Prezado (a) Senhor(a), Com base nas informações fornecidas pela Gerência de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos GSTCO, área técnica afeta ao assunto questionado, informamos que o tratamento intitulado como “vacinas do fator imunológico”, ou imunização com linfócitos paternos é considerado uma terapia com células humanas ainda em fase de experimentação, sem dados que comprovem sua segurança e eficácia devendo ser disponibilizado em processos controlados de pesquisa clínica. O tipo de processamento celular que propõe o referido procedimento deverá ser enquadrado no disposto na RDC n° 09/2011 que dispõe sobre o funcionamento dos Centros de Tecnologia Celular (CTC) e estabelece os critérios técnicosanitários mínimos para o funcionamento de estabelecimentos que trabalham com células humanas e seus derivados. A RDC n° 09/2011 supracitada define os padrões mínimos para a coleta, o processamento e a disponibilização das células humanas, de forma a assegurar a qualidade e a segurança do material e minimizar os riscos para à saúde da população. O referido regulamento técnico foi elaborado pela Anvisa, em conjunto com grupo de trabalho com representatividade de especialistas brasileiros na área de pesquisa e terapia com células humanas. Em seu art. 7º, a RDC define que células e seus derivados só poderão ser disponibilizados pelos CTCs para procedimentos terapêuticos após aprovação pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e como objeto de pesquisas clínicas após a aprovação pelo sistema CEP/CONEP - instituição responsável pela aprovação e avaliação ética das pesquisas envolvendo seres humanos. Além disso, a RDC define condições mínimas para o processamento das células com qualidade e segurança, como a realização de triagem laboratorial de marcadores para doenças infecciosas transmissíveis, como HIV, Hepatites B e C, HTLV, entre outros. Outro requisito exigido pela normativa é o processamento das amostras em ambiente controlado (ambiente assépticocondição de classificação ambiental), realização de testes de controle de qualidade (viabilidade das células, controle microbiológico e outros), recursos humanos mínimos e qualificados, validação de processos e controle de equipamentos, dentre outros inúmeros requisitos de controle, necessários para a qualidade e segurança das células e derivados disponibilizados. Para o cumprimento do disposto na RDC n° 09/2011, a Anvisa consultou o Conselho Federal de Medicina, em dois momentos – em 2006 e 2015, por meio de ofício intitulado ao seu presidente sobre posicionamento da instituição referente ao tratamento imunológico para aborto recorrente em reprodução humana assistida1, 2. A resposta do CFM, tanto em 2006 como em 2015 foi na direção de que estes procedimentos só poderiam ser realizados de forma experimental em contextos de pesquisas. Com relação à menção descrita no Ofício n° 8376/2016 – Extrajudicial PR-SP – 00040180/2016 que “há notícias de que o posicionamento do CFM é provisório”, informamos que até o momento a Anvisa não foi notificada sobre o fato e os posicionamentos emitidos oficialmente em 2006 e reforçado em 2015 pelo CFM definem a posição do Órgão frente a não recomendação dessas modalidades de tratamento imunológicos em tratamento médico pela falta de evidências suficientes para comprovar o decréscimo efetivo das perdas gestacionais recorrentes. Cabe ressaltar que em 2012, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CRM/SP) também emitiu parecer corroborando com o supracitado entendimento: “após análise e discussão do assunto em reunião da Câmara Técnica de Reprodução Humana e Técnicas de Reprodução Assistida, realizada em 02.03.2012, que o tratamento conhecido como imunização de linfócitos paternos, ou vacinas com linfócitos, não apresenta comprovação científica nos vários consensos internacionais sobre o tema. Desta forma, deve ser abordado como método experimental, devendo ter aprovação prévia em Comitê de Ética em Pesquisa/CONEP e ter Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)”3. O estudo REMIS, um estudo duplo-cego, multicêntrico, ensaio clínico randomizado desenhado para avaliar a eficácia da imunização com leucócitos paternos na prevenção de abortos espontâneos em mulheres que tiveram três ou mais perdas de gravidez inexplicáveis, publicado por Ober et al. em 1999, na The Lancet, mostrou que o uso da imunização com linfócitos paternos não melhorou as taxas de gravidez em pacientes com diagnóstico de fator aloimune, e as pacientes do Grupo Controle tiveram índices de gravidez maiores5. Em revisão realizada em 20076 e posteriormente em 20147, pela Cochrane Library, com o objetivo de avaliar os diversos estudos publicados a respeito dos diferentes tipos de abortamentos espontâneos recorrentes de causa aloimune e os tipos de tratamento que poderiam levar a uma melhora nas taxas de gravidez com sucesso, pôde-se concluir que nenhum dos tratamentos oferecidos até o momento do estudo promoveu aumento significativo da taxa de nascidos vivos. Os resultados dos estudos sugerem que procedimentos não deveriam ser oferecidos a pacientes e que nem a imunização com leucócitos paternos nem o tratamento com imunoglobulina intravenosa (IVIG) melhoraram a taxa de nascidos vivos em mulheres com abortos recorrentes inexplicados. Além disso, segundo os estudos ambos tratamentos têm potenciais efeitos secundários graves devendo as mulheres ser poupadas da dor e do sofrimento associado com falsa expectativa de que um tratamento ineficaz8. Em maio de 2015, a Organização Mundial de Saúde – OMS recomendou em sua Biblioteca de Saúde Reprodutiva que para os casais com histórico de abortamento inexplicável, devido aos resultados de ineficácia dos estudos randomizados para tratamento com linfócitos paternos, o aconselhamento e o apoio ainda continuam sendo o mais eficiente e seguro9. Destaca-se que células humanas, obtidas de sangue alogênico (sangue paterno) injetadas em mulheres caso não sejam processadas com estrito controle e manipulação em condições de Boas Práticas, podem expor às pacientes a sérios riscos de contaminação de origem viral, bacteriana ou fúngica10. O uso dessas técnicas de imunização possui os mesmos riscos de qualquer outro tipo de transfusão sanguínea, assim como a possibilidade de transmissão de vírus como o da imunodeficiência humana (HIV), Epstein-Barr, hepatites e citomegalovírus. Reações são incomuns, mas podem incluir dormência e eritema no local da injeção, além da sensibilização de células sanguíneas e doenças autoimunes10. Bux et al. mostraram, ainda, a possibilidade de aloimunização materna contra granulócitos, aumentando o risco de ocorrência de neutropenia autoimune neonatal 11. Considera-se ainda que, após algumas ações de fiscalização sanitária em centros brasileiros que ofereciam a referida terapia, foi verificada condições para processamento das células totalmente em desacordo com as Boas Práticas e as condições técnico-sanitárias mínimas determinadas pela RDC no 09/2011. Diante disso, a Anvisa divulgou, em março de 2016, a Nota Técnica no 005/2016/GSTCO/GGMED/DIARE/ANVISA com o objetivo de assegurar a disponibilização deste tipo de produto - células humanas – somente em processos controlados de pesquisa clínica de forma a garantir a segurança das pacientes envolvidas. Seria demasiado irresponsável e não respaldado por conhecimentos científicos seguros, no estado da arte atual e nem baseado em avaliação de risco e benefício a permissão da continuidade de procedimentos terapêuticos sem a devida comprovação de eficácia e segurança. Esta Anvisa entende a premente necessidade de mais pesquisas científicas e estímulos às sociedades organizadas e ao Conselho Federal de Medicina a aprofundar as discussões clínicas sobre o uso destes produtos celulares na terapêutica. Tendo em vista que o principal objetivo e força motriz das decisões em políticas de saúde e regulatórias na área terapias celulares estão na disponibilização de produtos eficazes e seguros aos pacientes, até o momento presente, não há evidência científica, clínica e reconhecimento oficial do Conselho Federal de Medicina no Brasil que tais recursos terapêuticos podem ser utilizados como tratamentos convencionais. Acerca disso, a Nota Técnica nº 005/2016/GSTCO/GGMED/DIARE/ANVISA foi elaborada em função de diversos questionamentos da sociedade e das vigilâncias sanitárias locais acerca da administração de “vacina do fator imunológico” nos Bancos de Células e Tecidos Germinativos (centros de reprodução humana). Diante disso, a Anvisa ao se deparar com um posicionamento do CFM de que se tratava de um procedimento experimental, após cuidadosas considerações e atualização das informações científicas disponíveis inclusive de outras agências reguladoras como o U.S. Food and Drug Administration (FDA) e da própria OMS – Organização Mundial de Saúde, atendendo aos princípios da precaução e proteção à saúde definiu-se o disposto na referente nota. Diante do exposto, não houve discussão sobre a prática clínica médica com os profissionais na área de reprodução assistida por considerar que o Conselho Federal de Medicina-CFM é o responsável por reconhecer uma prática terapêutica ofertada à população, conforme disposto pela Lei n° 12842, de 10 de julho de 2013, sobre o exercício da Medicina, que em seu artigo 7°, define que dentre as competências do Conselho Federal de Medicina está a de "editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos". Ainda, a RDC no 09/2011, que dispõe sobre o funcionamento dos Centros de Tecnologia Celular-CTC, em seu art. 7º define que células e seus derivados só poderão ser disponibilizados pelos CTCs para terapia após aprovação pelo CFM. Além do mais, no tocante aos assuntos pertinentes à produção e manipulação das células em condições de Boas Práticas, o corpo técnico da Anvisa possui profundo conhecimento no assunto e está em constante troca de informações com outras agências regulatórias no mundo, de forma a corroborar e embasar tecnicamente a sua decisão. Não houve processo administrativo para emissão dessa Nota Técnica, uma vez que a Anvisa tem a prerrogativa de editar Notas Técnicas com o objetivo prestar orientações quanto à aplicação da legislação vigente para o tema, não se tratando dessa forma de nova normativa. As Notas Técnicas são assinadas pela equipe técnica que elaborou o texto, pelo Gerente da área e pelo Gerente-Geral responsável pelo assunto. A nota técnica apresenta em seu conteúdo todas as referências utilizadas em sua edição. Segue abaixo as referências mencionadas, bem como outros textos utilizados na argumentação: Ober C, Karrison T, Odem RR, Barnes RB, Branch DW, Stephenson MD, et al. Mononuclear-cell immunisation in prevention of recurrent miscarriages: a randomised trial. Lancet. 1999; 354(9176):365-9. Este estudo duplo-cego realizado com mulheres que tiveram três ou mais abortos espontâneos concluiu que a imunização com células mononucleares paternas não melhoram o resultado da gravidez em mulheres com abortos recorrentes de causa desconhecida. Porter TF, LaCoursiere Y, Scott JR. Immunotherapy for recurrent miscarriage (Cochrane Review). In: The Cochrane Library. Oxford: Update Software; Issue 2, 2007. W Wong LF, Porter TF, Scott JR. Immunotherapy for recurrent miscarriage. Cochrane Database of Systematic Reviews (Cochrane Review). The Cochrane Library. Oxford: Update Software, Issue 10, 2014. Meta-análise de 20 ensaios controlados envolvendo 1.137 mulheres, no período de 1985 a 2004 em 11 países. Os ensaios analisados utilizaram quatro formas diferentes de imunoterapia (Imunização com linfócitos paternos, Linfócitos de terceiros, produtos derivados de embriões e anticorpos derivados do sangue da própria paciente). A revisão desses estudos concluiu que nenhum destes tratamentos proporcionou um efeito benéfico significativo quando comparado ao placebo na melhoria da taxa de nascidos vivos tampouco reduziu o risco de aborto futuro em mulheres que tem abortos recorrentes. Em 2014, confirmou-se os resultados dos estudos e sugeriu-se que os procedimentos não deveriam ser oferecidos a pacientes e que nem a imunização com leucócitos paternos nem o tratamento com imunoglobulina intravenosa (IVIG) melhoraram a taxa de nascidos vivos em mulheres com abortos recorrentes inexplicados. Além disso, segundo os estudos ambos tratamentos têm potenciais efeitos secundários graves devendo as mulheres ser poupadas da dor e do sofrimento associado com falsa expectativa de que um tratamento ineficaz. Gonçalves SP. Imunologia na prática clinica: uma visão crítica. Femina. 2008; 36(3):151-7. Revisão bibliográfica publicada no site da Febrasgo – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, no periódico Femina, que concluiu que a Reprodução Humana é um campo muito vulnerável a experimentos, novas práticas e técnicas alternativas, tanto clínicas como laboratoriais e o problema existe quando tais práticas perdem o caráter científico e passam a ser indiscriminadamente adotadas como condutas estabelecidas. Estados Unidos. US. Department of Health and Human Services. Food and Drug AdmnistrationFDA. Lymphocyte Immune Therapy (LIT) Letter. Disponível em http://www.fda.gov/BiologicsBloodVaccines/SafetyAvailability/ucm105848.htm O FDA – U.S. Food and Drug Administration, em 2002 divulgou nota proibindo a realização das terapias com linfócitos paternos, se baseando em estudos científicos que demonstraram que estes procedimentos não ofereciam qualquer benefício para as pacientes, mostrando inclusive que as pacientes do grupo controle tiveram índice de gravidez maiores, além dos riscos de transmissão de doenças. Desta forma, nos Estados Unidos, a partir de 2002 estes procedimentos poderiam ser realizados somente mediante protocolos de pesquisa e todos os ensaios clínicos envolvendo terapias de imunização com linfócitos deveriam ser previamente submetidos à aprovação do FDA. A Agência notificou os profissionais da área que a administração de células humanas alogênicas como uma terapia para abortos recorrentes é sujeita à regulamentação da Agência, uma vez que se enquadram como produtos biológicos e atendem ao conceito de “medicamento” na regulamentação americana. Para o registro de tal terapia, as autoridades americanas exigem dossiê que descreva todo o processo de fabricação, dados pré-clínicos e clínicos sobre a segurança e eficácia de tais células e as medidas para assegurar a proteção dos participantes do estudo. Esta Anvisa entende a premente necessidade de mais pesquisas científicas e estímulos às sociedades organizadas e ao Conselho Federal de Medicina a aprofundar as discussões clínicas sobre o uso destes produtos celulares na terapêutica. Todavia, não temos conhecimento de projetos de pesquisa relacionados a tratamentos imunológicos, pois atualmente a competência de aprovação dos ensaios clínicos envolvendo terapias com células humanas é do sistema Comitê de Ética em Pesquisa- CEP/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-CONEP. Segue link, do site da Anvisa, da Nota Técnica 005/2016 - Anvisa. http://portal.anvisa.gov.br/notas-tecnicas1 Referências do texto: 1. Ofício CFM n° 0971/2006 – DECCT – Brasília – DF, 05 de abril de 2006 do Vice Presidente, Coordenador de Comissões e Câmaras Técnicas. 2006. 2. Ofício CFM n° 2526/2015 – DECCT – Brasília – DF, 30 de abril de 2015 do Vice Presidente, Coordenador de Comissões e Câmaras Técnicas. 2015. 3. Consulta n° 152.105/2010. Sobre atividade de tratamento imunológico de infertilização feminina, decorrente de abortos de repetição, baseado na utilização de vacinas produzidas com linfócitos presentes no sangue do pai. CRMSP, 2012. 4. Estados Unidos. US. Department of Health and Human Services. Food and Drug Admnistration-FDA. Lymphocyte Immune Therapy (LIT) Letter. Disponível em http://www.fda.gov/BiologicsBloodVaccines/SafetyAvailability/ucm105848.htm 5. Ober C, Karrison T, Odem RR, Barnes RB, Branch DW, Stephenson MD, et al. mononuclearcell immunisation in prevention of recurrent miscarriages: a randomised trial. Lancet. 1999; 354(9176):365-9. 6. Porter TF, LaCoursiere Y, Scott JR. Immunotherapy for recurrent miscarriage (Cochrane Review). The Cochrane Library, Issue 3, Oxford: Update Software, 2007. 7. Wong LF, Porter TF, Scott JR. Immunotherapy for recurrent miscarriage. Cochrane Database of Systematic Reviews Issue 10, 2014. 8. Bellelis P, Carvalho MHB, Zugaib M. Abortamento de causa aloimune: diagnóstico e tratamento. FEMINA, 37, 5, 2009. 9. WHO. Immunotherapy for recurrent miscarriage. Reprodutive Health Library. Acesso 11 de maio de 2015. Disponível em http://apps.who.int/rhl/pregnancy_childbirth/antenatal_care/miscarriage/cd000112/en/index .html 10. K Kling C, Steinmann J, Flesch B, Westphal E, Kabelitz D. Transfusion-related risks of intradermal allogeneic lymphocyte immunotherapy: single cases in a large cohort and review of the literature. Am J Reprod Immunol. 2006;56(3):157-71. 11. Bux J, Jung KD, Kauth T, Mueller-Eckhardt C. Serological and clinical aspects of granulocyte antibodies leading to alloimmune neonatal neutropenia. Transfus Med. 1992;2(2):143-9. Para maiores esclarecimentos, a Anvisa também disponibiliza a sua Central de Atendimento, por meio do 0800 642 9782 (dias úteis, das 7h30 às 19h30) e por meio eletrônico, no Fale Conosco: (http://www.anvisa.gov.br/institucional/faleconosco/FaleConosco.asp) Atenciosamente, Agência Nacional de Vigilância Sanitária