O valor do silêncio Etimologicamente o termo, silêncio vem de silentium, de silens (silere) que significa estar em repouso, tranquilidade, descanso. No pensamento mítico, o silêncio é identificado com o caos; é anti‐história. Antes da criação existia o caos, o silêncio reinava, ou seja, o repouso, o descanso, a calmaria. Podemos perceber que no deserto reino o silêncio, entendido como ausência de barulho humano. Há somente o ruido do vento na areia. Portanto, o tempo é silencioso, abstracto e calmo. O ruído está ligado à presença humana e relaciona‐se com o movimento. O curso natural dos eventos e ocorrências no tempo faz ruído. O ruído subtrai o silêncio, desperta os ouvidos para coisas agradáveis: sons melodiosos. Mas também para barulhos brutais que cansam os ouvidos da alma, que atordoam os sentidos mais profundos, os quais almejam a calmaria e a meditação. Os ruídos são capazes de desorientar o homem e conduzi‐lo ao vazio. O barulho esvazia enquanto o silêncio preenche. O fato é que uma “carroça vazia faz muito barulho.” Vivemos no mundo do barulho. As pessoas não gostam de fazer silêncio, onde está devem estar fazendo barulho ou escutando ruídos ensurdecedores. A razão é que as pessoas não se suportam a si mesmas. E transformam a vida numa agitação frenética sem sentido e sem meios para o encontro consigo, com os outros, sobretudo com Deus. As pessoas falam umas com as outras, mas não se encontram, não se percebem no encontro e nem são capazes de perceber o outro, pois quando encontram alguém, não encontra o outro, mas a si mesmas no outro. Em grande parte o encontro não passa de projeção de suas vontades e necessidades. O silêncio não é sinônimo da presença de uma ausência mas da denominação da realidade. Do encontro consigo, com Deus e com o outro. O grande silêncio se dará com a morte, que se encontra prefigurada no dormir cada noite. Eis o grande silêncio no qual deparamos com algo semelhante ao momento em que nada existia da criação. Enquanto domimos, “nada existe” para nós, uma vez que não estamos conscientes dos movimentos e ruídos ao nosso redor e dos movimentos internos naturais. Com a afirmação “até morrermos existirão sons”, John Cage explicitamente relaciona o silêncio com a morte. O silêncio é um mistério, o mistério de um Deus escondido e ao mesmo tempo revelador. Acredito que ao encontrarmos com Ele, no momento da partida deste mundo, nos surpreenderemos diante do “silencioso mistério”, sobre o qual não podemos dizer nada, a não ser se extasiar‐se, admirar‐se, ficar absorto envolvido em Sua glória. Talvez nesse momento possamos compreender o silêncio, pensar o silêncio, mas a experiência do silêncio absoluto permanece uma aporia para nós. Morte e silêncio, ligados através da mesma experiência inexequível. Um silêncio que não é ausência, mas presença do mistério. Que não é vazio, mas plenitude de vida. Não entristece, mas alegra e satisfaz o “ser”. O silêncio já não causa mais pavor e medo, porque não está mais ligado à experiência da morte, mas da vida. Como se tem medo e nega a morte, a humanidade tem medo e nega o silêncio ao longo da existência terrena. Porém, deveria ser o contrário, jamais condicionar o silêncio às estreturas de morte e dor, mas de plenitude de vida e alegria. Normalmente a sociedade relaciona o silêncio à dor e ao sofrimento: ex. Quando morre alguém, há muito silêncio, quando alguém está sofrendo, comumente fica em silêncio, mas este silêncio não deveria estar ligado àquilo que é ruim, ao negativo, à morte enquanto morte, mas à vida, ao encontro com o outro. Contudo, aquele silêncio significa capacidade de assimilação de uma situação difícil, que quer conduzir a pessoa a gerar vida em plenitude. Encontrar o trágico e superar. Para isto é preciso buscar força na graça e na luz do Espírito Santo. Quando nos deixamos guiar pelo mais antigo livro de oração, os Salmos bíblicos, nós encontramos aí duas formas principais de oração: por um lado o lamento e o pedido de socorro, por outro o agradecimento e o louvor. De forma mais oculta, há um terceiro tipo de oração, sem súplicas nem louvor explícito. O Salmo 131, por exemplo, não é senão calma e confiança: «Estou sossegado e tranquilo… Espera no Senhor, desde agora e para sempre!» Por vezes a oração cala‐se, pois uma comunhão tranquila com Deus pode abster‐se de palavras. «Estou sossegado e tranquilo, como uma criança saciada ao colo da mãe; a minha alma é como uma criança saciada.» Como uma criança saciada que parou de gritar, junto da sua mãe, assim pode estar a minha alma na presença de Deus. Então a oração não precisa de palavras, nem mesmo de reflexões. Toda pessoa necessidade de silêncio, de estar só. O Senhor nos chama a esse silêncio, para encontrar com o Pai em oração. Vinde a uma lugar a parte, para descansar, para rezar, para contemplar. Mesmo para se autocompreender. Os padres do deserto não se cansam de ensinar que sem o silêncio o homem de Deus não pode conhecer a si e nem encontrar a Deus. Ele fala e se manifesta no silêncio, na brisa suave e mansa de Elias no Monte Carmelo. “Não há arauto mais perfeito da alegria do que o silêncio” dizia Shakespeare. Quem não sabe silenciar não tem alegria, mas momentos de risadas. Não pode ser verdadeiramente feliz, mas ter episódios de gargalhadas. A alegria da alma brota de um coração capaz de conviver consigo, com Deus e com o outro, numa relação de amizade, que muitas vezes requer profundos momentos, ou mesmo tempo longos de silêncio. Não é o falar que produz amizade, mas o calar. Quando eu era adolescente, encontrei na parede da sala da casa de minha irmã mais velha, um azulejo com o seguinte dizer: “Pensar para acertar, calar para resistir e agir para vencer”. Esta frase marcou profundamente a minha alma, que até hoje me lembro com detalhes de como estava o azulejo na parede. Portanto, é preciso buscar, desejar e amar o silêncio. Pois estou certo de que sem esse instrumento tão necessário não podemos ser padres. Um seminarista, um sacerdote que não presa o silêncio vive a dolorosa experiência do vazio existencial. Perde o sentido do sacerdócio e do ministério junto ao povo de Deus. A pastoral não passa de socialismo ou assistencialismo sombrio e cinzento para ele. Sem o balsamo da oração silenciosa, do coração voltado para o mistério da fé, e do olhar em direção ao sacrário e muitas vezes votados ao crucificado não se pode superar as desventuras que o padre, que não deixa de ser homem, com a imposição das mãos do bispo, enfrenta cada dia como arroz com feijão do brasileiro. Nunca ouvi dizer que alguém se tornou santo sem sofrimentos, sem cruzes. Mais que ninguém o sacerdote dever estar preparado para elas. E, portanto, só podemos carregar nossas cruzes com alegria e generosidade se formos capazes de nos colocar no coração do Cristo Crucificado. E como Madre Tereza de Calcutá: “dar um grande sorriso”. Somente com oras a fio na presença do Senhor, o padre pode em meios as adversidades do cotidiano encontrar sentido para continuar a vida com alegria e entusiasmo. Busquemos o silêncio, amemos o tempo de retiro que nos é proposto. Desejemos encontrar e viver com o Senhor, principalmente nesses tempos fortes que nos proporcionar momentos de graça. Exercitemos no silêncio interior. Como chegar ao silêncio interior? Por vezes calamo‐nos, mas, por dentro, discutimos muito, confrontando‐nos com interlocutores imaginários ou lutando connosco mesmos. Manter a sua alma em paz pressupõe uma espécie de simplicidade: «Já não corro atrás de grandezas, ou de coisas fora do meu alcance.» Fazer silêncio é reconhecer que as minhas inquietações não têm muito poder. Fazer silêncio é confiar a Deus o que está fora do meu alcance e das minhas capacidades. Um momento de silêncio, mesmo muito breve, é como um repouso sabático, uma santa pausa, uma trégua da inquietação. A agitação dos nossos pensamentos pode ser comparada com a tempestade que sacudiu o barco dos discípulos, no Mar da Galileia, enquanto Jesus dormia. Também nos acontece estarmos perdidos, angustiados, incapazes de nos apaziguarmos a nós mesmos. Mas Cristo também é capaz de vir em nosso auxílio. Da mesma forma que falou imperiosamente ao vento e ao mar e que «se fez grande calma», ele pode igualmente acalmar o nosso coração quando está agitado pelo medo e pelas inquietações (cf. Marcos 4). Fazendo silêncio, pomos a nossa esperança em Deus. O salmo 65 sugere que o silêncio é mesmo uma forma de louvor. Nós lemos habitualmente o primeiro verso do desse Salmo: « A ti, ó Deus, é devido o louvor ». Esta tradução segue a versão grega, mas na verdade o texto hebreu diz: «Para Vós, ó Deus, o silêncio é louvor». Quando cessam as palavras e os pensamentos, Deus é louvado no enlevo silencioso e na admiração. Quando não há ruído, o silêncio se torna o grande ato de louvor ao Senhor. Quando já não conseguimos pronunciar palavra de louvor ou clamor a Deus por inúmeras razões, o olhar terno e silencioso se torna prece eficaz do filho dirigida ao bom Pai. Pe. Paulo Batista Borges Seminário Arquidiocesano de Brasília – DF