os venenos raciais nas páginas do diário dos campos gerais, 1907

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Anais Semana de Geografia. Volume 1, Número 1. Ponta Grossa: UEPG, 2015. ISSN 2317-9759
OS VENENOS RACIAIS NAS PÁGINAS DO DIÁRIO DOS CAMPOS
GERAIS, 1907-1921
HOLOWATE, Isaias1
Resumo
A eugenia surgiu a partir das teorias do antropólogo inglês Francis Galton com o objetivo do
aprimoramento da espécie humana. Essa ciência tinha como pressuposto principal que o
aprimoramento racial ocorreria pela seleção da hereditariedade. Contudo, seus princípios
foram ressignificados ao serem importados por outras culturas do mundo, e no Brasil, a
eugenia, foi associada aos discursos de racismo e as teorias lamarckistas presentes na
sociedade. Desse amálgama, produziu-se uma eugenia neolamarckista, pautada em um
determinismo geográfico e social nas questão do aprimoramento da raça. Na cidade de Ponta
Grossa, onde a sociedade havia recentemente saído de um regime escravagista, e mantinha
contato com as teorias racistas, a questão eugenista, foi tema de diversos debates nas páginas
do periódico Diário dos Campos Gerais. Na publicação, diversos profissionais adeptos dos
princípios eugenistas defenderam a hipótese de que poderiam eugenizar a população se
combatessem a existência de uma série de males, conhecidos como os venenos raciais. Neste
trabalho, fazemos uma análise das representações sobre os venenos raciais nas páginas do
Diário dos Campos Gerais entre os anos de 1907 e 1921, com base na teoria das
representações, de Roger Chartier.
Palavras-chave: Cultura. Diário dos Campos Gerais. Eugenia.
Introdução
A população de Ponta Grossa era, no início do século XX, multicultural. A cidade
havia surgido como um ponto de apoio na rota dos tropeiros, e recebera no decrrer dos século
XVIII e XIX, imigrantes paulistas, colonizadores portugueses, imigrantes europeus e
asiáticos, além de diversas culturas africanas trazidas à força para a região. A sociedade era
até recentemente, escravagista. A diversidade populacional possibilitava a existência de uma
diversidade social e cultural no ambiente local.
Contudo, essa multiculturalidade, também era pensada por alguns grupos sociais, notadamente a recém ascendida burguesia - como um dos responsáveis pela existência de
diverssos problemas na sociedade ponta-grossense, que causavam o atraso do progresso na
região. Essa diversidade racial na sociedade era pensada como uma das responsáveis pela
produção de degeneração da população nacional e local.
A eugenia em Ponta Grossa
No início do século XX, os princípios eugenistas, surgidos a partir da teoria do
antropólogo inglês Francis Galton, e que buscavam o aprimoramento da espécie humana
através do estímulo à reprodução de raças superiores e desestímulo às raças inferiores foram
importados por diversas regiões do mundo.
1
Acadêmico do 4º ano do curso de Licenciatura em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa e
acadêmico – voluntário do Programa Institucional de Iniciação à docência (PIBID – História UEPG 2014-2015).
Email: [email protected].
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Ao serem importados para a America Latina, os princípios eugenistas foram
ressignificados, de acordo com a cultura ao qual entravam em contato. “Os movimentos
eugênicos da América Latina mostraram variações sobre (...) temas de raça, nação e
degeneração. São de interesse comparativo porque demonstram as tensões entre as dimensões
internacional e local da “ciência do aprimorameno racial”.(STEPAN, 2005: 152) No Brasil,
essas teorias buscavam explicar o atraso da sociedade brasileira em relação às “nações
civilizadas” européias.
Ao ser apropriada por grupos da sociedade ponta-grossense, a teoria eugenista foi
ressignificada, buscando atender às questões de aprimoramento do meio natural e social
através da preocupação com relação a uma série de fatores que determinariam a condição da
raça. Sendo o brasileiro uma nação em formação, a possibilidade de aprimoramento racial
dependeria da eliminação de entraves existententes que causavam a degeneração. Esses
entraves, era conhecidos como os venenos raciais.
Eugenia à brasileira: a eugenia neolamarckista nas páginas do Diário dos Campos Gerais
O jornal Diário dos Campos Gerais, possuiu, entre os anos de 1907 e 1921, dezenas de
colaboradores. Alguns deles, se mantiveram como colaboradores fixos por um período de
tempo maior, enquanto que outros assinaram apenas algumas edições.
Nesse momento, a publicação esteve sob a ascendência do redator e depois
proprietário do periódico, Hugo dos Reis, que foi um dos principais responsáveis pelos
estabelecimento e consolidação da imprensa em Ponta Grossa. Uma das mais importantes
características de sua atuação é a liberalidade que conferiu às páginass do jornal, permitindo a
existência de diversos discursos, muitas vezes até mesmo antagônicos ao qual ele pensava.
Graças a essa liberalidade, podemos levantar e analisar uma diversidade de representações de
eugenia e a presença de diversos discursos e posicionamentos sobre os venenos raciais. A
multiplicidade de representações dos venenos raciais nos permite um aprofundamento na
análise dessas representações na sociedade de Ponta Grossa.
A forma com que cada um dos colaboradores do Diário dos Campos, concebia a
evolução racial é divergente de acordo com suas interações sociais, seu momento histórico e
suas condições culturais, pois “As representaçõs do mundo social assim construídas, embora
aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam. (CHARTIER, 1990:17) A leitura que cada um deles fez da
teoria eugenista é diversa, pois os processos de construção de sentidos são determinados pelo
espaço/tempo em que são produzidos e as significações “múltiplas e móveis” de um
determinado objeto dependem das formas com que este é recebido pelas pessoas com o qual
este elemento cultural entra em contato. (CHARTIER, 1991:178)
Nas páginas do jornal, diversos personagens compactuam com os princípios da
existência de uma população degenerada no país, como é o exemplo de J. Eleutério da Luz ao
afirmar que “o brasileiro é por definição desobediente às leis, incapaz de pensar no melhor da
sociedade”.2
Já Junqueira e Guerra defende que o processo de evolução da raça era dinâmico, sendo
que “uma raça qualquer [...] não pode estacionar: ou evolue ou degenera.3 As alterações
eugenicas ocorreriam por através da influência do meio na sociedade e para que houvesse o
melhoramento da população, seria necessário, que o meio social em que esses indivíduos
2
LUZ. J. Eleutério da. Em pról da riqueza da pátria. Diário dos Campos Gerais. 2 de setembro de 1919, p. 1.
3
GUERRA, Junqueira e .. Enscenação Superflua: Besoiro escrevinhador. Diário dos Campos Gerais. 17 de
abril de 1916, p. 1.
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habitavam recebessem a interferência adequada. A não atuação no meio provocaria o aumento
dos males que causariam a degeneração da população.
A análise das fontes, permite-nos apontar que as condições culturais da sociedade
ponta-grossense produziram a ocorrência de um amalgamento entre princípios de eugenia
mendelistas e neolamarckistas, havendo inclusive uma preponderância de princípios
neolamarckistas, pois não agradava aos pensadores brasileiros – e ponta-grossenses - uma
teoria eugenista propriamente dura, pautada na hereditariedade biológica das condições
superiores da raça, pois isso impedia a ação dos seres humanos para o melhoramento racial.
Nisso o neolamarckismo era bem mais flexível, pois ações do meio influiriam no
melhoramento da raça. (STEPAN, 2005:82)
O jogo, a prostituição, as doenças e a vagabundagem: venenos raciais no discurso do
Diário dos Campos
Segundo os cientistas e médicos do periodo, os venenos raciais eram uma série de
males que ameaçavam a marcha da raça brasileira rumo à perfectibilidade. Compunha-se dos
elementos no meio que prejudicavam o desenvovlvimento da raça, tais como como o tifo, a
febre amarela e a sífilis, a má qualidade da água, e do ar, a protituição, o alcoolismo, os jogos
de azar, e a “vagabundagem”.
Dos diversos males que caracterizavam a degeneração, a existência de prostíbulos que
atuavam a luz do dia era um dos mais atacados pelos colaboradores, pois, a prostituição
considerada, um dos maiores problemas da cidade. A atuação das casas de prostituição é
tema deste editorial da publicação:
A dissolução dos costumes que anda a par e passo do progresso e da riqueza publica,
vae ganhando Ponta Grossa.Não poucas mulheres têm sido arrastadas á prostituição,
seduzidas pelos palavreados insinuantes dos cafténs que as levam para a abjeção do
lupanar, em que impera um vício baixo, sujo, repugnantes, animalizado,
4
bestialmente estúpido.
A existência de “duas casas de perdição bem no centro de Ponta Grossa” representava
uma ameaça aos “bons costumes” da população morigerada da cidade. A prostituição era
considerada como a destruidora das famílias e do futuro da sociedade. Segundo os
colaboradores, a melhoria da raça dependeria da eliminação desses venenos raciais. 5
Outro problema era a sifilis, que é uma doença sexualmente transmissível e infecciosa.
Naquele período, a sífilis era um mal endêmico na cidade e constantemente citado pelas
páginas do periódico. Contra a sifilis, R.F. defende a regulamentação da prostituição, com
profissionais cadastradas e tratadas, pois segundo ele, 90% das prostitutas ponta-grossenses
possuíam a doença, o que representava um perigo para os patrícios da cidade.
A defesa da regulamentação da prostitução por R.F. demonstra a chegada das
transformações nos princípios da medicina no século XIX e XX, 6 pois propõe o combate
contra a sífilis através da regulamentação da prostituição, e não pela segregação, como
costumava aparecer nos discursos anteriores à ascensão da Ciência médica. 7
4
O caftismo em Ponta Grossa. Diário dos Campos Gerais. 7 de janeiro de 1913, p. 1.
5
O caftismo em Ponta Grossa. Diário dos Campos Gerais. 7 de janeiro de 1913, p. 1.
6
F. R. O flagello moderno. Diário dos Campos Gerais. 18 de setembro de 1920, p. 1.
7
Foucault em O nascimento da medicina social, presente no livro Microfísica do poder, discute sobre o
nascimento da medicina moderna, apontando com a ascensão da medicina o empoderamento gradual de práticas
médicas de controle em detrimento das práticas de segregação, comuns na Idade Média anteriores à peste negra.
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Os venenos raciais também são exemplificados como causadores da “gangrena
social”, no editorial “Não nos illudamos” assinado por M. B.:
Não há infelizmente, quem possa ocultar e negar os desregamentos que campeiam
em nosso meio. A existência de numerosos bordéis com a sua cohorte de cafténs; a
chusma de salteadores à bolsa alheia, por meio de jogatinnas desenfreadas em todos
os recantos da cidade; a reproducção dos roubos, das violências, dos estupros, das
offensas phísicas, dos homicidios,etc tudo isso ostentado cynicamente com
desrespeito às leis, à moral, à ordem – impressiona mal, muito mal a quem dedica
uma parcela de interesse à comunhão social, um pouco de amor a esta terra
hospitaleira e boa. Não há dia que não appareçam nas ruas da cidade individuos sem
a mais leve noção de justiça, dos deveres como membros da sociedade civillizada,
da solidariedade coletiva, individuos que vibram em possuir instinctos mais cruéis e
ferinos que as próprias feras nas brenhas. Isto, é o simptoma mais frisante de
adiantada gangrena social.8
Também o alcoolismo era encarado como um perigoso vício que conduzia à
degeneração, pois acreditava-se que isso passaria condições degenerativas para as futuras
gerações degradando a raça. Além disso, o álcool era considerado a porta de entrada para os
outros venenos raciais, pois este levaria ao jogo, às doenças, e a destruição da família. Numa
sociedade baseado nos valores de progresso, a ênfase na importância do trabalho fazia com
que o oposto dele, a vagabundagem ou não-trabalho, fose execredo por alguns personagens.
O artigo “a torto e a direito” de 1915, asssinado com o pseudônimo de João das
Arábias ilustra com um exemplo de uma situação hipotética o efeito da existência desse vício
que “modificára rapidamente os cérebros com seu poder extraordinário de perturbação”. 9
Cinco anos depois, em 1919, o problema era novamente citado, desta vez assinado por
M.B., apontando que:
Realmente um dos maiores flagellos da actualidade, de funestíssimas consequencias
para a humanidade é o uso immoderado das bebidas alcoolicas, vício detestável que
produz seus estragos em todas as classes sociaes, ao qual todos, a imprensa, os
chefes de família, os educadores, os denos de estabelecimentos industriais tem o
dever de declarar guerra implacável, sem tréguas.10
Outro problema era o jogo do bicho, considerado um “vícios dos mais perniciosos”
na cidade. Julio Xavier aponta que “O jogo do bicho é sempre pernicioso. Sempre fatal” e se
pergunta “Quantas fortunas se têm desfeito, deixando famílias interas na miseria por causa
deste ignóbil vício?”11
Citando os problemas de involução da sociedade, Jaime Ballão Junior afirma que a
degeneração social em Ponta Grossa era um fato consumado, devido às más condições a que a
sociedade vivia:
Na mesma obra defende também que a medicina, deixa de ser uma atividade voltada para o indivíduo, para se
voltar para o grupo social, tornando-se de uma atividade visando o coletivo. FOUCAULT, Michel. O nascimento
da medicina social. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro; Editora: Edições Graal; 4ºed. 1984, p. 79-98.
8
B. M. Não nos illudamos. Diário dos Campos Gerais. 10 de janeiro de 1919, p. 1.
9
ARÁBIAS, João das. A torto e a direito. Diário dos Campos Gerais. 10 de fevereirode 1914, p. 1.
10
B. M.. Alcoolismo. Diário dos Campos Gerais. 19 de abril de 1919, p. 1.
11
XAVIER, Júlio. O jogo do bicho. Diário dos Campos Gerais. 10 de fevereiro de 1915, p. 1.
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Não há mais dúvida a decadência moral, dissolução dos sentimentos, e, o forte
predominio dos instinctos sobre a razão, marcavam, a ferro e fogo, o século da
eletricidade. Voltamos a presenciar, absortos, magoados, sob a pressão de uma
desespero sem fim, e de uma tortura requintada, o espetáculo da decomposição
social, apanágio das raças vencidas pela sensualidade e pelo ardor.12
Considerações Finais
Portanto, as páginas do Diário dos campos Gerais foram um palco privilegiado para
os debates da questão do aprimoramento racial, onde diversos de seus colaboradores
defenderam uma eugenia neolamarckista e o combate aos venenos raciais. O periódico
buscava cumprir sua função como ferramenta para o aprimoramento moral da população
ponta-grossense, pois como afirma M.B., a função de um periódico seria “combater pelo
direito e pela razão, depositando no coração do povo o germen fecundo de preciosos frutos”. 13
A atuação dos colaboradores da publicação na promulgação de princípios voltados
para a divulgação de ideias de eugenia predominantemente neolamarckistas visando o
combate aos venenos raciais, num momento em que a cidade se urbanizava e se estruturava
caracteriza a atividade do periódico nesses primeiros anos. A defesa de princípios eugenistas
define a atuação desses primeiros anos do jornal, buscando pela propagação de ideias de
aprimoramento moral e racial, inibir a proliferação dos venenos raciais, das doenças e do
“atraso civilizatório” da população ponta-grossense, visando com isso a formação de futuras
gerações racialmente e moralmente superiores.
Fontes
Jornal Diário dos Campos Gerais, 1907 -1921.
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa:
DIFEL, 1990.
______ O mundo como representação. Estudos Avançados, vol.5, nr.11, jan/abr. 1991, p.
173-191.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do poder. Rio de
Janeiro; Editora: Edições Graal; 4ºed. 1984, p. 79-98.
STEPAN, N. L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
12
13
BALLÃO JUNIOR, Jaime. Pão e cyrco. Diário dos Campos Gerais. 6 de março de 1914, p. 1.
B. M. Não nos illudamos. Diário dos Campos Gerais. 10 de janeiro de 1919, p. 1.
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