi esta relação que permitiu a construção dos impérios e das civilizações. “Com o tempo a cidade cresce sobre si mesma; adquire consciência e memória de si mesma de si própria.” (Rossi, 1977, p. 24). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 21 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Da mesma forma que nós – a humanidade evoluímos e desenvolvemos os nossos conhecimentos e capacidades, também esse processo se reflectiu no crescimento e transformação da cidade. A forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade; e existem muitos tempos na forma da cidade. No próprio decorrer da vida de um Homem a cidade muda de vulto, os referimentos não são os mesmos; Baudelaire escreve: “le vieux Paris n’est plus; la forme d’une ville change plus vite, hélas, que le coeur d‘un mortel” 2 Olhamos como inacreditavelmente velhas as casa da nossa infância; e a cidade que muda apaga com frequência as nossas recordações. (Rossi, 1977, p. 68). A diferença foca-se no resultado: enquanto o Homem apresenta características finais físicas de comportamento fruto de milénios de evolução, na cidade sobrepõem-se camadas. A história da sua evolução expressa-se na composição do corpo que está sempre presente e consciente da sua idade, e do seu tempo. O Homem é simplesmente um produto “acabado” e efémero que nasce, vive e morre – e rapidamente outro Homem nasce para ocupar o seu lugar: somos substituíveis, como se de peças nos tratássemos; as cidades não, elas são construídas por nós e para nós e porém, ultrapassam-nos. Hitler escreveu que para destruir um povo, para nele apagar a consciência de si próprio, basta destruir os seus monumentos, o meio físico a partir do qual ele se identifica. [...] A transformação da cidade é fenómeno natural e prova de vitalidade, se de acordo com as suas necessidades, ou seja, com as necessidades colectivas do cidadão. (Siza, 2009, p. 19). Estamos conscientes da nossa efemeridade no tempo e, por isso, tudo quanto criamos ambiciona ser [mais] permanente. A cidade é uma das nossas maiores criações e entregamo-la às gerações futuras esperando que elas a perpetuem no tempo e a mantenham. O ciclo é contínuo e manter-se-á até ao dia em que a humanidade desaparecer, pois também aí a cidade desaparecerá. “O velho Paris já não existe, a forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal.” (Tradução nossa) 2 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 22 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2.1. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA CIDADE Na procura da origem da cidade, somos tendencialmente levados para as grandes cidades antigas, que ainda hoje permanecem activas. Porém, é provável que as primeiras construções tenham desaparecido. O Homem vive da experimentação e a cidade é uma prova desse processo, do pensamento posto em prática, substituindo-se e renovando-se. Existem duas possibilidades para estas primeiras construções: a primeira, consistindo na absorção total ou o abandono/ruína e a segunda, o consequente desaparecimento e eliminação de qualquer vestígio da sua presença. Como referimos anteriormente, o conhecimento humano da construção do abrigo evoluiu através da experimentação e foi transmitido da mesma forma às gerações seguintes. Deste modo, a cidade de hoje, não é mais que o culminar de toda a evolução e experimentação feita pelo Homem durante a sua existência. Sempre nos questionámos sobre estas ideias de como nasceu a cidade, em especial acerca da “faísca” que desencadeou uma das criações mais extraordinárias da humanidade. Foi a partir do livro de Leonardo Benevolo3, História da Cidade, que pudemos clarificar algumas ideias através das palavras deste autor: A cidade - local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade - nasce da aldeia, mas não é apenas uma aldeia que cresceu. Ela se forma, como pudemos ver, quando as industrias e os serviços já não são executados pelas pessoas que cultivam terra, mas por outras que não tem esta obrigação, e que são mantidas pelas primeiras com o excedente do produto total. (Benevolo, 1993, p. 23). Existe um conjunto de ideias muito importantes que pode clarificar a origem da cidade, nomeadamente a existência de pequenos núcleos urbanos que crescem, processam recursos e – a mais importante – produzem excedentes. A ideia do excedente é claramente um dos principais impulsionadores da criação da cidade. O domínio da agricultura eleva a sociedade para outro patamar, permitindo-lhe o domínio da sua subsistência. O Homem da sociedade recolectora vive dia após dia, procurando os recursos para a sua sobrevivência e sem permanecer no mesmo lugar, levando consigo os seus objectos, ferramentas e utensílios, e possuindo apenas um abrigo muito rudimentar. Com o aparecimento da agricultura e o domínio do cultivo dos recursos alimentares, a sociedade é obrigada a fixar-se num determinado lugar. 3 Leonardo Benevolo (Orta San Giulio, 1923), arquitecto italiano reconhecido pelos inúmeros estudos, publicações e trabalhos relacionadas com a história e teoria da arquitectura e da cidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 23 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Foi através do domínio de uma nova ferramenta de subsistência que permitiu ao Homem obter o excedente agrícola e impulsionar a construção da cidade. Perguntamo-nos então: como é que a agricultura é responsável pela origem da cidade? É simples: o excedente agrícola permite ao Homem uma maior capacidade de subsistência e menor vulnerabilidade relativamente às transformações e ciclos da natureza. Simultaneamente, não só confere maior capacidade ao indivíduo como lhe permite posicionar-se no tempo, isto é, o Homem recolector vive dia após dia, lutando pelo dia seguinte. É graças à agricultura e ao respectivo excedente que consegue viver no tempo, vê a sua sobrevivência garantida, e é essa garantia que o leva a valorizar os recursos alimentares provenientes da agricultura. Esta necessidade de protecção dos bens alimentares e a fixação num lugar permanente são os elementos instigadores de uma nova realidade na sociedade: a construção do abrigo altera-se, ganha bases mais sólidas e perdura no tempo, porque o Homem revê-se num futuro mais distante. A cidade é um reflexo da visão do Homem no tempo que só foi possível porque a sua sobrevivência alimentar passou a ser dependente dele mesmo; porém, o excedente permite não só a fixação de mais população como serve também para ser utilizado como bem de troca por actividades executadas pelos que não cultivam a terra e permite o desenvolvimento de novos conhecimentos, da cultura e de uma identidade própria da sociedade em questão. Ilustração 1 – Aldeia neolítica na Alemanha (cerca de 2000 a.C.). ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 17). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 24 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 2 – Aldeia contemporânea nos Camarões (África). ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 20). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 25 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Duas das maiores sociedades organizadas e construtoras de grandes cidades são as civilizações suméria e egípcia, quase contemporâneas e relativamente próximas geograficamente. Na Suméria a agricultura desenvolve-se a partir dos canais de irrigação, transformando o território e alterando-o, desviando a água do rio para as plantações. Por sua vez no Egipto, a agricultura encontrava-se totalmente dependente da subida e descida do nível da água nas margens do Nilo. Deste modo, se o rio não inundasse os campos, fertilizando-os e transportando as tão necessárias lamas, não haveria cultivo das terras, tal como se o rio não recuasse. O Egipto estava assim totalmente dependente dos ciclos da natureza. Tal como para a localização das cidades é básico que se encontrem condições naturais e recursos alimentares, também o centro dentro da cidade é um elemento cuja localização obedece às mesmas crenças e ao mesmo ideário. Diz Eródoto que o Egipto <é um dom do Nilo> e o poder divino do Faraó um dom do Sol (Rá). (Taveira, 1974, p. 149). A semelhança na localização estratégica junto do rio aproxima as duas civilizações, porém os níveis de dependência dos recursos é distinto e, na verdade, originou duas civilizações totalmente diferentes. A dependência dos ciclos e das fases de transformação do Nilo levou os egípcios à adoração quase obsessiva do tempo e dos ciclos, reflectindo-se nas suas crenças e superstições, na religião, nos deuses, nos mortos, na mumificação e na vida após a morte. Enquanto a cidade suméria é de tijolo de barro e adobe, a egípcia é de pedra, feita para perdurar no tempo. A cidade reflecte a sociedade que lhe deu forma. A simplicidade suméria deu origem a cidades que hoje estão praticamente desaparecidas. As egípcias, tão obcecadas com os ciclos e construídas em pedra estão de pé ou melhor, vão mantendo a postura, perdurando até hoje. Em suma, foi a agricultura a principal responsável pela criação de cidades, dos grandes grupos populacionais e dos aglomerados urbanos, porém foi a natureza que transformou o Homem e as características únicas de cada cidade e foi ela que moldou a identidade e a cultura de cada sociedade. No contexto português as cidades egípcias e sumérias têm poucas repercussões. A grande referência da cultura ocidental encontra-se na Antiga Grécia, que não possui nenhuma das características referidas nos exemplos anteriores, existindo no entanto uma relação entre elas. A Grécia, localizada num território complexo e árido é a Diogo Filipe Dias Marques Lopes 26 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares primeira grande sociedade comercial e mercantil, e é uma civilização que cresce através da negociação do excedente agrícola das civilizações vizinhas dos rios Nilo, Eufrates e Tigre. A estratégia de subsistência da sociedade grega percute-se na concepção da cidade helénica. A cidade grega subdivide-se em três partes: uma, próxima do mar e que permite fazer a ligação e a comunicação com os outros portos e cidades e as outras duas partes no interior do território: a acropole num ponto elevado e mais protegido, onde estão os templos e as estruturas defensivas e a astu, na base da elevação, onde vive a população e se desenvolve o comércio, os serviços e a política. A cidade resulta assim de um conjunto de relações entre três partes que dão corpo a um conjunto único estrategicamente organizado numa cooperação de subsistência. Ilustração 3 – Atenas unida por longos muros a Pireu, e planta de Atenas. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 104). Esta ligação entre as partes faz sentido se compreendemos que em tempos estes centros estiveram unidos por um conjunto de longas muralhas que uniam o núcleo portuário ao núcleo urbano interior. A visão da unidade é tão importante e está de tal modo interiorizada que levou à fortificação do percurso que une os vários núcleos urbanos. Esta situação está presente em praticamente todas as grandes cidades gregas, como Atenas com a acropole coroada com o partenon4, a astu com o teatro de Dionísio e outros edifícios direccionados ao culto e à governação, estando a restante cidade estendida pelo território mais plano. Junto ao mar encontra-se a Pireu: um núcleo urbano vocacionado para o comércio marítimo e o porto da cidade de Atenas. Partenon – edifício icónico da arquitectura, um dos maiores exemplos da cultura da Grécia Antiga; templo dedicado à deusa grega Atena, localizado na cidade Atenas, no topo do monte da Acrópole, erguido no século V a.C. pelos arquitectos Calícrates e Ictinos, e pelo escultor Fídias, ainda hoje constitui uma das mais importantes obras de referência da história da civilização e da história da arquitectura. 4 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 27 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 4 – Planta da Acrópole de Atenas. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 90). A origem é uma colina, onde se refugiam habitantes do campo para defender-se dos inimigos; mais tarde, o povoado se estende pela planície vizinha, e geralmente é fortificado por um cinturão de muros. Distingue- se assim a cidade alta (a acrópole, onde ficam os templos dos deuses, e onde os habitantes da cidade ainda podem refugiar- se para uma ultima defesa), e a cidade baixa (a astu, onde se desenvolvem os comércios e as relações civis); mas ambas são partes de um único organismo, pois a comunidade citadina funciona como um todo único, qualquer que seja seu regime político. (Benevolo, 1993, p. 76). O modelo de cidade desenvolvido pelos gregos na Antiguidade Clássica é a referência base do desenvolvimento da cidade ocidental, influenciando a cidade romana que foi difundida por todo o império, sofrendo posteriormente transformações e adicionando novas características adaptadas aos diferentes contextos e às necessidades da Diogo Filipe Dias Marques Lopes 28 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares sociedade. Contudo, a cidade grega não é só uma estruturação tripartida de um núcleo urbano mas um modelo mais complexo, reflexo da natureza que nos rodeia, e da artificialização do mundo construído, através da cultura de cada uma destas sociedades. A cidade, no seu conjunto, forma um organismo artificial inserido no ambiente natural, e ligado a este ambiente por uma relação delicada, respeitada as linhas gerais da paisagem natural que em muitos pontos significativos é deixada intacta, e integra-a com os manufaturados arquitectónicos. A regularidade dos templos (que tem uma planta perfeitamente simétrica, e tem um acabamento igual de todos os lados devido à sucessão das colunas) é quase sempre compensada pela irregularidade dos arranjos circunstantes, que se reduz depois na desordem da paisagem natural. A medida deste equilíbrio entre natureza e arte dá a cada cidade um carácter individual e reconhecível. (Benevolo, 1993, p. 80). A cidade é o mundo construído pelo Homem e não exclui a natureza onde está inserida, complementando-a. A cidade grega é um mundo artificial dentro de um mundo “natural” e original, onde ambos coexistem em simultâneo. O lugar é fundamental na concepção da arquitectura clássica; a arquitectura e a natureza vivem numa comunhão constante e o modo como se relacionam permite diferenciar a construção de lugar para lugar. Cada cidade é única, cada templo é singular. O teatro escavado na pedra é um claro exemplo onde esta relação é mais forte e onde está mais presente, sendo ele portador de uma mestria e conhecimento formidável. “O templo grego repete um tipo arquitectónico, mas de santuário para santuário a diferente situação geográfica faz variar o seu aspecto. Noutros casos é o lugar que, pelo seu potencial sugestivo, gera a própria arquitectura.” (Lamas, 2011, p. 64). Assim, a presença do Homem na natureza torna-se evidente pela qualidade, não pela quantidade; o cenário urbano – como o organismo político da cidade- estado – permanece um construção na medida do Homem, circundada e dominada pelos elementos da natureza não mesurável. Mas o Homem, com o seu trabalho pode melhorar esta construção até imitar a perfeição da natureza, e pode estabelecer, como na natureza, uma continuidade rigorosa entre as partes e o todo. O conjunto de monumentos na Acrópole pode ser visto de todos os lados da cidade, e os templos revelam de longe sua estrutura simples e racional; depois ao aproximar-se, descobremse as articulações secundaria, os elementos arquitectónicos repetidos (colunas, bases, capiteis ) e os detalhes esculturais mais minuciosos, avivados pelas cores: um mundo de formas coerentes e ligadas entre si, da grande à pequena escala. (Benevolo, 1993, p.80). Foi com base na aprendizagem da natureza e do mundo que nos rodeia que a cidade clássica pode evoluir, onde a harmonia perfeita com a natureza é constante. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 29 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Numa citação anterior fazemos referência à unidade e às partes que compõem o todo: a acropole de Atenas é um excelente exemplo disso – um conjunto de corpos de diferentes dimensões de plantas geométricas e regulares que se organizam e relacionam entre si. Se à primeira vista aparentam ser corpos largados sobre a colina de um modo aleatório, na verdade seguem uma estratégia interessante orientada sobre um determinado percurso. Os corpos implantados sobre a colina estruturam, configuram e criam espaços, as diferentes escalas, texturas e composições de fachada introduzem movimento, profundidade, luz e sombra – uma harmonia perfeita de espaços criados pelo Homem que certamente podemos descrever como uma natureza artificial “poética”, das mais extraordinárias criadas pelo Homem. Tendo o modelo grego sido absorvido pela civilização romana, é interessante comparar Roma com Atenas, e de que modo possuem um conjunto de estratégias comuns. A evolução mais relevante é claramente a da estratégia da construção das novas cidades – as colónias romanas – que são um dos principais instrumentos de divulgação de uma cultura que reflecte o conhecimento clássico desenvolvido pelos gregos e absorvido pelos romanos. A cidade/colónia grega é a referência da cidade/colónia romana: as premissas estão na estrutura urbana racional muito regular bem como na organização do espaço público e do espaço privado, na implantação dos grandes edifícios religiosos, institucionais e governamentais e, principalmente na organização basilar da cidade a partir de eixos viários predominantes. “No projecto da centuriatio se faz referência a dois eixos principais, o decumanos maximus e o cardos maximus, que têm comprimento maior e se cruzam num ponto, considerado o centro ideal da colônia”. (Benevolo, 1993, p. 197). Roma exponencia a estruturação das novas cidades a partir de um conjunto de dois eixos que se intersectam num determinado ponto. O eixo decumanos está orientado no sentido do ciclo solar, nascente-poente enquanto o eixo cardos se orienta no sentido norte-sul. O cruzamento destes eixos origina o centro da cidade onde se encontram os edifícios principais. Toda a cidade é estruturada, posteriormente, com base nestes eixos através de ruas paralelas que se vão cruzando e criando uma malha quadricular. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 30 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 5 – Mileto, no século V a.C. por Hipódamo depois das Guerras Persas (colónia grega na actual Turquia). ([Adaptado a partir de:] Benevolo, 1993, p. 116). Ilustração 6 – Timgod, Plano de assentamento romano. ([Adaptado a partir de: Lamas, 2011, p. 145). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 31 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares “[…] o campo militar romano é desenhado da mesma maneira; sabe-se que muitos campos se tornaram cidades permanentes, e por outro lado os colonos enviados nas centurationes são muitas vezes, veteranos militares”. (Benevolo, 1993, p. 197). A quadrícula é claramente uma das estratégias mais funcionais e rápidas de construir e de aumentar uma estrutura urbana, daí ser um dos modelos mais usados na construção de estruturas provisórias – como os campos militares. As semelhanças entre estas estruturas permitiram que muitos desses campos provisórios se transformassem em campos permanentes, substituindo as cercas de madeira por cercas de pedra e as tendas de tecido por paredes de alvenaria. Outras colónias e cidades são, ao contrário, de origem civil, e algumas foram fundadas antes que os romanos estabelecessem a regra para a disposição dos acampamentos. Portanto, as cidades romanas traçadas com um desenho regular, de origem militar ou civil, devem considerar-se uma aplicação em escala urbana do método geral da centuriatio, isto é, um prosseguimento, simplificado e padronizado, da prática hipodâmica difundida no mundo helenístico. (Benevolo, 1993, p. 197). Como tivemos oportunidade de constatar, a cidade de Olisipo/Lisboa não segue de modo algum a estratégia militar romana. Como sabemos, já existia um pequeno aglomerado urbano na encosta da actual colina do castelo, no local onde hoje se encontra o claustro da Sé de Lisboa e onde escavações arqueológicas permitiram posteriormente encontrar vestígios de construções de origem fenícia. Ilustração 7 – A cidade de Olisipo Felisitas Julia – actual Lisboa durante o período romano. (Figueiredo, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 32 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares “Num território inclinado os decumani estão dispostos horizontalmente, e os cardi segundo as linhas de inclinação máxima; ao longo de um rio ou de um mar os decumani são paralelos à costa; os cardi são perpendiculares”. (Benevolo, 1993, p. 198). A implantação do modelo romano em Lisboa segue uma estratégia diferente, um modelo romano desenvolvido para cidades já existentes e sob ocupação romana ou em territórios com características geográficas mais complexas. A cidade romana de Lisboa, Olisipo Felicitas Julia, é estruturada por dois eixos – cardos e decumanos – ideia que durante muito tempo questionámos por na cidade actual ser muito difícil constatar tal situação. Porém, e com a leitura da obra de Leonardo Benevolo, A História da Cidade, confirmámos tal evidência. Em cidades marítimas e ribeirinhas como Lisboa os eixos são mais flexíveis, isto é, adaptam-se à topografia e aos limites naturais; o decumanos (nascente-poente) é paralelo ao rio, perdendo o seu carácter rígido, mais próximo da curva que da linha recta; o cardos [norte-sul] é perpendicular ao rio e, deste modo, a malha urbana e a estrutura viária não correspondem a uma trama quadriculada regular, mas a um conjunto de polígonos que se adaptam mais facilmente à topografia. Com tal explicação – só possível através de Leonardo Benevolo – tornar-se mais fácil compreender a cidade de Lisboa no período romano: com o fim deste a cidade contrai-se e perde dimensão, concentrando-se sobre si mesma – situação ocorrida em praticamente todas as cidades do antigo Império Romano. As cidades fundadas ou transformadas pelos árabes, entre o Atlântico e a Índia, são muito semelhantes entre si e conservam sua estrutura originária até à época moderna. […] as casas, os palácios, os edifícios públicos – formam uma série de recintos, e os ambientes internos se debruçam sobre eles, não sobre o espaço externo. As praças são recintos maiores - ágoras, foros, mercados – e não se confundem com as ruas, que são corredores apenas suficientes para a passagem dos pedestres dos carros […]. (Benevolo, 1993, p. 225). Em Lisboa, o antigo forum romano foi convertido em mesquita apesar da estrutura ter sido parcialmente mantida e os elementos defensivos preservados e reforçados, ficando a cidade restringida aos limites defensivos da cerca. As questões defensivas assumem uma enorme importância na concepção da cidade no período muçulmano, não só pela instabilidade que se instaurou na Europa após o declínio romano como também pela riqueza inerente à mesma, associada ao grande domínio comercial, marítimo e terrestre, dos povos árabes, que uniam o oriente com o ocidente. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 33 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 8 – Elemento decorativo de origem romana, presente na embasamento da torre sineira norte, da Sé de Lisboa, onde antes se encontrava a mesquita islâmica e o fórum romano. (Ilustração nossa, 2015). “A cidade se torna um organismo compacto, fechado por uma ou mais voltas de muros que a diferenciam em vários recintos (o mais interno se chama medina).” (Benevolo, 1993, p. 226). Nesta sociedade rural, que forma a base da organização política feudal, as cidades têm um lugar marginal: não funcionam mais como centros administrativos, e em mínima parte como centros de produção e de troca. Mas as estruturas físicas das cidades romanas ainda estão de pé, e se tornam locais de refúgio; os grandes edifícios púbicos da Antiguidade – termas, teatros, anfiteatros – se transformam em fortalezas; os muros são mantidos com eficiência ou são reduzidos para defender uma parte limitada da cidade, ligando entre si as bases fortificadas mais importantes. As igrejas cristãs surgem muitas vezes no exterior, - perto das tumbas dos santos, que pelas leis romanas não podiam ser sepultados na cidade […]. (Benevolo, 1993, p. 253). Esta ideia da cidade romana muito estruturada e organizada que procura uma forma regular não é exclusiva da cultura ocidental e é interessante comparar as duas ilustrações que se seguem referentes à planta da cidade de Bagdad, que não fez parte do Império Romano, e a do hieróglifo egípcio associado à palavra “cidade”. A configuração é semelhante na construção da forma circular e nos anéis que configuram a forma do corpo, sendo claramente assinalado o centro da circunferência pelo edifício da mesquita, destacando-se assim da envolvente não edificada. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 34 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 9 – Planta da cidade circular de Bagdad, (Iraque), em 762 d.C.. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993). Ilustração 10 – Hieróglifo egípcio que indica cidade. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993). A cidade romana, então transformada em cidade muçulmana, sofreu transformações que promovem grandes alterações internas e externas. Não só transformou cidades em fortalezas grandemente protegidas e artilhadas, como também em lugares de convergência – principalmente comercial. A localização estratégica de Lisboa permitiu transformá-la num dos mais importantes portos intercontinentais, onde se uniam as rotas do norte e sul da Europa e do norte de África. Esta localização previlegiada de um porto protegido por uma baía relativamente perto do mar aberto, levou ao crescimento das riquezas, do poder e da contribuição estratégica da manutenção da presença muçulmana em toda a Península Ibérica. A explicação para a deformação da estrutura urbana [geométrica] romana poder-se-á dever à queda do Império e às sucessivas guerras entre tribos e povos. No caso de cidades pouco destruídas, a deformação dever-se-á à excessiva concentração de pessoas, indústrias e recursos nos núcleos urbanos, alterando a sua estrutura interna procurando dar resposta às habitações necessárias para a população. As novas instalações se adaptam com segurança ao ambiente natural entre as ruínas do ambiente construído antigo, não respeitam nenhuma regra preconcebida, seguem com indiferença as formas irregulares do terreno e as formas regulares dos manufaturados romanos; enfim, apagam toda a diferença entre natureza e geometria, isto é, deformam com pequenas irregularidades as linhas precisas dos monumentos e das estradas antigas e simplificam as formas imprecisas da paisagem, marcando as linhas gerais dos dorsos montanhosos, das enseadas, dos cursos de água. (Benevolo, 1993, p. 255). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 35 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 11 – Lisboa medieval, dentro das muralhas. ([Adaptado a partir de: Marques, Gonçalves, Andrade, 1990, p. 58 - 59). [...] falta de espaço dentro do recinto perímetro amuralhado, dificuldades na obtenção dos materiais de construção, levam a cidade medieval a utilizar os restos das antigas cidades romanas: pedras de templos e edifícios. A sobreposição de traçados e de construções realiza-se sem uma ordem predefinida e com pontos de apoio nos eixos que ligam as cidades, estradas de passagem, portas das muralhas, pontes sobre os rios, etc. Assim, a formação da cidade medieval vai processar-se organicamente por desenvolvimento das antigas estruturas romanas ou pela fundação de cidades novas organizadas segundo um plano regulador. (Lamas, 2011, p. 151). “A nova cidade assim formada continua a crescer da mesma forma, e constrói outros cinturões de muros cada vez mais amplos.” (Benevolo, 1993, p. 259). A necessidade de construir novas casas e equipamentos levou a cidade a romper os limites defensivos e a instabilidade territorial obrigou ao crescimento em forma de anel – rodeado por cinturas amuralhadas que delimitam novos espaços – em torno do núcleo central, mais antigo. No caso de Lisboa, temos como exemplo a cerca Fernandina construída no reinado de D. Fernando I de Portugal, que ampliou substancialmente o espaço circunscrito pelas muralhas, [mas também na cidade do Porto]. A construção desta muralha criou dois novos lugares dentro dos limites físicos da cidade: Alfama - a oriente e o vale da Baixa/Chiado – a ocidente. A forma urbana transformou-se e a cidade ganhou o actual contorno ribeirinho por influência da muralha que segue encostada, protegendo a cidade das ameaças externas [e do próprio rio]. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 36 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Quase todas as cidades possuíam as suas defesas, compostas de muros, torres, fossos e muralhas. As muralhas são o seu perímetro defensivo e, simultaneamente, separação com o campo e o mundo rural. Por razões de espaço, a cidade concentra-se até ser necessário alargar o seu limite e construir novas muralhas que englobam as expansões. Assim se formam os anéis sucessivos de construções e de sistemas defensivos. A muralha delimita a cidade e caracteriza a sua imagem e forma. (Lamas, 2011, p. 152). A orientação da cultura medieval, que não tende a estabelecer modelos formais como a cultura antiga, torna impossível uma descrição geral da forma da cidade. As cidades medievais tem todas as formas possíveis, e se adaptam livremente a todas as circunstâncias históricas e geográficas […]. (Benevolo, 1993, p. 269). A cidade é reflexo do território e detém uma capacidade de adaptação extraordinária a ele; a cidade medieval procura lugares com características peculiares, considerandoas uma mais-valia para a sua estrutura defensiva. A cidade medieval é prática, funcional e muito organizada; totalmente distinta da de outros períodos, consegue conferir um sentido de unidade facilmente detectável. Possui uma estrutura urbana organizada: ao entrarmos num núcleo urbano medieval dificilmente nos desorientamos pois existe uma relação aberta e clara entre as várias ruas e praças, muralhas, topografia e os outros recursos necessários à sua subsistência. As cidades medievais têm uma rede de ruas não menos irregular que a das cidades muçulmanas. Porém, as ruas são organizadas de modo a formar um espaço unitário, no qual sempre é possível orientar-se e ter uma ideia geral do bairro ou cidade. (Benevolo,1993, p. 269). A forma radioconcêntrica é objecto de numerosas especulações renascentistas que a perfilham para o traçado da <cidade ideal>. a integração entre arquitectura e urbanística existirá desde o inicio do Renascimento até ao século XIX. Todavia a arquitectura absorve primeiro as novas ideias nas realizações, enquanto o urbanismo se desenvolve apenas em termos teóricos, desde a concepção da cidade ideal aos traçados de arquitectura e desenho de cidades. A aplicação dos princípios renascentistas à urbanística foi condicionada pelo crescimento demográfico, e transformações de renovação e intervenção no casco urbano. O tamanho contido da cidade medieval não oferecia de início possibilidade de intervenções em grande escala. [...] A urbanística renascentista vai de início manifestar-se em alguns campos específicos: construção de sistemas de fortificações; modificação de zonas da cidade com a criação de espaços públicos ou praças e arruamentos rectilíneos; reestruturação de cidades pelo rasgamento de nova rede viária; construção de novos bairros e expansões urbanas, utilizando quadrículas regulares (o Bairro Alto, em Lisboa). (Lamas, 2011, p. 168). A intervenção no período renascentista é mais pontual, resumindo-se a edifícios singulares. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 37 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A cidade da renascença é fundamentalmente teórica, baseando-se num estudo constante pela procura da cidade ideal. Os sucessivos ensaios desenvolvidos durante o Renascimento e o Maneirismo nunca chegaram a ser implementados nas cidades, porém, as estruturas defensivas acabaram por reflectir muito do que se escreveu e desenhou: a utopia ganhou forma e expressão no campo militar com a evolução das tecnologias de guerra: Seria restritivo falar apenas de muralhas. A evolução das técnicas militares e a generalização do canhão tornaram obsoletas as muralhas medievais. As estratégias de defesa vão apoiar-se em muralhas e na distancia entre sistemas de fortificações e a cidade que deveria obrigar o assaltante a parar antes que os seus canhões pudessem atingir a cidade. […] a eficácia destes sistemas defensivos altera a estrutura urbana. Enquanto a muralha medieval podia ser substituída em anéis concêntricos, o sistema de fortificações renascentista é estático, custoso e pesado, impede o crescimento da cidade e comprime-a, com consequências na elevação das densidades. (Lamas, 2011, p. 172). Ilustração 12 – A cidade ideal de Vitruvio, ilustrações concebidas a partir dos seus textos. ([Adaptado a partir de: Rosenau, 1988). Se é interessante compararmos a ideia de forma da suposta cidade ideal que é transversal a várias culturas, mas é ainda mais interessante constatar que as referidas formas são sempre muito próximas: As várias ideias desenvolvem-se sempre em torno das mesmas formas geométricas como a planta quadrada, circular, hexagonal ou octogonal e são estruturadas pelos eixos cardiais ou a direcção do vento, procurando também uma planificação interior regular e organizada em quadriculas ou convergindo os acessos num ponto central, radialmente. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 38 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 13 – Três gravura com representações de Roma em diferentes períodos, produzidas em 1527, (da esquerda para a direita), Roma quadrada como foi imaginada, Roma no tempo de Sérvio Túlio e Roma no tempo de Augusto. ([Adaptado a partir de: Benevolo, 1993, p. 138 - 139). Ilustração 14 – Modelos de cidade ideal renascentista. ([Adaptado a partir de: Lamas, 1993). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 39 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares O Renascimento desenvolve-se com base nos conhecimentos e referências do período clássico, reflectindo-se fortemente na pintura, escultura e arquitectura; contudo a arquitectura da cidade e o urbanismo tem dificuldades em implementar estes novos modelos. A cidade renascentista, de inspiração clássica, foi erigida sobre a cidade muçulmana e medieval. A cidade encontra-se numa realidade completamente distinta, camadas sobre camadas, completamente integradas; implementar os modelos renascentistas seria romper com a cidade existente. A livre construção do modelo renascentista só seria possível em novos aglomerados, ou em expansões de núcleos urbanos já existentes – incompatível com a ideia de estrutura simétrica, regular e homogénea. No caso de Lisboa, o exemplo do Bairro Alto, construído nesta época, é uma expansão e não um conjunto único isolado, [sendo parte de um conjunto de malhas que constituía a cidade, independentemente de se encontrar fora do recinto amuralhado]. Se o Renascimento e o Maneirismo se focaram fundamentalmente na teoria e estudo da cidade, no Barroco ganha lugar a prática: surge a cidade como campo de trabalho e estudo. No entanto, os acontecimentos de 1755 “arrasaram” a cidade e obrigaram-na a tomar uma direcção mais prática, lógica e funcional, rompendo com os modelos barrocos. O plano escolhido, de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel, organiza ambas as questões: traçado ao gosto da época, mais influenciado por um racionalismo iluminista do que pela exuberância do Barroco; sistema de quarteirões que permite a operação fundiária e a gestão financeira da reconstrução da cidade. A configuração do quarteirão pombalino afasta-o do sistema utilizado na época: é estrito, quase um bloco edificado com um <saguão> ou vazio interior. Para esta imagem, concorre também a regularidade e repetição das fachadas, a estandardização de vãos e elementos construtivos e a altura uniforme dos edifícios. […] raramente se terá obtido unidade tão completa entre urbanismo e construção, entre cidade e arquitectura. O quarteirão da Baixa Pombalina anuncia também as potencialidades do edifício-bloco, gerador da malha urbana. Embora falte a sequência de exemplos que permita assegurar esta interpretação, pode-se encontrar assimilação do quarteirão ao bloco num sentido de modernidade que volta a surgir mais tarde no século XX. O quarteirão da Baixa é, antes do mais, o elemento da composição urbana, no volume, cércea, dimensão e estrutura arquitectónica, evidenciando a originalidade do plano de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel. (Lamas, 2011, p. 194). As equipas de arquitectos e engenheiros que se concentraram no desenvolvimento de propostas para a sua reconstrução elegeram os princípios iluministas, em oposição aos modelos barrocos muito utilizados nas grandes cidades europeias nesta época. Renasceu assim uma nova Lisboa organizada e estruturada segundo um plano, ortogonal de quarteirões rectangulares sobre uma topografia regular. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 40 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A compressão das construções no interior dos perímetros fortificados torna-se desnecessária e permite alterar o entendimento da cidade. Devido às necessidades de consumo de solo pela industrialização e ao aumento demográfico, a cidade invade o campo e alastra indiscriminadamente para fora das muralhas e fortificações. Uma segunda etapa consiste na destruição das muralhas e aproveitamento da área desocupada para a construção de anéis viários envolventes. (Lamas, 2011, p. 204). Com a reconstrução da cidade boa parte dos limites defensivos da cidade foram destruídos para serem utilizados nos aterros e na abertura de novas vias ou na aplicação do novo plano pombalino. Nos bairros que sofreram intervenções menores como o bairro de Alfama, a muralha é preservada ou devidamente incorporada. Pouco a pouco os muros que não foram destruídos acabam por ser integrados e absorvidos pela cidade e a construção apropria-se deles como alicerces dos novos edifícios. Por outro lado, no resto da Europa os limites amuralhados começam a ser questionados do ponto de vista da sua utilidade e das restrições à forma urbana; por isso a cidade apropria-se desse espaço construindo vias de circulação e espaços verdes ajardinados. Um dos grandes exemplos é o da cidade de Viena, na Áustria, através do Ring de Viena. A cidade fortificada com o seu núcleo central está afastada cerca de 600 metros do anel urbano que a envolve. Com a destruição deste anel defensivo a cidade iniciou a construção de um outro anel – verde –, um cordão de espaços ajardinados, espaços públicos e equipamentos que uniram a malha periférica à malha central medieval. A cidade <intramuros> prolonga-se pela cidade da periferia, sem descontinuidade construtiva. Em lugar das muralhas, realizam-se avenidas, que facilitarão a circulação em anel, e a construção de novos bairros. A cidade estende-se e fragmenta-se pelo território envolvente; a periferia cresce como cintura habitacional e industrial. (Lamas, 2011, p. 206). Em Lisboa com o fim dos limites defensivos e com os novos aterros a cidade ganhou espaço e um lugar para a implantação de indústrias; novas fábricas concentram-se no aterro da Boavista, entre a cidade e o porto, e em Alfama as naves industriais e os armazéns pontuam a linha costeira, iniciando uma nova frente urbana da cidade, sendo a frente ribeirinha estrategicamente ocupada. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 41 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 15 – A formação do Ring de Viena, Áustria. ([Adaptado a partir de: Lamas, 1993, p. 202). “O crescimento rapidíssimo das cidades na época industrial produz a transformação do núcleo anterior (que se torna o centro do novo organismo), e a formação, ao redor deste núcleo, de uma nova faixa construída: a periferia.” (Benevolo, 1993, p.565). A construção da periferia no período da revolução industrial apresenta um conjunto de características muito interessantes de evolução da forma urbana: a indústria leva ao aumento populacional dentro das grandes cidades que por sua vez se vêem obrigadas a responder à escassez de espaços residenciais. A construção da periferia foi por isso um reflexo da transformação da indústria na cidade e na sociedade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 42 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Em Lisboa esta situação também é reconhecível em algumas partes da cidade, mais próximas dos limites interiores como a Graça, ou no limite ribeirinho a norte da cidade: Xabregas, Madre Deus, Beato, Marvila, ou a ocidente, em Alcântara. Todos estes lugares correspondem à periferia da cidade nesta época e é interessante constatar que parte desta realidade, presente na periferia, também existe na estreita linha entre o núcleo central da cidade e o rio – como se a periferia circunscrevesse toda a cidade – porém, apresentando dimensões inconstante que se adaptam ao território disponível. É interessante, por exemplo, verificar como em França ou em Portugal a separação da composição urbana por sistemas independentes – com preponderância para o sistema viário – tornará a engenharia de tráfego motor do planeamento, com os traçados de vias antecedendo os traçados urbanos e dando papel condutor aos engenheiros em detrimento dos arquitectos urbanistas. (Lamas, 2011, p. 300). Com a construção dos caminhos-de-ferro que envolveram as estruturas urbanas de quase todas as grandes cidades europeias, a forma urbana é novamente condicionada pois o caminho actua como uma muralha ou um limite físico que corta relações e quebra a continuidade entre os vários traçados urbanos, originando um conjunto de separações no território. A ferrovia lisboeta é extremamente estranguladora: a linha que liga Lisboa a Cascais e a linha que liga a cidade ao restante território nacional [linha do Norte] limitam o crescimento da cidade sobre o rio, destruindo boa parte das suas relações. É ainda criada uma linha que envolve a cidade e que por necessidade de expansão rapidamente é trespassada, não deixando de ser uma cicatriz aberta no tecido urbano. O parágrafo anterior é um exemplo da realidade do último século em Lisboa onde as redes de comunicação predominam sobre a estrutura urbana e são elas as instigadoras do crescimento da cidade. A cidade junto à frente ribeirinha não é mais do que um conjunto de redes e vias de comunicação, rodoviárias e viárias o que nos leva a assumir que a cidade está esquecida e desvalorizada. A comunicação entre partes é o motor da cidade e encontra-se focada nos modos de vida fatigantes e que não pensam nas populações locais, esquecendo-se de si mesma: o resultado é necessariamente a necrose do corpo e tecido urbano. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 43 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A cidade actual detém um conjunto de falhas que põem em causa a sua longevidade e, em parte, a sua existência. Felizmente, hoje estes problemas estão detectados Ultimamente têm surgido projectos que visam a regeneração urbana da cidade ou de partes da cidade. Duas dessas propostas são abordadas nesta dissertação como casos de estudo da frente ribeirinha que procuram responder aos problemas que há muito se arrastam sem intervenção. Destas propostas evidencia-se a consciência do valor histórico e da transformação que o tempo exerce sobre a cidade. Ao nos debruçarmos sobre estes projectos, compreendemos melhor as várias fases da sua evolução histórica e apercebemo-nos que a cidade se transforma pelo tempo, pelas sociedades, civilizações dominantes, pelas necessidades do indivíduo e pela evolução do conhecimento. Existem inúmeros factores que nos levam a novas questões relevantes e a própria história é um percurso de reflexão para a evolução onde importa compreender o passado, e, no seu estudo, certamente encontraremos inúmeras ferramentas úteis que nos possibilitam explorar a cidade de hoje. As ilustrações que expressam a forma urbana e a sua evolução apresentam, pontualmente, modos comuns, na concepção de cidade ideal/utópica. A partir desta leitura é intrigante a questão da forma urbana e do desenho, apresentando uma enorme relevância e importância no estudo da cidade, inclusive no modo como esta se relaciona com o seu entorno. O desenho de cidade é assim um ponto importante que não podemos ignorar e que complementa muita da informação desenvolvida na síntese histórica porque a cidade também é a evolução do desenho, e representa um ponto de partida quer na sua criação / construção, quer no presente estudo. Essencialmente será também o reencontro com a História (incluindo nesta os seus períodos mais recentes) na mais alargada reflexão sobre a cidade contemporânea e futura, e dela extrair metodologias para o urbanismo e o desenho urbano. Continua a ser necessário pensar cidade, investigando as formas disponíveis, as quais deverão cobrir um leque muito vasto, desde o clássico, o barroco, o tradicional ao moderno, e – por que não? – novas formas, a serem investigadas. […] O urbanismo tem de continuar a interrogar-se sobre como se viverá amanhã na cidade, como enquadrar a vida de uma população crescentemente urbanizada no interior de áreas crescentemente construídas e como recuperar, manter e desenvolver a reconciliação do Homem com a cidade e com o espaço urbano. (Lamas, 2011, p. 538). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 44 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2.2. O DESENHO, A FORMA E A CONSTRUÇÃO DA CIDADE Desde o início da formação académica do estudante de arquitectura que o desenho lhe é apresentado como uma ferramenta fundamental para iniciar o processo de aprendizagem: é o alicerce, a base e o método fundamental do conhecimento da arquitectura, permitindo-nos explorar e pensar. O pensamento do estudante e do arquitecto reflecte-se no desenho, que por sua vez é um reflexo do processo mental de pensar a arquitectura. O desenho expressa as intenções, as formas, os limites entre os espaços, as linhas estruturais do pensamento e a visão tridimensional da mente sobre o papel, rebatida sobre um plano bidimensional que rapidamente ganha profundidade com o evoluir do pensamento e da exploração do traço ou da mancha. É deste modo que o plano bidimensional obtém profundidade. Uma das características mais notórias é a expressão e a liberdade do pensamento contrárias à formatação da planta e do corte que correspondem a questões formais da realização do pensamento: a construção. Desenhar arquitectura e cidade é materializar o pensamento, a procura de soluções para questões que nos são colocadas. O esquisso expressa-as num suporte próprio, que com frequência responde a muito mais do que inicialmente nos questionámos. Produzir arquitectura num contexto urbano é pensar “cidade”, e pensar na cidade é pensar em território. Estas questões são claramente do domínio do desenho e é da sua responsabilidade a programação, planeamento e construção – em particular das relações entre arquitectura – cidade – território, conferindo-lhes unidade e continuidade. Pensar a cidade através do desenho permite transformar linhas e manchas em contornos, formas urbanas e morfologias, bem como construir os elementos basilares do pensar e produzir a urbe. O desenho constitui-se como fio condutor da organização do espaço. Na macro-escala é esta relação que instiga o pensamento e planeamento territorial, assumindo-se como centro nevrálgico da sua transformação. Porém, a relação descrita não se verifica no contexto actual nacional, a arquitectura e a cidade encontram-se bastante “desencontradas”, verificando-se nas várias fases de construção, abstendo-se na planificação, estudo e organização do espaço urbano e de possíveis estratégias territoriais. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 45 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Algumas das urbanizações construídas nos últimos anos – anteriores à crise económica – nasceram, em parte da especulação imobiliária e do financiamento descontrolado, e a arquitectura muito pouco interveio nestas situações: as estratégias territoriais não foram tidas em conta e apenas interessou a valorização do solo para poder construir e retirar lucro, esquecendo a sua morfologia, e as relações entre os diferentes planos com a cidade pré-existente. É necessário que o plano ultrapasse o objectivo de divisão cadastral do solo - de loteamento - para se construir como um verdadeiro instrumento arquitectónico de produção da cidade. O próprio plano morfológico contém na metodologia do desenho a sua melhor defesa e eficácia. Não pode ser substituído aos poucos e continuamente. Tem de formar um todo claro, legível e coerente, de fácil leitura e compreensão, permitindo o controlo do crescimento urbano e a clara definição das regras de integração de cada edifício. (Lamas, 2011, p. 540). Tomando as palavras de José Lamas5, a cidade deve ser construída como um todo e não pela divisão cadastral, embora a situação actual seja totalmente contrária: um conjunto de pedaços sem relação entre si. Mas a revalorização do desenho urbano implica também, como se viu, a preocupação pela morfologia urbana, ou seja, que se considere os edifícios como partes fundamentais da cidade, onde assumem o seu pleno significado, e que o projecto edifício comece no <desenho da cidade>. (Lamas, 2011, p. 536). Por outro lado, Lamas realça aspectos importantes que qualquer arquitecto deve considerar no desenho urbano e nas relações entre o edificado, nomeadamente no edifício que dá corpo à morfologia urbana, enquanto célula que em conjunto com as restantes poderá construir o todo. Para além do exposto, também as relações sociais são fortes construtoras de comunicações entre as partes, permitindo cimentar as diferentes malhas que dão forma à cidade. Relembramos ainda que a cidade é a maior estrutura de habitar humana e o palco da vida citadina e da evolução do indivíduo. 5 José Manuel Ressano Garcia Lamas (Lisboa 1948 - 2003), arquitecto português licenciado pela ESBAL em 1972, doutorado em Urbanismo pelo Institut Regional d’ Aix en Provence em 1975. Foi docente na Universidade Técnica de Lisboa e professor catedrático em 1998, onde em 1990 concluiu um doutoramento em Planeamento Urbanístico. Durante a sua carreira profissional foi distinguido em 1998 com um Prémio Especial de Mérito- no Concurso Europeu de Urbanismo da C.E. Conselho Europeu de Urbanistas, e em 2003 o prémio A Pedra na Arquitectura, Prémio Nacional de Arquitectura Alexandre Herculano da Associação Portuguesa de Municípios com Centro Histórico. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 46 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A nossa revisão começa no conceito de que a cidade designa um conceito de habitat que potencia a comunicação e a colaboração, a troca se se quiser, e se é estrutural a relação entre cidade social e cidade arquitectural, não poderá a cidade ser traduzida por um conjunto de partes mas sim por um conjunto de relações entre partes. (Portas, 2007, p. 128). Nuno Portas6 reforça a ideia de cidade como um conjunto de partes afirmando que se relacionam entre si, colaborando e comunicando dentro de um habitat ou mesmo organismo habitável e que vive destas relações entre a arquitectura e a sociedade, sendo de facto as características que unem e dão vida ao espaço urbano. Contudo, consideramos necessário compreender que construir a cidade não é somente um domínio da forma e do desenho: a cidade é uma estrutura onde se desenrolam relações que devem ser tidas em consideração no momento em que se põe em prática o desenho urbano.Deste modo, o desenho deve reflectir a unidade entre as relações pessoais e o quotidiano, e ao mesmo tempo estar consciente da movimentação do corpo no espaço e das suas ligações e comunicações. Terá de ensaiar-se um novo conceito de estrutura, unificador não pela uniformidade ou repetição, e muito menos pela vontade de forma total, mas como sistema aberto de relações que se concretiza, como aponta Blasi, como hipótese morfológica apenas designável, porque receptiva às contribuições de arquitectura e que só por estas ganha forma desenhável. (Portas, 2007, p. 189). Iniciamos assim uma nova ideia: a questão da relação social e do quotidiano; um tema importantíssimo ao qual lhe dedicaremos um subcapítulo, dentro deste capítulo. Ora se não é um problema de estética que aqui está em causa mas antes a qualidade urbana, ou seja a expressão em espaço da vida quotidiana, então teremos de inverter o processo, partindo da vida associada, das relações sociais, da experiência dos indivíduos, a seguir, por hipótese, desde a alcova à sala de aula e à oficina, do encontro na paragem de autocarro ao convívio no café, à experiencia teatral no clube recreativo - e certamente que uma ou outra cidade renasce, a partir de dentro, e se estrutura (isto é, tece-se de relações entre as coisas, não de coisas) recuperando uma personalização perdida, pela contiguidade dos espaços habitáveis, canalizados ou largos; verticais ou horizontais; internos, semiexteriores ou exteriores, privados ou públicos. (Portas, 2007, p. 188). Retomando as ideias expostas anteriormente e de acordo com o que está expresso na citação anterior, o espaço provém da relação entre um conjunto de coisas isoladas, é 6 Nuno Rodrigo Martins Portas (Vila Viçosa, 1934), arquitecto português licenciado pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto em 1959, colaborando ainda durante a sua formação acadêmica com o arquitecto Nuno Teotónio Pereira. Professor catedrátic desde 1989, lecionou em várias universidades tasi como a escola Técnica Superior de Barcelona, Politécnico de Milão, Universidade federal do Rio de Janeiro. Fez parte do programa Serviço Ambulatório de Apoio Local, também conhecido por SAAL. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 47 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares por isso fulcral ver a cidade como um todo, um conjunto de relações entre espaços e de coisas que se relacionam e percutem mais relações. Podemos afirmar que a cidade é um conjunto de elementos que interagem. As novas propostas urbanas devem associar-se às estruturas que já existem conferindo continuidade ao espaço urbano e conciliando e integrando as linhas que dão forma às diferentes partes – ou seja, construindo uma forma urbana homogénea, comunicável e sem fronteiras. Se pelo lado da mentalidade neomaquinista aquele tubo subterrâneo é hoje formalmente assimilado a outras condutas, tal como uma estrutura de células de habitação se assimila à macro-estrutura de toda uma cidade, assim também pelo lado da arquitectura-conformação-do-espaço, estruturas e infra-estruturas não podem continuar independentes, terão de estar co-presentes no processo de desenho do que, uma vez construído e usado, é contínuo espacial... ou jamais resultará <cidade>. E assim se concretizará mais a ideia- base deste ensaio: a unidade de composição não é o <edifício+a rua>, mas contínuos ambientais significativos postos como propostas em diálogo (em relação, ou seja, re-estruturantes) com a zona e a cidade existentes em que constituem intromissão e emergência. (Portas, 2007, p. 189). Nuno Portas remata esta ideia com um conjunto de afirmações muito interessantes que reflectem a necessidade de interdependência entre as infra-estruturas e as estruturas e da necessidade das partes colaborarem entre si, de modo a criarem ambientes contínuos que permitam diálogos entre as distintas zonas que constituem a cidade, mas também a relação edifício - rua é certamente importante – ainda que sozinha de pouco valha, é necessário que esta esteja inserida numa estratégia maior: à escala do bairro e da cidade. Certo é que a simples existência de duas construções em proximidade é suficiente para que se estabeleçam relações visuais, estéticas e ambientais que são o domínio da arquitectura. Como conclusão fundamental, devo afirmar que a produção da cidade e do território são do domínio arquitectónico, num processo que deveria ser liderado pelo desenho, desde as fases de programação e planeamento até à realização das construções. O desenho significa a unidade do método arquitectónico, sem o qual não poderá existir verdadeira criação de espaços urbanos ou transformações qualitativas do território. Para além do seu contributo específico como disciplina criativa, a arquitectura assegurará a continuidade entre os vários escalões de organização do território e níveis de produção do espaço. (Lamas, 2011, p. 535). O parágrafo anterior funciona como uma síntese daquilo que se referiu neste subcapítulo: o desenho enquanto ferramenta fundamental da produção de cidade, devendo estar presente em todas as fases de projecto como sendo o método que conduz à unidade e o criador de espaço, de cidade e de território. Não só se expressa pela criatividade mas também pela capacidade de organizar e estruturar tudo quanto por si é originado. Se as cidades podem ser consideradas estruturas extraordinárias Diogo Filipe Dias Marques Lopes 48 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares que simulam uma natureza ou mundo reinterpretado pelo Homem, muito se deverá ao desenho e à sua capacidade criadora – e qualidade – muitas vezes menosprezadas por outras áreas e actividades, que por sua vez se apresentam limitadas na compreensão das suas valências. As cidades são um imenso laboratório de tentativas e erro, fracasso e sucesso, em termos de construção e de desenho urbano. É nesse laboratório que o planeamento urbano deveria aprender, elaborar e testar suas teorias. Ao contrario, os especialistas e os professores dessa disciplina (se é que ela pode ser assim chamada) tem ignorado o estudo do sucesso e do fracasso na vida real, não têm tido curiosidade a respeito das razões do sucesso inesperado e pautam-se por princípios derivados do comportamento e da aparência de cidades, subúrbios, sanatórios de tuberculose, feiras e cidades imaginarias perfeitas- qualquer coisa que não as cidades reais. (Jacobs, 2000, p. 5). A ideia de laboratório experimental é interessante, no sentido em que o desenho é o método principal do seu desenvolvimento. A aplicação destes modelos desenvolvidos permite verificar as suas potencialidades e as respostas aos problemas previamente identificados. Outra das questões relevantes dentro desta necessidade de o pensamento ser explorado através do desenho e da necessidade de desenhar o espaço, está relacionada com o condicionamento, muitas vezes implícito, que o desenho da forma e do já referido espaço incute no modo como o vivenciamos e habitamos. Não podemos por isso dissociar o desenho da função e do uso, quer seja uma peça mecânica ou uma praça no meio de um aglomerado urbano por consolidar. Concordamos que desenhar cidade é desenhar um espaço que pressupõe ser vivenciado e habitado, todos os dias do anos – quer chova ou faça sol. Desassociar o uso e a funcionalidade do desenho urbano é alcançar a inutilidade pois uma cidade inútil não é uma cidade sequer, é um esforço humano desnecessário, que normalmente tem um “preço” elevado, porque perdura até a própria natureza reclamar para si aquilo que lhe foi retirado – situação que normalmente tende a demorar – e até lá só nos resta contemplar, pacientemente, a futura ruína por nós criada. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 49 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2.3. USO E VIVÊNCIA DA CIDADE Um dos motivos que nos levou a escrever sobre os usos e o modo como vivemos e nos apropriamos do espaço urbano advém de um conjunto ideias e questões levantadas ao ler a obra de Jane Jacobs7 intitulada na versão original The Death and Life of Great American Cities, na versão portuguesa com o título Morte e Vida de Grandes Cidades. Esta obra publicada em 1961 contínua actual, apresentando uma série de críticas ao modo como são planeadas as cidades e às suas deficiências organizativas e estruturais; porém, uma das críticas que mais nos interessou foi o modo como foi feita a apropriação do espaço urbano, o modo como o vivemos e as débeis leituras da utilização do mesmo que resultam em modelos absolutamente disfuncionais. É a função, o uso, a interacção entre os espaços e o modo como as populações o vivem que pretendemos explorar, desenvolvendo essas mesmas ideias, contextualizando-as com a realidade presente nas áreas de estudo desta dissertação. Uma das características que ressalta na área de estudo compreendida entre Santa Apolónia e a Boavista está relacionada com a desertificação e o abandono de inúmeros imóveis. Jacobs reflecte várias vezes sobre estas questões relacionadas com os problemas locais dos próprios bairros que excluem a população, perdem atractividade e repelem a fixação de novos residentes. O sentimentalismo suscita atitudes açucaradas, em vez de bom senso. Um bairro bemsucedido é aquele que se mantém razoavelmente em dia com os seus problemas, de modo a que eles não o destruam. Um bairro malsucedido é aquele que se encontra sobrecarregado de deficiências e problemas e cada vez mais inerte diante deles. (Jacobs, 2000, p. 123). Durante muito tempo os bairros centrais de Lisboa apresentaram-se inadaptados à realidade industrial e tecnológica das épocas posteriores às suas construções; com o aumento do número de veículos automóveis, o incentivo ao consumo e a maior acessibilidade a esta tecnologia, estes bairros tornaram-se incompatíveis com a realidade tecnológica. 7 Jane Jacobs (1916-2006), escritora nascida nos EUA, foi a autora de uma das mais importantes publicações criticas de arquitectura publicada na decada de 60, intitulada na versão original The Death and Life of Great American Cities, (A Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas). Esta obra apresenta fortes criticas ao planeamento urbano modernista, em especial é sectorização dos usos dentro da cidade, que considerava que levavam à destruição do espaço urbano. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 50 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares As populações mais jovens abandonaram estes bairros não só pela ausência de um lugar de estacionamento junto à porta mas também pela sedutora ideia de um apartamento maior, com “belas” marquises, dois lugares de garagem e um centro comercial a menos de cinco minutos de distância de automóvel. Os bairros ribeirinhos e centrais da cidade não souberam responder às exigências das populações mais jovens e as políticas municipais pouco intervieram para atenuar essas debilidades. Tal como referiu Jacobs, os políticos não souberam responder aos problemas existentes, a população jovem saiu e ficou a mais envelhecida, habituada a determinado estilo de vida anterior à revolução tecnológica e social das últimas décadas. Permanecendo a população envelhecida e deslocando-se a população jovem o futuro será a desertificação, pois não existe qualquer tipo de renovação das gerações. Por exemplo, numa sociedade fechada, numa sociedade tecnologicamente limitada ou numa sociedade reprimida, tanto a necessidade profunda quanto a tradição e os costumes podem impor a todos uma seleção disciplinada de propósitos e materiais, uma disciplina consensual sobre o que esses materiais pedem de seus organizadores e um controle disciplinado das formas assim criadas. (Jacobs, 2000, p. 416). Durante um período de repressão, a ausência de alternativas leva a população a acomodar-se. Com a alteração dos regimes e com a explosão de novas ideias, a população sobe a fasquia, luta e procura melhorias substanciais das suas condições de vida. Por outro lado, a opressão e o condicionamento obriga à reinvenção e adaptação das mesmas estruturas urbanas, que chegaram até hoje apresentando-se como uma das mais consolidadas da cidade de Lisboa – como é o caso do bairro de Alfama. Este condicionamento não foi simplesmente político e administrativo, mas também foi um condicionamento físico, com o rio e, posteriormente, as muralhas. Gerações sucessivas ambicionaram melhores condições de vida e a ausência de respostas ou soluções levaram ao abandono e ao estado actual em que se encontram. Ao lidarmos com as cidades, estamos lidando com a vida em seu aspecto mais complexo e intenso. Por isso, há uma limitação estética fundamental no que pode ser feito com as cidades: uma cidade não pode ser uma obra de arte. Precisamos da arte, tanto na organização das cidades quanto em outras esferas da vida, para ajudar a explicar a vida para nós, para mostrar-mos seus significados, esclarecer a interação entre a vida de cada um de nós e a vida ao nosso redor. Talvez precisemos mais da arte para nos reassegurarmos de nossa humanidade. Todavia, embora a arte e vida estejam entrelaçadas, elas não são a mesma coisa. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 51 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A confusão sobre elas é, em parte, a razão de as iniciativas do planeamento urbano serem tão decepcionantes. É importante desfazer essa confusão para obter melhores táticas e estratégias de desenho urbano. (Jacobs, 2000, p. 415). Hoje assistimos à alteração das ideias e constatamos a realidade presente nestes bairros. Existe uma preocupação generalizada em resolver estas questões e colocar em prática algumas soluções debatidas nos últimos tempos. Actualmente estamos a vender as deslumbrantes vistas da cidade, atraindo população turista através de postais e cartões de visita, pois descobrimos que conseguimos fazer dinheiro e rentabilizar os bairros entregando-os ao turismo, mas isto não resolve o problema – simplesmente o remedeia. “Encara a cidade, ou mesmo um bairro, como se fosse um problema arquitectónico mais amplo, passível de adquirir ordem por meio de sua transformação numa obra de arte disciplinada é cometer o erro de tentar substituir a vida pela arte”. (Jacobs, 2000, p. 416). Como afirma Jacobs, a cidade não pode ser uma obra de arte; no entanto é essa obra de arte que está a ser vendida ao turista, que acaba por ser única e exclusivamente vivida por ele e à noite está morta, com excepção dos lugares com atracções nocturnas, que entram em conflito com a pouca população residente. As estratégias estão completamente desarticuladas, mal direccionadas e confusas até, com usos incompatíveis – e pior do que a incompatibilidade só mesmo um lugar monofuncional, que é o motor da completa destruição. “As intricadas combinações de usos diversos nas cidades não são uma forma de caos. Ao contrário, representam uma forma de organização complexa e altamente desenvolvida.” (Jacobs, 2000, p. 245). Um bom exemplo é a Praça do Comércio, que durante décadas esteve totalmente entregue aos Ministérios, funcionando como mega estrutura de escritórios e serviços da governação e gestão do Estado português. A praça chegou a ser um parque de estacionamento – tal como o Rossio – e mais tarde, com a interdição automóvel, passou a ser o maior deserto urbano da cidade de Lisboa: um espaço de atravessamento e ligação entre a estação de metro da Baixa-Chiado, os eléctricos e as estações fluviais. Nos últimos tempos essa realidade transformou-se radicalmente com a interdição do automóvel em algumas das ruas do entorno da praça, e com a Diogo Filipe Dias Marques Lopes 52 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares rentabilização de inúmeros espaços dos pisos térreos dos vários ministérios para a restauração, que permitiram fixar a população e usufruir deste extraordinário espaço. Este é um dos exemplos que justifica a combinação de vários usos e que revitaliza as várias partes da cidade. O que tem acontecido ultimamente por toda a frente ribeirinha é um investimento focalizado na indústria do turismo que aparentemente resolve a questão da atractividade; o problema é que durante determinados períodos em que o turismo é menor – ou pela noite, a cidade volta a morrer. Lisboa vive desta sazonalidade e de um fôlego momentâneo que rapidamente se perde. Pontualmente encontramos no bairro de Alfama pequenos núcleos a sofrer intervenções de requalificação e reconversão; podem muito bem ser estas pequenas intervenções as tão necessárias soluções que contaminam, de um modo positivo, o seu entorno. É importante não esquecer os erros do passado e preservar a cidade mas não ter medo de manter esta amálgama de usos que alimenta a vivacidade do espaço urbano. É necessária gente, população fixa de várias gerações que permita uma sustentável renovação. Mas esta gente não vive do ar, não come pedra, necessita de cafés, restaurantes, mercearias, talhos, escritórios e habitações. A cidade precisa de tudo isto, a diferença é que estes usos devem conviver simultaneamente nos mesmos lugares e refutar a ideia de zonas exclusivas, pois isso leva à sectorização da cidade e dá origem a uma estrutura urbana desinteressante, pouco atractiva e futuramente apática e disfuncional. A questão da sectorização está presente em qualquer cidade e ao existirem divisões e transições é normal que certas actividades estejam restritas a determinados perímetros urbanos. Pretendemos clarificar que a cidade não deverá ser simplesmente um aglomerado de sectores preconcebidos através das actividades a que se destinam. A cidade vive deste equilíbrio entre os excessos e é normal que a estrutura industrial esteja concentrada e delimitada, tal como a portuária, mas isso não significa que cidades que apresentem estas características sejam desinteressantes. Muitas das vezes estes sectores são fundamentais e relevantes na construção e configuração da forma da cidade, determinando o seu limite “provisório”. Estes limites são construtores de formas e normalmente estão associados a usos específicos da construção e sustentação do núcleo urbano interior. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 53 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2.4. LIMITE E FRONTEIRA DA CIDADE O presente capítulo, procura compreender a fronteira urbana junto ao principal limite físico da cidade de Lisboa. É francamente importante estudar esta relação entre a cidade e o limite de modo a entender como as estruturas urbanas se modificam e adaptam quando confrontadas com topografias complexas que se constituem como fortes condicionantes da forma urbana. Podemos afirmar que o limite e a forma urbana são conceitos muito próximos, de relações estreitas, e no caso de Lisboa que tem o rio Tejo como o principal construtor da linha que dá forma ao perfil ribeirinho. Em primeiro lugar, é importante perceber a forte relação entre a cidade e o meio onde se insere: os limites geográficos são os principais condicionadores da implantação e a sucessiva construção – não esquecendo também a própria identidade – induzindo de imediato a constituição dos limites e basilando o lugar onde a cidade está inserida. As cidades integradas sobre territórios topograficamente muito complexos apresentam duas características muito interessantes e inconfundíveis – situação que não é fácil encontrar em cidades planas e praticamente intermináveis onde o limite se estende sobre o território. A noção de limite e de fronteira destaca-se em cidades como Lisboa, o limite restringe a construção do corpo urbano, circundando-a, e a fronteira compreende um limite muito mais abrangente e distante, que define e delimita um território maior sob a influência da cidade. Na prática: como é possível identificar limites e fronteiras? Os limites e fronteiras vãose alterando com o crescimento e evolução da cidade. Inicialmente, a cidade e os seus limites restringiam-se à colina do castelo e a fronteira às colinas mais próximas da colina principal, por isso a outra margem certamente que representa um território para lá da fronteira. Durante grande parte da existência da cidade de Lisboa e até meados do século XX, os limites estiveram configurados pelo rio e pelas colinas e as fronteiras, a norte da cidade, pela cintura de montanhas da serra de Sintra, Mafra, Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço e Arruda dos Vinhos ou a sul da cidade, pela serra de Arrábida e pelo cabo Espichel. Uma cidade é antes de mais uma ocorrência emocionante no meio-ambiente. Senão, atente-se na pesquisa e nos esforços despendidos para se tornarem uma realidade: contingentes de demógrafos, sociólogos, engenheiros, peritos de tráfego, etc., Diogo Filipe Dias Marques Lopes 54 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares empenhados no concerto de uma infinidade de factores que possibilite a criação de uma organização funcional, viável e saudável. É um tremendo empreendimento humano! Porém, se ao cabo de todo este esforço a cidade se apresenta monótona, incaracterística ou amorfa, ela não cumpre a sua missão. É um fracasso. É como empilhar lenha para uma fogueira e esquecer de lhe deitar fogo. (Cullen, 1971, p. 10). A relação entre os limites da cidade e a sua fronteira permite identificar uma série de factores para além da sua dimensão como a influência, a vitalidade e a capacidade de subsistência e regeneração, bem como as premissas de crescimento e desenvolvimento da mesma no futuro. Os limites e fronteiras também nos remetem para a atracção, isto é, para a atractividade gerada pela cidade, quer de pessoas, turistas, residentes, operários, trabalhadores e fornecedores, como também de actividades, serviços, bens, recursos e infraestruturas. Este território para lá dos limites, definido pela fronteira, é um reflexo da estabilidade e da regeneração desta mega-estrutura de habitar e é necessário ver para lá do construído e compreender o esforço, a movimentação de recursos e de gente, bem como de conhecimentos necessários para manter esta realidade. O estudo destas relações permite identificar a viabilidade, saúde e funcionalidade da cidade, e são estes factores que permitem que estas se estendam no tempo e perdurem. Por outro lado, a falta de interesse e de valor conduzem à desertificação. Os limites são simultaneamente construtores de cidades: um reflexo da dimensão, poder e capacidade da mesma, obrigando-a a concentrar-se sobre si mesma e [re] inventar-se. As cidades são mais do que aglomerados de construção pois são estruturas habitáveis muito variadas que se adaptam. Os limites, quer sejam muralhas, serras ou rios, são elementos que condicionam o crescimento “fácil” e monótono. O fenômeno das zonas de fronteiras desertas desnorteia os planeadores urbanos, especialmente aqueles que sinceramente prezam a vitalidade e a variedade urbana e detestam tanto a apatia quanto uma expressão indefinida. As fronteiras, argumentam eles, às vezes são um recurso viável para aumentar a intensidade e dar à cidade uma forma clara, nítida, como aparentemente faziam as muralhas das cidades medievais. É uma ideia plausível, porque certas fronteiras sem dúvida servem para concentrar e, portanto intensificar áreas urbanas. Os cursos d’água de São Francisco e de Manhattan fizeram isso. (Jacobs, 2000, p. 290 e 291). Centremo-nos agora no limite ribeirinho – que é o grande tema desta dissertação, na relação entre a cidade e a água, tendo em consideração o rio que corta o território com uma incisão perfeita, junto à qual muitas outras cidades foram erguidas. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 55 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares É interesante constatar que muitas das grandes cidades – e outras de menor dimensão mas igualmente importantissímas – na História da humanidade estão localizadas junto de rios que restringem imenso a construção das mesmas mas que por outro lado fornecem um conjunto de vantagens substanciais que justificam a sua localização e concentração. Esta relação entre a cidade e o limite-rio está restringida a uma linha que separa o universo material construído, de fluidez incontrolável e que mais do que uma linha física é uma fronteira que divide ambientes e atmosferas diferentes mas que se completam. À beira de um precipício de 150 metros tem-se uma percepção de localização bem definida enquanto no fundo de uma caverna se experimenta certamente uma sensação de clausura. Uma vez que o nosso corpo tem hábito de se relacionar instintiva e continuamente com o meio-ambiente, o sentido de localização não pode ser ignorado e entra, forçosamente em linha de conta na planificação do ambiente (tal como para o fotógrafo qualquer fonte de luz, por mais inoportuna que seja). (Cullen, 1971, p. 11). Esta questão do posicionamento é fundamental na fundação da cidade: uma estratégia de localização que com o tempo cresce e entra em confrontação com o limite-rio, originando uma relação extraordinária que evita o conflito, procura a integração e a distinção de ambientes – as realidades estão claras e diferenciadas, “aqui” termina a cidade e “aqui” começa o rio. […] a própria constituição da cidade: a sua cor, textura, escala, o seu estilo, a sua natureza, a sua personalidade e tudo o que a individualiza. Se se considerar que a maior parte das cidades é de fundação antiga, apresentando na sua morfologia provas dos diferentes períodos de construção patentes nos diferentes estilos arquitectónicos e nas irregularidades do traçado, é natural que evidenciem uma amálgama de materiais, de estilos e de escalas. (Cullen, 1971, p. 13). Se por um lado o nosso corpo percepciona de imediato a diferenciação de dois ambientes junto ao limite ribeirinho, a actuação na construção da cidade é totalmente diferente, procurando integrar ou aproximar as duas realidades através da estrutura da malha urbana, do espaço, dos enfiamentos visuais dos materiais e texturas. “O mesmo se pode dizer de um indivíduo num cais, só que para este a tensão principal estará concentrada na linha de demarcação entre terra e água.” (Cullen, 1971, p. 193). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 56 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Muitas vezes nem reparamos na composição das construções mais próximas do rio mas os edifícios apresentam características distintas dos que estão em segunda linha pois variadas vezes os materiais estão adequados às condições climatéricas com embasamentos em pedra – mais resistentes, muros reforçados com contrafortes e rampas alternadas com escadas que dão continuidade e unem as ruas ao rio. Esta realidade foi construída durante milénios, com diferentes conhecimentos construtivos e estilos; porém, conscientemente ou não, foram sendo desenvolvidas as mesmas ideias e conceitos apesar das respostas e características distintas em diferentes épocas. Contudo tem-se a sensação de que, se fosse possível reconstruí-la por inteiro se faria desaparecer toda a confusão e surgiriam cidades novas mais belas e mais perfeitas. Criar-se-ia um quadro ordenado, arruamentos de traçados direitos e edifícios de alturas e estilos concordantes. Se houvesse inteira liberdade de acção provavelmente criar-seia simetria, equilíbrio, perfeição, concordância, convencionalismo. (Cullen, 1971, p. 113). A citação anterior confirma o que dissemos em relação à construção da cidade junto à frente ribeirinha em diferentes épocas e é a ideia que muitas vezes temos em relação à construção por inteiro de uma determinada frente da cidade. Porém, começa com a expressão “Contudo tem-se a sensação de que,[...]”, e é simplesmente isso: uma simples sensação; até porque a frente ribeirinha de Lisboa provavelmente não seria melhor caso fosse reconstruída na sua totalidade. O que existe é uma sucessiva construção e reconstrução ao longo do tempo, muito consolidada, pensada, adequada à realidade existente e que não precisa de grandes alterações. As modificações necessárias estão nas áreas não-consolidadas, sobre as plataformas construídas sobre o rio e que nunca foram devidamente integradas. Esta frente construída é a principal construtora da identidade local, que sempre esteve fortemente relacionada com a água, o rio e as suas actividades – hoje perdidas, não só pela distância como também pela falta de atractividade e pelas restrições legisladas nos últimos tempos. Esta oportunidade surge mais facilmente em relação à cidade, por exemplo uma cidade tipicamente marítima, em que as linhas de força têm uma relação óbvia e imediata com as linhas de demarcação no sentido geográfico. A verdadeira raizon d’ être da cidade costeira é a linha ao longo da qual se encontram terra e água, e isso explicará talvez que nas cidades costeiras a personalidade resista melhor do que em quaisquer outras. (Cullen, 1971, p. 113). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 57 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares É incrível como essa identidade se mantém na relação do casario com o rio e talvez esta situação seja explicada com as palavras de Gordon Cullen8, nesta relação da linha entre a terra e a água onde reside a força da cidade e desta identidade forte que se reflecte na sua construção que perdura no tempo, mesmo que o rio ou o mar seque. A água fornece-nos o exemplo mais óbvio, porque a transição entre esta e a terra constitui o maior contraste psicológico. Cidades à beira-mar deveriam viver sobre o mar, no sentido em que a presença visível do oceano deveria ser apreensível do maior número possível de locais na cidade (o que não significam horizonte permanente coberto de água, mas talvez o brilho da reminiscência, ou a indicação do abismo, ao fundo de uma rua). Para a cidade do litoral, o mar é a sua razão de ser, e mesmo quando os seus habitantes vivem em casinhas aconchegadas com o seu aparelho de rádio, como qualquer família do interior, nunca é uma cidade do interior; encontrar-se à beira do abismo, face a um horizonte constante mas enigmático. (Cullen, 1971, p. 192). É interessante como as cidades se aproximam da água sempre que possível, não só pela necessidade, mas também por aquilo que representa: uma riqueza única e um bem essencial mas também a serenidade, a tranquilidade ou algo primitivo que nos acalma. O contraste entre a terra e o mar foi o principal responsável pela construção desta cidade e de tantas outras que pouco a pouco se sobrepuseram sobre a água – a relação entre elas é muito forte, quiçá inseparável, pois a cidade vive no limite, vive o limite e negar essa realidade é negar a sua identidade e condená-la ao fracasso. O limite é simultaneamente um elemento construtor da cidade de real importância e o seu estudo aumenta o nosso conhecimento da sua evolução, o papel que representa na definição da mesma e na sua capacidade de se reinventar e adaptar. Mergulhando no passado através do conhecimento e informações rigorosas, é possível construir uma ideia sobre a transformação da cidade e dos seus limites. Deve por isso o estudo da sua evolução assumir-se como uma peça relevante do seu planeamento e exigir especial atenção por parte de quem cria cidade, desenha, planeia e constrói. 8 Gordon Cullen (1914-1994), arquitecto inglês, foi um dos grandes impulsionadores do movimento das Cityscpaes, (paisagens urbanas), publicando obras nesse sentido como o libro citado nesta dissertação Paisagem Urbana. Formando pela Universidade de Westminster, em 1972 foi eleito membro honorário do Royal Institute of British Architects, galardoado com inúmeros prémios por diversas instituições como o Royal Designers for Industry em 1975, pelo American Institute of Architects em 1976, e em 1978 pela rainha Isabel II, com a Order of the British Empire, pelos enormes contributos para a arquitectura, Diogo Filipe Dias Marques Lopes 58 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 2.5. ESTUDO DAS CARTAS E LEVANTAMENTOS DA CIDADE Um dos principais trabalhos desenvolvidos nesta dissertação centra-se no estudo dos levantamentos rigorosos da cidade de Lisboa. É importante compreender essa evolução através de instrumentos disponíveis onde possamos estudar e compreender melhor a evolução desta cidade. Inicialmente, foram recolhidas as várias plantas e documentos que representam a cidade com informações rigorosas e à escala, onde mais tarde foram seleccionados de um modo criterioso com o objectivo de compor uma linha cronológica da evolução urbana da frente ribeirinha através do seu desenho, com as mesmas referências e escalas, sobrepondo por fim as várias peças para facilitar e melhor compreender a evolução em diferentes momentos da frente da cidade. O objectivo da criação destas peças deve-se à necessidade de ter uma base limpa onde possamos rapidamente encontrar a informação essencial e de modo sintetizado acerca da evolução da frente ribeirinha, para possíveis estudos futuros: um documento que sintetize a evolução urbana da cidade desde o período moderno até à cidade actual planeada e pensada para os próximos anos. Este subcapítulo pretende resumir a pesquisa desenvolvida a partir da procura das informações relativas à evolução da cidade, concluindo com a apresentação das várias plantas onde se pode compreender a cronologia da evolução urbana da frente ribeirinha de Lisboa entre Santa Apolónia e a Boavista, desde 1650 até à actualidade. Levantamento de 1650 – Tinoco João Nunes Tinoco9 foi o responsável pelo primeiro levantamento e execução da primeira planta da antiga cidade de Lisboa no ano de 1650, tendo sido esta concebida à escala 1:26000. O levantamento foi encomendado no reinado do rei D. João IV [1º rei da 4ª dinastia], sendo este documento fundamental para o reconhecimento das estruturas defensivas e das restantes fortificações com o objectivo traçado com a crise da restauração da independência nacional, que espoletou o fim da união das coroas de Portugal e de Espanha. 9 João Nunes Tinoco (1610-1686), arquitecto português, filho do arquitecto Pedro Nunes Tinoco, foi um dos principais responsáveis pelo levantamento do plano da cidade de Lisboa em 1650 durante o período da Restauração da Independência. Durante a sua vida profissional foi detentor do cargo de arquitecto da Casa das Rainhas por ordem da rainha D. Luísa de Gusmão, esposa do rei D. João IV. Foi o responsável pelos projectos respectivas construções de inúmeros edifícios de Lisboa onde se destacam na maioria igrejas e construções de caráter religioso. Para a historia e em especial para a olissipografia ficará recordado pela execução do plano mais antigo rigoroso alguma fez feito e conhecido da cidade de Lisboa. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 59 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Augusto Vieira da Silva10, um dos mais importantes olisipógrafos portugueses, refere nas suas publicações sobre o estudo das muralhas da cidade que a planta de Lisboa de 1650, a que hoje temos acesso, não corresponde à informação original. Segundo Vieira da Silva, esta abrangia um território muito maior, planta essa que desapareceu, restando apenas algumas cópias com menor área total representada. Neste levantamento estão presentes as manchas dos núcleos edificados que dão corpo à cidade, com principal destaque para às linhas defensivas, portas e baluartes. É muito clara a presença do aterro da Ribeira, concebido por ordem do rei D. Manuel [5º rei da 2ª dinastia] e do icónico Palácio da Ribeira, pioneiro na apropriação da frente ribeirinha. Ilustração 16 – Levantamento de 1650. (Tinoco, 1650). 10 Augusto Vieira da Silva (1869-1951), engenheiro, historiador e olisipógrafo português, formou-se em Engenharia em 1893 pela Escola de Engenheiros do Exército Português. Foi académico titular da Academia Portuguesa da História, sócio efetivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses e sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Responsável com um conjunto substancial de estudos sobre a história e a cidade de Lisboa que acabaram por ser publicados em várias edições revistas, emendadas e complementadas pelo próprio. Destas publicações destacam-se estudos extremamente completos sobre as várias muralhas e torres da cidade, onde se pode encontrar a exata localização das mesmas e a evolução sofrida ao longo do tempo dês da sua construção até à época da publicação das várias edições. A evolução urbana da cidade anterior e posterior ao terramoto é um dos muitos temas e estudos abordados, também ele muito completo e fundamentado. A última edição é de 1987 publicada pela Câmara Municipal de Lisboa, proprietária literária desde 1939 de todas as obras. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 60 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Planta de 1755 – anterior ao terramoto Existem várias plantas com representações da cidade anterior ao terramoto no ano de 1755, embora muitas dessas plantas não correspondam a levantamentos da cidade, mas sim a reproduções de plantas antigas executadas na época da reconstrução da mesma – muitas delas produzidas já no século XIX. Um desses exemplos é um conjunto de documentos intitulado de Planta de Lisboa anterior ao Terramoto: estudos parciais e planta, sem escala determinada, executados por José Valentim de Freitas11 entre 1850 e 1860. Estes documentos são constituídos por uma planta geral da cidade e por um conjunto de plantas parcelares a uma escala mais aproximada; apresentam a cidade com poucas alterações na sua estrutura interna, extremamente consolidada e muito compacta – como se as várias peças se moldassem umas às outras, tal como os seixos de um rio. É na frente ribeirinha que se encontram as maiores transformações com a construção de novos edifícios nas praias da cidade junto a Alfama e, principalmente, no Terreiro do Paço – que ganha protagonismo, assumindo-se como centro nevrálgico da cidade, quer do ponto de vista da estrutura urbana, quer da política comercial e social. Outro documento interessante consiste numa aguarela com a representação do núcleo central da cidade também intitulada de Planta de Lisboa Anterior ao Terramoto, de escala indeterminada com uma dimensão de 72,5 x 50,3 centímetros, produzida entre 1800 e 1850 e de autor desconhecido. Porém as caraterísticas desta planta coincidem em muito com as do documento produzido por José Valentim de Freitas, apresentando-se quase como uma reprodução pintada do documento referido. Nesta planta a expressão do desenho facilita a sua leitura e rapidamente constatamos a relação entre a cidade, os muros sobre o rio e a definição do limite que a caracteriza. Poderá parecer estranho referi-lo mas consideramos que esta é uma cidade que vive em harmonia com o rio, onde é clara a transição entre estes dois momentos e se percebe as relações entre eles, quer pelo espaço, como pelos muros e acessos que os une. 11 José Valentim de Freitas (1791-1870), autor de reprodução da planta da cidade de Lisboa, do período anterior ao terramoto, executada já no século XIX. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 61 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 17 – Planta de Lisboa Anterior ao Terramoto: estudos parciais e planta. (Freitas, 1850-1860?). Ilustração 18 – Planta de Lisboa Anterior ao Terramoto. ([Planta, 1800-1850?). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 62 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Planta de 1758 e 1770 – Planta Pombalina Ilustração 19 – Proposta de reconstrução 1758. (Mardel, Santos, 1758). Com o plano de Eugénio dos Santos12 e Carlos Mardel13, aparecem duas plantas da cidade, uma do projecto a construir [1758] destes autores, e outra do projecto construído e do planeamento da expansão da cidade [1770, informação obtida a partir do Gabinete de Estudos Olisiponenses], porém muita da informação recolhida contraria esta indicação, apontando Duarte José Fava como autor. 12 Eugénio dos Santos (Aljubarrota, 1711- 1760, Lisboa), arquitecto português, foi em 1735 aluno na Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, colaborando com o principal arquitecto do reino da sua época Manuel da Maia, e um dos autores do plano de reconstrução da cidade. 13 Carlos Mardel (Pozsony, Hungria 1696- 1763, Lisboa), Martell Károly na sua língua materna, foi um arquitecto de origem húngara que chegou a Portugal em 1733, desempenhando funções em cargos muito relevantes na construção de importantes obras públicas. Em colaboração com Eugénio dos Santos foi um dos grandes autores do plano de reconstrução da cidade de Lisboa. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 63 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Com a reconstrução da cidade após o terramoto são apresentados um conjunto de planos, todos eles com a proposta sobre o desenho da antiga estrutura da cidade. Este facto comprova a existência de um levantamento ou plano anterior ao terramoto e o conhecimento da composição da malha pré-existente. Na planta de 1758 é apresentada a solução escolhida para a reconstrução da cidade. Predomina o traçado regular ortogonal representado com volumes em mancha amarela, sobre os contornos castanhos do edificado pré-existente. Entre a Baixa e o Bairro Alto – que já apresentava um traçado regular e ortogonal – o Chiado procura fazer a transição entre estes dois patamares, localizados a diferentes cotas da cidade, reservando algumas das volumetrias de certos corpos como o Convento de São Francisco [a mancha vermelha], bem como de determinadas igrejas. Na planta de 1770 o edificado está representado com três cores diferentes: a amareloescuro aparece a cidade pombalina reconstruída; a cor-de-rosa a cidade que mantém a estrutura anterior ao terramoto e a amarelo-claro os novos núcleos urbanos propostos para a expansão da cidade. Este levantamento e proposta, que acaba por ter um pouco dos dois, apresenta uma clara unidade e continuidade, desde Santa Apolónia até Alcântara. Esta frente é descrita como uma linha contínua de construção que dá forma e delimita a cidade, apresentando alguns indícios das necessidade de consolidação da estrutura urbana, claramente expressos pela proposta de crescimento a amarelo. Ilustração 20 – Planta de Lisboa 1770. (Planta, 1770). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 64 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Planta de 1807 – 1832 – Duarte José Fava Ilustração 21 – Carta Topográfica da Cidade de Lisboa Comprehendida entre Barreiras. ([Adaptado a partir de:] Fava,18081832?). Em 1807 Duarte José Fava dirige o Real Corpo de Engenheiros elaborando uma nova planta da cidade à escala 1:2500 e apresentando-a em 1808; nos anos seguintes, o estudo desenvolve-se procedendo à elaboração de outros documentos que complementam o estudo inicial que terminou em 1832. Duarte José Fava, produz várias plantas com diferentes variações, sendo a mais conhecida a que concilia a topografia e o edificado. Porém como se pode constatar, esta previligia o edifcado em contraste com o fundo homogêneo. Esta escolha deve-se à intrigante comparação entre este levantamento e o anterior – de 1770, que já previa algumas soluções de crescimento. É interessante comprovar que a cidade, já possuindo um documento estratégico de crescimento, não o utiliza nem segue algumas das suas propostas; porém ela cresce, mas não como se esperava, previligiando os acessos, as grandes ruas, as avenidas e estradas onde se concentra grande parte do crescimento e ampliação. Alguns dos exemplos que ressaltam de imediato deste crescimento localizam-se em Alcântara e Amoreiras, e no caso do largo do Rato – que se segue as intenções expressas no plano de 1770 – constituindo-se como a excepção à regra. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 65 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Levantamento de 1856 – 1858 – Filipe Folque Ilustração 22 – Planta nº 51- Terreiro do Paço, Filipe Folque, 1856. ([Adaptado a partir de: Viegas, Tojal, 2000, p. 85). No que diz respeito aos levantamentos da cidade de Lisboa poder-se-á dizer que existe um antes e um depois de Filipe Folque14. Representa um dos mais importantes levantamentos cartográficos da cidade e uma das bases de trabalho fundamentais para a expansão urbanística moderna, de enorme rigor e qualidade gráfica, composto por peças minuciosas de grande beleza: um documento imprescindível. O governo da Regeneração e, particularmente António Maria Fontes Pereira de Melo, titular do novo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, compreendeu, desde logo, a importância do conhecimento rigoroso do território, condição essencial para o desenvolvimento planeado do país, especificamente no que respeita às obras de viação pública. (Atlas da Carta Topográfica de Lisboa, p. 13). A Carta Topográfica de Lisboa 1856-1858 foi encomendada por ordem de sua majestade a rainha D. Maria II. A direção do levantamento da carta foi entregue ao 14 Filipe Folque (Portalegre, 1800, Lisboa 1874), brigadeiro graduado do Exército, Diretor Geral dos Trabalhos Geodésicos, Cartográficos e Hidrográficos do Reino, foi o principal responsável pelo levantamento da cidade de Lisboa executado entre 1856 e 1858. Além das vida militar desempenhou funções como professor em diversas instituições académicas portuguesas como a Universidade de Coimbra e a Academia Real de Ciências de Lisboa. Deixou algumas obras publicadas de astronomia, cartografia e a matemática. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 66 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares conselheiro e engenheiro Filipe Folque, mas também a Carlos Perezat, Francisco Goullard e Gessar Goullard. Deste modo, por proposta de Fonte Pereira de Melo, aprovada pela rainha D. Maria II, foi publicada uma portaria a 2 de Novembro de 1853, pela Repartição Técnica da Direcção-Geral das Obras Públicas daquele ministério, ordenando ao conselheiro Filipe Folque, […],que mandasse proceder ao levantamento topográfico da cidade de Lisboa, […]. (Atlas da Carta Topográfica de Lisboa, p. 13). A carta é composta por por 65 peças de papel pintadas a aguarela com uma dimensão de 80 x 50 centímetros à escala 1:1000. Para além das 65, integram ainda o conjunto mais duas peças: a folha de rosto do levantamento e o quadro de junção das várias peças do atlas da carta topográfica – desenhada por M. Toste em 1911. O presente levantamento abrange o território da cidade até à linha da circunvalação e 200 metros para além desta, até às margens do rio Tejo. A Carta Topográfica de Lisboa encontrase actualmente na posse do Arquivo Municipal de Lisboa. É importante referir que além do levantamento de Lisboa, iniciado em Fevereiro de 1854, decorreu em simultâneo o desenvolvimento da carta geral do reino, que levou ao atraso do levantamento de Lisboa por se encontrarem requisitados os técnicos envolvidos. Parte do levantamento foi executado por empreitada, evitando recorrer em exclusivo ao engenheiros militares. Este conjunto de plantas apresenta o edificado com diferentes tons de rosa: na topografia estão assinalados, simultaneamente, a cidade e o leito do rio mais próximo da frente ribeirinha. É das primeiras vezes que é dada idêntica importância à configuração da forma tanto quanto à composição interna: quer na representação dos jardins e espaços verdes públicos da cidade, quer nos interiores – privados – dos grandes palácios ou mesmo dos quarteirões subdivididos. Uma das grandes inovações consiste no modo como estão organizadas as várias plantas: não só estão numeradas como também seguem um sistema de coordenadas que tem como ponto inicial [ponto coordenada 0,0] o canto superior direito da planta 51 – Terreiro do Paço. A partir deste ponto é definida uma malha e em cada planta é possível conhecer a distância dos seus limites [contornos] em relação à origem. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 67 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Levantamento de 1904 – 1911 – Silva Pinto Ilustração 23 – Planta 11 E, Praça do Município - Praça do Comércio, Silva Pinto. ([Adaptado a partir de: Viegas, Tojal, 2005, p. 73). O Levantamento da Planta de Lisboa, executado entre 1904 e 1911, foi dirigido pelo engenheiro Júlio António Vieira da Silva Pinto15 e por Alberto de Sá Correia16, consiste num dos mais importantes e detalhados documentos de levantamento urbano do século XX. Este levantamento é composto por 249 peças, com uma dimensão de 80 x 50 centímetros, à escala 1:1000. A área total deste levantamento era de 8.245 hectares, e incluía todo o município de Lisboa [na época], Olivais [antigo município que confrontava a cidade a norte e nordeste – hoje extinto e absorvido por Lisboa] e Belém [antigo município que confrontava a cidade a norte, noroeste e oeste, hoje extinto e absorvido por Lisboa]. Podemos assim afirmar que o levantamento de 1911 corresponde à totalidade do que é hoje o município de Lisboa, incluindo uma margem para além da antiga estrada militar. 15 Júlio António Vieira da Silva Pinto (1860), foi um dos dois responsáveis que dirigiu o levantamento da cidade de Lisboa entre 1904 e 1911, inicialmente partilhando a direção com Alberto de Sá Correia. 16 Alberto de Sá Correia (1874-1930), foi Agente Técnico de Engenharia português que dirigiu inicialmente o levantamento da cidade de Lisboa entre 1904 e 1911, acabando mais tarde por sair e deixar a direção do levantamento exclusivamente a Silva Pinto que acompanhou toda a sua execução. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 68 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares É assim um dos levantamentos mais completos, com uma dimensão colossal para a época e abrangindo uma área nunca estudada do ponto de vista do levantamento urbano. De imediato nos apercebemos das inúmeras características em comum com um dos levantamentos feitos anteriormente, como é o caso do de 1856-58 de Folque, que é claramente uma referência na execução deste. O levantamento segue assim praticamente toda a estrutura e organização do anterior, mantendo a dimensão das plantas, numerando-as e preservando o sistema de coordenadas. Porém, acrescenta-lhe uma característica muito interessante que facilita a sua consulta e estudo: desenvolvendo uma planta quadrangular que conjuga números e letras [tal como o sistema de batalha naval], permitindo assim associar cada planta a um determinado número e letra [número na horizontal e letra na vertical]. Este conjunto de plantas representa a preto o edificado, conjugando-o com a topografia da cidade e o leito do rio mais próximo da frente ribeirinha. Volta a estar representado o espaço verde e a configuração do espaço público. Uma das características que ressalta de imediato é a configuração da topografia nos arredores da cidade onde a construção é mais reduzida ou inexistente, permitindo uma melhor definição da mesma. O detalhe é quase cirúrgico, representando cada árvore, parcelas dos terrenos agrícolas, os poços, os tanques, de uma minúcia e detalhe expressos em cada linha de água. Cada elemento está marcado sobre cada planta, quase como um mapa de satélite feito à mão, exaustivamente, permitindo-nos hoje compreender a cidade que existiu há um século atrás que, obviamente, não é a cidade do nosso tempo. O reconhecimento do trabalho desenvolvido ao longo dos séculos por estas equipas, com o esforço e a dedicação na construção dos levantamentos e das cartas da cidade permitiu que estas perdurassem até aos dias de hoje, para que as gerações futuras as possam estudar e desenvolver, com referências credíveis e fiáveis. Podemos agradecer por isso o tempo e o trabalho dedicados e o seu contributo essencial quer para a arquitectura, urbanismo, engenharia, olisipografia, arqueologia, e principalmente para a cidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 69 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 24 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1650. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 70 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 25 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1755. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 71 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 26 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 72 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 27 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1858. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 73 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 28 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 1911. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 74 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 29 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa 2015+. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 75 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 30 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 1650-1755. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 76 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 31 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 77 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 32 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 1770-1858. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 78 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 33 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 1858-1911. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 79 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 34 – Planta comparativa da evolução da frente ribeirinha de Lisboa 1911-2015+. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 80 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3. FRENTE RIBEIRINHA MATEUS 17 18 DA BOAVISTA – NOVA SEDE DA EDP – AIRES 17 Manuel Aires Mateus (Lisboa, 1963), arquitecto português, formado pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa da Universidade Técnica de Lisboa, em 1986. Colaborou com o arquitecto Gonçalo Byrne desde 1983 e com o arquitecto Francisco Aires Mateus, seu irmão, desde 1988. Com larga experiência académica desde os anos 90, tem leccionado em distintas instituições, como a Universidade de Harvard, Universidade de Liubliana, Academia de Mendrisio, Universidade Autónoma de Lisboa e Universidade Lusíada de Lisboa. Convidado para inúmeras conferências e seminários na Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Eslovénia, Espanha, Inglaterra, Irlanda, Itália, Japão, México, Portugal, Suécia, Suíça. Trabalho desenvolvido e reconhecido com exposições, prémios, publicações, nacionais e internacionais. 18 Francisco Aires Mateus (Lisboa, 1964), arquitecto português, formado pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa da Universidade Técnica de Lisboa, em 1987. Colaborou com o arquitecto Gonçalo Byrne desde 1983 e com o arquitecto Manuel Aires Mateus, seu irmão, desde 1988. Com larga experiência académica desde os anos 90, tem leccionado em distintas instituições, como a Escola de Arquitectura de Oslo, Universidade de Harvard, Academia de Mendrisio e Universidade Autónoma de Lisboa. Convidado para inúmeras conferências e seminários na Argentina, Brasil, Canadá, Croácia, Eslovénia, Espanha, EUA, Inglaterra, Itália, Japão, México, Noruega, Portugal e Suíça. Trabalho desenvolvido e reconhecido com exposições, prémios, publicações, nacionais e internacionais. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 81 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A nova sede da EDP – Energias de Portugal – actualmente em construção, é um projecto da autoria do atelier português Aires Mateus e Associados, desenvolvido no ano de 2008 e cuja conclusão está prevista durante o corrente ano de 2015. Esta nova sede que irá substituir a actual, localizada na Praça Marquês de Pombal, ocorre em período de grande expansão, internacionalização e reinvenção da imagem de marca desta companhia energética portuguesa. Qualquer projecto tem a obrigação de potenciar e comunicar com a sua envolvente, o sítio, e edificar na frente ribeirinha não é excepção; muito pelo contrário, é a nosso ver, uma obrigação. Este caso de estudo é um exemplo da consciência do entorno e um enorme potenciador de relações; um conjunto de comunicações entre a cidade e o rio, um diálogo constante entre o exterior e o interior, capaz de criar espaço público, definindo uma praça/rua central, parcialmente aberta a sul na direcção do rio, e a norte com a cidade. Em conversa com o arquitecto José Maria Assis19, professor da Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa, co-autor com o Atelier Aires Mateus na fase do concurso do projecto em questão, foi possível clarificar algumas das condicionantes e intenções iniciais do projecto. O concurso, denominado Uma casa para a Luz, procurava uma proposta para a nova sede da EDP, a construir no antigo aterro da Boavista. Uma das exigências do concurso era a preservação da antiga fachada neogótica, pré-existente, que funcionou sempre como um plano meramente decorativo que fechava e resguardava os grandes depósitos de gasóleo que outrora se encontravam neste lote. De todas as propostas presentes no concurso, esta e a do arquitecto Gonçalo Byrne não respeitaram a exigência inicial da preservação do referido plano de fachada. Esta situação levanta várias questões: até que ponto é importante e relevante o muro para os vários projectos presentes no concurso? De que modo é fundamental na composição da cidade e na regeneração do tecido urbano? 19 José Maria Assis, arquitecto português licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa em 1990 e mestre em arquitectura na Universidade Lusíada de Lisboa em 2002. Fundou o seu próprio atelier em 1991 e colaborou com o atelier do Arquitecto Manuel Aires Mateus em diversos projecto, inclusive no projecto da nova sede da EDP. Em 1997 iniciou-se como docente na disciplina de projecto de 5º ano, actividade que mantém até hoje. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 82 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Para o projecto do atelier Aires Mateus não é tão relevante pois a sua presença interfere com grande parte das intenções e valências da proposta conseguida. O projecto reflecte a constante disputa entre verticalidade e horizontalidade: comunica de modo distinto com os espectadores e é um jogo constante de proximidade e distância, engano e sedução. É difícil e discutível afirmar “o que é” o edifício. Comecemos pela verticalidade presente nos volumes laterais que contrapõem com a profundidade dos mesmos, acabando por se viver muito este contraste, entre a verticalidade e a horizontalidade, entre o espaço construído e o vazio, relacionando-se e integrando-se, na eminente expectativa de um futuro ícone deste troço da frente ribeirinha. Algumas publicações fazem referência à escala do edifício, à dimensão e às cérceas, considerando-as como tentativas que procuram evitar qualquer protagonismo vertical. Contudo só o simples facto de um edifício adoptar as mesmas cérceas que os edifícios mais próximos não significa que evite a verticalidade, e este caso não é excepção. Ilustração 35 – Implantação da nova sede da EDP na frente da Boavista. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 83 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 36 – A nova sede da EDP, vista a partir do cais fluvial do Cais do Sodré. (Ilustração nossa, 2014). A anterior ilustração permite compreender melhor este equilíbrio das cérceas que são respeitadas, apresentando uniformidade mais perceptível no limite ribeirinho. Porém, os dois corpos verticais que saltam à vista são volumes brancos que se elevam por detrás dos antigos armazéns portuários de tijolo maciço. Contrastam com o vermelho do barro de textura quente e reconfortante, as coberturas de duas águas contínuas suportadas por estruturas de madeira, tal como as portas negras. Pontualmente, surgem os perfis metálicos que reforçam as paredes de alvenaria e as guarnições das grandes portas, inclusive até a própria ferrugem que escorre sobre a alvenaria se encontra perfeitamente integrada dentro deste contexto ribeirinho. A partir de diferentes posicionamentos obtemos diferentes leituras que nos levam a distintas apreensões do conjunto. A verticalidade não é tão assumida devido à distância que separa os dois corpos laterais. A ela se deve o equilíbrio do projecto e o espaço central é um mediador de relações, entre o conjunto e a cidade, e entre os próprios corpos que o compõem. A partir do espaço central podemos aceder às entradas das duas torres e aos espaços comerciais voltados para o seu interior, presentes nos seus embasamentos. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 84 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 37 – As duas torres em construção, configuração do vazio central. (Ilustração nossa, 2014). O vazio é o mediador da estrutura urbana que equilibra e confere sentido ao espaço público e privado. No entanto não deve ser encarado como vazio ou ausência mas como espaço essencial na concepção do edificado de qualquer projecto – é importante não esquecer que arquitectura é espaço. Falamos de um conjunto integrado e contínuo, de um percurso que se inicia no rio e percorre a frente da estrutura urbana. A nova sede faz a transição entre estas duas realidades: é a porta de entrada entre a frente ribeirinha e a cidade, como um grande ingresso ou arco triunfal, que une e separa, inserido neste contexto de transição entre diferentes lugares e espaços, dentro de uma estrutura única e complexa. Os dois corpos verticais paralelos reforçam esta intenção de comunicação entre estes momentos através de um espaço central intermediário de relações. Dois corpos verticais geradores de uma forte relação horizontal – um conjunto que procura integrar todas as intenções e preocupações numa ideia coerente –, e uma síntese conceptual que se revela na unidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 85 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 38 – A nova sede da EDP vista a partir do miradouro de St. Catarina, durante a construção do esqueleto estrutural. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 86 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Se inicialmente as duas torres aparentam ser dois corpos separados ainda que familiares, a sua natureza une-os; porém o corpo horizontal materializa esta relação visual aparecendo entre os edifícios da primeira linha ribeirinha – a sua composição e orientação complementam esta realidade. Chegando desde o rio; descobrimos o corpo horizontal, como uma peça que une e dá continuidade. Por instantes, a leitura é de um gesto único que envolve todo o projecto como uma linha contínua que clarifica toda a intenção de união – a síntese está expressa no desenho da forma. O edifício é uma porta aberta à cidade composta por duas torres de sete andares, esbeltas e permeáveis, conscientes da sua localização, e que expressam uma clara preocupação em relação às construções que estão localizadas em segunda e terceira linha. O arquitecto José Maria Assis explica este “U” e o modo como ele se implanta e acaba por dar origem à rua-praça que o trespassa: o edifício funciona como um corpo empenado e é este gesto de torcer o volume que origina as duas entradas em pontos opostos do projecto. As torres descolam do chão no canto [nascente] do lado da Avenida 24 de Julho e do lado oposto [poente] na Rua D. Luís I. As aberturas geradas por este gesto permitem não só o acesso às torres, como também aos pisos inferiores. Ilustração 39 – Maqueta da nova sede da EDP, onde é perceptível a forma empenada, o corpo horizontal que une as duas torres, e entrada no embasamento da torre da direita, Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009, p. 199). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 87 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Consideramos tão importante o edifício quanto o espaço por ele configurado; esta solução reforça a união e a continuidade do espaço público em redor do edifício e do espaço central por ele delimitado. Ao “descolar” o edifício, o espaço pedonal envolvente converge neste novo centro; não existem obstáculos, o próprio edifício convida a esse momento estrategicamente localizado. Sintetizando, a palavra unidade é claramente a palavra que melhor caracteriza este projecto, também ela expressa pela composição da fachada e está presente em todo o conjunto – a estrutura é simultaneamente a base organizadora dos elementos de composição das fachadas que protegem e sombreiam o interior. (Martins, 2014 p. 366377). A composição da fachada é determinada pelo esqueleto metálico pré-fabricado e numerado de modo a reduzir ao máximo as soldaduras em obra. É ele que define a localização e suporta os painéis e peças verticais – finas e esguias – que vão do embasamento até à cobertura [de perfil variável e espaçadas 1,20 metros entre si], permitindo maior fluidez e integração na cidade, originando um diálogo de movimento e vibração entre os corpos. Os elementos que compõem a fachada e dão corpo aos volumes verticais unem-se sobre a praça, configuram não só os dois corpos verticais como a cobertura da mesma, transformando-se em planos horizontais que expressam a ideia de uma praça com uma cobertura suspensa que permite contacto constante com o céu. (Martins, 2014 p. 366-377). A fachada dialoga: a incidência do sol sobre as superfícies e a sombra resultante destas leva a diferentes apreensões; o edifício responde ao movimento do nosso corpo no espaço e ele próprio se movimenta, cativa-nos, atrai o nosso olhar pois a luz inconstante contrasta com a sombra incontrolável deste jogo de sedução. O edifício responde aos estímulos: responde ao sol com mistério – encerrando-se, protegendo-se e; pontualmente revela o seu interior – a vida que nele existe, o seu espaço privado, surpreendendo-nos. A unidade e a síntese [conceptual] estão uma vez mais presentes e reflectidas nas fachadas que lhe dão corpo. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 88 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 40 – Diagramas da composição das fachadas, Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 89 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 41 – Estrutura da fachada. (Ilustração, nossa, 2014). Ilustração 42 – Perfis de betão de revestimento da fachada. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 43 – Pormenor dos elementos de encaixe da fachada. (Ilustração nossa, 20014). Ilustração 44 – Composição da fachada. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 90 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Estes perfis brancos verticais que compõem a fachada são construídos em betão branco armado com fibra de vidro [GRC], também pré-fabricados e transportados para a obra, e encaixam na estrutura de perfis metálicos através de um conjunto peças soldadas. Estes encaixes têm a forma de dois “dedos” perpendiculares ao perfil metálico, que permitem agarrar a peça à estrutura metálica em diferentes pontos. A estrutura e os perfis brancos de betão da fachada são dois elementos diferentes e com funções distintas: uma estrutural e outra de composição e sombreamento – apenas unidos por um terceiro elemento, muito simples, que é repetido, ao longo da fachada em diferentes momentos. (Alfaconsult, 2013). Ilustração 45 – A fachada de vidro ainda sem os perfis de betão. (Ilustração nossa, 2014). Todos os perfis já referidos funcionam como uma única peça composta por dois elementos perfeitamente integrados e entre cada perfil existe um plano de vidro que reveste, praticamente na totalidade, todo o edifício. A permeabilidade, tantas vezes descrita, corresponde a este plano protegido pelos perfis de betão que permite uma relação muito discreta entre interior e exterior, vivenciada pelo movimento do nosso corpo no espaço. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 91 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Trata-se de um corpo extremamente permeável, integrado, e em constante diálogo com o lugar. Este equilíbrio de relações entre as fachadas e a envolvente também está presente no modo como o espaço interior e exterior dialogam. Deste modo, a fachada permite uma clara vivência do espaço interior sem nunca esquecer o espaço exterior. Por outro lado, o exterior não só está presente através desta relação visual directa, como também pelos terraços e espaços interiores ajardinados – conferindo maior fluidez entre o exterior e os espaços privados. Esta combinação permite a criação de zonas de trabalho informal, de convívio e de descompressão. A descontracção e a informalidade ganham espaço dentro da formalidade. (Mateus, 2012, p. 6-13) Sete pisos exteriores e cinco pisos subterrâneos dão forma à nova sede: a presença subterrânea é considerável; uma porção destes pisos estão destinados a estacionamento para os funcionários e para uso público e uma outra parte do programa encontra-se nos primeiros pisos subterrâneos, como é o caso dos auditórios sob a praça-rua. Uma outra estratégia consiste na separação do programa público do programa privado, concentrando a parte pública no piso térreo e pisos inferiores – auditórios, lojas, livraria, entre outros. Os acessos são feitos a partir da praça-rua interior através de duas escadas paralelas, permitindo comunicar directamente com os pisos inferiores, através de dois pátios. Nos pisos superiores concentram-se os escritórios e os departamentos administrativos da EDP. Ao conceber esta rua que atravessa o quarteirão ao meio, os arquitectos ambicionaram possibilitar outros usos no piso térreo, permitindo à população apropriar-se deste espaço público sem que se torne um espaço exclusivo dos funcionários da sede. A vivência deste espaço gera um novo momento de atracção dentro da malha da Boavista. Apesar deste edifício estar inserido num plano de pormenor, um facto que a nova sede está praticamente concluída e o plano contínua no papel. Todos sabemos que a actual conjuntura não é propícia à construção de planos urbanos, e mais uma vez reforçamos a necessidade de cada projecto, por mais pontual que seja, conseguir ajustar as premissas da recuperação, regeneração e consolidação do território. A sede encontra-se sobre um aterro: é terra transportada para o sítio com o objectivo de estender a superfície da cidade sobre o rio – é “terra sobre água”. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 92 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Não aparenta ser relevante, mas, construtivamente é mais complexo e bastante diferente de construir em “terra firme”. A Rua da Boavista – sobre a antiga praia, e o bairro de Santa Catarina – na encosta, são territórios que já existiam, apropriados e densamente construídos. No caso do aterro da Boavista estamos dentro de outra realidade; primeiro foi necessário construir esse território “artificial”. O Homem constrói o território para a cidade, transporta os recursos necessários para a sua expansão, colocando terra sobre o limite ribeirinho e “entulhando” o antigo pântano de modo a construir um novo plano de nível sobre a água. A EDP situa-se nesta sequência de frentes sucessivas, como faixas contínuas paralelas ao rio; deste modo, a proposta procura “cosê-las” através desta permeabilidade presente no quarteirão pela praça-rua parcialmente coberta – estratégia essa que vai ao encontro aos usos da população que vivencia este lugar. A proposta procura reivindicar a cidade e o espaço público para a população local que a habita e a vivência. Assistimos assim a uma tentativa de devolver um território outrora ocupado pela indústria e que condicionou a sua utilização urbana. A decadência em que se encontra a indústria local teve repercussões na população operária que abandonou este lugar. Ao longo do tempo emergiram sucessivas tentativas de reconversão dos quarteirões pelo comércio local e pelos espaços de convívio, especialmente nocturnos que, pouco a pouco, têm vindo a obter algum sucesso. As longas ruas que caracterizam o aterro que uniam a Rua da Boavista à Av. 24 de Julho, claramente funcionais e de ligação directa e rápida – concebidas para o uso industrial – deixam de fazer sentido e de ter utilidade, e passa a haver necessidade de contrariar esta situação através de espaços de permanência, de convívio e vivência do espaço público – como podemos encontrar nas propostas para a nova sede da EDP, como também para a o restante plano onde esta está inserida. Através das plantas desenvolvidas, presentes no sub-capítulo 2.2 – Transformação do limite ribeirinho, conseguimos perceber que o primeiro aterro da Boavista se encontra claramente subdividido em três faixas contínuas de quarteirões: a primeira delimita a sul a rua da Boavista; a segunda delimita a norte a Av. 24 de Julho [onde está inserida Diogo Filipe Dias Marques Lopes 93 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares a proposta da EDP]; e por fim, a última corresponde à própria Av. 24 de Julho. Falamos de frentes contínuas sucessivas que deveriam manter relações físicas pois só deste modo se poderá construir uma frente ribeirinha com qualidade. Esta realidade condicionou a evolução da construção do aterro e teve repercussões na proposta para o projecto. O edifício está sobre um território conquistado/construído e procura materializar essa ligação entre as várias fases da sua apropriação, preservando a malha inicial em forma de leque, reforçando a relação entre o novo corpo e os que configuram a Av. 24 de Julho e procurando dar continuidade à definição da frente. Mais tarde um segundo aterro, representado no levantamento de 1911 [ver Ilustração 72], volta a transformar a frente da Boavista: esta nova faixa corresponde à frente compreendida entre a linha de caminhos-de-ferro e o rio onde hoje se encontram alguns armazéns e a estação fluvial do Cais do Sodré. Deparamo-nos com outro problema: o “lado de lá” da linha do caminho-de-ferro – 50 metros “largados” à sua sorte – onde o acesso é difícil. Porém este problema está identificado e é igualmente necessário iniciar projectos que o solucionem, como o presente na proposta para o plano de pormenor o qual visualizar e compreender com a explicação presente no sub-capítulo 3.2.1. Comparando as plantas de evolução percebemos como a proposta procura colmatar a malha existente, configurar a avenida, sem esquecer as ligações entre a cidade e o rio e entre as faixas, desenvolvendo espaço público e um lugar para a população. Deste modo consolida-se a relação linear das sucessivas frentes e as ligações perpendiculares entre elas. Em suma, trata-se de dar continuidade, consolidar a estrutura existente e ligar e agarrar as várias partes de modo a construir um lugar coeso cujo edificado e respectivo espaço público sejam capazes de reflectir e reforçar a identidade local. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 94 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 46 – A estrutura e o revestimento. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 47 –A torre nascente e a ponte. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 48 – A torre poente e a ponte. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 49 – Aço, betao e vidro. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 95 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 50 – (De baixo para cima) Plantas dos pisos -1, 1, 2. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 96 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 51 – (De baixo para cima) Plantas dos pisos, 3, 4, 5. ([Adaptado a partir de: Leal, 2009). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 97 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.1. A NOVA SEDE, A IMAGEM DO TERRITÓRIO Sempre que pensamos na nova sede da EDP ou de uma empresa cotada em bolsa, com investimentos em território nacional e no estrangeiro, as questões da marca e do valor são inevitavelmente suscitadas. Mas qual é o interesse destas questões numa dissertação de mestrado integrado em arquitectura? O interesse reside no valor da marca, da imagem, da arquitectura, do território, da cidade e do lugar. As cidades/ regiões possuem identidades com atributos patrimoniais, económicos, tecnológicos, relacionais, sociais e simbólicos que constituem a base dos processos de contrição de imagem dos territórios e a marca, através da sua dimensão funcional e simbólica, tem a capacidade de consubstanciar e valorizar essa identidade promovendo identificação e envolvimento com os públicos e simultaneamente distinguindo-a de territórios concorrentes. (Gaio; Gouveia, 2007, p. 3). Sítios com valor são disputados pelas marcas pois, o valor atrai valor e sítios com valor transformam-se em lugares de valor, daí que muitos dos ícones, marcas e símbolos de consumo e de influência, detenham as suas sedes relativamente próximas umas das outras, aumentando exponencialmente a dimensão do valor do território. O valor tende a concentrar-se; um exemplo claro foi a construção do Palácio Real na Ribeira de Lisboa – fora das muralhas –, possibilitando um maior controlo de todo o movimento comercial, marítimo e de produção naval que aí se encontrava. O valor concentrado sobre determinados pontos logo se estendeu a toda a faixa ribeirinha lisboeta. O poder ou domínio marca presença através da arquitectura e, continuando com o exemplo anterior, encontramos inúmeros nobres e instituições que seguiram o exemplo do rei, construindo ou reconstruindo neste novo sítio, as suas residências e sedes institucionais, mantendo e reforçando o valor das mesmas ao aproximarem-se umas das outras. A valorização deste lugar leva-o a competir com outros lugares de grande protagonismo ou prestígio e este tipo de disputa territorial está presente em todas as grandes cidades até mesmo entre países. O reforço de determinada identidade leva a um aumento do interesse sobre ela e à sua respectiva valorização. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 98 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ao falar da EDP faz sentido falar da cidade, de valor, de concentração, do desenvolvimento e transformação pois a cidade vive destas situações e a regeneração da estrutura urbana renova-se graças a estes momentos que influenciam e têm repercussões na transformação do território. A [re]localização e transferência da sede da EDP para a Avenida 24 de Julho consiste numa estratégia de imagem, posicionamento e referência – marketing territorial. A transferência da sede localizada na Praça Marquês de Pombal para a frente ribeirinha reflecte um pouco a conjuntura actual que tem limitado o financiamento da economia nacional que durante décadas incentivou a progressão e crescimento da cidade. De certo modo, o crescimento descontrolado e pouco planeado é substituído pela transformação e consolidação da cidade num período de crise financeira. Faz sentido que a cidade cresça quando no seu núcleo existem lugares obsoletos e em constante decadência, escondidos numa penumbra de oportunidades? Consideramos que não, e bons exemplos de arquitectura localizam-se no aterro da Boavista e no Cais do Sodré, que no passado não eram mais do que estruturas urbanas habitacionais e industriais – degradadas e obsoletas – com inúmeros espaços disponíveis, desvalorizados e ainda assim muito acessíveis. Estas características facilitaram a concentração de diferentes interesses, reforçando e enaltecendo o enorme potencial para a criação de valor. Porém, esta criação de valor só foi possível devido à identidade local que atrai a atenção de diferentes públicos, apresentando características únicas e singulares. Apesar de anteriormente não ser das melhores, a imagem de hoje converge numa identidade apetecível e desejável. A EDP não foi a primeira, nem será a última marca que no futuro irá ocupar este sítio, contudo, e por sorte, calhou à EDP ser detentora de um dos maiores lotes vazios que o caracterizam; é provável que não compreenda a identidade que ajudou a originar, estando meramente concentrada na imagem e no interesse que a valorização subitamente originou. Enquanto a identidade é um conceito emissor, que remete para um fenómeno dinâmico entre a dimensão política, os tangíveis territoriais e os resultados das interacções sociais, económicas, tecnológicas das pessoas no espaço, a imagem é um conceito receptor, pois reflecte a forma como é percepcionada pelos públicos e o processo de construção de imagem de um lugar toma por base um conjunto de sinais e/ou experiencias que individualmente podem não ser decisivas na opinião do receptor mas que no seu conjunto se tornam fundamentais para a construção de um juízo de valor. (Gaio; Gouveia, 2007, p.3). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 99 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares As cidades são compostas por lugares de distintos valores e a própria cidade detém valor. A arquitectura está muitas vezes associada à identidade destes lugares pois é ela que dá corpo e materializa os espaços, originando uma imagem própria e deste modo, é uma das principais responsáveis pela criação dos referidos conceitos de identidade e de imagem. As empresas são marcas, e ícones que procuram não ser esquecidos, mantendo contacto, influência, presença e procurando estes sítios de interesse que reúnam características favoráveis. A dificuldade não está em encontrar uma imagem, a identidade, mas sim saber diferenciá-las, porque é a leitura incorrecta que muitas vezes leva ao colapso e desvalorização dos sitíos. É frequente o conceito de imagem ganhar uma dimensão insustentável devido à concentração de investimentos pois, esta excessiva centralização entra em colapso porque deixa de ser compatível com a identidade local. A nova sede da EDP procura essa identidade local, reinterpretando e reinventando através de uma nova imagem, um claro ícone urbano reconhecível e identificável. A arquitectura não é mais que a materialização do ícone que dá corpo ao valor. Tudo isto aparenta ser um conjunto de relações extremamente superficiais, o que não deixa de ser verdade, na qual o sítio estó sob o uso e especulação do interesse privado sem consciência da necessidade de diálogo com a envolvente. A arquitectura é vista superficialmente como um modo de dar corpo à ideia, porém mais do que isso é também um meio de dar corpo a uma solução integrada que dialoga e regenera. A maneira de decifrar o que ocorre no comportamento aparentemente misterioso e indomável das cidades é, em minha opinião, observar mais de perto, com o mínimo de expectativa possível, as cenas e os acontecimentos mais comuns, tentar entender o que significam e ver se surgem explicações entre eles. (Jacobs, 2000, p.12-13). Esta explicação de Jane Jacobs vai ao encontro do que inicialmente começámos por referir: uma solução para esta necessidade de ler correctamente a cidade, de modo a evitar criar uma imagem dissonante ou esmagadora da identidade local. Só assim achamos possível compreender o seu comportamento e aprender a evitar a ruptura da valorização descaracterizada do território. Contudo, Jacobs, com base na sua experiência em observar cidades, inicia uma possível discussão de como evitar a morte dos espaços dentro da cidade: Diogo Filipe Dias Marques Lopes 100 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares “Esse princípio omnipresente é a necessidade que as cidades têm de uma diversidade de usos mais complexa e densa, que propicie entre eles uma sustentação mútua e constante, tanto econômica quanto social”. (Jacobs, 2000, p. 13). Esta ideia expressa na década de 60 do século XX ainda hoje se aplica à actual realidade urbana das nossas cidades. É certo que a valorização dos territórios acaba por transformá-los em lugares monofuncionais, muitas vezes completamente contrários às funções anteriores, perdendo a identidade – que é uma das bases para a sustentação da sua vitalidade. Quanto mais a cidade conseguir mesclar a diversidade de usos e usuários do dia-a-dia nas ruas, mais a população conseguirá animar e sustentar com sucesso e naturalidade (e também economicamente) os parques bem localizados, que assim poderão dar em troca à vizinhança prazer e alegria, em vez de sensação de vazio. (Jacobs, 2000, p.121). É a capacidade de atrair pessoas que fundamenta a existência de determinado território; a sua valorização e monofunção transforma-o em algo banal, monótono, sem interesse e “morto”. A valorização descontrolada e inconsciente da identidade é o princípio do fim do lugar. É importante que a transformação presente no aterro da Boavista e no Cais do Sodré tenha em consideração estas questões, que devem ser pensadas por todos os intervenientes neste território. A construção da sede da EDP deveria consistir numa intervenção capaz de transformar e reinventar o sítio sem esquecer a sua identidade. Transformar esta franja do território da cidade num conjunto de escritórios com vista para o rio só trará disfuncionalidade e monotonia; quando Jabos enfatiza a necessidade de integrar diferentes usos para manter a diversidade e a vida da cidade, está a chamar a atenção ao modo como a planeamos e a transformamos. O novo edifício da EDP aparenta ter consciência destas questões, em boa parte devido à diversidade de usos dos espaços do piso térreo – auditórios, lojas e parques de acesso público. O modo como o espaço público está planeado e o “convite” que é feito à população para a sua utilização é uma mais-valia para uma parte substancial do território, evitando a monofuncionalidade e preservando a vivência do mesmo espaço e identidade que o caracteriza. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 101 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 52 – Edifício Carrión, Madrid, conhecido pela população local e estrangeira por edifício Schweppers. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 102 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2. NOVA SEDE DA EDP - CONCURSO Nos últimos anos as empresas nacionais têm sofrido grandes transformações, sendo mesmo algumas privatizadas e outras perdendo as participações do estado, vendendo-as a entidades empresariais estrangeiras. O clima de contenção levado a cabo pela crise financeira dos últimos tempos obrigou por isso à concentração dos recursos e a cortes nos excessos. A actual sede da EDP apresenta-se como um enorme encargo financeiro para a empresa, sendo injustificado o gasto mensal no aluguer do espaço onde está sediada. O estímulo de contenção levou a companhia a rever a localização da sede e a planear a possibilidade de construir um edifício só seu onde pudesse concentrar todos os departamentos. Com a venda da participação do Estado Português na empresa esta estratégia, ganhou um incentivo ainda maior. Assistimos hoje à construção de um novo edifício neste sítio. Uma aposta que visa marcar presença e domínio sobre o território, uma referência icónica de arquitectura e de estratégia de mercado. Para a construção da nova sede, a EDP optou por convidar vários ateliers nacionais para desenvolverem propostas para o novo edifício. Curiosamente estas propostas não estão restritas ao edifício mas também ao plano onde este está inserido: o plano de pormenor da Boavista, que engloba os quarteirões em redor do quarteirão do qual a EDP é proprietária. Deste modo, as propostas apresentadas pelos vários ateliers procuram apresentar soluções para a nova sede da EDP e para todo o espaço envolvente que está compreendido no plano de pormenor. Das seis propostas individuais desenvolvidas, o júri do concurso acabou por destacar duas. Coube à EDP eleger qual das propostas seria construída, optando por escolher o projecto do arquitecto João Luís Carrilho da Graça20 para o plano de pormenor e o projecto dos arquitectos Aires Mateus para a nova sede. ( Martins, 2014, p. 366-377). 20 Consultar nota de radapé 32, da página 137. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 103 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2.1. PROPOSTA DE CARRILHO DA GRAÇA Depois da classificação ex aequo21 com o atelier Manuel Aires Mateus no concurso Uma casa para a luz, onde foram apresentadas propostas para a nova sede da EDP e para o aterro da Boavista, foi tomada a decisão de atribuir o plano de pormenor da área envolvente da nova sede da EDP ao arquitecto João Luís Carrilho da Graça. (Martins, 2014, p. 366-377). A primeira imagem a que associamos à Boavista é a de uma malha urbana em forma de leque, rematada pela Avenida 24 de Julho, que restringe qualquer crescimento urbano. Estamos perante uma situação curiosa de restrição imposta pela avenida que aparenta ser limitadora e permite definir claramente um lugar em construção, com identidade própria e, principalmente, com limites muito definidos. A proposta do arquitecto João Luís Carrilho da Graça, vencedora do concurso [para o plano da Boavista] procura colmatar e reorganizar a estrutura urbana por consolidar, encerrando alguns quarteirões inacabados ou parcialmente abertos e desenvolvendo novos corpos habitacionais e comerciais. A organização dos volumes segue algumas das premissas também presentes na proposta para a nova sede da EDP dos arquitectos Aires Mateus. As pré-existências e as primeiras apropriações do aterro são referências para o novo plano. A estrutura em leque é mantida e, de certo modo, reforçada pelas dimensões dos novos volumes longitudinais, orientados no sentido das antigas ruas e dos planos que configuram os vários lotes. Em simultâneo, estes volumes inflectem, procurando agarrar o edificado existente e conferindo continuidade e uma melhor definição dos quarteirões e do traçado urbano. Por outro lado, existe uma característica interessante que podemos descrever como o “cimento” da proposta: o espaço público – que liga todos os elementos, conferindo continuidade aos vários corpos propostos. A definição do espaço público confere novas valências ao território e as ligações são fundamentais de modo a evitar a sectorização; a proposta é consciente destas questões, desenvolvendo ligações e comunicações estratégicas entre elas, inclusive ex aequo – Expressão em latin que significa igual mérito, igualdade, equiparação, neste caso está associada aos dois projectos que ficaram [igualmente] em primeiro lugar no concurso da EDP. 21 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 104 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares na ligação entre a frente da Boavista e a frente ribeirinha do outro lado da linha de caminho-de-ferro. Esta estratégia está presente na construção de percursos, em especial na ligação pedonal elevada sobre as grandes vias de comunicação da Av. 24 de Julho e da linha de caminho-de-ferro, conectando ambos os lados. Esta ligação segue a malha urbana da Boavista, transformando-se num conjunto de elementos que tenta puxar e agarrar um lado ao outro, como um “agrafo”, não só pela sua própria natureza mas também pelas características urbanas presentes nos extremos, em especial na relação de que este elemento mantém com o edificado proposto. Relativamente aos corpos residenciais, uma das principais referências deste projecto foi o processo de criação das immeuble-villas22 - quando em 1922 Le Corbusier23 as idealizou, estas surgiram como um novo modelo de composição de grandes conjuntos residenciais; as villas estavam associadas a um processo de composição que consideramos muito interessante, assumindo-se como um quarteirão que resulta da multiplicação de um modelo de casa-célula que dá corpo ao conjunto residencial composto por duzentas células. Este modelo nasceu a partir dos modelos das residências religiosas construídas em torno do claustro e pátio de Cartuxa de Galluzzo24, no Val d’Ema, perto de Florença, apesar de este quarteirão residencial acabou nunca ter sido construído; por outro lado, o projecto da célula acabou por ser incorporado no Pavillon de l'Esprit Nouveau25 [ver Ilustração 55 e Ilustração 56]. Na aplicação destes modelos à realidade do plano da Boavista, as antigas construções religiosas apresentavam um conjunto de características que serviram de referência à estruturação dos núcleos habitacionais, nomeadamente nos pátios interiores circunscritos por este cordão de apartamentos e divisões que se abrem sobre eles. Immeuble-villas – É um projecto do arquitecto Le Corbusier apresentado em 1922 no Salón d’ Automne. 23 Le Corbusier (La Chax-de-Fonds, 1887, Roquebrune-Cap-Martin,1965), foi um dos mais importantes arquitectos do século XX, com vasta obra construída e igualmente publicada. Fígura incontornavel do modernismo, foi o autor de inumeros projectos deste período; não só de arquitectura como também de urbanismo, pintura, escultura e design. 24 Cartuxa de Galluzzo – mosteiro de Cartuxos localizado em Florença, Itália, amplamente divulgado por Le Corbusier após a sua visita em 1911, inspirando-o em inúmeras obras, em especial pelas características das celas dos monges que o deixaram impressionado. 25 Pavillon de l’Esprit Nouveau – em português, pavilhão do espírito novo, é um projecto do arquitecto Le Corbousier, construído em 1924 para a Exposição de Artes Decorativas de Paris de 1925. 22 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 105 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Esta estratégia é antiga e é muito comum nos conventos e mosteiros que inúmeras vezes permitiram espoletar a criação e crescimento de novos núcleos urbanos, influenciados pela organização destas construções e da relação originada entre os vazios e o edificado, e como eles se estruturam uns aos outros. As células introduzem uma peça que concilia duas ideias: a primeira, a do apartamento familiar dúplex; a segunda, de casa pátio com dois pisos integrados num espaço coberto voltado para o exterior. Uma das características mais interessantes destes módulos é que parte deles são transformávéis numa célula de habitar – uma peça que quando repetida, permite criar um conjunto residencial. Este conjunto de referências, estratégias e modelos antigos que foram revistos e trabalhados, permitiram criar esta proposta residencial para o plano da Boavista. A tipologia-base proposta reflecte também a referência ao Pavilhão do Espírito Novo [de Le Corbusier]: um módulo de base rectangular com um pátio que ocupa sensivelmente ¼ do espaço e do volume total. O primeiro piso apresenta poucos planos, apenas os essenciais, permitindo descobrir o espaço de modo fluído; a própria geometria do módulo organiza-o, delimitando as diferentes partes do programa – cozinha, sala de jantar e sala comum, [esta ultima delimitada por um plano de vidro no pátio exterior]. Ambos os espaços possuem praticamente a mesma dimensão e são paralelos, como se um desse continuidade ao outro; também a materialidade do plano divisor – em vidro – reforça esta relação espacial, funcionando como um incentivo à vivência do interior e, simultaneamente, do exterior. Tocando um dos planos de vidro que delimitam o pátio exterior encontra-se uma escada que permite o acesso ao piso superior; em cima, o programa encontra-se mais delimitado, fechando-se de modo a criar espaços mais privados e íntimos que correspondem a dois quartos. Do exterior, a leitura da fachada é a de um plano contínuo, branco e perfurado, com pátios interiores abertos para o exterior lateralmente, construindo-se como um edifício de sete pisos, sendo seis destes superiores destinados à habitação e um piso inferior com pé-direito mais alto, destinado a comércio. O embasamento, em vidro, contrasta com o restante corpo mais maciço, equilibrado pela permeabilidade dos pátios que pontuam todo o corpo. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 106 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 53 – Ortofotomapa com a proposta do plano urbano do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). Ilustração 54 – Planta tipo do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 107 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 55 – (Da esquerda para a direita) claustro de Cartuxa de Galluzzo no Val d’ Ema (Florença), cela / unidade de composição do claustro, planta da modulo de composição das Emmeuble - Villas. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). Ilustração 56 – (Da esquerda para a direita) Vista do interior do pátio do pavilhão de L’Esprit nouveau, perspetiva da fachada de um conjunto de Emmeuble - Villas. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). Ilustração 57 – (À esquerda) Plantas tipo das tipologias modulares que compõem os edifícios propostos do plano de pormenor da Boavista, (À direita) vista da fachada de um dos edifícios propostos do plano de pormenor da Boavista. ([Adaptado a partir de: Ordem dos Arquitectos, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 108 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2.2. PROPOSTA DE GONÇALO BYRNE26 A proposta apresentada pelo atelier do arquitecto Gonçalo Byrne para o plano da Boavista e a nova sede da EDP procurava seguir uma estratégia semelhante à que outrora fora aplicada neste sítio durante a sua primeira edificação, integrando novas construções numa malha que fora alterada substancialmente em diversos momentos, porém, houve características que permaneceram desde início. Esta proposta deseja integrar um novo conjunto de volumes elegantes que ocupam toda a profundidade dos quarteirões, unindo-se no topo e transformando-os em U, seguindo a malha em forma de leque predominante por todo o aterro. Intervalados com os vários volumes foram propostos espaços verdes com formas muito semelhantes às dos edifícios. Estes seriam pontualmente intersectados por boqueirões que permitem ligar os vários planos verdes arborizados através destas perfurações, originando um conjunto de ligações e conferindo-lhe maior acessibilidade entre o edificado. Esta proposta reflecte as premissas presentes na estratégia seguida no conjunto habitacional, preservando a forma, a malha e as relações espaciais entre os vários elementos que dão corpo a esta solução. O quarteirão em causa é dividido em duas partes: numa desenvolve-se uma praça exterior, topograficamente inclinada, em direcção ao edifício principal. O próprio volume é intersectado por um percurso pedonal, transversal ao quarteirão, que divide o corpo principal em dois mais pequenos, transformando este percurso público num elemento estruturante e fracturante na forma da proposta. Estes dois corpos unem-se nos pisos inferiores – subterrâneos –, conferindo-lhe a forma em “U” semi-enterrado, com um espaço central a que chamámos o “espaço nave”, de secção oval achatada, que nos envolve e acolhe no seu interior. 26 Gonçalo Byrne (Alcobaça, 1 de Janeiro de 1941), arquitecto português fundador do Atelier Gonçalo Byrne Arquitectos, Lda, com mais de 35 anos de experiência na realização de projectos de arquitectura e de planeamento urbano. Autor de inúmeras publicações, obras nacionais e internacionais, reconhecidas e premiadas, como o Prémio A.I.C.A/S.E.C. pelo conjunto da obra realizada e a Medalha de Ouro da Academia de Arquitectura de França. Desempenha funções de docente em diferentes instituições de ensino de arquitectura, nacionais e internacionais, na área de projecto, fundamentalmente como professor convidado. Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa e pela Universidade de Alghero. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 109 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Programaticamente, os quatro pisos à superfície dão forma aos dois corpos exteriores; dos três pisos enterrados; um destina-se a estacionamento, e o piso superior possui uma relação compartilhada entre o parque automóvel e os auditórios polivalentes e multifuncionais, destinados a conferências ou reuniões. Como já referimos, nos pisos superiores o edifício divide-se em dois; no interior dos corpos predominam os vazios – sob a forma de pátios longitudinais paralelos aos limites das fachadas – sendo um deles, mais a norte, é duas vezes maior que o pátio a sul, e estes nascem da intersecção que une os dois corpos longitudinais, através de uma ponte. Junto aos limites das fachadas encontram-se os gabinetes, as salas de reunião e os escritórios, possuindo uma vista priveligiada sobre o rio, a margem sul e a colina de Santa Catarina. A fachada é constituída por tubos vítreos que incluem sistemas de regulação de luz natural e que também o iluminam à noite, transformando o conjunto. O ponto central da proposta – o primeiro piso enterrado –, concentra aquilo que consideramos o espaço de união – intersectado por um percurso central que o separa em dois espaços expositivos. É um reflexo de uma memória exterior ou uma repetição exterior no interior. Estes espaços apresentam características muito particulares; o declive do pavimento [e da cobertura] envolve-nos como uma cápsula ou uma concha que nos protege. Num destes espaços, encostada ao limite da fachada, a inclinação é aproveitada para a construção de um conjunto de bancadas, ocupando assim todo o limite longitudinal, como se se tratasse de um anfiteatro consideramos deste modo que a topografia foi fulcral na eleição do lugar da sua construção, aproveitando-a em seu favor. O espaço expositivo, no lado oposto da praça, está separado por um plano de vidro que confere continuidade espacial entre o interior e o exterior acentuado pelo declive presente na praça, reforçando essa intenção de convívio entre os dois. O momento de toque/contacto concilia simultaneamente equilíbrio, tensão, e sedução. A transição entre os espaços faz-se no ponto com menor pé-direito, aproximando-nos não só do limite vertical [o plano de vidro] como dos limites horizontais, contrastando com a realidade exterior em que os limites se desvanecem. Libertando o espaço, passamos do binómio contenção-tensão a “explosão espacial”: como suster a respiração comprimindo o peito, para de seguida relaxar e voltar a encher os pulmões de ar. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 110 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 58 – Maquete volumétrica da proposta e do seu entorno. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). Ilustração 59 – Maquete volumétrica da proposta para a nova sede da EDP e do conjunto residencial. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). Ilustração 60 – Maquetes volumétricas das propostas. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 111 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 61 – Vista do interior do “espaço nave”. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). Ilustração 62 – Planta térrea da proposta para a nova sede da EDP e para a envolvente do plano da Boavista. (Gonçalo Byrne Arquitectos, 2008). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 112 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2.3. PROPOSTA DE ARX PORTUGAL27 Este projecto para a sede da EDP apresenta uma resposta que resulta e uma leitura evolutiva da cidade através um conjunto de elementos que procuram a unidade e construção de uma forma, originando um corpo maior e mais regular. Estes são os princípios basilares desta proposta, cuja leitura anterior é expressa na constituição do corpo da nova sede, e este nos contasse a evolução urbana da cidade à medida que cresce – como um livro, uma peça de teatro, ou mesmo uma cenografia que nos cativa – e conta uma história. O embasamento é o início dessa história: um percurso por entre um conjunto de pequenos corpos de contornos irregulares e de dimensões distintas que seguem os alinhamentos estruturantes do lugar. Estes corpos de diversas naturezas aproximamse mais das características dos núcleos históricos medievais do que das realidades presente na Boavista. Os referidos alinhamentos exteriores, provenientes do edificado envolvente, induzem alguma organização ao embasamento, estruturando e restringindo a composição dos pisos superiores sobre estes. Os corpos transformam-se como se o processo evolutivo da cidade estivesse expresso num só projecto, perceptível na vivência do espaço – neste caso a partir do momento em que subimos e exploramos os pisos superiores. No piso superior impera a organização e a unidade: é possível ler a transição dos corpos inferiores para o piso superior como se este os levasse a unir-se e a fecharem-se sobre si mesmos, originando um conjunto de pátios totalmente circunscritos ou parcialmente abertos em determinadas direcções. Alguns destes espaços iluminam o piso inferior perdendo esse uso de pátio interior e transformando-os em poços de luz – transportando-a desde a cobertura até ao piso térreo – e trespassando o edifício, permitindo iluminar os interiores. As diferentes configurações dos corpos no piso térreo e nos pisos superiores dão origem a um jogo complexo de definição de espaço, principalmente o público. Essa definição está presente na sobreposição dos volumes e corpos, nos espaços cobertos ARX Portugal Arquitectos – Atelier fundado em 1991 pelos irmãos Nuno Mateus (Castelo Branco,1961) e José Mateus (Castelo Branco, 1963). Ambos licenciados pela Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Arquitectura, com um percurso docente em diferentes instituições de ensino da arquitectura, tanto nacionais como estrangeiras. 27 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 113 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares sombreados, nos vazios inesperados e no contraste da regularidade [a nosso ver muito restritiva] com a natureza irregular, imprevisível e dinâmica dos corpos. Envolvendo todo este processo evolutivo, presente nos cinco pisos que dão corpo à nova sede, foram projectadas um conjunto de fachadas dinâmicas e expressivas que conferem unidade à proposta através da materialidade e da sua composição. A fachada sul do edifício preserva a ruína neo-manuelina no seu embasamento – incorporando-a –, constituindo-se como o principal acesso ao edifício a partir da avenida e ganhando assim o carácter de grande ingresso, reforçado pelos vãos de arco quebrado. Esta é constituída por painéis/planos regulares de vidro com películas fotovoltaicas que vão inflectindo, materializando um plano contínuo. As restantes fachadas, procuram seguir a mesma estratégia da fachada sul. Os planos de vidro verticais resultam numa solução equilibrada do ponto de vista da eficiência energética, conferindo-lhe, em simultâneo, um conjunto de funções – não só na produção de energia eléctrica como no sombreamento dos espaços interiores – constituindo-se como uma das maiores potencialidades desta proposta. O corpo do edifício está “descolado” da fachada. Esta opção origina uma câmara de ar de dimensões consideráveis e desta forma o espaço permite o aquecimento passivo no inverno e o arrefecimento no verão, funcionando como um espaço de climatização e de transição entre o exterior e o interior. Esta câmara não ocupa a totalidade da fachada do edifício, localizando-se somente nos quatro pisos superiores e libertando todo o embasamento – preservando a continuidade do espaço. Este embasamento da câmara [primeiro piso do edifício], concilia também um conjunto de espaços ajardinados e arborizados com um espelho de água. A estratégia urbana proposta para a envolvente focaliza-se num sentido diferente das outras propostas presentes no concurso, prevendo um hotel em vez de um conjunto de edifícios habitacionais. Este equipamento vai de encontro à recente divulgação do aumento do número de turistas na cidade, promovendo uma solução até à data inexistente com esta escala nesta localização. O edifício do hotel segue uma estratégia semelhante à da sede – que se encontra em primeira linha, ocupando um lugar secundário na construção da frente e com uma linguagem e expressão mais regradas. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 114 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 63 – Ortofotomapa com a proposta para o plano de pormenor do aterro da Boavista. (Amador, 2014). Ilustração 64 – Plantas da proposta para a nova sede da EDP. (Amador, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 115 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 65 – Perspectivas do projecto, para a nova sede da EDP. (Amador, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 116 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2.4. PROPOSTA DE SOUTO MOURA28 A solução apresentada por Souto Moura para a futura sede da EDP e a sua envolvente partiu do estudo das plantas históricas da cidade de Lisboa, permitindo-lhe compreender a sua construção, evolução e o modo como se adaptou às várias exigências em diferentes épocas. Segundo as palavras desta equipa de projectistas, a História não indica soluções mas permite-nos compreender melhor, constatando e avaliando aquilo que se pretende propôr para este sítio. A leitura da sua evolução foi a base deste projecto ao seguir a topografia, os limites cadastrais que deram origem às estreitas faixas e corpos finos e perpendiculares ao rio e à rua da Boavista. Com base nesta leitura anterior nasce uma proposta com corpos finos longitudinais, empilhados e posicionados de modo a seguir os enfiamentos visuais e as linhas cadastrais que estruturam a malha original deste aterro. A sede ocuparia assim todo o quarteirão no piso térreo, onde a volumetria é definidora do limite do embasamento, procurando dar sentido à ruína neo-manuelina préexistente ao incorporá-la no volume no nível térreo. Os seis pisos elevam-se, perpendiculares à avenida, como volumes rectangulares sobrepostos e desalinhados, formando um único corpo e forma. O modo como estão sobrepostos cria plataformas exteriores onde volume mais inferior serve assim de plano exterior do volume superior – acabando este último por sombrear as fachadas do supracitado volume inferior. O jogo presente na composição destes volumes permite desenvolver terraços e varandas ajardinadas, parcialmente cobertas e acessíveis aos funcionários. Estes desfasamentos presentes na proposta procuram aproximar-se da geometria da envolvente [Boavista], originando relações com o edificado mais próximo quer através da volumetria dos vários corpos, quer das plataformas exteriores. 28 Eduardo Elísio Machado Souto de Moura (Porto, 1952), arquitecto portugês, licenciado pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto em 1980, iniciou-se profissionalmente com o do arquitecto Álvaro Siza, vindo mais tarde a fundar o seu próprio atelier. Lecionou na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e mais tarde como como professor convidado em diversas universidades no estrangeiro. Venceu o Prémio Sécil de Arquitectura em 1992, 2004 e 2011 com a Biblioteca Pública Municipal do Porto, o Estádio Municipal de Braga e a Casa das Histórias de Paula Rego. O ano de 2011 é um dos mais prestigiantes com o reconhecimento do seu trabalho e carreira através da distinção recebida com o Prémio Pritzker. Da sua carreira destacam-se inúmeras obras nacionais e internacionais, com respetivas publicações, conferências, prémios e distinções. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 117 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A composição que dá forma ao projecto permite reforçar a vivência do espaço e o relacionamento com todo o entorno: um conjunto de miradouros empilhados direccionados para diferentes pontos da cidade e um corpo que estimula e nos convida à contemplação. Além dos seis pisos empilhados, a proposta acrescenta quatro pisos subterrâneos destinados a estacionamento, perfazendo um total de dez pisos utilizáveis. Se os pisos superiores empilhados permitem libertar o quarteirão evitando a sua ocupação total e concentrando a construção, por sua vez os pisos destinados a estacionamento ocupam totalidade da área disponível. Constituído maioritariamente por treliças metálicas com dois pisos de altura [aproximadamente 8 metros] que dão forma ao esqueleto estrutural do edifício; estas estão apoiadas sobre pórticos metálicos periféricos – inseridos na fachada –; as lajes são mistas e os núcleos centrais dos acessos verticais são construídos em betão armado. A fachada de vidro ventilada incorpora brise soleils29 no seu interior, procurando [re]qualificar a relação com o rio, conferindo ritmo e protecção através dos elementos verticais de sombreamento e, simultaneamente, permeabilidade através do vidro que reveste as fachadas dos volumes empilhados. Além da sede também foi proposta a requalificação da estrutura urbana envolvente [Plano de pormenor da Boavista], que apresenta uma estratégia de regeneração e consolidação – através de corpos rectangulares longitudinais e perpendiculares ao rio. Estas construções estruturam e organizam o espaço público, gerando um conjunto de espaços verdes arborizados que conferem continuidade e relacionam o edifício – sede com os espaços públicos envolventes, através de planos verdes contínuos que transformam coberturas em coberturas planas ajardinadas. Os quatro módulos mais próximos da Rua da Boavista são constituídos por cinco pisos superiores e dois pisos enterrados, com coberturas de duas águas, seguindo a volumetria e configuração do edificado mais próximo. Por outro lado, os elementos mais próximos do rio colmatam o edificado pré-existente e assumem volumetrias idênticas às da envolvente. Brise Soleil – expressão de origem francesa que significa “quebra-sol”, consiste num elemento construtivo, vertical ou horizontal presente nas fachadas, utilizado para impedir a incidência directa dos raios solares nos espaços interiores de um edifício, deste modo evita o aquecimento excessivo dos mesmos. A sua grande utilização e divulgação está fortemente associada à arquitectura moderna, acabando por ser muitas vezes considerado como um elemento característico deste período, continuando presente em inúmeras obras de arquitectura actuais, presentes em Portugal e no estrangeiro. 29 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 118 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 66 – Vistas da maqueta da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). Ilustração 67 – Esquissos da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 119 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 68 – Vista da proposta para a nova sede da EDP. (Corrêa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 120 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.2.5. PROPOSTA DE GRAÇA DIAS30 E EGAS VIEIRA31 Uma “plataforma elevada” é a expressão que consideramos melhor caracterizar esta proposta elaborada por esta dupla de arquitectos: um corpo regular sobre a avenida 24 de Julho que vê e procura ser visto. A partir de qualquer ponto de vista este volume de dimensões consideráveis marca o território, constituindo-se como um objecto singular com uma relação directa com o rio. A visibilidade que projecta em todo o entorno leva-o a possuir diferentes leituras e apreensões; por um lado. Visualizando a partir do rio, observamos um grande corpo elevado – ao nível dos grandes edifícios do lado da cidade – que se apresenta como uma grande cobertura que nivela e dá continuidade à urbe. Quem experiencia o corpo no seu entorno mais próximo encontra um edifício que sintetiza a ideia de espaço ajardinado no interior de uma ruína romântica ou neo-manuelina, com uma cobertura contemporânea habitável. Este embasamento proposto acrescenta um enorme potencial e interesse na vivência do projecto: um dos requisitos do concurso era a conservação da fachada neomanuelina – neste caso convertida num plano que circunscreve o jardim tropical interior –, e sobre esta, eleva-se, a vinte metros do solo, o grande volume edificado. O corpo elevado é constituído por dois pisos, pontualmente perfurados por pátios que permitem encher de luz – controladamente – o espaço interior, protegendo-o. Aparentemente o edifício parece flutuar; contudo, essa ideia dissolve-se com a edificação de um corpo lateral perpendicular às avenidas, onde o horizontal está apoiado – como um ancoradouro da estrutura flutuante. O conjunto dos dois volumes forma um “L”, resultando num forte apoio estrutural da plataforma elevada, estratégia essa que permite simultaneamente fechar [lateralmente] o quarteirão. 30 Manuel Graça Dias (Lisboa, 1953), arquitecto português licenciado pela Escola Superior de BelasArtes de Lisboa em 1977. Desenvolveu inicialmente a profissão em Macau, acabando por voltar a Lisboa fundando o atelier Contemporânea com o arquitecto Egas José Vieira. Da sua vasta obra destacam-se o Pavilhão de Portugal na Expo’92 de Sevilha, o edifício da Ordem dos Arquitectos em Lisboa, o Teatro Municipal de Almada, entre outras. Lecionou em diversas universidades nacionais e estrangeiras, actualmente presente na Universidade Autónoma de Lisboa e na Universidade do Porto. 31 José Egas Vieira (Lisboa, 1962), arquitecto português licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa em 1985, onde foi aluno do arquitecto Graça Dias, iniciando actividade durante o curso no atelier do seu pai o Arquitecto Egas de Vidigal Vieira. Desenvolveu em colaboração o projecto do Pavilhão de Portugal da Expo’ 92 de Sevilha, fundando mais tarde o atelier Contemporânea. Leciona desde 1988, actualmente na Universidade Autónoma de Lisboa como professor convidado. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 121 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Juntamente com o grande corpo vertical de suporte encontram-se seis grandiosos pilares [ocos no seu interior] preenchidos com acessos verticais – núcleos de escadas e elevador –, para os dois pisos superiores do volume horizontal. Estes elementos estruturais de grandes dimensões, constituídos por perfis metálicos, auxiliam no suporte estrutural, sendo eles os únicos “obstáculos” visuais no interior do espaço verde; porém, a sua composição [de perfis metálicos] confere-lhes grande permeabilidade, integrando-os, evitando qualquer protagonismo visual. Um outro elemento que consideramos especialmente singular nesta proposta é o revestimento da laje inferior do edifício sobrelevado com vidro escuro. O tecto do jardim – que possui características muito próximas às do espelho – reflecte as várias espécies de flora tropical para o espaço exterior. A partir das ruas mais próximas, somos assim convidados a vivenciar através da reflexão situações espaciais entre interior e o exterior mais próximo. As fachadas contínuas e regulares de padrões geométricos que ocupam a superfície são constituídas por vidro e painéis modulares brancos. Por sua vez o corpo lateral dá continuidade à ideia inicial, mantendo as mesmas características; neste mesmo corpo é proposto um vão que ocupa a área de três pisos com três módulos de janelas horizontais e um grande vazio – bastante expressivo – que corta e rompe com a monotonia, presente no plano contínuo da fachada. Na rua, deste mesmo lado, são propostas três fileiras contínuas de árvores que remetem para a realidade presente no interior, seguindo uma composição mais regular, em oposição ao jardim “romântico” tropical. Do plano urbano apresentado para o aterro da Boavista destacam-se três edifícios habitacionais: corpos longitudinais de cinco pisos, transversais às avenidas e integrados numa estrutura que segue as direcções e alinhamentos pré-existentes. As fachadas seguem a mesma linguagem da proposta para o edifício da EDP – com módulos regulares e rectangulares, que ocupam e dão continuidade às fachadas. Entre estes são desenvolvidos um conjunto de percursos e espaços verdes que unem os diferentes espaços públicos, destacando-se um percurso pedonal – em ponte – sobre a avenida 24 de Julho, ligando a frente ribeirinha à característica malha do aterro da Boavista. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 122 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 69 – Planta da proposta urbana para o plano de pormenor do aterro da Boavista e para nova sede da EDP. (Cruz, 2013). Ilustração 70 – Esquissos da proposta para a nova sede da EDP. (Cruz, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 123 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 71 – Modelos da proposta para a nova sede da EDP. (Cruz, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 124 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 3.3. TRANSFORMAÇÃO DO LIMITE RIBEIRINHO DA BOAVISTA Durante muito tempo, a ideia que muitos arqueólogos e historiadores tinham da cidade de Lisboa durante período romano era que esta estava restringida à encosta sul da colina do castelo de São Jorge; contudo, recentes descobertas feitas durante as obras na Praça Dom Luís I levaram a uma nova interpretação da história. Com a descoberta de um fundeadouro romano no sítio da Boavista, a real dimensão da cidade é posta em questão. Esta informação tem sido fortemente divulgada pelo projecto Portugal Romano32, arqueologia Romana em Portugal, e pela empresa ERA Arqueologia33. Um fundeadouro consistia numa estrutura portuária de protecção e abrigo para embarcações enquanto estas aguardavam o momento para carregar ou descarregar as mercadorias que transportavam. A existência de uma estrutura deste tipo em Lisboa, neste período, aumenta a expectativa sobre a cidade, pois possivelmente seria maior ou com uma disposição urbana diferente e distinta do que inicialmente imaginaram. Assim, a ideia de que somente no momento em que a cidade trespassa o limite das muralhas é que se poderia encontrar algum tipo de construção neste sítio deixa de ser válida. O local já possuia presença humana fixa desde o período romano, contudo, sem deter as mesmas características urbanas ou topográficas que hoje conhecemos. No seu natural movimento de expansão para o ocidente, Lisboa depressa passou por cima da cinta das muralhas com que haviam envolvido os povos godos ou os muçulmanos, e entulhando o estuário do Tejo preparou um excelente campo para a construção de habitações. (Vieira da Silva, 1987a, p. 26). O aterro da Boavista foi durante muito tempo um lugar pantanoso com a pouca ou nenhuma corrente, e que juntamente com a acumulação de detritos, originou as condições para o desenvolvimento e proliferação de todo o tipo de peste e pragas – ou seja, um sítio nauseabundo, insuportável e insalubre para a população. Independentemente das características naturais não serem as mais convidativas à fixação de população, a queda do Império Romano levou a cidade contrair-se e Portugal Romano – projecto português sem fins lucrativos que procura dinamizar, divulgar e promover a arqueologia romana em Portugal, com especial dedicação à sua página da internet portugalromano.com e às redes sociais como o facebook. 33 ERA Arqueologia – Empresa portuguesa dedicada a serviços na área do património histórico e arqueológico. 32 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 125 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares reduzindo substancialmente de dimensão, – sendo esta talvez uma possível explicação para o retrocesso urbano, juntamente com a distância ao centro da cidade – e conduzindo assim à decadência e abandono deste local. Durante boa parte do período muçulmano a cidade concentrou-se no interior dos limites das muralhas – reforçando o sentido de cidade fortificada – a cidade começava e terminava exactamente na mesma linha vertical construída que lhe dá forma. Já muitos anos antes da conquista pelas armas cristãs em 1147, todo o espaço da Baixa de Lisboa, que é o vale compreendido entre o monte do Castelo pelo oriente, o monte de S. Francisco pelo ocidente , e entre a praça de D. Pedro (Rossio) e o rio Tejo, no sentido norte- sul, achava-se sulcado por um verdadeiro labirinto de travessas e ruas, tortuosas, estreitas, e que não obedeciam a plano algum. Essa grande área foi depois do grande terramoto de 1755 reformada com a construção de uma rêde de ruas perfeitamente regulares, rectilínias, e cruzadas por outras ruas transversais, que nós hoje todos observamos e admiramos. (Vieira da Silva, 1987a, p.5). Porém, durante a reconquista cristã a cidade cercada é descrita com outras características: já com maior dimensão; o núcleo urbano na encosta ocidental do castelo – já fora da muralha – é atacado e saqueado pelos exércitos aliados cristãos. A descrição é feita a partir do lado ocidental do antigo esteiro da Baixa, onde hoje se encontra a Faculdade de Belas-Artes, outrora convento de São Francisco. Nesta época, na colina ocidental, a água chegava até à base da encosta e o espaço da praia era muito reduzido [e em certos pontos inexistente], permitindo que as embarcações dos exércitos aliados estacionassem aí durante o ataque. Ao palácio segue-se um terreno em que havia picadeiro, cavalariças, e outras oficinas, que tinha de comprimento a extenção da frente do palácio para o largo da Côrte Real, e pelo fundo chegava até à Ribeira das Naus, havendo uma serventia entre o palácio e o dito terreno. Sobre os alicerces dêstes edifícios é que foi construída a Sala do Risco do Arsenal da Marinha […]. (Vieira da Silva, 1987b, p.112). No reinado de Dom Manuel I e com a transferência do Palácio para a Ribeira aumenta o interesse da nobreza pela procura de um sítio e de uma pequena posição dentro da nova frente. O aterro feito conquista terreno ao rio e a cidade focaliza-se nesta direcção: o comércio marítimo assenta bases e alicerces neste sítio mas também alguns armazéns são edificados em conjunto com linhas defensivas fortificadas. Um dos grandes investimentos é a construção de edifícios para a produção da pólvora – tão necessária na manutenção do monopólio político e económico [ver Ilustração 74]. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 126 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares “Até aos fins do século XV parece que não havia ao sul da muralha da Porta da Oura senão uma pequena praia com varadouro e estaleiros de construção de embarcações.” (Vieira da Silva, 1987b, p. 95). Neste reinado a frente ribeirinha ocidental era caracterizada pelas inúmeras estruturas de construção naval – docas secas e rampas – que predominavam na frente; uma das construções defensivas que mais se destacava era o forte e baluarte de São Paulo que hoje dá nome a toda essa zona. Se na linha da frente predominavam estas construções relacionadas directamente com os usos marítimos e ribeirinhos, na linha interior só a habitação e o pequeno comércio prevaleciam. Na planta de 1650 não é possível comparar nem descrever a evolução urbana da cidade do lado ocidental, visto não abranger muito mais do que os primeiros edifícios exteriores à muralha Fernandina. A realidade descrita não é semelhante à conhecida no período de D. Manuel I pois independentemente de não existir nenhuma planta com a cidade dessa época, as descrições escritas seguem em consonância com a cidade levantada por João Nunes Tinoco em 1650 [reinado de D. João IV]. Durante as guerras da restauração [reinado de D. João IV] houve necessidade de conhecer a cidade e as suas estruturas defensivas de modo a compreender que defesas ainda estavam activas ou obsoletas. A planta original de 1650 desapareceu, restando hoje algumas cópias e réplicas parciais do centro urbano. O troço ocidental da cidade continha informação limitada, terminando aproximadamente no limite da muralha Fernandina. O grande palácio chamado Côrte Real parece ter sido começado a edificar por 1585, por Critóvão de Moura Côrte Real, depois pelo Marquês de Castelo Rodrigo, na praia fronteira às casas que haviam sido construídas por Vasco Eanes Côrte Real, encostadas à muralha […]. (Silva, 1987b, p. 108). Do período anterior ao terramoto [1755] existem algumas plantas e informações escritas que complementam a informação da planta de 1650: o troço ocidental começava no largo do Corpo Santo, largo esse de dimensões “expressivas” que configurava uma nova entrada ribeirinha ao centro urbano e ao novo Paço Real. No largo destacava-se o imponente palácio da família Corte-Real, [mais tarde penhorado pelo rei], que colmatava e completava o complexo real [ver Ilustração72]. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 127 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Um palácio de modestas dimensões, de base quadrada e com um pequeno pátio ao centro; sobre o rio estendiam-se dois braços paralelos ao corpo principal, abertos sobre a água. Este edifício imponente expressava claramente o espírito da época através do forte contacto e relação da cidade com o rio e o mar. A cidade expressavase assim num dos edifícios mais emblemáticos desta época. “No ano de 1751 começaram grandes obras e reparações, mas pegando fogo em uma sala ardeu completamente o palácio, ficando só livre as duas varandas que saíam do palacio sobre o rio, e as casas que havia por baixo com algumas cavalhariças”. (Vieira da Silva, 1987b, p. 109). Diferentes edifícios – paralelos ao rio – partiam do largo do Corpo Santo até ao baluarte de São Paulo que defendia este troço da cidade; junto a este estava uma plataforma portuária rectangular que complementava a estrutura defensiva e mercantil. Esta estrutura estava compreendida ente o baluarte de São Paulo [mais expressivo] e o baluarte dos Remolhares [mais pequeno] entre São Paulo e o Corpo Santo. Próxima a esta construção encontrava-se um conjunto de corpos que configuravam um largo – com um corpo mais pequeno ao centro, formando um recinto em forma de anel quadrado – onde se encontrava o conjunto da casa da moeda [ver Ilustração 72 e 74]. Relativamente perto estavam ainda as tercenas que produziam e armazenavam a pólvora e que mantinham o monopólio do comércio marítimo – estas tercenas estavam obrigadas a localizar-se longe do centro urbano de modo a evitar acidentes que pudessem causar grandes danos, como ocorrera no passado. Esta frente era constituída por estruturas portuárias e armazéns. Uma frente operária que contrasta com a linha interior de construção predominantemente habitacional que segue paralelamente ao rio em direcção a Santos, unindo as diversas igrejas e conventos que pontuavam a frente ribeirinha da cidade nesta época e apresentando as premissas que a caracterizam hoje – uma frente edificada contínua que, pontualmente, é perfurada por pequenos largos e praças onde proliferam as relações e comunicações entre o tecido interior [da cidade] e o rio. Não tratamos de fazer aqui a apologia do marquês de Pombal, nem de mencionar os serviços de diversas ordens por êle prestados à nação portuguesa; apenas diremos que, graças ao seu pulso de ferro, é que em 20 anos se viu surgir uma nova cidade, regular e higiénica, sôbre as ruínas de uma povoação quebrantada e aniquilada port ão inesperado e profundo golpe. (Vieira da Silva, 1987b, p. 185). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 128 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Após o terramoto de 1755 a cidade foca-se na reconstrução do centro urbano da Baixa e o troço ocidental é reconstruído seguindo um traçado mais regular, com quarteirões maiores e mais expressivos. O largo do Corpo Santo perde o emblemático Palácio Corte-Real mas ganha maior dimensão e uma vista desafogada sobre o rio; o baluarte ainda é preservado e a casa da moeda mantém a mesma localização. A rua da Boavista consolida-se como linha – limite entre a cidade e o rio e do lado sul estava a praia: um extenso areal sobre um pântano insalubre. Nesta época em que questões higienistas são levantadas na reconstrução da cidade, começa-se a pensar e a planear a possibilidade de aterrar a pântano ao longo da rua, estendendo o tecido urbano sobre o mesmo. “Uma das primeiras providências que se tomou depois do terramoto foi a fixação dos locais para lançamento dos entulhos, a fim de se fazer o nivelamento do terreno […]” (Vieira da Silva, 1987b, p.185). A primeira zona a ser objecto de intervenção urbanística, por parte da Câmara Municipal, foi a zona onde vai existir o aterro da Boa-Vista que era, no início de Oitocentos, constituída por um conjunto de praias lodosas, onde se despejavam lixos e imundícies da cidade. Esta era também, tal como a do Bom Sucesso junto a Belém, uma zona de implantação fabril. Aí se situavam, entre outras indústrias, fábricas de gelo, bebidas, tipografias, serrações, metalurgias, como a Fábrica Phénix no boqueirão da Palha, uma fábrica de gás e também a Casa da Moeda. Toda a área desde a Ribeira Nova até Santos era servida por pequenos cais construídos por iniciativa particular e a ligação da rua da Boa-Vista, sua principal artéria, com a beira-rio era efectuada por numerosos boqueirões, verdadeiros locais de despejo de toda a espécie de detritos e, por conseguinte, ameaças latentes à saúde pública dos habitantes da cidade. Durante toda a década de 1860, as obras do Aterro da Boa Vista e a construção da Rua 24 de Julho, até Santos, estiveram na ordem de trabalhos da municipalidade da capital, que para elas não deixou de solicitar, repetidamente, ao governo central mais e melhores meios de actuação. (Barata, 2009). No levantamento de 1850, do Engenheiro Filipe Folque, o aterro já representado aparece, e entre a rua da Boavista e o rio estende-se um extenso aterro de dimensões até então nunca feitas e quase traçado a “régua e esquadro” a partir da Ribeira das Naus [ver Ilustração 73 e 75]. Com o passar do tempo o aterro acaba por ser apropriado e ocupado; os limites laterais dos anteriores edifícios da rua da Boavista são prolongados até ao rio sobre o novo território, originando uma malha em forma de leque que estruturou o novo aterro da cidade e que mais tarde irá materializar os diferentes lotes – de ocupação Diogo Filipe Dias Marques Lopes 129 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares predominantemente industrial. Grande parte dos quarteirões apresentam as mesmas características e seguem a mesma estratégia de ocupação, densificando a construção no topo [pré-existente ao aterro] junto à rua da Boavista e limitando-se a contornar o lote com muros ou corpos longitudinais mais estreitos. A métrica constante e semelhanças entre os corpos que ocupam o aterro não se deve apenas a questões formais da configuração dos lotes mas também ao uso que a população lhes conferiu. O contacto mais imediato com o rio permitiu uma maior proximidade com as estruturas de transporte e comunicação mercantil, levando à concentração de estruturas urbanas industriais de naves contínuas – que não só produzem como armazenam. Foram essencialmente estes os factores que condicionaram a forma e a volumetria das construções – bem como a vivência do espaço urbano – a sul da rua da Boavista. Com o levantamento do engenheiro Silva Pinto – que termina em 1911, o aterro da Boavista volta apresentar alterações consideráveis: a introdução da linha de caminhos-de-ferro que liga a vila de Cascais a Lisboa e cuja estação Terminal era a do Cais do Sodré, ainda hoje presente na frente ribeirinha ocidental da cidade. Com a construção da linha de caminhos-de-ferro houve necessidade de aumentar a frente ribeirinha sobre o Tejo. Na Ilustração 75 – 1910 – a cidade do século XX já representada a nova plataforma que estende a cidade um pouco mais para sul – com este novo “acrescento” ela ganha novas avenidas arborizadas e a total definição da Avenida 24 de Julho. As novas avenidas estruturam a frente urbana da Boavista; o acesso directo ao rio passa a estar condicionado e a dimensão dos lotes extremamente profundos, deixa de ser funcional. De modo a adaptar-se a esta nova realidade e a consolidar a estrutura urbana, inicia-se a abertura da futura Rua D. Luís I que irá perfurar e dividir a antiga estrutura em leque, originando dois conjuntos de quarteirões – um sobre a Rua da Boavista e outro sobre a grande Avenida 24 de Julho. Com a divisão do aterro em duas partes, os quarteirões tornam-se mais pequenos e um lote dá origem a dois lotes, permitindo ou aumentando o número de espaços disponíveis para a indústria. Uma das características que ressalta no levantamento de Silva Pinto consiste na forte consolidação das ruas e quarteirões nos extremos da Boavista: o Cais do Sodré e Santos [mais concretamente do antigo cais do Tejo]. Do lado oriental, é construído o Diogo Filipe Dias Marques Lopes 130 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Mercado da Ribeira, [no lugar da antiga Ribeira Nova] impulsionando a construção e reconversão dos edifícios mais próximos, inclusive da antiga Casa da Moeda. Grande parte da consolidação encontra-se em torno da nova praça D. Luís I que reorganiza e enquadra todo este sítio que se mantém muito pouco alterado até hoje. Inclusive é na praça que se inicia a actual Rua D. Luís I que no início do século XX não é mais do que um pequeno beco sem saída [ ver ilustração 73 e 75]. Do lado ocidental, também fortemente consolidado, é aberta a Avenida D. Carlos I que impulsiona a construção dos edifícios que a configuram deste a actual Assembleia da República até à frente que termina junto da linha férrea. No fundo da Avenida D. Carlos I é construído um volumoso quarteirão – uma peça isolada de base quadrangular, distinta, e de dimensões superiores aos edifícios envolventes. Este corpo funciona como um elemento estratégico e organizador que permite fazer a transição e, simultaneamente, a união entre os vários tecidos urbanos que convergem neste ponto e que anteriormente à sua construção era denominado de “Cais do Tejo”, um terreiro aberto sobre o rio. Com o segundo aterro este cais deixa de fazer sentido por várias razões: nomeadamente pela distância ao rio passar a ser duas vezes mais longa que a sua dimensão, pela intersecção da linha férrea e pelos edifícios industriais e portuários encostados junto ao Tejo. No século XX a transição entre a cidade e o rio é definida por uma linha contínua e rígida onde termina o aterro – alta em relação ao nível médio das águas do rio – ao contrário do que se passava em Alfama, onde existiam as docas de abrigo para as embarcações. Porém, junto ao Cais do Sodré [e da estação de comboios] a linha rígida desaparece para dar lugar a escadas e rampas de pedra sobre o rio, permitindo e incentivando a vivência do espaço pela população – situação distinta da plataforma elevada [na frente da Boavista], construída de modo a permitir que os barcos pudessem encostar e ficar ao mesmo nível da cidade [ ver Ilustração 73 e 75]. Actualmente, e passados pouco mais de cem anos desde o último levantamento, a frente ribeirinha da Boavista apresenta diferentes características: a Rua D. Luís I trespassa na totalidade o aterro, impulsionando a sua consolidação, outrora mais presente nos quarteirões a norte entre a “nova” Rua D. Luís e a Rua da Boavista; o carácter e uso industrial permanecem, porém, perdem força ano após ano – com uma parte significativa em ruína, degradados ou já demolidos. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 131 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Junto ao rio o número de armazéns e edifícios portuários mantém-se, preservando o carácter e uso; contudo, alguns desses edifícios foram convertidos para outros usos – como o da restauração. Um dos maiores lotes “vazios” é unicamente edificado do lado poente, onde se encontra o edifico do IADE34. A frente onde este lote está inserido tem espoletado grandes interesses por parte de grupos económicos, como por exemplo devido à recente valorização dos terrenos aí situados, como é o caso da construção da nova sede da EDP, ou até mesmo o projecto do plano urbano que previa a construção de uma torre no referido lote. A Avenida 24 de Julho, uma das maiores da cidade, é constituída por dois troços rodoviários com faixas diversas: uma para transporte privado e outra exclusiva para transportes públicos – funcionando como uma inequívoca artéria distribuidora de trafégo rodoviário na frente ribeirinha [paralela à linha férrea que se mantêm ininterruptamente por toda a frente, tal como outrora fora projectada], independentemente de se estudar a possibilidade desta ligação ser feita por via de um túnel subterrâneo, permitindo à cidade um maior contacto com a frente, visto ser um elemento de restrição à vivência dos espaços existentes para além desta. A existência da linha de caminhos-de-ferro que liga Lisboa a Cascais “estrangula” por completo a frente, impedindo a sua consolidação. A incerteza do crescimento do ramo da construção dos últimos anos levou a que as atenções convergissem na Boavista, talvez faça sentido concentrar esforços na consolidação do tecido interior que se apresenta mais acessível e necessário. Contudo, e por isso muitas das propostas consideram importante a construção de ligações, como passagem superiores sobre a linha de caminhos-de-ferro, unindo ambos os lados. É perceptível que muitas das características da apropriação do território se mantêm estão presentes e facilmente identificamos a construção de uma linha contínua que remata a base das várias colinas. As frentes sucedem-se e entre elas crescem pequenos espaços como praças ou largos que unem os tecidos, transformando-os em áreas de convergência da vivência do espaço contínuo, [linear] redireccionando-as. IADE – Instituto de Arte, Design e Empresa, é uma instituição de ensino superior, localizada em Lisboa, pioneira no ensino do design em Portugal, desde 1969. Em 1973 é construído o novo edifício da instituição, localizado em Santos, projectado pelo arquitecto portugues Tomás Taveira. 34 Diogo Filipe Dias Marques Lopes 132 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 72 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), edificado, 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 133 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 73 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), edificado, 1855-1911-2015+. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 134 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 74 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 135 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 75 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Boavista), 1858-1911-2015+. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 136 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4. FRENTE RIBEIRINHA DE ALFAMA - TERMINAL LISBOA – CARRILHO DA GRAÇA 35 DE CRUZEIROS DE 32 João Luís Carrilho da Graça (Portalegre, 1953), arquitecto português natural de Portalegre, licenciado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1977, ano em que iniciou a sua actividade profissional. Além da direcção do seu próprio atelier, desempenha funções de docente em diversas instituições de ensino de arquitetura. Foi Assistente na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa de 1977 a 1992, professor na Universidade Autónoma de Lisboa 2001 a 2010 e na Universidade de Évora desde 2005 onde coordenou o departamento de arquitetura em ambas as instituições até 2010. Professor visitante da Escola Técnica Superior de Arquitetura da Universidade de Navarra em 2005, 2007 e 2010. Convidado para seminários e conferências em diversas universidades e instituições internacionais. Ao longo da sua carreira profissional foi distinguido com diversos prémios dos quais se pode destacar o título de “Chevalier des Arts et des Lettres” pela República Francesa em 2010, o “Prémio Pessoa” em 2008, o prémio da Bienal Internacional da Luz-Luzboa em 2004, a ordem de mérito da República Portuguesa em 1999, o prémio “aica-associação internacional dos críticos de arte” em 1992. Distinguido com “Piranesi Prix de Rome” em 2010 pela musealização da área arqueológica da Praça Nova do castelo de São Jorge, o prémio “fad” em 1999 e o prémio “Valmor” em 1998 pelo pavilhão do conhecimento dos mares - expo’98, o “Prémio Secil de Arquitetura” em 1994 pela Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa. Dentro do seu percurso profissional foi nomeado para o prémio europeu de arquitetura “Mies Van der Rohe” em 1990, 1992, 1994, 2009, 2010 e 2011. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 137 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 76 – Localização do plataforma /cais do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (João Luís Carrilho da Graça Arquitectos, 2011). Este projecto do arquitecto João Luís Carrilho da Graça procura construir uma nova oportunidade de vivenciar a relação entre a cidade e o rio, no contexto do limite entre a terra e a água. A proposta apresentada reflecte essa inequívoca vocação natural da cidade como estrutura portuária, localizando-se em plena frente ribeirinha de Lisboa, entre a Estação Ferroviária de Santa Apolónia e a Doca da Marinha. Um dos muitos elementos característicos deste projecto – inúmeras vezes enaltecido por Carrilho da Graça – corresponde à necessidade da definição de duas praças, já previstas, que correspondem aos enquadramentos da alfândega de Lisboa e do Museu Militar. O projecto para o futuro terminal constitui-se como um elemento que auxilia a consolidação urbana da frente ribeirinha mas também do limite entre a doca e plataforma do terminal com a frente urbana edificada. Deste modo, a praça do Museu Militar e a praça da alfândega ganham uma nova organização e definição. Estas são algumas das premissas iniciais que vão ao encontro da intensão de consolidação do espaço urbano envolvente. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 138 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Apresenta-se como um conjunto multifuncional e extremamente versátil, bem como uma resposta que procura de solucionar a sazonalidade das rotas dos cruzeiros e deste modo, os vários espaços exteriores e interiores que compõem o conjunto do terminal de cruzeiros, permitem acolher distintos eventos e actividades. Consideramola uma proposta interessante, do ponto de vista do edifício como do espaço urbano por si gerado e concebido para a cidade, mas também para os que a habitam. O Terminal dispõe de uma localização privilegiada sobre a doca do Poço do Bispo: trata-se de uma interface ribeirinha, praticamente no centro da cidade, implantada na zona mais baixa da colina que acolhe o histórico bairro de Alfama na encosta. O edifício relaciona-se de um modo muito particular e directo com os edifícios mais notáveis da encosta do castelo. De volumetria compacta e libertador do espaço envolvente, este projecto oferece à cidade e aos bairros adjacentes um novo espaço ajardinado, na frente ribeirinha. Muitas das vezes – e em Lisboa é bastante frequente – os edifícios de grande volumetria ocupam a função de elementos pioneiros na organização do espaço público; são corpos estrategicamente posicionados que criam ligações e relações que não se restrinjam a simples alinhamentos visuais que estruturam ruas, mas uma complexa relação de “seduções” visuais e materiais, vivenciadas tanto a partir da lumínica e branca calçada, da varanda ou da água furtada no topo dos telhados e dos beirados. Ao subir a qualquer cobertura de Alfama constatamos esta situação, quer seja nas grandes igrejas – estrategicamente localizadas –, quer na linha fronteiriça na base desta colina, criada pelo Museu do Fado e pela alfândega. Estes edifícios são constituídos por dois corpos de grande volumetria que impõem uma presença, marcando e protegendo o casario da ruidosa avenida que corta qualquer tipo de relação física entre o rio e o bairro. Hoje em dia este contacto visual é a principal relação entre a encosta do castelo e o rio, e se hoje o largo do Chafariz de Dentro é o ponto de encontro onde todos convergimos e a porta de entrada para o bairro de Alfama, muito se deveu a estes grandes edifícios e às suas volumetrias que permitiram consolidar, mantendo o mesmo carácter, protegendo-a da loucura e da descaracterizada confusão de uma “pseudo-auto estrada” às portas da cidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 139 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Este terminal assume-se como um edifício à escala da cidade, um corpo de grande volumetria, tal como os edifícios anteriores que iniciaram a ocupação dos antigos aterros; contudo, apresenta-se também como um anfiteatro aberto à colina, sobre uma plataforma contruída entre a cidade e o rio. Como referimos em cima, a relação predominante entre este lugar da cidade e o rio é maioritariamente visual e o projecto do terminal reforça essa relação, não só pelo anfiteatro mas também pela cobertura plana – possivelmente ajardinada – pela vista panorâmica sobre a envolvente e, fundamentalmente, por ser um corpo de mediação entre o centro histórico e o rio e uma porta de entrada para a cidade através do limite ribeirinho. A distância entre o conjunto do terminal e a linha da frente edificada é extremamente importante e necessária, permitindo uma melhor contemplação da encosta de Alfama, do edificado multicolor e dos telhados sobrepostos; um contínuo de casas encosta acima, um fantástico skyline que pontualmente é rompido pelos campanários das igrejas, do Panteão Nacional, da Sé e do Mosteiro de São Vicente. Deste modo, a distância entre o edifício do terminal e a linha fronteiriça, criada pelo Museu do Fado e pela alfândega, justifica-se não só pelo reforço visual e melhor conexão com o rio, mas também pelo modo como cria uma nova linha “defensiva” edificada, desenvolvendo novas atmosferas e espaços públicos. Esta faixa que resulta do novo projecto do terminal retira algum protagonismo à Avenida Infante Dom Henrique, sendo esta uma consequência da tentativa de ligação a encosta à frente ribeirinha. Ilustração 77 – Localização do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (João Luís Carrilho da Graça Arquitectos, 2011). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 140 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Uma das estratégias centra-se no novo espaço verde: um novo parque que pretende integrar e interligar os diversos espaços públicos, desde a plataforma do terminal até à linha de contenção da estrutura urbana da cidade. Deste modo, as antigas ruas empedradas que descem pela encosta e terminam nos largos e na rua onde se encontra a alfândega conseguem dar continuidade ao espaço público e chegar ao rio através deste parque. O edifício, como momento gerador do espaço público, consegue conservar a anterior estrutura da doca do Poço do Bispo. A conservação apresenta-se como uma evocação da memória da antiga estrutura portuária. O parque e toda a envolvente do terminal desenvolvem-se a partir da preexistência, como um “eco” da anterior construção. Linhas ténues no pavimento conduzem o projecto, como ecos de uma memória que se expressa na concepção dos novos espaços da cidade. “Com o tempo a cidade cresce sobre si mesma; adquire consciência e memória de si mesma, de si própria.” (Rossi, 1977, p. 24). O terminal apresenta um posicionamento central e funciona elemento gerador e organizador do espaço que se relaciona directamente com a praça a sul – concebida não só para o terminal mas também como enquadramento do rio e do edifício da alfândega e como sendo um espaço com um papel assumidamente cénico. A memória do sítio e a referência ao rio é novamente evocada pela praça e pelo espelho de água, onde a textura e a materialidade estão conjugadas. O parque a sul do terminal vive deste relacionamento de diferentes espaços com distintas materialidades juntamente com os relvados e as árvores de copas altas – que estruturam o espaço e delimitam a praça. O edifício, até então caracterizado pela sua volumetria compacta, liberta-se, e a envolvente reflecte-se na sua composição, o corpo do Terminal, eleva-se, ligeiramente sobre o grande espelho de água e a ra luz é reflectida no alçado sul – definido por um grande plano de vidro e é iluminado através da água, memória do sítio. Planos relvados e inclinados na direcção da praça, estão na origem de novas relações, levam à apropriação do espaço, ao convívio. Procura-se mais uma vez esse carácter multifuncional a apropriação e vivência do novo espaço verde. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 141 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares O espaço envolvente do terminal é rematado por dois volumes paralelos às extremidades, com programas independentes mas que complementam o conjunto, destinados à restauração e ao lazer. São os volumes simples e regulares que de modo sublime fecham e contêm as intervenções dos diferentes períodos: Peças simples que formam a fronteira que é encarada como uma linha potenciadora de separação e parcelamento mas que na verdade se constituem como elementos fundamentais na consolidação das diferentes malhas e traçados – tão necessários para a definição e transição do espaço. É muito interessante contemplar o horizonte e a infinitude dos espaços, mas não será mais reconfortante reconhecer os limites do que nos envolve? Pontualmente, a infinitude do espaço corresponde ao “balão de oxigénio” ou o momento libertador que muitos procuram numa cidade densamente construída. O limite é a âncora que nos permite orientar sem “perder o norte” e estes corpos regulares que foram referidos como elementos da consolidação urbana: a Alfândega, os Museus do Fado e Militar, ou como os novos corpos paralelos nos extremos da intervenção do Terminal, não são mais do que as referidas âncoras que permitem “segurar” o espaço sem que este perca o sentido. Ilustração 78 – Perspectiva do plano do Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). Se repararmos na ilustração anterior é possível visualizar como estes corpos rematam e organizam o espaço, não esquecendo que o projecto do terminal vive destes Diogo Filipe Dias Marques Lopes 142 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares momentos e desta fronteira entre a delimitação do espaço e a possibilidade de vivenciar a sua infinitude. A delimitação do espaço do parque – do lado do rio – é feita através da passerelle elevada, através de um corpo delgado e de vidro, contrastando com o seu comprimento que delimita o espaço e enquadra a vista e o horizonte sobre o mar da Palha. Na proposta segue paralela à mesma passerelle uma linha de árvores que a camufla. Que imagem resultará deste momento? Imaginemos uma linha de árvores texturadas – sobre um fundo translúcido – por entre o qual a luz trespassa; de certo modo, imaginamos um momento composto por vários elementos que estão integrados com um sentido comum, mas que ao mesmo tempo são capazes de manter o valor e a identidade de cada um. Como referimos no início, este momento não só permitirá a definição do limite do espaço [limite esse bastante permeável], mas também a possibilidade de o trespassar, por entre os troncos das árvores ou pelos pilares de betão que suportam a passerelle. Não só é possível respirar e viver esse mesmo “balão de oxigénio” da cidade sem fim, como também construir a âncora que nos segura e que nos protege. Esta passerelle, totalmente paralela aos limites do cais [estrutura esguia como um apêndice do corpo arquitectónico] toca com subtileza no casco das distintas embarcações que atracarão no cais do terminal de cruzeiros e é claramente a âncora do Terminal, tão ou mais importante que o próprio edifício e uma das grandes protagonistas deste projecto. Ilustração 79 – Maqueta com vista do alçado poente do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). Voltando ao edifício principal, os grandes alçados longitudinais brancos que o fecham, como um escudo protector que pontualmente toca no solo, elevam-no como um edifício-ponte. Fica a questão: como pode um edifício que se fecha ao exterior e se abre pontualmente ser acolhedor ou atractivo? É nesse contraste entre o Diogo Filipe Dias Marques Lopes 143 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares encarceramento e a abertura pontual que reside o interesse e a atracção, a curiosidade, o convite à experienciação do espaço. O grande plano do lado da cidade relaciona-se de um modo completamente distinto do alçado sul, inflectindo várias vezes e abrindo e fechando o corpo do edifício, cria permeabilidade e encerra-se e protege-se do exterior. Pontualmente, abre-se e espreita, para logo depois voltar a “cerrar o olhar”, como um jogo de “sedução” à distância entre o edifício e a cidade. No jogo da gravidade, onde a matéria aparenta não ter peso, o plano desce e toca o solo, para voltar a erguer-se. Não se fecha mas enquadra e define, sendo esta a transição entre o interior e o exterior, é simultaneamente a porta de entrada [e de saída] da cidade. Ilustração 80 – Maqueta com vista do alçado poente do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). Do lado do rio, o plano rígido e praticamente fechado, corresponde ao primeiro contacto entre o edifício e o cruzeiro. Um corpo imponente e estranho, que se protege e se defende, abrindo-se somente quando necessário; existem três aberturas por onde passam três ligações que se unem à passerelle. Este elemento é fundamentalmente uma estrutura distribuidora de passageiros e um cordão umbilical de relações entre o edifício e as grandes embarcações. Em contraste os outros dois alçados [sul e norte], a sua materialidade é completamente permeável com planos contínuos de vidro que permitem uma constante relação entre a cidade e o interior. O espaço interior relaciona-se com a praça sul; o interior abre-se ao exterior, o olhar de quem se encontra dentro dispersa-se pois deslumbra-se pela grandeza do vão que enquadra a cidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 144 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 81 – Maqueta do futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa. (JLCG arquitectos, 2011). O acesso principal faz-se junto ao plano de água, num espaço coberto, elevado, com acessos directos ao hall do qual parte o percurso público [promenade], paralelo aos limites e que envolve todo o edifício. O grande hall relaciona-se com o exterior através do grande plano de vidro, das rampas e dos reflexos da água. Deste modo, o interior e o exterior unem-se através da permeabilidade do material – da luz que trespassa o vidro, reflectida, dinâmica e inconstante –, e do movimento fluído da água e da rarefacção da cor. Na cota baixa, a funcionalidade do espaço faz-se notar e o parque coberto pelo edifício de acesso controlado permite o desenvolvimento das áreas técnicas e o respectivo estacionamento privado. Um dos grandes momentos do projecto do Terminal de Cruzeiros de Lisboa desenvolve-se sobre a cidade no momento em que o edifício rompe e cria um plano sobre a colina: um anfiteatro elevado com a cidade como palco em plano de fundo, onde todos somos actores e espectadores. No interior do edifício desenvolve-se o percurso – uma rampa que leva à descoberta constante da envolvente, percorrendo os distintos alçados com distintas características e materialidades – contemplando uma vista sobre o rio e sobre a cidade, proporcionada pela fantástica localização do edifício. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 145 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares O percurso descrito culmina na cobertura, descrita pelo arquitecto como uma “jangada flutuante” sobre as copas das árvores do parque. Daí obtém-se uma visão total e sem obstáculos da cidade, de um lado, e do rio, do outro. A cobertura é uma praça elevada sobre o rio, organizada e estruturada através de pavimentos em madeira e coberturas ajardinadas, com planos verdes elevados que permitem dar continuidade à mancha verde das árvores do parque circundante. O projecto do terminal de cruzeiros pretende enfatizar essa ideia de pavilhão. Construtivamente foram propostas lajes de betão aligeiradas, sobre pilares de betão, descritos pelo arquitecto João Luís Carrilho da Graça como uma floresta pétrea em contraste com a floresta que se pretende criar no parque envolvente. A materialidade do edifício é uma das características mais relevantes da concepção deste projecto. A flexibilidade no uso da mobilidade, a liberdade espacial e os dois grandes planos envidraçados, contrastam com a matéria e a dureza dos alçados longitudinais. Ilustração 82 – Axonometria do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 146 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 83 – Planta do piso superior do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010). Ilustração 84 – Planta do piso térreo do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Graça, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 147 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 85 – Cortes e alçados do Terminal, Carrilho da Graça, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 148 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Mais que “tapar um buraco”, trata-se de construir um corpo avançado e distribuidor e organizador, tanto da espacialidade urbana como dos usos e funcionalidade da mesma. Este sítio, ao contrario da envolvente, não é um aterro mas uma laje: um plano de betão sobre a água que permite manter a profundidade do leito do rio – característica fundamental para a comunicação marítima e manutenção do porto. Estas valências determinam os usos do território e, deste modo, o Terminal vai ao encontro da realidade do sítio, procurando construir um lugar de carácter único num limite da cidade. O lugar idealizado pretende trazer a cidade ao rio e dar continuidade ao espaço público, construindo novas praças, enaltecendo o edifício e o edificado envolvente existente mas também reorganizando e estruturando o espaço. Trata-se de um projecto pioneiro que procura percutir novas transformações na construção da frente – como é o caso da futura praça do Campo das Cebolas [a sul do Terminal] e na construção do espaço ribeirinho entre estes dois projectos. Referimo-nos por isso adotar de sentido e revitalizar uma frente citadina inteira – compreendida entre Santa-Apolónia e o Terreiro do Paço que é necessário e urgente. Todos os espaços são considerados, conectando as pequenas e estreitas ruas com os vários largos e pequenas praças que pontuam a linha interior edificada. Todos os edifícios são realçados pois esta frente foi desenhada para ser habitada e vivida, contrariando décadas de restrições e condicionamentos ao seu uso e à sua possibilidade de experienciar as suas melhores qualidades. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 149 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.1. O TERMINAL DE CRUZEIROS E AS GARES MARÍTIMAS DE ALCÂNTARA E DA ROCHA DO CONDE DE ÓBIDOS. Quem conhece a frente ribeirinha de Lisboa rapidamente constata um elevado número de construções relacionadas com o rio e com actividades inerentes ao mesmo. Das gares marítimas às estações fluviais, das alfândegas aos intermináveis armazéns e anexos portuários, das plataformas às docas secas, as referências e as relações são constantes e é interessante compreender como estas construções de diferentes períodos contêm vários elementos comuns: desde o modo como estão organizadas e localizadas, modo de construção, ou mesmo as estruturas e os materiais. Desde sempre que a frente ribeirinha é caracterizada como lugar fulcral de entrada e saída da cidade: seja como centro do desenvolvimento comercial, ou pela transacção de recursos e bens. Esta “qualidade” portuária, mercantil e comercial levou a que o limite físico de diferenciação entre a cidade e o rio se desenvolvesse. O desenho da cidade é o desenho das linhas limítrofes entre espaços privados e espaços públicos (as frentes da construção). Nestas frentes estão localizadas as funções terciárias, comércio, tráfegos que se transformam assim nas funções privilegiadas da cidade. (Benevolo, 1984, p. 41). É muito clara esta relação entre o novo edifício do Terminal de Cruzeiros desenhado por Carrilho da Graça e as duas gares marítimas existentes; dois conjuntos de edifícios construídos em períodos distintos com funções muito semelhantes, [sendo a actual realidade da indústria de cruzeiros muito distinta da do início dos anos 40 do século XX]. Quando Pardal Monteiro36 projectou as duas gares, estas tinham como objectivo uma rápida e muito eficiente resposta às necessidades das embarcações de transporte de passageiros e de transporte de mercadorias. O porto de Lisboa dos princípios do século XX apresentava uma nova plataforma sobre o rio resultante da necessidade de construir uma nova estrutura portuária de modo a dar resposta à desorganização e 36 Porfírio Pardal Monteiro (Pero Pinheiro, Sintra, 1897- Lisboa, 1957), arquiteto português formado pela Escolar de Belas Artes de Lisboa em 1919, iniciou a sua atividade como arquiteto-chefe da Caixa geral de Depósitos.Em 1920 tornou-se assistente do Instituto Superior Técnico, passando a professor catedrático em 1942.Das suas obras destacam-se algumas obras como o Instituto Superior Técnico, obra charneira da sua atividade, a Estação Ferroviária do Cais do Sodré, a igreja de Nossa Senhora de Fátima de Lisboa, o emblemático Hotel Ritz, inúmeros edifícios da Universidade de Lisboa na cidade universitária, como a reitoria e algumas faculdades. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 150 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares intenso fluxo constante de embarcações, armazéns, mercadoria e passageiros do porto. Pardal Monteiro apresentou uma proposta que foi desenvolvida após um longo período de estudo de gares marítimas existentes um pouco por toda a Europa e América do Norte: uma solução composta por dois corpos unidos por uma galeria paralela à plataforma do porto. Assim, as duas gares estão unidas e permitem um maior contacto com a frente portuária. Os edifícios das gares estão organizados em dois pisos com diferentes funções, separando as mercadorias dos passageiros – corporizando uma solução extremamente funcional e prática. Do projecto inicial praticamente tudo foi construído nos anos 40, com excepção da galeria elevada que unia as duas gares com cerca de 1 quilómetro de comprimento por 11 metros de largura, acabou por não ser construída na totalidade devido a problemas orçamentais. As duas gares continuam erguidas no porto de Lisboa, cada uma com a sua galeria individual, e estão localizadas em extremos opostos do porto. Hoje a distância das gares ao rio é maior, visto que em 1965 o porto de Lisboa aumentou a plataforma de modo a modernizar a estrutura existente para prestar uma melhor resposta: mais para manobrar e organizar os contentores marítimos, tendo sido a obra concluída em 1970, [passam a distanciar 80 metros da linha limite e o porto ganha 8 hectares de nova plataforma]. Estas novas obras de expansão do porto de Lisboa afastam a frente ribeirinha das gares marítimas e deste modo os dois edifícios deixam de responder às necessidades para as quais foram construídos, e passam a estar obsoletos. A função perde-se por mais prestigiante que seja o edifício e salta à vista apenas a memória de um tempo que não é o de agora. Este contínuo investimento no crescimento do porto de Lisboa é o principal motivo pelo qual as antigas gares deixaram de ter utilidade e a razão pela qual o novo terminal de cruzeiros foi projectado. A relação estabelecida entre o novo terminal e o actual limite contém inúmeras características que mantêm uma relação semelhante à que existia na época de construção das gares. As antigas gares reforçam a ideia de limite ao serem corpos paralelos à linha do porto: uma linha edificada que reforça a frente ribeirinha onde o porto e o rio se relacionam através do corpo construído e a transição se faz pelo seu interior. Esta ideia é perceptível através de fotografias de época anteriores à ampliação do porto. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 151 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares É evidente a noção de limite construído, através dos corpos que alinham e fecham a frente, marcando o fim da cidade construída e o início do rio. No projecto do futuro terminal de cruzeiros também existe uma relação entre o corpo e o limite mas neste caso assume-se como um corpo paralelo com uma relação perpendicular ao limite. Esta conexão leva à construção de relações distintas entre o corpo construído, o limite e a cidade. O corpo compacto do terminal é constituido por um volume rectangular formalmente paralelo à frente ribeirinha, tal como as gares, embora a relação que o volume estabelece com o espaço envolvente e com a cidade seja totalmente distinta. O edifício não assume o carácter de um limite construído, mas sim de um corpo moderador e organizador. Os grandes vãos e aberturas do corpo para o exterior reforçam a relação de perpendicularidade através dos parques e das praças envolventes, os vários elementos que compõem o conjunto acentuam essa relação a norte e a sul, organizando e estruturando a frente ribeirinha da cidade; assim, o terminal enfatiza muito mais os espaços urbanos resultantes da construção de um novo corpo no limite do que o próprio limite. Enquanto nas gares erguidas no século XX o grande momento resultante [a ênfase] se encontra na linha entre a doca e a água, no terminal de Carrilho da Graça esse momento corresponde ao espelho de água na praça a sul do terminal que mantém uma relação com o grande vão. Estas características são claras no que diz respeito à relação entre estes dois projectos e o limite; um posicionamento paralelo, alinhado e definidor em Alcântara e um posicionamento paralelo gerador de relações perpendiculares entre a cidade e o rio em Santa-Apolónia. É interessante comparar estes dois projectos de diferentes épocas, que de certo modo pretendem responder a problemas e a programas muito semelhantes. Deste modo, apesar de serem projectos distintos, muitas das soluções são reconhecíveis em ambos, tais como: o modo como os edifícios se relacionam com o limite através das estruturas lineares paralelas às plataformas, os primeiros elementos de contacto entre a cidade e as embarcações ou o modo como o programa é organizado e todo o edifício é estruturado. As pessoas ocupam os pisos superiores, as mercadorias Diogo Filipe Dias Marques Lopes 152 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares encontram-se à cota da doca e tudo se organiza de um modo simples, facilitando a mobilidade entre as partes. Em ambos os projectos a relação da area de ingresso com o edifício é marcante. No caso das gares, esta é constatadaatravés dos duplos pés-direitos com os painéis de Almada Negreiros37 e no modo como estas marcam os espaços adjacentes. No terminal, o grande hall caracteriza-se pela dimensão e altura, mas também pelo grande vão que “abre” o edifício ao parque verde envolvente e ao espelho de água que reflecte a luz do exterior. Podemos considerar que muitas vezes as soluções estão relativamente próximas; a surpresa que por vezes sentimos ao comparar projectos e edifícios, [até mesmo de diferentes épocas] e reconhecer que aprendemos uns com os outros ao reinventar – e a evoluir, criando a cidade. Não conseguimos afirmar se as antigas gares marítimas foram referências fundamentais para o desenvolvimento do projecto do Terminal de Cruzeiros, contudo são inúmeros os elementos e características do futuro terminal semelhantes a estas antigas estruturas portuárias. 37 José Sobral de Almada Negreiros (São Tomé e Príncipe, 7 de Abril de 1893 - Lisboa, 15 de Junho de 1970), pintor, desenhador, vitralista, poeta, romancista, ensaísta, critico de arte, conferencista, dramaturgo português foi uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa e uma das que mais decisivamente contribuiu para a criação e evolução da cultura contemporânea portuguesa no século XX. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 153 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 86 – Embarcação atracada junto à Gare Marítima de Alcântara que se encontra à direita ( fotografia tirada da varanda do piso superior). ([Adaptado a partir de: Henriques, 2013, p.4). Ilustração 87 – Pormenor da cobertura do núcleo central da gare marítima de Alcântara. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 154 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 88 – O barco, a grua e a galeria. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 89 – Entrada da gare maritime da Rocha do conde de Óbidos. (Ilustração nossa, 2014). Ilustração 90 – Pormenor da gare de Alcântara. (Ilustração nossa,2014). Ilustração 91 – Entrada da gare maritime de Alcântara. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 155 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.2. TERMINAL DE CRUZEIROS DE LISBOA – CONCURSO No final dos anos noventa do século XX, a administração do porto de Lisboa anteviu a necessidade de crescimento das estruturas portuárias da cidade, nomeadamente a adaptação das suas infraestruturas para a “indústria” de turismo de cruzeiros. A frente ribeirinha de Santa Apolónia foi eleita como sítio ideal para a construção de uma nova plataforma portuária, destinada ao futuro Terminal de Cruzeiros de Lisboa, justificando-se a escolha pela sua centralidade, a fácil e rápida acessibilidade – tanto ao centro da cidade como ao aeroporto – às distintas vias de comunicação que ligam a capital à periferia e ao restante território nacional. As cidades com estruturas portuárias sempre se assumiram como uma referências ao longo da História. No do século XX [década de 40] algumas companhias e operadoras turísticas levaram à construção de dois edifícios emblemáticos no porto de Lisboa projectados pelo Arquitecto Pardal Monteiro e adornadas com painéis de Almada Negreiros nos salões de entrada das duas gares. Portugal é actualmente o sexto país da Europa mais visitado por passageiros de cruzeiros, e o crescimento da indústria e a procura levou as entidades do ramo a apostarem e a investir em dotar a cidade destas estruturas, promovendo a proximidade entre a indústria turística dos cruzeiros e a cidade enquanto marca e referência no espaço urbano. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 156 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.2.1. PROPOSTA DE GONÇALO BYRNE E MANUEL AIRES MATEUS A proposta apresentada pela colaboração destes dois ateliers é uma solução que cria cidade, geradora de novo tecido urbano, sobre um “esqueleto” à espera de ser preenchido. Nas palavras dos autores, a evolução da forma da cidade é descrita como uma adaptação de matrizes de construção de espaço público, alternadas entre a longitudinalidade – paralela ao rio – e a transversalidade a este limite tão expressivo. Esta descrição é bastante relevante, no sentido em que se assume as “palavraschave” para descrever este projecto e nelas estão expressas as principais intenções que caracterizam esta solução projectual. A transição, entre a encosta e a frente sobre o rio, está relacionada com a ideia de longitudinalidade dos territórios conquistados, das plataformas e aterros, e também ortogonalidade dos edifícios que fazem a transição entre estes dois sítios – definindo uma malha que estrutura os territórios mais recentes. Esta é uma proposta que compreende a realidade, o contexto e a sua implantação neste local tão complexo. Os edifícios que definem o conjunto estão implantados sobre uma malha longitudinal que, pontualmente, é seccionada por um traçado transversal – que estrategicamente, “cose” a proposta com a envolvente através do espaço público e dos vazios que unem os dois lados da Avenida Infante Dom Henrique, dando-lhe continuidade. O espaço público apresenta-se como o “cimento” da consolidação urbana, configurando e estruturando toda a intervenção. Uma grandiosa praça aberta sobre o rio enquadra a alfândega e prolonga o espaço público, unindo a cidade com a frente ribeirinha; Uma segunda praça, – coberta – de dimensões substanciais – com características únicas, atribui um enorme potencial à proposta, permitindo um leque variado de usos e dando maior multifuncionalidade ao conjunto. Esta é uma solução que visa responder à sazonalidade do tráfego de cruzeiros – muito instável – pondo em risco a utilidade das soluções propostas. O espaço público organiza os vários corpos que dão forma ao conjunto proposto, seguindo paralelamente ao limite – fechado – permitindo o contacto visual com o rio nas praças de maior dimensão. Um dos elementos mais característicos desta proposta está presente na cobertura: composta por planos contínuos de duas águas que conferem continuidade através das Diogo Filipe Dias Marques Lopes 157 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares diferentes peças que constituem esta solução, pontualmente, assumem o seu carácter “laminar”, funcionando também como coberturas do espaço exterior. Esta continuidade está também expressa na transição entre interior e exterior pois o espaço flui, permitindo integrar as diferentes peças do programa do terminal. Os planos laminares não tocam nos módulos maciços que contêm o programa porque esta linha “descolada” funciona como uma fractura ou marca que permite distanciar e diferenciar sublimemente esta transição entre o exterior e interior e entre o laminar e o maciço. A proposta é constituída por uma solução modular: uma repetição contínua de uma cobertura de duas águas – transversal ao rio – sobre o plano da plataforma portuária. O módulo de duas águas de expressão pesada contrasta com a permeabilidade presente na sua perfuração, que permite a entrada de luz e: o espaço interior é iluminado naturalmente – de modo mais controlado – como se a luz rompesse o interior, conferindo leveza não só ao espaço como também aos expressivos planos. Claramente associamos esta cobertura com as coberturas dos armazéns portuários característicos deste sítio. Podemos afirmar que as referências estão próximas, e reconhecemos a humildade de encontrar inspiração nas valências. A cidade cresce, desenvolve-se e consolida-se: são três aspectos dos quais encontramos consciência nesta proposta pois não é simplesmente uma solução que visa um problema do momento mas vai mais além, ao ter em consideração a sua utilização futura e o modo como a proposta está implantada e organizada – permitindo que a cidade cresça na sua envolvente, sem a limitar, e desenvolvendo estratégias de consolidação. Um projecto independente que faz “cidade”, não esquecendo o contexto e o limite, ambos sempre em constante transformação. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 158 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 92 – Axonometria da proposta, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Byrne, Mateus, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 159 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 93 – Perspetivas da proposta a partir da cidade, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Ilustração 94 – Perspetiva da proposta a partir do rio, Gonçalo Byrne e Manuel Mateus, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 160 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.2.2. PROPOSTA DE GUILLERMO VAZQUES CONSUEGRA38 A solução apresentada por Consuegra consiste num edifício que desempenha um papel essencial na definição do seu entorno – características que resultam da sua forma e volumetria – e procura fundamentalmente integrar-se na paisagem urbana. Traduz-se num corpo que quer ser vivido por quem habita, vive e experiencia a cidade, organizando e definindo espaço urbano. Preocupa-se em trazer valências à cidade e tirar partido dela; contudo, não esquece uma outra realidade presente – o rio –, marcando o território e medindo o seu impacto a partir dele. Apresenta-se como uma peça arquitectónica em sintonia com o sítio, especialmente pela continuidade presente na relação que estabelece com os edifícios industriais na margem do rio. Esta linguagem comum expressa-se na organização das peças, predominantemente transversais ao limite da doca, nas coberturas de duas águas e na configuração da estrutura do espaço público. Dois corpos unidos por uma galeria dão forma ao conjunto principal, evitando a construção de um grande volume fechado e possibilitando o acesso a percursos sobre o rio a partir da avenida principal. A continuidade é igualmente expressa através da união dos corpos – por um elemento em comum – e pela proximidade dos diferentes espaços públicos. Consideramos ainda importante destacar duas fachadas deste terminal: uma “urbana” orientada para a praça que configura a alfândega e outra, marítima, virada sobre o rio Tejo. A fachada mais “urbana” configura a praça da alfândega através de um plano contínuo e elevado que delimita o espaço e reforça a relação da cidade e do terminal com o rio. A partir desta praça acedemos ao interior do edifício passando por debaixo do plano elevado – é ele que faz a transição, marca o limite e dá corpo a esta “porta” de “entrada e saída” da cidade. Esta praça assume um grande protagonismo através das 38 Guillermo Vazques Consuegra (Sevilha, 30 de Setembro de 1945), arquitecto espanhol, terminou o seu percurso académico em 1972 na Escuela de Arquitectura de Sevilla, onde lecionou até 1987. Professor convidado em inúmeras instituições de ensino de arquitectura, quer em Espanha como no estrangeiro. Participou em inúmeras exposições internacionais, com obra publicada em revistas espanholas e estrangeiras, reconhecidas com inúmeros prémios e distinções. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 161 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares relações que se desenrolam a partir deste ponto de união, é ela que une a cidade existente com a cidade recente, construída junto à frente ribeirinha. A fachada orientada para o rio – mais forte e menos recortada – une-se em três pontos com a galeria de distribuição paralela ao limite da doca. Aqui os planos inflectidos da cobertura fazem-se notar, assumindo grande protagonismo e contrastando com os grandes vãos abertos sobre o rio. Ao contrário da fachada da praça da alfândega, esta está em constante tensão devido ao contacto directo com as grandes embarcações. É provável que a resposta apresentada pelo atelier se deva, em parte, a esta relação de tensão que contrasta com a união e fluidez presentes do lado oposto. Programaticamente, a fachada marítima desenvolve-se no piso superior, libertando o embasamento e originando um espaço público coberto. No seguimento da plataforma do terminal paralela ao rio surgem um conjunto de espaços verdes e percursos pedonais que estruturam este limite. Os pavimentos seguem a mesma leitura dos estacionamentos, desenvolvendo um traçado geométrico que mistura espaço verde, os acessos pedonais e os restantes acessos de um modo dinâmico – numa composição que contamina todo o espaço envolvente. Uma vez mais as coberturas são elementos particulares das soluções apresentadas no concurso; neste caso, os grandes planos quebrados permitem jogar com a entrada de luz, acessos e respectivos enfiamentos visuais. O edifício tira assim proveito destes elementos para se relacionar visualmente e materialmente com o a cidade e com o rio. É uma solução que não agride a cidade e que procura respeitá-la, atribuindo-lhe novas qualidades espaciais. Este projecto é um dos que mais enfatiza esta relação entre a alfândega e o rio, gerando, na nossa opinião, uma das melhores praças propostas, não só pela praça em si, mas também pela fachada do terminal que a configura. Esquecemo-nos por vezes que a qualidade das praças não está única e exclusivamente no “vazio” central, mas nos seus limites e no modo como a delimitam. Este caso é um bom exemplo disso mesmo, sendo resultado de um desenho interessante e inteligente da fachada que ocupa todo o limite nordeste. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 162 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 95 – Plantas e cortes do projecto, Guillermo Vazques Consuegra, 2010. ([Adaptado a partir de: Vasqués Consuegra, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 163 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 96 – Perspetiva do projecto a partir da cidade e maqueta da proposta, Guillermo Vazques Consuegra, 2010 ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 164 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.2.3. PROPOSTA DE ARX PORTUGAL Este é um projecto que procura conciliar uma peça arquitectónica singular com contexto do local da implantação, incorporando a estratégia defendida pela cidade nos últimos tempos e integrando o espaço ribeirinho na malha urbana da cidade. Deste modo, a linha – limite da fronteira do território deixa de assim ser encarada como um obstáculo para passar a ser parte comum de um mesmo corpo. Uma peça monolítica pousa sobre a plataforma do aterro, rompendo com as características áridas e estéreis presentes neste sítio. Este é um projecto-maqueta, que nasce do estudo e experimentação do modelo. O processo evolutivo tem por base a fracturação de um grande volume em partes; a solução proposta por esta dupla de arquitectos dá corpo a um conjunto uniforme de várias peças com diferentes dimensões, separando-as através de cortes e interrupções estratégicas, definidas pelos alinhamentos e enfiamentos visuais, unindoas através de um corpo transversal, paralelo ao limite da plataforma. À imagem de quatro “dedos” unidos constituindo a volumetria proposta do lado do rio enquanto outros quarto “dedos” – pontes movíveis e flexivas –, fazem a transição entre os cruzeiros e o edifício. Quem se aproxima do conjunto pelo lado sul [rio] tem a percepção da unidade dos corpos – principalmente das coberturas – estas, mais a sul, juntamente com a do corpo transversal, estão alinhadas à mesma cota, conferindo continuidade e “defendendo” o conjunto neste momento mais frágil em que as grandes embarcações se aproximam – contrastando com os dois corpos a norte, cujas coberturas estão mais baixas e inflectem antes de se unirem à cobertura principal. O conjunto divide-se em duas partes pela inflecção das coberturas de zinco que permite diferenciar a zona de embarque da zona de desembarque. Por sua vez o interior é constituído por uma estrutura de aço pintado de cor branca e por planos de fachada de vidro sobre pavimentos de pedra mármore branca. A força dos materiais da cobertura e do pavimento contrasta com a leveza e a transparência do limite vertical de vidro que materializa o corpo. O vidro por si só não confere nem define a expressividade da volumetria dos diferentes corpos e neste caso, a solução encontrada apresenta uma composição que junta os dois elementos, o plano de vidro e a estrutura de aço interior. É a utilização destes dois elementos – que define a volumetria e constrói o limite. A Diogo Filipe Dias Marques Lopes 165 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares estrutura tem por base a repetição de elementos de aço em “V” [da mesma altura do pé-direito do piso]; pontualmente, alguns elementos internos da estrutura têm dimensões superiores [iguais à dimensão vertical dos corpos que sustentam]. No piso superior, do lado da cidade, os quatro corpos são unidos paralelamente através de pequenos corredores em ponte – construídos com a mesma estratégia das fachadas; são corpos elevados que expressam leveza e que procuram dissimular a sua presença, de modo a evitar tirar protagonismo aos corpos principais. Uma das características a destacar nesta proposta é a continuidade expressa por um percurso verde que une o Campo das Cebolas à estação de Santa Apolónia. Este contínuo verde é enfatizado através de um meio de integração da frente ribeirinha com a cidade e funciona como uma solução de estruturação e organização urbana do espaço público. Um dos exemplos mais claros da situação supracitada é a praça entre o rio e a alfândega. A partir do edifício da alfândega transitamos para uma praça delimitada pelos edifícios propostos e pelo espaço verde; atravessando a grande avenida rodoviária entramos num conjunto de pequenos espaços arborizados, recortados pelo espaço público e envolvidos num momento de deambulação. Este conjunto de pequenos espaços, que se relacionam entre si, acabam por funcionar como filtro de um momento da proposta para outro, com características muito distintas, preparando-nos para o vazio da praça, constituída por um pavimento de pedra. Na frente e na retaguarda predominam as massas arbóreas, conferindo unidade às laterais dos corpos projectados. No limite ribeirinho da praça, antes da linha arbórea que a limita, encontramos um conjunto de pequenos espelhos de água com diferentes formas geométricas que nos evocam a aproximação do limite. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 166 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 97 – Plantas e cortes da proposta, ARX Portugal, 2010. ([Adaptado a partir de: ARX Portugal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 167 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 98 – Maquetas e perspetivas do projecto a partir do rio e da cidade, ARX Portugal, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 168 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.2.4. PROPOSTA DE ZAHA HADID39 Além de se tratar de um projecto icónico, é a nosso ver, a proposta que mais corpo dá à expressão “a imagem pela imagem” materializado numa resposta a um programa que vive do contacto e cruzamento de passageiros internacionais num só edifício. “O carácter icónico do conceito e o impacto regenerativo da solução proposta maximizam a atractividade do novo Terminal de Cruzeiros de Lisboa face aos mercados nacional e internacional.” (Terminal de Cruzeiros, 2010, p. 58) Referenciando o próprio atelier, a atractividade e o ícone estão presentes numa solução única que segue os estereótipos de uma civilização global em que a imagem é praticamente tudo, dando origem a uma proposta de implantação regular e compacta que procura também aproximar a cidade do rio, desenvolvendo uma praça a sul, mas voltada para estes dois protagonistas, reforçando esta relação um pouco esquecida. Esta praça que enquadrando o edifício da alfândega e o próprio terminal resulta numa solução bastante interessante da vivência do espaço urbano, consolidando a estrutura urbana do sítio. A solução segue a estratégia presente no projecto vencedor: um corpo principal concentrado, gerador e organizador de espaço urbano, aliado ao reforço de determinados enquadramentos. A composição do pavimento apresenta uma interpretação contemporânea dos diferentes padrões que compõem as inúmeras ruas de Lisboa com passeios em calçada portuguesa. Esta simples intenção não é mais que o uso da cultura do lugar na concepção de padrões actuais e contemporâneos para a criação de espaço público. Este é um edifício de cores neutras, onde a luz é a principal protagonista, e onde as relações entre a materialidade, cor e textura se aproximam claramente das características dos cruzeiros de passageiros actuais. Por sua vez, também a expressão da cobertura se faz notar no interior, permitindo a iluminação do espaço pela luz natural filtrada. 39 Zaha Hadid (Bagdad, 31 de Outubro de 1950), arquitecta iraniana, iniciou o seu percurso académico em 1972, na Architectural Association, Londres, terminando em 1977. Colaborou com Reem Koolhaas em 1987 no Atelier OMA. Sócia e fundadora de Zaha Hadid Architects, com mais de 30 anos de experiencia nos domínios da arquitectura, urbanismo e design. Premiada em 2004 com o prémio de Arquitectura Pritzker. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 169 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Uma cobertura marcante realça a leveza das fachadas – muito permeáveis: transparentes –, permitindo o contacto directo com o exterior através de grandes vistas panorâmicas. Do lado do rio, as galerias de distribuição e comunicação com os cruzeiros entram em contacto com o corpo em dois pontos estratégicos, sendo paralelas ao limite da doca e seguindo o limite do cais. Simultaneamente, do lado oposto, a cobertura prolonga-se para lá das fachadas permitindo o sombreamento dos espaços exteriores mais próximos do edifício e construindo uma galeria que permite o acesso ao parque dos autocarros e táxis. O edifício vive da imagem da cobertura: um plano dinâmico, ondulado, complexo e perfurado, à semelhança da pele de um peixe, cuja perfeita organização das escamas confere unidade à superfície. “A morfologia triangulada da cobertura participa activamente no contexto da cidade, reflectindo a justaposição dos telhados nas colinas, ou mesmo replicando o ritmo da ondulação do estuário, dependendo da interpretação poética individual.” (Terminal de Cruzeiros, 2010. p. 58). “O edifico estabelece uma relação directa com a topografia da cidade e com os navios de cruzeiros, elegendo a cobertura – fachada mais visível – como o elemento significante do projecto.” (Terminal de Cruzeiros, 2010. p. 58). A relação do edifício com a cidade é um dos conceitos mais enaltecidos, nomeadamente a topografia íngreme de um casario que se adapta e molda às suas características e que contrasta com a interpretação actual feita no alçado mais visível do terminal – a cobertura. Porém esta é a realidade da colina enquanto lugar que compõe este território; mas e a realidade do local de implantação do projecto? O sítio é mais complexo do que inicialmente aparenta: constatamos que apresenta pontos em comum com Alfama e, simultaneamente, características totalmente díspares, sendo uma delas a topografia. O edifício procura integrar-se com a encosta mas na realidade não consegue estabelecer relações com as estruturas mais próximas, acabando por despertar estranheza e revelar uma integração insuficiente. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 170 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 99 – Cortes do projecto, Zaha Hadid, 2010. ([Adaptado a partir de: Zaha Hadid, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 171 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 100 – Vista do projecto a partir do rio e vista do interior do Terminal, Zaha Hadid, 2010. ([Adaptado a partir de: Leal, 2010). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 172 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 4.3. TRANSFORMAÇÃO DO LIMITE RIBEIRINHO NA COLINA DO CASTELO Algumas das questões basilares desta dissertação incidem sobre a transformação da frente ribeirinha ao longo do tempo. Esta procura de respostas ou simplesmente de mais questões vive à volta de perguntas bastante simples: como cresceu Lisboa? Como se desenvolveu a cidade? Quais as antigas realidades da frente ribeirinha nos distintos lugares que a caracterizam? É provável que se lhe deva a primeira fortificação do alto do monte onde hoje campeia o castelo de S. Jorge, e que a população fosse também defendida por torres ou fortes isolados, segundo os processos usados por aquele povo para defesa das povoações. (Vieira da Silva, 1987d, p.7). As primeiras referências físicas que temos da cidade de Lisboa são do período romano e da importância que esta possuía em relação ao comércio marítimo entre o norte da Europa e o mar Mediterrâneo. Porém, já na Antiga Grécia existiam descrições do território ocidental da Península Ibérica e dos rios profundos, serpenteantes, por entre montanhas e vales de florestas antigas e densas – uma caracterização envolta em algum mistério, reflectindo o medo pelo desconhecido. Misterioso era o Tejo – visto como um rio perigoso – até certo ponto mortal, que terminava no grande mar livre: o oceano. Sabemos hoje que a cidade iniciou o seu crescimento na encosta do castelo, possivelmente onde se localiza a Sé Catedral de Lisboa, por iniciativa e influência do contacto marítimo e comercial [não com os gregos, mas com os povos fenícios]. Possivelmente nestes primeiros tempos, a pequena urbe não seria mais do que um pequeno conjunto a meia-encosta e uma estrutura portuária mais afastada junto ao rio e ao antigo esteiro. Com a ocupação romana, a cidade cresce e ganha nova consolidação, – bem como uma estrutura defensiva, até então inexistente – mantendo uma forte relação com o Tejo e o comércio marítimo. Pelo norte e pelo ocidente este monte apresentava então, mais do que hoje, as suas encostas bastante ásperas, tornando difíceis as operações de assédio. Pelo sul, a sua base ia mergulhar nas águas do rio, e esta defesa aquática tornava dificilmente acessível a entrada por esse lado, especialmente se fosse defendida com uma muralha. (Vieira da Silva, 1987d, p.17). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 173 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Actualmente um grupo de arqueólogos e historiadores tem desenvolvido um estudo sobre a cidade de Lisboa no período romano, considerando a possibilidade de existirem dois fóruns: um a meia-encosta e o outro na frente ribeirinha da cidade. Este estudo revela que a cidade romana tinha uma forte “vivência portuária” e possuía inúmeros edifícios e estruturas que a apoiam e reforçam esta vocação comercial. O limite da cidade romana coincidia, aproximadamente, com a actual Rua da Alfândega e com a Rua do Terreiro do Trigo – já na altura localizada numa zona portuária em contacto directo com o rio, com os barcos e com todo o movimento comercial associado – em especial na produção do famoso garum40, uma relíquia gastronómica do Império Romano. Os vestígios arqueológicos indicam a existência de uma linha defensiva – muralha – que protegia um conjunto de quarteirões em banda no seguimento da frente ribeirinha. Um desenho urbano regular e geométrico, pontualmente inflectido e adaptando-se à topografia complexa e pouco acessível, [pouco compatível com o normal traçado regular romano, presente nas principais cidades do Império]. Contudo, no período muçulmano, a cidade sofre algumas transformações e o limite sul junto ao rio que continua a ser definido pela linha defensiva da muralha romana, ganha uma nova apropriação. Inúmeros historiadores e olisipógrafos indicam que com o fim do domínio romano a cidade sofreu uma contracção dos limites, em especial nos extremos ocidentais e orientais, reduzindo substancialmente a sua dimensão; porém o limite sul [a frente ribeirinha] mantém grande parte da área já ocupada e as maiores alterações encontram-se no reforço das linhas defensivas já existentes. A cidade exerce pressão sobre os limites, em especial a sul e a muralha transforma-se num elemento intransponível, tanto para o Homem como para o rio. É provável que o período muçulmano seja um dos menos documentados, porém, existe um relato muito descritivo e esclarecedor feito por um cruzado normando que relata os dias anteriores e posteriores à conquista cristã. Sem dúvida um dos relatos mais antigos de Lisboa, feitos no lugar. 40 Garum ou liguamem era um condimento culinário muito apreciado na Antiguidade, especialmente no período romano. Feito a partir de sangue, vísceras e outras partes selecionadas de peixe acabado de pescar, ainda vivo e a respirar, deixados em salmoura e ao sol durante dois meses ou então aquecidos artificialmente. Por fim, a mistura era coada e filtrada, de modo a obter um liquido límpido e homogêneo, para utilização na cozinha como condimento e tempero. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 174 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Uma das descrições feitas pelo cruzado é a do casario construído pela encosta em direcção ao Tejo, limitado pela cerca velha [ou cerca Moura], impedindo que este entrasse pelo rio adentro. No primeiro período, o autor descreve o que vê. Apesar da economia das palavras, não é ainda hoje difícil de refazer a imagem do estuário do Tejo, amplo e largo, e, a norte dele, o casario escorregando na linha da colina, só impedido de entrar rio adentro pelos murros altos da muralha envolvente.Em seguida, no segundo período, o cruzado anima essa imagem estática povoando o rio de embarcações, rotas e destinos, a azáfama própria do < mais opulento centro comercial de toda a África e de uma grande parte da Europa>. (Matos, 2008. P. 22). “Levantava-se na praia, e as águas das marés chegavam até à sua base.” (Vieira da Silva, 1987d, p.103) A grande muralha de origem romana encontra-se praticamente sobre a água; esta não só protege a cidade dos saques e ataques exteriores, como também das tempestades e cheias provenientes do rio – tal como descreviam os soldados que viam a água bater na muralha a partir das embarcações atracadas na bacia do Tejo durante as marés e tempestades, como se o rio reivindicasse os territórios que outrora lhe pertenceram. No período da ocupação muçulmana a definição do limite sul da cidade mantém-se nesta linha de pedra defensiva: contudo, a instabilidade das fronteiras impede o crescimento da cidade para sul. A muralha não só protege como “estrangula”: são os altos muros que determinam onde começa e acaba a estrutura urbana e onde se está sobre a sua protecção ou fora da mesma. Ilustração 101 – Gravura da cidade de Lisboa compreendida pelas muralhas. ([Adaptado a partir de: Matos, 2012). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 175 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Só após a [re]conquista cristã e com a consolidação e estabilização das fronteiras –a cidade volta a crescer para sul – fora do limite defensivo imposto pela muralha. Durante várias gerações é a cerca velha que determina o limite, que pouco a pouco, é absorvido pela necessidade da população encontrar lugares para edificar novas habitações. Estando a torre construída na praia, os edifícios que ao sul e ao oriente da mesma os documentos antigos alí mencionam, o Paço da Madeira, o Paço do Trigo, a Portagem, e mais tarde o edifício da Misericórdia, foram levantados em terrenos conquistados ao rio, que chegava até à base da muralha do lado fluvial da cerca, onde hoje se abre a passagem chamada de Arco Escuro. (Vieira da Silva, 1987d, p. 105). No período do reinado de D. Fernando, as guerras com Castela levam a sucessivos ataques seguidos de saques. As construções exteriores à muralha, como o bairro de Alfama encontravam-se indefesos e esta realidade levou à construção das novas muralhas exteriores, a cerca Fernandina. Uma pequena frente sul ribeirinha já se encontrava protegida pela cerca velha, porém com a Fernandina a frente protegida passa a ser maior, construindo uma muralha na praia com torres de defesa e portas de mar. [...] o Rei D. Fernando – depois do assalto, roubo e incêndios que à cidade havia infligido em 1373 o exército do Rei D. Henrique de Castela – mandar construir, nesse mesmo ano, uma nova cinta de muralhas, como era uso na Idade Média, para defender a capital do Reino contra a nova e provável investida do exército castelhano. Esta linha de muralhas ficou conhecida por Cerca Nova, em oposição à Cerca Velha ou Antiga, e também por Cerca de D. Fernando ou Fernandina, designação evocadoras do rei que a mandou construir. (Vieira da Silva, 1987c, p. 7). Durante o reinado de D. Manuel I a cidade inicia uma nova fase de crescimento urbano, tirando partido do recente aterro da Ribeira que fazia parte dos planos do rei para aumentar a cidade junto da frente ribeirinha. Este processo de expansão da margem/praia aumenta substancialmente o território a sul da muralha, permitindo que a cidade trespassasse as portas da linha defensiva, ocupando os novos territórios conquistados e acolhendo novas actividades relacionadas com a construção naval, exploração e comércio marítimo – sendo edificadas novas praças e terreiros de uso público. Grandes espaços abertos ligam a cidade ao rio e pela primeira vez, abre-se sobre o limite, usando e vivenciando estes espaços que constituiam um novo elemento característico da estrutura urbana e das relações entre a cidade e o rio, presentes até à actualidade, com diferentes características [ ver Ilustração 102 e 104]. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 176 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Foi principalmente nos reinados de D. Afonso V e de D. Manuel que os fidalgos e apaniguados do paço começaram a construir os seus palácios encostados à muralha. Era esse um sítio muito aprazível, com vistas desafrontadas sobre o rio e sobre a praia, que se ia alargando com os aterros e entulhos, proporcionando primeiro um terreiro ou ribeira, e mais tarde campo para edificações. As fachadas dos prédios construídos durante o século XVI deviam ser muito aproximadamente como estão representadas no quadro, que merece bastante confiança, e assim mesmo se deviam ter conservado por mais dois séculos, até ao terramoto de 1755, que todavia avariou algumas delas. (Vieira da Silva, 1987e, p. 116). Em 1650, João Nunes Tinoco foi responsável pela elaboração da mais antiga planta de Lisboa até hoje conhecida. Este levantamento feito no período das guerras da Restauração apresenta a cidade de Lisboa com toda a estrutura urbana e as respectivas muralhas: cercas Moura e Fernandina. Através deste documento é possível compreender como o limite da muralha, junto à frente ribeirinha, começa a ser absorvido pela cidade, incorporando a estrutura urbana como corpo interior e perdendo o carácter de limite laminar, cujas portas se transformaram em pequenas praças à entrada da cidade. Troço da Cerca desde o Chafariz de Dentro até ao Postigo de Alfama. – Da torre que esquinava para o Largo do Chafariz de Dentro a muralha prosseguia para ocidente, paralelamente à Rua do Terreiro do Trigo, até à Travessa do mesmo nome. Este troço de muralha conserva-se ainda em quase toda a sua extensão, parte metido no interior dos prédios, e parte com um dos seus paramentos à vista […]. (Vieira da Silva, 1987c, p. 108). Na frente ribeirinha que abrange o bairro de Alfama é possível constatar duas realidades: por um lado, a muralha inicia um processo de incorporação e a cidade envolve-a e cresce no seu entorno, utilizando-a como suporte ao crescimento urbano – claramente visível na parte ocidental da frente ribeirinha de Alfama: no entanto do lado oposto – do lado oriental da frente ribeirinha de Alfama – a muralha continua a limitar a cidade e é ela que define o limite urbano, restringindo firmemente o seu crescimento. Com o terramoto de Lisboa de 1755 e a reconstrução da cidade, pudemos estudar dois períodos muito interessantes da evolução da cidade, pois a reconstrução está constantemente associada à transformação da antiga estrutura urbana e a sobreposição das plantas anteriores e posteriores ao terramoto comprovam-no. A cidade de 1755 – anterior ao terramoto – apresenta uma informação particularmente interessante que corresponde à definição de uma via na frente ribeirinha e que foi ganhando forma ao mesmo tempo que a muralha ia sendo absorvida pela cidade. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 177 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A rua em construção corresponde na actualidade ao conjunto definido pelo Campo das Cebolas, Rua do Cais de Santarém, Rua do Terreiro do Trigo e Rua do Jardim do Tabaco. A muralha, praticamente integrada, deixa de ser um elemento que restringe a progressão da cidade quando um corpo junto ao rio marca uma nova fase da construção da frente ribeirinha – é o transpor desta fronteira e a edificação do outro lado desta novas ruas [ ver Ilustração 102 e 104] . No campo das Cebolas, contigua a este último palácio, existiu uma das portas da muralha, no sítio da via pública, hoje metade em rampa, e metade em escada, que desde muito tempo se chama Arco de Jesus, ou Arco do Menino Jesus, comunicando aquele Campo com S. João da Praça. Pela sua situação e vestígios que ainda dela se conservam, parece ter sido uma das primitivas portas da cerca moura, no lanço paralelo ao Tejo, dando saída da cidade para a praia. Na grossura do arco da abóbada nota-se uma zona reentrante, ultimo vestígio da abertura pela qual se fazia descer e subir a porta de correr. Na engra ou recanto que a fachada forma com o prédio do lado direito ainda se nota o envasamento de uma guarita, mas de construção relativamente moderna. (Vieira da Silva, 1987c, p. 133). Durante a construção do plano Pombalino a cidade sofre uma enorme transformação e no entanto o lado de Alfama é a excepção à regra. Já a antiga alfândega é totalmente transformada e um novo volume ganha importância. Este corpo não só é determinante na definição da Praça do Comércio, delimitando-a, como também é ele que permite fazer a transição entre a Baixa Pombalina e a frente oriental da cidade [ ver Ilustração 102 e 104]. Comparando as plantas de 1755 com a de 1770 que apresenta a cidade construída após o terramoto, fica claro que a estratégia assumida em Alfama é distinta, e mais distinta a aplicada na frente. A estrutura mais antiga mantém este carácter mais fragmentado e pontualmente, alguns dos elementos uniram-se num só corpo, sem perder o carácter inicial. A explicação para manter estas características ter-se-á devido ao facto de ser uma das estruturas urbanas mais consolidadas da cidade – logo a sua transformação é muito reduzida. Por outro lado, a aplicação do plano de reconstrução da cidade segue uma estratégia completamente diferente na franja conquistada com os anteriores aterros. A edificação desta nova linha urbana é definida por elementos regulares de dimensões e proporções diferentes das preexistentes na encosta de Alfama – é edificada uma nova frente. A cidade cresce para o outro lado da rua – uma nova linha de carácter comercial e militar define o limite sul – e são estes edifícios intermediários que permitem o contacto das grandes embarcações atracadas nas margens do Tejo. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 178 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Em 1850, aquando o levantamento do engenheiro Filipe Folque, o grau de detalhe presente é impressionante e muito superior. A leitura inicial é de que a cidade cresceu mas a estrutura urbana não: desenvolveu-se, consolidou-se, mantém a forma e reforça a relação com o limite através das ligações do espaço urbano – provenientes de Alfama – rematadas sobre o rio. A cidade ordena-se ortogonalmente sobre o grande plano de nível conquistado e ganha uma outra malha dentro da estrutura que a organiza, construindo assim um território de duas escalas [ver Ilustração 103 e 104]. Uma das mais interessantes características da cidade de 1850 incide sobre a disposição das ruas perpendiculares ao rio, provenientes do antigo bairro, impondo regras/restrições sobre os lugares recentemente edificados; inclinadas na direcção do rio, terminam dentro de água, impondo a sua presença e estruturando a frente construída – são planos de nível contínuos por entre edifícios e linhas que reforçam relações de entrada e saída da cidade, é a estrutura urbana que se sobrepõem, que instiga a evolução urbana, construindo sucessivamente a frente da cidade. Algumas destas ruas acabam por se “render” ao rio, materializando-se sob a forma de rampas inclinadas na sua direcção – estando sujeitas à variação das marés. Por outro lado, outras funcionam como um cais ao nível da cidade. Docas e plataformas em madeira ou rampas em pedra? Possivelmente, esta seria a realidade na época, com o uso de diferentes materiais para os mesmos fins. O rio sobe e desce com as marés, a água escorre pelas rampas, cobre as estacas, o frenesim no Tejo é grande, uma realidade constante desta época. Certamente que é difícil de definir que tipo de edifícios povoam a frente da cidade, mas derivado ao modo como esta se organiza e a localização da alfândega, é possível concluir que muitos destes edifícios poderiam complementar o espírito comercial que se vivia: o edifício da alfândega encontrava-se nesta linha de charneira entre terra e o rio – acabando o alçado nascente [do lado do rio] por estar em contacto constante com a água. Uma das características que confirma esta situação está presente nos inúmeros contrafortes existentes na fachada – elementos verticais que se elevam até ao topo – construídos com o objectivo de aumentar a resistência do edifício à força das marés, visto este se situar no limite do aterro, anteriormente construído. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 179 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Troço da Cerca ao longo do Largo do chafariz de Dentro. Atravessava a cerca o leito do Largo do Chafariz de Dentro com o traçado rectilíneo, de nascente para poente, conforme mostra a Planta de Tinoco. A muralha foi demolida em toda a extensão da frente do Largo em 1765, para aformoseamento e boa serventia do local, tendo-se aproveitado a pedra para o edifício do Terreiro do Trigo, que se estava então construindo. Ainda se pode observar hoje o seu topo cortado a prumo, no lado ocidental do Largo, inferiormente a uma janela do peitos entre as portas nº 3 e 4 do Largo. (Vieira da Silva, 1987c, p. 101 e p. 102). Já no século XX, com o levantamento de 1910 do engenheiro Silva Pinto, a cidade apresenta uma das maiores transformações feitas neste lugar: um novo crescimento, já com a visão e o espírito do desenvolvimento industrial e do comércio ferroviário. A alfândega é absorvida pelas novas docas, a linha férrea ganha uma posição privilegiada, a cidade afasta-se do rio e finalmente, a estrutura urbana rende-se ao limite [ver Ilustração 103 e 105]. Durante séculos a muralha impediu a cidade de sair dos seus limites: o comboio, por outro lado, irá concentrar a cidade no seu interior, impedindo que esta cresça novamente até ao rio. As actividades militares – presentes na Doca da Marinha – e as actividades comerciais – presentes na linha férrea – são as principais instigadoras do crescimento e desenvolvimento económico e como tal o acesso ao novo limite passa a estar condicionado. Novos edifícios pontuavam o novo aterro e a sua dimensão é substancialmente maior – sobre um traçado geométrico regular; junto ao rio são criadas duas docas, estruturas destinadas ao abrigo das embarcações. A cidade cresce e conquista território como nunca tinha conquistado: está maior, com uma escala cada vez maior, e porém, está cada vez menos humana e mais direccionada para a indústria, para a máquina e para o barco – à escala de um corpo que não é feito de carne e osso. Hoje a população reclama a frente para si e existe uma vontade natural para a cidade voltar às pessoas, a cidade é das pessoas feita para as pessoas, pois sem elas perde o seu sentido. A população residente sente falta do rio e do contacto físico com a água, bem como do cheiro da maresia ou do som dos barcos que chegam, os cruzeiros que partem, ficando apenas esta vontade de alcançar e tocar no rio; não é de se estranhar que por estas colinas se cante o fado da cidade e dos que nela vivem – a saudade do tempo e da gente. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 180 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A cidade construída e a cidade planeada actual revêm-se nas vontades locais, projectando a cidade para quem vive nela e devolvendo a frente à população, através de novos espaços público e espaços verdes. Como constatámos, em parte da evolução desta frente, foi o espaço público, a estrutura urbana da rua, [da praça ou do largo] que alimentaram a sua construção e evolução. Não estranhamos que a população exija algo que lhes é familiar e natural, seu por “herança” especialmente sendo o rio tão essencial para a regeneração do tecido urbano. Dentro de pouco tempo será possível tocar, sentir e viver o rio e a cidade voltará a relacionar-se de um modo mais directo e fisicamente com o elemento que a sustém. Hoje percorremos a cidade: descemos pela colina do castelo, por entre ruas e ruelas que contornam o casario e pequenos degraus de pedra à porta das casas, escadarias que terminam em largos que contornam igrejas e capelas e hoje a janela que dá para a rua, com a roupa estendida, é a mesma da gente que vive a rua como se fosse a sua casa. As ruas dilatam-se e comprimem-se, curvam, adaptam-se e aproximam-se da cidade conquistada ao rio; as antigas portas da muralha transformadas em túneis que trespassam edifícios, sem dar conta, são elas que constroem, unem, ligam e envolvem o tecido da urbe, pois são elas que na realidade dão forma ao corpo da cidade – e este lugar não é excepção. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 181 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 102 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), edificado, 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 182 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 103 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), edificado, 1858-1911-2015+. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 183 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 104 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 184 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 105 – Planta da frente ribeirinha de Lisboa (Alfama), 1650-1755-1770. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 185 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes 186 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 5. PROJECTOS ACADÉMICOS Os projectos académicos presentes neste capítulo procuram complementar o que desenvolvemos ao longo deste trabalho e foram elaborados durante a nossa experiência Erasmus na Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid da Universidad Politécnica de Madrid. Os casos apresentados estão subdivididos em dois grupos que correspondem a Proyectos 8 e Proyectos 9 – que equivalem à disciplina anual de projecto de 5º ano da Universidade Lusíada de Lisboa – e foram acompanhados pelos professores arquitectos Emilio Tuñon , Luís Rojo, Ángela García de Paredes, Ignacio Pedrosa, Juan Ruescas e Bárbara Silva. Considerámos curioso aquele grupo de professores ter elegido a cidade de Lisboa como lugar de estudo para o ano lectivo em questão, e rapidamente despertou um interesse particular por desenvolver o último projecto académico prático com eles. Seria uma nova perspectiva da cidade onde vivemos, onde crescemos e desenvolvemos praticamente todo o nosso percurso dentro da Universidade Lusíada. Surgiu-nos assim a oportunidade de trabalhar um território de estudo com o qual estamos familiarizados a partir de uma cultura diferente, e uma hipótese de nos desafiarmos a nós mesmos e sairmos de uma “zona de conforto” onde nos alojámos nos restantes anos do nosso percurso académico. O desafio consistia em intervir na frente ribeirinha, compreendida entre o Campo das Cebolas e Santa Apolónia, e visava implementar a construção de um conjunto residencial sénior. De seguida, e mais complexo, era pedido o desenvolvimento de estratégias para a realização de uma escola de música e um conjunto de equipamentos de apoio no lugar de Santa Catarina – com especial destaque para o miradouro [conhecido pela população local por Adamastor, referência à escultura do gigante mitológico presente no alto da colina]. De facto, e como já referimos, um dos grandes estímulos académicos colocados, passou por nos obrigar a vivenciar e explorar a cidade a partir de um ponto de vista diferente, resultando, com enorme prazer, o desenvolvimento este conjunto de trabalhos. As ilustrações aqui presentes procuram sintetizar o trabalho desenvolvido durante a respectiva experiência académica, e complementam os textos explicativos que se seguem. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 187 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 5.1. ALFAMA - RESIDÊNCIA E HABITAÇÃO SÉNIOR O primeiro projecto académico que apresentamos está inserido num dos lugares mais carismáticos da cidade de Lisboa – a frente ribeirinha do bairro de Alfama. Alfama é provavelmente um dos bairros mais consolidados da cidade, construído inicialmente fora do perímetro amuralhado, que se estendia desde a encosta sul do castelo até à margem do rio. Com o tempo e o aumento da população, a cidade assume a responsabilidade de defender as populações “extra-muros”, reconhecendo a importância e a igualdade destes bairros em comparação os demais e construindo a Cerca Fernandina que restringiu o crescimento destes lugares durante longos períodos da história da cidade. Hoje, e com a absorção das estruturas defensivas, expansão do território sobre o rio e a respectiva apropriação do mesmo, as realidades alteraram-se: o bairro está mais distante do rio e as frentes edificadas – pouco consolidadas, contrastam com a realidade do território interior. Intervir dentro desta realidade não é uma tarefa fácil e deve ser uma acção altamente ponderada; o tempo despendido no seu estudo permitiu estruturar uma estratégia responsável e consciente do contexto onde está inserida. Este projecto visou o desenvolvimento de um conjunto residencial destinado à população sénior: nascido da intenção de criar um complexo de apartamentos de diferentes tipologias – T1, T2 e T3 – associados a espaços complementares, que atribuem-lhe uma maior autonomia. Das necessidades inerentes à população a que se destina e das forçosas relações existentes entre os espaços necessários e referidos no programa, concluímos que a solução a desenvolver necessitaria de estar concentrada – eliminando assim a possibilidade de uma intervenção com elementos dispersos. O sítio onde se insere este projecto está compreendido entre a estação de comboios de Santa Apolónia e o Campo das Cebolas. Dentro desta área, que detém características muito particulares, a dificuldade encontrava-se em como intervir, quase cirurgicamente, numa estrutura urbana muito consolidada. A intenção foi ser pontual e concentrar todo o programa, reduzindo a distância entre os vários espaços e os respectivos elementos propostos. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 188 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares A estratégia seguiu o mesmo “esquema” presente na fase de construção e apropriação da frente ribeirinha após a absorção dos limites defensivos, privilegiando formas geométricas mais regulares. Esta solução permitiu circunscrever um pátio rectangular através dos vários módulos residenciais [regulares] que, estrategicamente, estão ligados à estrutura urbana através de ligações – ruas e galerias, reforçando a configuração da volumetria deste espaço interior. As dimensões e formas deste rectângulo [quase quarteirão] são muito próximas das da implantação do futuro Terminal de Cruzeiros: não se trata de uma simples coincidência, mas de uma intenção de projecto que pretende criar continuidade entre os edifícios mais próximos do rio e a linha edificada – de remate – do bairro de Alfama. Se inicialmente a intenção era essa – a de criar um conjunto uno, um corpo único – com o desenvolvimento do projecto, este acabou por seguir uma direcção diferente: o grande corpo é fracturado em módulos que preservam a configuração inicial do quarteirão mantendo a unidade entre estes e a envolvente. A proposta apresenta-se com a seguinte disposição: do lado da cidade – Alfama, erguem-se três módulos residenciais com cérceas idênticas às dos edifícios mais próximos, construindo um novo plano edificado voltado para o rio. Do lado do rio, um conjunto de edifícios de piso térreo encerra o espaço central, protegendo-o do movimento e ruído constante da Avenida Infante Dom Henrique, de uso predominantemente rodoviário. A proposta procurou adaptar-se às necessidades futuras, como a possibilidade por exemplo a lotação do conjunto residencial sendo, deste modo, desenvolvida uma segunda expansão através da construção de um módulo residencial – transversal – que remata esta área rectangular originando assim uma rua pedonal entre o quarteirão inicial e o novo módulo. Esta estratégia volumétrica procura integrar-se com o edificado envolvente e, em simultâneo, construir a transição entre o plano vertical, da encosta com o longo plano horizontal – construído pelos anteriores aterros e plataformas sobre o rio. Esta definição e implantação da proposta procuram rematar a transição entre as diferentes malhas que constituem este sítio, localizando-se no exacto momento em que o plano da encosta encontra o plano de nível ribeirinho. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 189 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Na materialidade a intenção é comum, procurando seguir as mesmas características presentes na envolvente. As fachadas são revestidas a azulejo branco – o mesmo material que reveste a maioria dos edifícios na Rua do Jardim do Tabaco; o embasamento, em pedra, visa reforçar a expressão do momento de transição entre o passeio [plano horizontal] com a nova construção [plano vertical]. Deste modo, os edifícios “residenciais” expressam-se através da composição de dois materiais: um embasamento forte e robusto que suporta planos de fachada em azulejo – um dos revestimentos mais característicos da cidade –, e que confere à cidade um brilho muito peculiar e único, que lhe é natural. Por outro lado, os restantes edifícios – constituídos por um único piso térreo – são totalmente revestidos a pedra, inclusive as coberturas, conferindo continuidade e reforçando o carácter sólidos dos corpos que fecham e circunscrevem o espaço. De modo a reforçar essa ambicionada continuidade, os acessos ao interior do pátio central subtraem espaço aos edifícios, originando um conjunto de galerias cobertas que ligam os diferentes corpos entre si, e constituindo-se como espaços de transição entre o interior dos vários módulos e do vazio central. Programaticamente, os vários apartamentos, desenvolvem-se através da construção em altura, libertando assim os pisos térreos, destinados ao programa comum e semipúblico: enfermarias, cantinas e espaços desportivos – para a prática de ginástica e outras actividades físicas. Ilustração 106 – Maquetas de estudo. (Ilustração nossa, 2012). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 190 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 107 – Características do edificado envolvente, sítio de Alfama. (Ilustração nossa, 2012). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 191 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 108 – Planta de localização da proposta na frente ribeirinha de Alfama. (Ilustração nossa, 2013). Ilustração 109 – Perfil de Alfama, com a localização da proposta e o projecto do novo Terminal de Cruzeiros. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 192 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 110 – Diagramas. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 193 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 111 – Plantas das tipologias das residências sénior. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 194 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 112 – Plantas; planta térrea, planta tipo e planta de coberturas. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 195 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 113 – Alçado principal (Sul) e corte do projecto. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 196 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 5.2. MIRADOURO DE SANTA CATARINA - ESCOLA DE MÚSICA E JARDIM Ao contrário da frente de Alfama, Santa Catarina encontra-se a uma cota mais elevada, relaciona-se com o território envolvente de um modo distinto. Trata-se de um miradouro onde a relação visual é muito forte – como um observatório –; não só vemos como também somos observados pelas colinas vizinhas que nos rodeiam, debruçadas sobre a foz do rio Tejo e a frente ribeirinha. Este projecto inclui-se no imaginário da linha construída das colinas, visíveis a partir da frente ribeirinha, que nos acompanha ao longo do Tejo como uma referência dos vários lugares que caracterizam o território. Aparentemente dir-se-ia que Alfama está mais consolidada que Santa Catarina; porém, considerámos mais difícil intervir neste sítio: a estratégia teve de se adaptar às circunstâncias e, ao dividir o programa em partes, originou uma proposta mais dispersa, pontuando diferentes momentos que mantêm relações de proximidade importantes na vivência do novo espaço público projectado. Deste modo, o programa foi dividido em quatro partes: um espaço cénico exterior com capacidade para 250, uma sala experimental de música para 300 pessoas [auditório], uma a escola de música e um jardim/miradouro; os dois últimos mantiveram uma ligação muito interessante e de dependência, visto a escola ser responsável pela configuração de um dos limites do miradouro. O espaço cénico exterior procurou uma solução móvel, de fácil transporte e de carácter efémero, que permitisse construir uma estrutura compacta para uma pequena audiência em qualquer parte da cidade. A questão da efemeridade foi instigadora do conceito que levou à solução apresentada, construindo uma estrutura-bancada capaz de albergar mais de 250 pessoas através de uma ideia de empilhamento de paletes. Porquê a escolha das paletes? A palete é provavelmente um dos elementos mais banais e comuns em cidades por todo o globo, e como tal, a ideia foi apropriarmo-nos neste elemento de madeira ou aglomerado de madeira, e utilizá-lo como módulo estrutural – visto possuir uma enorme capacidade de suporte de esforços e cargas concentradas. Uma das intenções consistia em utilizar o módulo sem o descaracterizar ou alterar, preservando-o, de modo a poder retornar à circulação e aos usos mais comuns para os quais foi inicialmente concebido. A intervenção deveria ser o menos Diogo Filipe Dias Marques Lopes 197 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares invasiva possível e muitas foram as várias soluções estruturais pensadas para melhor articular a relação entre cada um destes módulos. Optámos pela utilização de cabos de aço [pós-tensionados] para servirem como amarrações ao solo e, simultaneamente, como elementos de união entre os vários módulos. Esta opção interessou-nos pelo seu impacto visual reduzido e por não alterar as paletes, permitindo que o ciclo de utilização não seja posto em causa. A solução modular permite uma maior adaptabilidade da estrutura às diferentes realidades da cidade, principalmente à sua topografia. Porém, foi necessário criar um elemento – à parte, que corresponde à escada de acesso, que devido às dimensões padrão da palete – nos obrigou a desenvolvê-la em paralelo, funcionando como elemento de remate lateral da bancada principal. A solução estrutural, de união das paletes, teve de ser diferente, visto estar associada à acessibilidade e à dimensão regulamentar do degrau. Assim optámos por um pequeno elemento metálico que permitisse, no mesmo ponto, fazer a ligação entre os três módulos – paletes. As outras três intervenções foram desenvolvidas em simultâneo em diferentes localizações, relativamente próximas entre si. Um dos maiores desafios consistiu na implantação das intervenções, visto tratar-se de um sítio extremamente consolidado. Acabámos por intervir num dos edifícios mais característicos o palácio de Verride – também conhecido por Palácio de Santa Catarina, [que se encontra na posse da Caixa Geral de Depósitos]. O edifício, actualmente em mau estado de conservação e com claros sinais de abandono, apresenta uma oportunidade de recuperação e reconversão, adaptando-o e revitalizando. A proposta apresentada elegeu este imóvel como espaço de desenvolvimento da grande sala experimental; contudo, a dimensão do mesmo permitia que este recebesse parte do programa da escola e, deste modo, também o programa administrativo [direcção e secretariado], juntamente com os arquivos, bibliotecas e espaços expositivos que foram anexados ao grande auditório – conferindo um maior grau de utilidade a este edifício de grandes dimensões. A visita ao sítio permitiu compreender melhor a relação deste edifício com a sua envolvente e rapidamente nos apercebemos que, das quatro fachadas, três foram construídas na mesma época – norte, poente e sul – e que a fachada nascente voltada para o bairro da Bica resulta de um conjunto de alterações em diferentes épocas que não mantiveram qualquer continuidade ou unidade. Quem observa este edifício a partir Diogo Filipe Dias Marques Lopes 198 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares da Bica constata como esta realidade “formal”, a de um corpo aparentemente inacabado. O nosso projecto procurou resolver parte deste problema ao demolir a fachada com o objectivo de reerguer este alçado praticamente de raiz. A ideia de uma grande sala – auditório no programa procura evocar a questão da dimensão e da expressão de volume. Assim, a estratégia deu consequência à ideia de um grande corpo que intersecta o edifício existente, recriando esta fachada descaracterizada. Este projecto ambicionou a fusão entre os referidos corpos – como uma caixa intersectando outra, cada uma com características e naturezas diferentes, que se estruturam e organizam. O palácio com fachadas de alvenaria e vãos de cantaria de pedra une-se ao edifício de estrutura metálica e planos de vidro, assumindo-se como dois corpos na procura da unidade das suas naturezas opostas. A grande fachada relaciona-se directamente com o largo de Santa Catarina; no entanto a organização interior procurou contrariar essa situação ao direccionar o grande auditório para o [vale] da Bica. O palco e o cenário do grande volume é a cidade e o casario que desce pela encosta. O novo corpo procura deste modo tirar partido de um contexto que até então tinha sido negado ou esquecido, reavivando essa relação do edifício com a envolvente mais distante. No extremo ocidental do miradouro encontra-se um edifício de três pisos – estando o piso térreo parcialmente enterrado devido à diferença de cotas da Rua de Santa Catarina – que dá acesso ao largo de Santa Catarina e ao miradouro. Curiosamente entre este edifício [de cor bordeaux] e o miradouro encontra-se uma pequena casa em ruína dentro de um pátio – localizado a uma cota mais baixa, quer em relação à rua quer ao miradouro. Aquele vazio pareceu-nos importante e simultaneamente vantajoso, condicionando o modo como foi feita a implantação do volume da escola. O referido edifício bordeaux de três pisos apresentava fortes sinais de degradação e abandono no piso térreo [aparentemente autónomo, visto ter acesso independente], parcialmente enterrado, em oposição aos dois pisos superiores – recentemente recuperados. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 199 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares O alinhamento deste edifício com o miradouro levou-nos a considerar uma estratégia de reaproveitamento do piso térreo para iniciar a nova construção, introduzindo um corpo novo de três pisos, sendo o piso subterrâneo “comum” com o edifício vizinho. Os dois edifícios conectam-se pelo piso subterrâneo. Este novo corpo encerra o extremo ocidental do miradouro, reforçando a relação visual com o Tejo. Esta intervenção procura ser quase cirúrgica e o impacto visual muito reduzido visto que, dos três pisos, apenas um se encontraria completamente visível e os outros dois, parcial ou completamente enterrados, devido à diferença de cotas da rua. Na proposta existem três acessos à escola: um pela cota mais baixa, ao nível do piso requalificado do edifício bordeaux, outro sensivelmente a meio da rua – abrindo um vão no corpo principal proposto –, permitindo o acesso directo ao miradouro e à entrada principal da escola, e finalmente no topo da rua – acedendo a uma plataforma sobre o miradouro, permitindo o contacto visual com a cota mais baixa e com destaque para a escultura do Adamastor. Este último acesso constitui-se como parte de um percurso que se inicia na rampa que segue paralela ao corpo da escola, terminando na plataforma do miradouro, e permitindo a descoberta da entrada coberta com duplo pé-direito. A entrada principal da escola permite descobrir a verdadeira dimensão interior do edifício que procura, simultaneamente, manter-se discreta. A fachada de betão dá lugar à fachada de vidro, a entrada coberta com duplo pé-direito mantém a configuração rectangular, subtraindo parte do espaço interior de modo a criar maior continuidade entre os espaços interior e exterior. Ao entrarmos, a escada ocupa uma parte considerável do espaço principal, unindo os três pisos num núcleo/percurso que envolve os acessos horizontais e os verticais. As salas de aulas estão organizadas em banda e possuem uma enorme versatilidade na sua utilização – através das portas que possibilitam abrir um vão com diferentes dimensões. O interior é iluminado indirectamente, evitando o sobreaquecimento, através de um plano horizontal de vidro que ilumina os diferentes espaços e reflectindo a luz desde a cobertura até aos pisos subterrâneos. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 200 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 114 – Ortofotomapa com a localização das intervenções, S. Catarina e Boavista. (Ilustração nossa, 2013). Ilustração 115 – Planta de localização das intervenções. Miradouro de S. Catarina. (Ilustração nossa, 2014). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 201 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 116 – Diagramas de estudo da composição e construção da bancada exterior. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 202 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 117 – Plantas do edifício da escolar de música. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 203 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 118 – Alçados e cortes do edifício da escolar de música. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 204 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 119 – Plantas dos pisos -1 e -2 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 205 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 120 – Plantas dos pisos 1 e 0 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 206 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 121 – Plantas dos pisos 3 e 4 do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 207 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 122 – Alçados do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 208 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Ilustração 123 – Corte do edifício do auditório. (Ilustração nossa, 2013). Diogo Filipe Dias Marques Lopes 209 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes 210 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta dissertação de mestrado integrado em Arquitectura pretende “encerrar” uma parte do percurso de formação de um estudante de arquitectura; contudo, e sendo este processo contínuo, tal como qualquer processo de investigação e de aprendizagem, actualiza-se e complementa-se constantemente, desenvolvendo e levantando novas questões. O interesse pessoal que depositámos ao longo da elaboração deste trabalho permitiu que esta dissertação ultrapassasse os nossos objectivos e expectativas iniciais, estímulo esse que se mantém através das inúmeras questões e ideias que esta jornada originou. O estudo da frente ribeirinha e do confronto de qualquer cidade com um limite é sempre um exercício de descoberta que comprova a astúcia e o engenho da humanidade, bem como o uso da criatividade como uma das ferramentas de adaptação aos diferentes territórios, tirando sempre proveito das pré-existências para criar uma nova “existência” – lugar. São estes processos, tantas vezes incutidos durante a nossa formação por aqueles que nos instruem que nos cativam. A cidade é o grande palco da arquitectura e o grande espaço do quotidiano; ao compreender estas realidades foi possível conhecermos um pouco mais de nós – em particular das nossas origens civilizacionais e da construção dos lugares. Cada cidade é autentica, única, e as possibilidades de estudo são propocionais à sua diversidade cultural. Uma das principais conclusões que retiramos deste estudo é que dificilmente se poderá generalizar a ideia de uma cidade, ou mesmo de uma ínfima parte dela. Diogo Filipe Dias Marques Lopes 211 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares Diogo Filipe Dias Marques Lopes 212 A construção da frente ribeirinha de Lisboa: dois casos exemplares REFERÊNCIAS AFACONSULT (2013) – Sede da EDP [Em linha]. Vila Nova de Gaia : Afaconsult. [Consult. 18 Nov. 2014]. Disponível em WWW: <URLhttp://www.afaconsult.com/portfolio/298011/92/sede-da-edp>. ALEXANDER, Christopher (1966) – A city is not a tree [Em linha]. [S.l. : s.n.]. Reprint from the magazine Design, London: Council of Industrial Design, n.º 206, 1966. [Consult. 19 Out. 2014]. Disponível em WWW:<URL: http://www.best.polimi.it/fileadmin/docenti/TEPAC/2012/FONTANA/A_City_is_not_a_Tr ee.pdf>. AMADOR, Ana Sofia – Desenho do projecto [Mensagem em linha] para Diogo Lopes. 1 Julho 2014. [1 Jul. 2014]. Comunicação pessoal. Memórias descritivas da nova sede da EDP cedidas pelo atelier ARX Portugal. ARX PORTUGAL (2010) – ARX Portugal. 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