UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA CAETANO VELOSO: UM CAMALEÃO NA CENA CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA São Paulo 2015 FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras Orientadora: Profª. Dra. Marlise Vaz Bridi São Paulo 2015 FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA CAETANO VELOSO: UM CAMALEÃO NA CENA CULTURAL BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras Aprovada em: BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi — Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie _______________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos Universidade Presbiteriana Mackenzie _______________________________________________________________ Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho _______________________________________________________________ Profª. Drª. Alleid Ribeiro Machado Centro Universitário Sant’Anna _______________________________________________________________ Profª. Drª. Regina Helena Pires de Brito Universidade Presbiteriana Mackenzie À minha mãe, Rozana, e à minha avó Ruth AGRADECIMENTOS A Deus, em primeiro lugar. Toda a capacitação, força, e a própria vida para realizar tudo que tenho realizado vem dele, portanto, a glória deve ser dada a ele. À minha mãe, Rozana, e minha avó, Ruth — minha mãe ao quadrado —, por todo amor, carinho, apoio e o suporte em todos os momentos de minha vida. À memória de meu avô Dilson Pereira, e de meu bisavô — e pai ao cubo — Antonio Pupo. Ao meu Pai, Francisco, por ter investido em minha formação, na educação básica e em meu ensino superior, até o mestrado. À minha querida orientadora Marlise Vaz Bridi, sem a qual nada disso seria possível. Ao meu amigo e irmão Victor Costa, por toda disposição e pela efetiva ajuda que me deu para a realização do presente trabalho. À Nasjla Saba da Silva e Flávio Miúra. Às minhas queridas Teresa, Inês, Geralda e Elizabeth, inspiração para o caminho que decidi trilhar. Ao MackPesquisa e à CAPES, pelo apoio à realização de meu doutorado, e à minha pesquisa. RESUMO A presente tese se coloca como uma investigação dos aspectos que propiciam a classificação de Caetano Veloso como um agitador cultural, a partir da análise de sua trajetória em diferentes setores da arte. Numa reverência ao que há de belo e forte no passado sem qualquer despreocupação com o futuro, mas, pelo contrário, buscando partir disso para a criação de algo novo tão interessante quanto, este artista baiano segue uma trilha de coerência entre a crítica e o elogio, o velho e o novo, o nacional e o estrangeiro, o choque e o apreço, indo bem ao encontro dos princípios norteadores da arte como um todo. Caetano Veloso é um artista multifacetado que compõe o firmamento artístico brasileiro. Apesar de estar ligado ao contexto da canção popular, sua atuação extrapola os limites desta área, chegando a muitas outras. Seja por meio de suas canções, suas interpretações, seus comentários, sua performance e persona tão várias quanto sua própria atuação, mais do que tudo, Caetano Veloso pode ser considerado um “agitador cultural”, à medida que transita com propriedade entre os mais diversos tempos, espaços e estilos em termos de canção, comportamento e visão de mundo. A cultura brasileira vem sendo enriquecida pelos aspectos estrangeiros que vem sido somados a esta por um artista que insiste em ousar, mesmo com uma carreira que beira as cinco décadas de duração, sem, portanto, precisar provar nada, e, no entanto, fazendo questão de se reinventar, tendo sempre algo novo a acrescentar. Palavras-chave: cultura, música popular brasileira, linguagem poética, artes ABSTRACT This thesis is presented as an investigation of the aspects that lead to Caetano Veloso classification as a cultural activist, from the analysis of his career in the most different sectors of art. In a reverence to what is beautiful and strong in the past without any disregard for the future, but on the contrary, seeking from it to create something new as interesting as this Bahian artist follows a trail of consistency between criticism and praise, old and new, domestic and abroad, the shock and appreciation, doing well to meet the guiding principles of art as a whole. Caetano Veloso is a multifaceted artist who compose the Brazilian artistic firmament. Despite being linked to the context of popular song, his performance beyond the limits of this area, reaching many others. Whether through his songs, his interpretations, his comments, his performance and persona as various as his own performance, more than anything, Caetano Veloso can be considered a "cultural activist", as he moves properly between the most diverse times, spaces and styles in terms of song, behavior and world view. Brazilian culture has been enriched by foreign aspects that have been added to this by an artist who insists dare, even with a career that border the five long decades, without therefore need to prove anything, and yet, insisting to reinvent himself. Keywords: culture, brazilian popular music, poetic language, arts Ter tido o rock’n’roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação — e, em contrapartida, ter tido a Bossa Nova como trilha sonora da nossa rebeldia — significa, para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido como um dever. (Caetano Veloso, Verdade Tropical) SUMÁRIO INTRODUÇÃO: CAETANO VELOSO: O PERCURSO DE UM CAMALEÃO — “A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?” 11 1. BOSSA-NOVA EM CAETANO E DE CAETANO: UM IMPULSO QUE SEGUE PULSANDO 34 2. TROPICÁLIA: UM DIVISOR DE ÁGUAS NA CULTURA BRASILEIRA 75 3. A CENA DO CAMALEÃO. LUZES, CÂMERA: CANÇÃO 118 4. UM CANTO POR TODOS OS CANTOS: A VOZ DO CAMALEÃO 153 CONCLUSÃO: COMPREENDER CAETANO VELOSO: O QUE QUER, O QUE PODE ESTE CAMALEÃO? UMA PROPOSIÇÃO 197 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 203 !11 INTRODUÇÃO: CAETANO VELOSO: O PERCURSO DE UM CAMALEÃO — “A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?” “Minha palavra cantada pode espantar E a seus ouvidos parecer exótica [...] Nenhuma força virá me fazer calar Faço no tempo soar minha sílaba Canto somente o que pede pra se cantar Sou o que soa eu não douro a pílula Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior Com todo o mundo podendo brilhar no cântico Canto somente o que não pode mais se calar Noutras palavras sou muito romântico” (Caetano Veloso, Muito Romântico) Caetano Veloso é uma das figuras de grande relevância do cenário artístico brasileiro, e referência obrigatória quando tratamos de nossa cultura entre a metade final do século XX e esta década e meia do XXI. Cancionista, músico, intérprete, compositor, ator, performer, pessoa pública que se aproveita de sua visibilidade para expressar-se com toda liberdade acerca de tudo o que ocorre. A despeito dos quase cinquenta anos de uma carreira tão frutífera quanto longeva, Caetano Veloso foge aos rótulos e setorizações que poderiam se colocar como limites para uma figura marcada por uma inquietação artística ímpar. “Como um objeto não identificado”1, por meio da arte, este artista baiano tem levado gerações a pensarem e repensarem sua posição como cidadãos e como seres humanos, seja por meio da fruição de sua obra, seja pela simples percepção da maneira como ele se expressa no geral — em palavras, atitudes e comportamento. Num país de dimensões continentais, tropical, subdesenvolvido, de terceiro mundo, Caetano Veloso vem ousando dizer “não ao não”2, e assumido uma postura de intrepidez, tanto quando traz a tona para o Brasil e para o mundo, num só tempo, 1 VELOSO, Caetano. Não Identificado (1969) 2 VELOSO, Caetano. É Proibido Proibir (1968) !12 conforme suas palavras “o que eu herdei de minha gente e nunca posso perder”3, quanto ao inserir-se no grupo “daqueles que zelam pela alegria do mundo” como um todo. Assim, este baiano nunca se restringiu a um nacionalismo cerrado, uma espécie de cabresto, como muitos, mas, pelo contrário, com uma carreira também firmemente consolidada em outros países, de outras línguas e culturas, ele introduziu na cultura brasileira elementos de outras povos, de modo a enriquecer e pluralizar ainda mais a nossa. A expressão “metamorfose ambulante”, oriunda da canção homônima daquele que foi talvez o maior ícone do rock brasileiro, Raul Seixas, é totalmente oportuna para designar alguém como Caetano Veloso. Sim, porque este artista baiano em questão, que está prestes a completar cinco décadas de carreira, segue literalmente na ativa, cantando, compondo e se expressando, e acima de tudo, ousando. Na verdade, numa espécie de concretização dos versos de sua canção O Quereres (1984), quando o assunto é Caetano Veloso, via de regra, “onde queres” em termos de expectativas um determinado comportamento ou atitude que seria previsível, enfim, que se coloque como “isso”, este revela-se completamente o avesso, impondo-se, como quem diria: “sou” aquilo. No que tange a produção do gênero denominado “canção”, marcado pela soma das materialidades verbal e musical — letra e música, respectivamente — o trabalho desse cancionista baiano se insere de maneira exemplar no cenário musical brasileiro, conforme ressalta Wisnik: Sabemos bem que unir a palavra e a música de um modo transparente é o segredo, nunca totalmente explicável, da canção. Mas ela se faz dessa descoberta recíproca entre letra e melodia, tensão flutuante surfando sobre as ondas das harmonias. Exemplos desse trabalho, onde todo o artifício não deixa de visar a um estado superior de naturalidade da palavra, se encontram todo o tempo nas músicas de Caetano. (WISNIK, 1994, p. 8) No entanto, por se tratar de uma obra de arte, a qual, portanto, poderá suscitar as mais diversas reações e interpretações por parte do público que se coloca como receptor ou consumidor deste produto, muito mais do que texto e 3 VELOSO, Caetano. Não Enche (1997) !13 melodia, há também uma componente extra, o chamado “segredo [...] nunca totalmente explicável” citado por Wisnik. Este componente quase que mágico se faz presente nas artes como um todo, mas, especificamente, tanto na literatura, quanto na música isoladamente, e, desse modo, não poderia estar ausente na canção. Quem poderá explicar objetivamente as reações causadas pela leitura de um bom texto, ou por escutar uma bela melodia, ou mesmo por encontrar estas duas componentes fundidas na canção? A tentativa de decifrar o que se coloca como indecifrável leva a explicações e teorizações. Assim, por exemplo, pode-se ressaltar que as letras de Caetano Veloso são marcadas por uma escrita poética e por todos os recursos característicos desta. A linguagem empregada em sua canção é marcada por todas as nuances comuns à poesia de grandes autores. Nesse sentido, Lucchesi e Dieguez (1993) relacionam a poética cancional de Caetano Veloso às obras de grandes nomes da literatura brasileira: Desse modo, é possível alinhar a poética de Caetano com a poesia satírica de Gregório de Matos, o registro escrito da oratória cortante de Pe. Antonio Vieira, o olhar pulsante de Sousândrade, a astúcia de Machado de Assis, a capacidade de desmascaramento de Lima Barreto, a voracidade antropofágica de Oswald de Andrade, e, por fim, a concepção planetária e galáctica dos irmãos Campos. (LUCCHESI e DIEGUEZ, 1993, p.12) De fato, ao empreendermos um olhar mais atento não só às canções, mas à atitude e comportamento de Caetano Veloso, podemos encontrar todos estes elementos referenciados por Lucchesi e Dieguez. Podemos nos deparar, por exemplo, com um tom de crítica social bastante similar ao do poeta brasileiro que ficou conhecido pela alcunha de “boca do inferno”, em canções como Fora da Ordem (1991); a coerência lógico-argumentativa de um dos grandes nomes do Barroco, na denúncia contida em Podres Poderes (1984); não apenas um olhar, mas, também, um dizer pulsante que se propõe a testar os limites de nosso idioma, conforme os versos de Língua (1984): “Flor do lácio Sambódromo / Lusamérica latim em pó / O eu quer, o que pode essa língua?”; a “astúcia” de quem ousa driblar a censura de uma ditadura militar com uma canção que se coloca literalmente como uma Festa Imodesta (1974) em meio a este cenário caótico, contendo versos como: Tudo aquilo que o malandro pronuncia E o otário silencia Toda festa que se dá ou não se dá !14 Passa pela fresta da cesta E resta a vida Aliás, em se tratando de literatura, Caetano Veloso não só escreveu textos com características e profundidade similares à de grandes textos, como também adaptou para canção alguns textos poéticos, a partir da concepção de uma melodia na qual eles foram encaixados como letra. Isto se deu, por exemplo, com Triste Bahia (1972), de Gregório de Matos, Escapulário (1975), de Oswald de Andrade, Circuladô de Fulô (1991), de Haroldo de Campos, e um excerto de O Navio Negreiro (1997), de Castro Alves, numa recitação com uma batida ao fundo, estrutura muito próxima à de um Rap. E, como se não bastasse, gravou um disco cujo projeto foi baseado num período passado e vergonhoso da história do Brasil. Mais especificamente, nas palavras do diplomata, poeta e memorialista do contexto do Brasil-império Joaquim Nabuco: “Noites do Norte” (2001). O disco em questão contém canções que tem por tema o contexto da abolição da escravatura no Brasil, como 13 de Maio (2000), do próprio Caetano Veloso, Zumbi (1974), de Jorge Benjor, e a canção que dá nome ao álbum Noites do Norte (2000), que é na verdade um trecho de um texto de Nabuco musicado por Caetano Veloso: A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte. Se aspectos da história de épocas tão afastadas — e, ao mesmo tempo, ainda tão presentes — de nossa atualidade ganham espaço na obra de Caetano Veloso, nestas quase cinco décadas ele também vivenciou momentos decisivos da história de nosso país e atuou nestes contextos de uma maneira bastante ativa. Podemos citar, por exemplo, o contexto da Ditatura Militar, nos anos 60. Caetano apresentou-se em festivais de música televisionados entoando canções de sua autoria como Alegria, Alegria e É Proibido Proibir, que iam totalmente na contramão das medidas tomadas pelos que estavam no poder naquele momento. !15 Também na época das eleições que levaram ao poder Luis Inácio Lula da Silva pela primeira vez, em 2002, Caetano defendeu que um homem do povo assumisse o comando do país — embora, depois, como muitos, tenha também se arrependido. Caetano Veloso apoiou candidatos como Marina Silva e Fernando Gabeira, visando a uma renovação do quadro de candidatos e propostas que, via de regra, quase sempre reduz-se a mais do mesmo. Nesse sentido, o comportamento de Caetano Veloso vai ao encontro das palavras da professora de antropologia do departamento de sociologia e política da PUC-Rio e pesquisadora de música popular Santuza Cambraia Naves (2010) introduziu o conceito de “canção crítica”. Trata-se, segundo a autora, da canção surgida “no final dos anos 50 e ao longo dos anos 60”, e pode ser definida como: [...] o lócus por excelência dos debates estéticos e culturais, suplantando o teatro, o cinema e as artes plásticas, que constituíam, até então, o foro privilegiado dessas discussões. (NAVES, 2010, p. 19) Os grandes temas e as discussões que influíam na vida do homem do contexto histórico ressaltado por Naves, cuja expressão até então era caracteristicamente contida em peças de teatro, como por exemplo, as obras de José Celso Martinez; em filmes de diretores como Glauber Rocha; e em telas e estatuárias de nomes como Tarsila do Amaral, passaram a ganhar enfoque nas letras e melodias das canções. Especialmente num contexto marcado por um governo militar atrelado a um regime ditatorial, o qual pouco a pouco por meio de atos institucionais vinha tolhendo as liberdades e direitos dos cidadãos — inclusive os que eram garantidos na constituição —, as canções produzidas por jovens compositores, muitas vezes estreantes, traziam em si a expressão de descontentamento e até de protesto em relação a este cenário caótico da história do Brasil. E a veiculação destas se dava por meio dos grandes festivais de música produzidos por canais de TV como a Excelsior, a Globo e a Record, os quais se tornaram um celeiro que revelou alguns dos maiores nomes da canção popular brasileira de todos os tempos. Acerca destes festivais, Mello (2003), comenta: A partir do I Festival da Excelsior, programa musical na televisão brasileira seria outra coisa. Uma coisa única no mundo. E ainda mais: pela primeira vez na história da televisão brasileira, quem estava em casa tinha um contato direto com o que acabava de sair !16 do forno, a nova usina de produção de música popular, a privilegiada geração dos anos 60. Esse público tinha liberdade de avaliar de imediato a nova canção, influenciado ou não pelas plateias. Liberdade de avaliar era um direito de cada cidadão, num país em que a liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco havia quase um ano. (MELLO, 2003, p. 74) Confirme as palavras de Mello, a canção popular passou a trazer em seu bojo a possibilidade de expressão, de dizer tudo aquilo que a grande maioria da população, intimidada, gostaria, mas, no entanto, não tinha a possibilidade de dizer. Desse modo, o cancionista ligado a essa modalidade de canção, concebida por Naves, acabou por extrapolar seu contexto de atuação, não se restringindo apenas à área da música, como compositor ou intérprete, mas assemelhando-se aos “modernistas” no que diz respeito a um grupo de pensadores de seu tempo: Os compositores populares, de maneira semelhante aos músicos modernistas, como é o caso de Heitor Villa Lobos, passaram a comentar todos os aspectos da vida, do político ao cultural, tornandose “formadores de opinião”. Este novo estatuto alcançado pela canção contribuiu para que o compositor assumisse a identidade de intelectual um sentido mais amplo do termo. (NAVES, 2010, p. 19-20) Nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré e tantos outros entraram para a história não apenas pelo valor estético de suas obras no contexto da canção popular do fim dos anos 50, início dos anos 60, mas, sobretudo pela efervescência e os debates gerados por meio de suas composições em meio a um cenário em que a liberdade de expressão era bastante reduzida. Esta assunção de uma posição de “intelectual”, contida nas palavras de Naves, também é perfeita quando pensamos numa figura como Caetano Veloso. Apesar de cancionista, Caetano já se estabeleceu como uma das vozes de relevância do cenário nacional, que opina e manifesta-se em relação a praticamente todos os assuntos, das mais diversas áreas. Isso se dá de uma maneira tal que, ao longo destas últimas décadas, há muitos humoristas que imitam Caetano Veloso, num discurso analítico, marcado por palavras um tanto quanto difíceis ou eruditas demais, muitas vezes incomuns na fala informal e cotidiana e, logicamente, por um sotaque baiano agigantado que demarca o tom caricatural. !17 A este respeito, o próprio Caetano comentou, durante um programa de televisão, quando o apresentador Serginho Groisman lhe apresentara um jovem da plateia que sabia imitá-lo, e iria fazê-lo, com as seguintes palavras: Ó, eu vou dizer, fazer uma censura prévia, em homenagem às lembranças da ditadura militar: não pode dizer “ou não”. Porque eu nunca falei isso. Isso foi tirado de uma música do Walter Franco, que é injustiçado pela ignorância dos meus imitadores, que, embora sejam pessoas queridas, mas são jovens que não sabem, não se lembram de tudo que aconteceu antes. Esse negócio de “ou não” era a música Cabeça, do Walter Franco, que ficou mais ou menos esquecido, injustamente esquecido. Então pegaram esse “ou não” e botaram em mim. Ainda bem que eu sou aquele cara que realmente, quando falo numa coisa, observo aspectos diferentes da mesma coisa. Não demais. Não sou nenhum Gilberto Gil, mas... [risos] Mas dou uma sacada aqui e ali, entendeu? Grande parte dos imitadores de Caetano Veloso utiliza a expressão “ou não”, atribuindo-a como costumeira do discurso dele, a qual na verdade é mais uma síntese desta sua visão de diferentes pontos de vista acerca de um mesmo assunto, mas, sobretudo, da sua visão pessoal acerca destes. Um exemplo é o humorista João Cláudio Moreno, que encarnava o personagem “Caretano” — uma caricatura que escrachava esta possível caretice de Caetano Veloso — num programa de humor de Chico Anysio, no qual este dava vida a “Zelberto Zel”, uma caricatura de Gil. No geral, a fala de Caetano, por sua vez, se dá de uma maneira muito clara, via de regra sempre alicerçada em argumentos sólidos, frutos de uma visão de mundo aliada a uma percepção e capacidade de leitura bastante aguçadas. Por outro lado, toda esta clareza acaba também por gerar polêmicas, já que suas palavras, por vezes são destacadas fora de seu contexto original. Por exemplo, quando questionada sua opinião sobre a então candidata a presidente Marina Silva, Caetano Veloso, para elogiá-la estabeleceu uma comparação desta com o presidente americano Obama e também com o ex-presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva: Não posso deixar de votar nela. É por demais forte, simbolicamente, para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro. Ela fala bem. (VELOSO, 2009)4 Disponível em: [http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/caetano-veloso-e-o-analfabetismo-ecafonice-de-lula-agora-em-carta/]. Acesso em 10/11/205, às 19:30. 4 !18 As palavras de Caetano Veloso, tomadas como agressivas, apontam para o fato biográfico, da vida pessoal do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o qual já declarou inúmeras vezes o fato de não ter tido uma vida escolar regular durante sua infância e adolescência — devido às dificuldades de sobrevivência, sobretudo —. No entanto, foi este fato que contribuiu sobremaneira para compor a narrativa heroica de um homem do povo, o qual nunca se envergonhara, mas, pelo contrário, se vangloriara pelo fato de, apesar de sua origem pobre e como iletrado, ter conseguido chegar ao comando da nação brasileira, conforme o texto contido na página do “Instituto Lula”, que tem por título “Origem”5: O sertanejo é antes de tudo um forte. Cunhada pelo escritor Euclides da Cunha, a frase parece se ajustar à personalidade de Lula desde seu nascimento. Nordestino, pobre, sétimo filho de um casal de lavradores analfabetos, Luiz Inácio Lula da Silva nasceu em 1945 numa casa de dois cômodos e chão de terra batida no Semiárido pernambucano. [...] Conclui o ginásio e, empregado numa metalúrgica aos 14 anos, é admitido no curso técnico de torneiro mecânico do Senai. Apesar disso, o modo como este fato foi levantado por Caetano traz consigo um quê elistista — tendo em vista o grande número de reais analfabetos que compõem a população brasileira — e, sendo desviado do contexto de comparação entre a história dos dois presidentes em questão, foi publicado como manchete, tomado como não apenas como uma crítica, mas como um literal ataque do cancionista baiano ao ex-presidente brasileiro. Por isso, causou diversas reações entre o povo, na mídia e entre os políticos, dentre os quais, do próprio ex-presidente Lula, que declarara, numa réplica: “Tem gente que acha que a inteligência está ligada à quantidade de anos de escolaridade que você tem. Não tem nada mais burro do que isso”. Certamente, a inteligência não depende apenas da escolaridade, mas, não era a isso que Caetano se referia, mas ao caráter errôneo e equivocado da fala de Lula — não apenas no que diz respeito à gramática —, evidenciado quando ele se pronuncia publicamente. Trata-se, mais marcadamente, da menção de um fato de maneira hiperbólica, a fim de evidenciar um aspecto negativo do presidente brasileiro em relação ao americano. Com toda a repercussão de sua declaração vertida em manchete, Caetano 5 Disponível em: [http://www.institutolula.org/biografia]. Acesso em 23 de fevereiro de 2016, às 19:18h. !19 Veloso enviou uma carta à redação do jornal, que foi publicada no mesmo, dias depois, contendo trechos como: O que mais me impressiona é as pessoas reagirem diante da manchete do jornal, tal como ela foi armada para criar briga, sem sequer parecerem ter lido o trecho da entrevista de onde ela foi tirada. É um país de analfabetos? A intenção sensacionalista da edição tem êxito inconteste com os leitores. Pobres de nós. Sonia Racy sabe que eu ressaltei essa diferença entre Lula e Marina para explicar porque eu dizia que ela é também um fenômeno tipo Obama (coisa que Racy e Nelson Motta não entenderam). Marina é Lula (a biografia) e é Obama (a cor escura e o modo elegante e correto de falar — e escrever). Li aqui que Lula disse que é burrice minha dizer isso. É. Serve para Berzoini contar alegremente votos migrando de Serra ou Aécio para Marina, não de Dilma. Ainda mais que toca nesse ponto óbvio (que para mim tem todas as vantagens e desvantagens, não sendo um aspecto meramente negativo) da fala pouco instruída e frequentemente grosseira e cafona de Lula. Todos sabem disso. Ele próprio se vangloria. Os linguistas aplaudem. E todos têm razão: ele é forte inclusive por isso. Fala “bem”: atinge a maioria dos ouvintes. 6 O caráter parcial do jornal em questão, que tira de contexto a declaração de Caetano Veloso e a veicula de forma distorcida, em letras garrafais — visando à polêmica e, obviamente, a uma grande vendagem — e o de toda uma multidão de pessoas que analisaram a declaração fora de contexto, tomando partido, leva Caetano Veloso a explicar novamente o raciocínio em que se inseriam suas palavras. Se o elogio a Marina Silva, definida como uma fusão de elementos positivos presentes em grandes líderes como Lula e Obama, leva também a uma distinção entre estas duas figuras — por aspectos que se opõem entre os dois —, não deveria ser dado como algo chocante, principalmente por jornais que, em sua maioria, sempre criticaram este mesmo aspecto do ex-presidente brasileiro em questão. Aliás, Caetano em sua carta levanta um outro aspecto de sua fala dada como ofensiva: esta maneira tão singular de se comunicar do ex-presidente Lula acaba se revelando positiva, sendo mais eficaz num país que possui uma enorme parcela de sua população classificada não como analfabeta, mas como “analfabeta funcional“, apenas por conseguir grafar — ou desenhar — seu próprio nome, mas sem conseguir ler e interpretar um texto devidamente. Mas, nem só de Brasil se ocupa este caráter crítico/comentarista de Caetano Veloso. Assuntos relativos à política de outros países também passam pelo filtro Disponível em: [http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/caetano-veloso-e-o-analfabetismo-ecafonice-de-lula-agora-em-carta/]. Acesso em 10/11/205, às 19:30. 6 !20 deste cancionista baiano, em suas canções e comentários. O disco “Uns” (1983) contém a canção Quero Ir A Cuba (1983), canção com um ritmo latino marcada por um tom quase que irônico ao ser constituída por versos como os que abrem a canção: “Mamãe eu quero ir a Cuba / Quero ver a vida por lá”, expressão de uma curiosidade positiva, mas também pelos que a encerram: “Mamãe eu quero ir a Cuba / E quero voltar”, tendo em vista o regime político deste país. O disco “Zii e Zie” (2009), contém a canção Diferentemente (2009), que é encerrada pelos versos: “Diferentemente de Osama e Condoleezza / eu não acredito em Deus”, os quais se colocam como uma crítica a posturas políticas fundamentalistas justificadas por crenças religiosas. Outro exemplo deste aspecto dos “formadores de opinião” ressaltado por Naves, que justifica a inclusão de Caetano Veloso entre estes, está contida numa canção de sua autoria. Trata-se de A Base de Guantánamo (2009), cuja letra, bastante clara e sucinta, reproduzimos abaixo: O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar a base de Guantánamo a base da Baía de Guantánamo a base de Guantánamo Guantánamo Apesar de se tratar da nação dominante do século XX e até agora no XXI, marcada por uma postura violentamente imperialista e dominante, o desrespeito aos “direitos humanos” e às liberdades individuais que deveriam ser inerentes a qualquer ser humano de qualquer lugar no mundo, agride as concepções e visões de mundo de alguém que sempre lutou pela liberdade, como Caetano Veloso, colocando-se, apesar da ausência de violência física, como algo muito “forte simbolicamente”, como uma literal bomba no campo das ideias, em plena atualidade. A canção O Estrangeiro (1989), é outra das que podem ser citadas por conter, conforme as palavras supracitadas do comentário do próprio Caetano Veloso, “aspectos diferentes da mesma coisa”. O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela A Baía de Guanabara O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara Pareceu-lhe uma boca banguela E eu, menos a conhecera, mais a amara? !21 Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela O que é uma coisa bela? O amor é cego Ray Charles é cego Stevie Wonder é cego E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem? Uma arara? Diferentes opiniões atreladas ao gosto estético de um cenário caracteristicamente brasileiro levam a uma reflexão do que seria “uma coisa bela”? Ora, a citação de grandes nomes da arte, de estilos completamente diferentes entre si, autores de obras que se constituem como o “belo” para tantas pessoas ao redor do mundo demonstra a variação deste conceito, e levam o ouvinte a uma reflexão: Afinal de contas o que é que eu aprecio e considero belo? Por quê? Mas, acima de tudo reforça o caráter subjetivo da beleza atrelada à arte. Em relação a este comentário de “todos os aspectos da vida”, o cineasta brasileiro Cacá Diegues, num programa de entrevistas, dirigiu a Caetano Veloso uma pergunta que contém uma ponderação que vai ao encontro destas palavras de Naves: A nossa geração sempre se sentiu muito responsável pelo Brasil. Mas tem algumas pessoas na nossa geração, como o Glauber [Rocha] e como você, mais do que isso, parece que estão em permanente estado de vigília em relação a tudo que acontece no Brasil. Quer dizer... Você é uma pessoa que... Desde que esse programa começou nós já lhe perguntamos sobre o futuro do Brasil, casamento de homossexuais, a vida das crianças, o livro que você ‘tá escrevendo — que é um livro de pensamento —, as suas polêmicas com a imprensa... E você, profissionalmente, é um compositor, é um músico! Esse estado de vigília permanente, que no fundo é a sua vocação, mas também é muito provocado pelas pessoas que lhe admiram, ou até que querem brigar com você, isso é uma coisa que você faz com naturalidade ou lhe cansa de vez em quando? (DIEGUES, 1996) 7 Cacá Diegues parece custar a acreditar que esta atenção veemente de Caetano Veloso em relação a tudo que ocorre seja algo natural — uma “vocação” — e até postula que possa ser apenas fruto ou resultado de estímulos externos. Entretanto, trata-se mesmo de uma vocação expressa numa prática que não se dá devido a cobranças, mas, naturalmente, por meio de uma sensibilidade e inquietação artísticas que transcendem o grau convencional. 7 Programa de entrevistas “Roda Viva” !22 De fato, podemos ressaltar que este olhar atento de Caetano Veloso é expresso pelos temas trabalhados em suas canções. Estes são os mais diversos possíveis, e vêm a promover uma articulação entre o particular e o universal, o individual e o coletivo, o privado e o público, com um tratamento que abrange desde questões íntimas, inerentes a qualquer ser humano, até as mais gerais, relativas a diferentes grupos, que refletem uma pluralidade ideológica, conforme afirma Wisnik: As canções de Caetano falam de praticamente tudo: é difícil lembrar um tema que elas não tenham aflorado de alguma forma; é difícil lembrar um gênero ou um setor da música popular que elas não tenham revisitado com suas interpretações. A aplicação de Caetano Veloso ao campo da canção, com intervenções deslocantes, pontes inesperadas, e sua homenagem à força radiosa do que é belo e forte, faz da sua obra um comentário muito amplo do mundo através das inumeráveis refrações da palavra cantada. (WISNIK, 1988, p.8) Este tratamento de “praticamente tudo” citado por Wisnik, dado por meio da canção em Caetano Veloso pode ser explicado, acima de tudo, pelo fato de se tratar de um artista que se permite sempre ousar, experimentar as formas de expressão e de manifestação que sejam mais adequadas em relação ao que há para ser dito. Devido a isso, Caetano se permite testar as mais “inúmeras refrações” no que diz respeito à expressividade da canção, testando e ousando extrapolar seus possíveis limites, seja por meio da forma,, seja por meio da própria linguagem nela empregada. Não bastasse a pluralidade do compositor/intérprete, Caetano Veloso também construiu uma persona artisticamente falando que também é marcada por este mesmo aspecto vário. As quase cinco décadas de carreira deste cancionista baiano propiciam toda uma alteração de sua imagem, e, por isso, a possibilidade de contemplação de muitos e diversos Caetanos. Isto se daria naturalmente por condicionantes da passagem do tempo, mas, além disso, Caetano Veloso, por meio de diferentes estilos de vestimentas e de sua própria imagem como um todo (corte de cabelo, penteado e etc.) traz à tona mais uma vez seu aspecto camaleônico, visualmente falando. Em termos de identidade, o teórico Stuart Hall (2003) propõe algumas classificações, dentre as quais a de “sujeito pós-moderno”. Esta denominação está atrelada à ausência de uma identidade una, fixa, essencial ou permanente que !23 estaria ligada a componentes biológicos, mas sim ao caráter de múltiplas e diferentes identidades que se configuram historicamente, de acordo com as circunstâncias específicas dos mais variados cenários e épocas. Acerca do “sujeito pós-moderno”, é o próprio Hall quem explica se tratar de um [...] sujeito [que] assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor do “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (...). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertantes e cambiantes de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2003, p. 13). Ao analisarmos o comportamento tão singular adotado por Caetano, percebemos que este vai de encontro a esta categorização proposta por Hall, de modo a ser expresso por múltiplas e diferentes identidades assumidas nas mais diversas situações, e que também se desvelam de um modo bastante diversificado, por sua postura e comportamento, pelo que ele diz, as nuanças de sua performance, mas sobretudo, por suas canções. Apesar de brasileiro, Caetano Veloso consegue assumir com coerência o papel do outro, como o de quem goza de uma liberdade propiciada pelo distanciamento para olhar, analisar e criticar as incoerências de sua própria terra natal sem ser tomado pelo contaminamento de sua própria origem — fator que poderia tornar parcial todo e qualquer posicionamento tomado por ele. Dessa maneira, Caetano Veloso consegue empreender uma visão do Brasil e dos brasileiros a partir de um olhar estrangeiro, de alguém que, participante de uma determinada coletividade se coloca na posição do “outro”. Acerca desta figura, Kristeva (1994) pontua: Se voltarmos no tempo e nas estruturas sociais, o estrangeiro é o outro da família, do clã, da tribo. Inicialmente, ele se confunde com o inimigo. Exterior à minha religião também, ele pode ser o infiel, herético. Não tendo prestado fidelidade a meu senhor, ele é o nativo de uma outra terra, estranho ao reino e ao império. (KRISTEVA, 1994, p.100) !24 Em relação às palavras de Kristeva, Caetano Veloso já fora confundido com o “inimigo” ao assimilar em sua canção aspectos de culturas estrangeiras em meio ao nacionalismo de cabresto da segunda metade dos anos 60; fora chamado de “infiel” à ocasião de sua prisão e condenação ao exílio também no fim dos anos 60, sob a acusação de ter queimado a bandeira brasileira numa de suas apresentações — fato nunca provado, aliás, possivelmente forjado apenas para propiciar a extradição de um artista tão perigoso para o regime militar brasileiro—; “nativo de uma outra terra” ao voltar-se ferozmente em críticas às incoerências do Brasil, durante toda sua carreira; “estranho” em relação a um possível “reino” traduzido por um país que, conforme seu hino, conforma-se em estar “deitado eternamente em berço esplêndido” sendo, na realidade, arrasado por “ridículos tiranos” que assumem o poder político visando a um bem próprio, particular, e não da nação como um todo. Versos como os de Fora da Ordem (1991) podem ser citados como um exemplo disso, e falam por si só: Aqui tudo parece que é ainda construção e já [é ruína Tudo é menino e menina no olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua Nada continua E o cano da pistola que as crianças mordem Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita e muito mais intensa do que um cartão postal Assim, nesta tese propomo-nos e analisar e investigar o artista Caetano Veloso e sua obra, de modo a propor a classificação deste como um agitador cultural, devido à interssecção entre os mais diversos setores da arte, e também devido à maneira como o assunto cultura granha enfoque em sua atuação. Quando pensamos em cultura, lidamos com um conceito trabalhado sob os mais diversos pontos de vista. Neste estudo, tomamos por base a acepção de Bauman (2012), mais especificamente, o que é denominado por ele “conceito genérico”, no qual ganha enfoque a linguagem e sua decorrente produção de sentidos, dados como a essência da práxis humana. A este respeito, Bauman explica: O conceito genérico tem a ver com os atributos que unem a espécie humana ao distingui-la de tudo o mais. Em outras palavras, o conceito genérico de cultura tem a ver com as fronteiras do homem e do humano. [...] Em sua forma mais simples, o conceito genérico de cultura consiste em atribuir à própria cultura a qualidade de !25 característica universal de todos os homens, e apenas destes (BAUMAN, 2012, 131-133) Bauman, em seu comentário, nos permite chegar a uma perspectiva na qual a cultura não é dada apenas como um aspecto localizado (marcado territorialmente), mas sim, por um conjunto de características que perpassam nossas vivências e práticas sociais. Partindo deste âmbito, Caetano Veloso poderia ser chamado nacionalista ao tratar e abordar os mais variados aspectos da cultura nacional, dando-lhes uma visibilidade internacional — tanto de seus apectos positivos, em louvor, quanto na crítica de suas injustiças e mazelas. Ele também poderia ser chamado cosmopolita por transitar por outras culturas — estilos, costumes e idiomas —, com uma naturalidade tamanha que quase permitiria confundi-lo como algum nativo pertencente a estas. Além disso, seu movimento entre o nacional e o estrangeiro o centra como uma personalidade de relevância da cultura brasileira, num constante diálogo com outras que se traduz não numa negação ou substuituição desta, mas, sobretudo num enriquecimento da mesma, numa literal antropofagia cultural em que o devorar o que é diferente, o adaptar num processo de digestão e, então utilizá-lo, numa peça inédita, mas miscigenada, como seu é uma prática corrente. E, para além de questões dessa ordem, a agitação cultural promovida por Caetano Veloso também passa por outras esferas, como o particular e o público, a questão dos gêneros (masculino e feminino), o tradicional e o popular, mas sobretudo por um ousar, uma inquietação artística singular. O diálogo com culturas estrangeiras — tanto de língua inglesa, espanhola, italiana, francesa... —, o qual inicialmente, nos anos 60, foi erroneamente confundido como uma negação ou diminuição da cultura brasileira, pelo contrário, é marcado pela soma, pela incorporação, de modo a enriquecer ainda mais a cultura brasileira, tornando o que lhe é estranho mais do que familiar ou próximo, mas próprio. São literalmente quase cinquenta anos de assunção desta postura camaleônica, que ora se mistura, ora se destaca trazendo algo novo a partir desta aproximação, de maneira a surpreender seu público, seja agradando por algo que é considerado belo por este, seja chocando, com o que é considerado grotesco ou inaceitável, inicialmente, mas, que depois vem a se tornar o comum e apreciado. !26 Tudo passa pelo filtro bossa-novista-tropicalista deste artista baiano e é vertido em algo novo, completamente diferente do texto base. Exemplos não faltam, desde o início de sua carreira: a incorporação da guitarra elétrica em “Alegria, Alegria”; a letra marcada por uma concepção cinematográfica; o diálogo com o Concretismo; a assunção e aplicação de elementos de gêneros mais populares como o Rap e o Funk Carioca; a quebra de paradigmas em relação ao vocabulário empregado nas letras; a tomada de elementos de uma cultura hippie norte-americana durante os anos 70 adaptando os paradigmas do “paz e amor” à realidade brasileira então vigente; enfim, toda uma gama de princípios introduzidos os quais inspiraram outros artistas — tanto de seu contexto quanto das gerações posteriores —, tendo se tornado traços distintivos da canção popular da atualidade. Ney Matogrosso, uma das figuras mais reverenciadas da canção popular brasileira por sua vertente de intérprete, numa entrevista, faz um balanço das influências que o levaram a adotar a postura singular do artista reverenciado que se tornou. Diferentemente de um grande numero de artistas de sua geração, Ney Matogrosso confessa que o ponto de impacto fundamental que lhe servira de impulso não foi a Bossa-Nova, mas a Tropicália, e, mais especificamente, Caetano Veloso. E não pelos aspectos de inovação que visavam a uma modernização da canção brasileira, mas, muito pelo contrário: [...] A voz do João me chamou muito a atenção. Mas da bossa nova propriamente dita eu não gostei logo. Ela tinha uma coisa ideológica que vetava o passado, sabe? Tanto que os artistas da geração anterior foram ignorados rapidamente. Ninguém mais cantava em televisão porque viraram uma página da história da música brasileira. E isso me deixava contrariado. Até que veio a tropicália e Caetano Veloso cantou uma música de Vicente Celestino. Aí, sim, ele estava mais próximo da minha turma, mais próximo do meu ideal musical (MATOGROSSO, 2013)8 Mais do que a mera proximidade de um “ideal musical”, Caetano Veloso revelou-se um estímulo muito eficaz para Matogrosso justamente por ser mais do que um mero cantor ou intérprete, mas por assumir uma mesma postura dentro e 8 Entrevista na Revista Rolling Stone !27 fora dos palcos, um comportamento diferente e singular, conforme o próprio Matogrosso pontua: [Caetano Veloso] me instigava. Desde o começo eu ficava assim, esperava os discos dos Mutantes, de Caetano, de Gal, do Gil e do Chico Buarque. Ficava ansioso. Aquilo alimentava uma coisa estética dentro de mim que eu não tinha exatamente como definir. [...] Ele foi o único. O primeiro que vi ousando em todos os sentidos. E em termos comportamentais. Porque ninguém ousava em termos comportamentais. Roberto Carlos não ousava. Todos eram muito bonitinhos, hein? Gal gostosa, Bethânia deliciosa, todo mundo gostoso, bonito. Foi quando o sexo aflorou na música brasileira sem sofrimento. Porque antes era dor de cotovelo. Caetano era o representante disso. (MAROGROSSO, 2013)9 De fato, Caetano Veloso, valendo-se de sua visibilidade de artista, ousou trazer à tona uma forma de se comportar e de agir completamente irreverente em relação ao padrão dos artistas e das pessoas de sua época. E, conforme afirmou Matogrosso, Caetano ousou trazer à superfície, libertando da subjacência toda uma esfera atrelada à sexualidade, seja por seu comportamento, sua personalidade artística, seja pelo tratamento deste assunto em inúmeras canções, sem instaurar qualquer clima de tabu, que restringisse o assunto meramente à esfera particular e até certo ponto, proibida. Nesse sentido, Faour (2011) afirma mais categoricamente que “só a partir dos anos 70 a mulher e o gay passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos letristas.” (FAOUR, 2011, p. 16) E, deste grupo mencionado por Faour, Caetano Veloso é um de seus principais representantes. E, ao tratarmos de um conceito tão amplo quanto a cultura, a sexualidade se coloca como uma de suas expressões. Cecatti (1998) define o termo sexualidade como: O conjunto das emoções, sentimentos, fantasias, desejos e interpretações que o ser humano vivencia ao longo de sua vida, em busca do prazer, incluindo aí o desejo, a excitação e o conforto físico (CECATTI, 1998, p. 271) Sexo é uma prática inerente à condição humana e, assim como tantas outras atividades básicas, como as ligadas à higiene ou à alimentação, é algo a ser aprendido para ser desenvolvido. A prática sexual é também fruto da cultura, à medida que as pessoas de cada comunidade são orientadas de acordo com 9 Idem !28 itinerários, regulamentos e comportamentos dados como aceitáveis ou não em cada um destes contextos. Segundo Foucault (1988), a atmosfera da sexualidade é uma das componentes do ser humano moderno ocidental, fundamental na construção de uma identidade para o sujeito e condicionada por influências sociais e históricas. Estas são as que designam determinadas práticas sexuais como adequadas ou inadequadas, morais ou imorais, saudáveis ou nocivas, de acordo com seus próprios valores fundamentais. Em Caetano Veloso esta é uma temática desenvolvida com a mesma naturalidade que tantas outras atreladas à existência do ser humano, e também com a mesma pluralidade das demais. Em suas canções, temos exemplos das mais variadas formas de amor (e portanto, também de sexualidade). Temos a expressão de uma relação heterossexual convencional, atrelada aos estereótipos do homem, macho dominador, e da mulher, fêmea dominada e subjugada, em Esse Cara (1972). Temos a mesma modalidade de relação, mas com o domínio por parte da mulher que, por seus atributos físicos e psíquicos, subjuga o homem, em Tigresa (1977) e Queixa (1982). Apresenta-se a realidade de um casal heterossexual em Você é Minha (1997) e Eclipse Oculto (1983), marcada inclusive por aspectos com a fidelidade, como também a liberdade de uma relação que não é marcada por estes limites em termos de monogamia em Nosso Estranho Amor (1980). Constam também na obra de Caetano peças que tem por tema a homossexualidade, seja de forma discreta, como em Menino do Rio (1979), ou mesmo de maneira mais explícita, sem qualquer alarde: Ele Me Deu Um Beijo Na Boca (1982), Eu Sou Neguinha (1988) e Amor Mais Que Discreto (2007). Além das canções em si, vale lembrar que Caetano Veloso, ao lado de Jorge Mautner, foi um dos primeiros andróginos da canção popular brasileira, ao adotar um visual, a construção de uma imagem marcada por elementos comuns à esfera da aparência feminina, como brincos grandes em ambas as orelhas, batom, ruge e outras modalidades cosméticas atreladas à maquiagem de uma mulher como também algumas peças de vestimentas deste estilo. !29 No documentário “Olho Nu” (2012), Ney Matogrosso reitera esse comentário da importância do Tropicalismo em sua trajetória e até relata um fato bastante eficaz quando tratamos deste comportamento ou atitude tão particular de Caetano Veloso tanto dentro quanto fora dos palcos: Eu não era nem artista nessa época. A influência que o Tropicalismo provocou na minha cabeça resultou nisso. Eu não sou uma cria. Eu sou uma consequência do Tropicalismo. Porque a Bossa-Nova renegava o passado, renegava o cafona, renegava a dor de cotovelo. Mas a música brasileira não é a Bossa-Nova, é a Bossa-Nova também. Uma vez, em Brasília, na única sorveteria que tinha, que era em frente ao hotel Nacional, eu fui lá tomar um sorvete e Caetano estava na cidade, com Gilberto Gil, Rita Lee. Caetano Veloso estava de rosa do pescoço até o pé. Rosa era uma roupa que homem jamais escolhia. Ele estava inteiro de cor de rosa, com aquele cabelo lindo, enorme, cacheado... Eu não tive coragem. Ele era assim o meu ídolo, né? Eu não tive coragem de chegar pra falar com ele. Eu fiquei de longe, assim, extasiado, olhando pra ele. E eu percebia que ele ia além dessa coisa de música e de política que queriam colocar em cima dele. Eu sentia que era uma coisa muito mais profunda. Ao homem era vetado expor a libido, embora Caetano expusesse a dele moderadamente. Eu vim descaradamente com a libido exposta. (MATOGROSSO, 2012, 56:43 — 58:01) Matogrosso ressalta sua compreensão acerca de que Caetano, além de passar por, ia muito além das esferas da “música” e da “política” simplesmente, mas, de uma maneira mais intensa, de fato vivia o que expressava em sua arte, de maneira a confundir os limites entre realidade e ficção, entre as esferas do público e do privado, mas, fazendo de sua arte uma expressão do que ele realmente era. Em termos ainda de “libido”, além de tudo que já comentamos a pouco, podemos citar outro exemplo: a capa do disco “Araçá Azul” (1979) — historicamente, um dos discos mais devolvidos às lojas pelo público consumidor, devido à proposta de Caetano Veloso neste trabalho. O disco em questão tem por capa uma foto deste artista baiano, de um ângulo que parte de baixo para cima, trajando apenas uma tanga vermelha e tendo os olhos encobertos por seu cabelo grande — uma espécie de juba —, deixando à mostra, inclusive, seus pelos pubianos — algo no mínimo pouco convencional, digamos. !30 Devido todos estes fatos, Caetano Veloso assume a figura de um artista, o qual, segundo o jornalista Marco Augusto Gonçalves10, num artigo do caderno Mais do jornal Folha de São Paulo, ultrapassa os limites de um mero gosto musical: Gostar ou não gostar do autor de ‘Tropicália’ — mesmo para minha geração, que entrou na universidade no início dos anos 70 — não se resumia a uma simples manifestação de gosto musical: a decisão implicava uma opção política, cultural, existencial. (GONÇALVES, 1997, p. 4) Apesar de a arte estar ligada à produção de obras/peças e a atingir um determinado público — o qual apreciará ou não o trabalho do artista em questão —, Gonçalves exprime o fato de Caetano Veloso ser uma figura cuja relevância extrapola o gosto. Não se trata de gostar ou não, mas de aceitar sua pertinência em áreas que vão muito além à da canção popular. Em Caetano Veloso é traço característico o louvor, a homenagem a seus colegas cancionistas, cujos nomes constam em referências em letras de muitas de suas canções. Poderíamos citar as menções a: Djavan em Eclipse Oculto (1983), no verso “[...] e desperdiçamos os blues do Djavan”; Chico Buarque em Língua (1984), no verso: “E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate / E — xeque-mate”; Tim Maia e Jorge Bem em Podres Poderes (1984), no verso: “Indo mais fundo / Tins e bens e tais”. No entanto, Caetano também consta como referência em letras de canções de seus colegas. A canção Sina (1981), de Djavan — que a gravou em dueto com Caetano — contém o verso “Como querer Caetanear o que há de bom”; Mano Caetano (2001), de Lobão, é toda dedicada ao cancionista baiano, contendo versos como: “Amado Caetano, chega de verdade / Viva alguns enganos”, e Felicidade (2015), de Seu Jorge, que contém o trecho: Felicidade, é poder jogar um pano Colar no show do Caetano Cantar 'Odara' até o dia raiar São todos exemplos da importância dada por Caetano à cultura musical brasileira, e a relevância dele neste contexto. Uma canção bastante singular quando tentamos classificar Caetano Veloso como um agitador cultural é Beleza Pura (1979), a qual contém os versos: “Não me amarra dinheiro não / Mas a cultura”. Este poderia ser interpretado como a GONÇALVES, Marco Augusto. O Tropicalismo no Poder. Publicado no caderno Mais da Folha de S. Paulo em 02/11/97. 10 !31 expressão da predileção de alguém em relação a uma outra pessoa, não por aspectos socioeconômicos, mas por traços de sua identidade, daquilo que a forma pelo local onde ela nasceu, os valores com que foi educada e a visão de mundo que possui. Os mesmos versos também poderiam ser lidos como uma possível empáfia de alguém que negaria interesses econômicos, tentando expressar um caráter de pureza e honestidade atrelados a uma relevância apenas da “cultura”. No entanto, em Caetano Veloso este verso é bastante expressivo não por nenhuma das duas leituras anteriormente comentadas, mas sim porque, de fato, em sua obra é facilmente notada uma especial preocupação ou atenção com elementos que estão atrelados à cultura e não às questões monetárias que implicam na classificação de países desenvolvidos e subdesenvolvidos, de primeiro e de terceiro mundo. E isto se dá tanto em relação aos brasileiros quanto a questões de outros povos. O movimento deste cancionista baiano tem sido justamente o de trazer à tona os elementos da cultura nacional que, por vezes, são esquecidos ou deixados de lado — até mesmo por supostos nacionalistas e ufanistas — e somar a estes — entenda-se bem: somar e não substituir ou desvalorizar — elementos de outras culturas estrangeiras, de modo a domesticar o que até então era o estranho, e com isso enriquecer a gama de possibilidades de uma cultura já tão plural como a brasileira. E a escolha destes elementos exóticos se dá com a mesma intensidade tanto de países e culturas desenvolvidas e de primeiro mundo, quanto de outras pelo contrário, periféricas e subdesenvolvidas, buscando e primando o valor artístico e expressivo, sobretudo. Em “Bossa-Nova em Caetano e de Caetano: Um impulso que segue pulsando” buscamos investigar a relação de Caetano Veloso com este gênero musical brasileiro tipo exportação tão aclamado nacional e internacionalmente. Do despertamento com o boom de João Gilberto e Chega de Saudade em 1959, passando por sua reiterada paixão tanto pelo gênero musical quanto pela figura central deste, em questão, temos neste percurso um exemplo claro da relação de Caetano Veloso com a cultura como um todo. Já em “Tropicália: Um divisor de águas na cultura brasileira”, a investigação está centrada no movimento criado por Caetano Veloso em parceria com Gilberto Gil, o qual literalmente se colocou como uma quebra de paradigmas e marcou a história da canção e das artes como um todo no Brasil. Qual foi a proposta, como foi !32 desenvolvida e, nos anos subsequentes ao movimento propriamente dito, o que e quanto destes preceitos foram mantidos ou alterados por Caetano Veloso em seu movimento artístico são alguns dos temas desenvolvidos neste capítulo. Por sua vez, “A Cena do Camaleão. Luzes, Câmera: Canção” contém a investigação das relações de Caetano Veloso com a sétima arte. Amante confesso da cinematografia, apesar de ter se aventurado pelo setor da música e da canção, mais especificamente, o diálogo com as obras fílmicas permeia a obra deste cancionista baiano. Entre a crítica cinematográfica, o tratamento deste assunto em inúmeras canções, a suas participações em obras fílmicas e até a realização de um sonho de infância com a realização de uma obra fílmica assinada por ele mesmo, Caetano Veloso promove uma literal intersecção entre estes setores da arte, e, com isso, trabalha também com elementos da cultura brasileira e estrangeira. Por fim, “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão” se coloca como um estudo da face de intérprete de Caetano Veloso, a qual, por seu aspecto vário e multifacetado, diz muito em termos de cultura, por meio dos diálogos estabelecidos por este artista brasileiro, entre as mais diversas épocas, estilos e espaços, fator que ajuda a entender a dificuldade de classificação ou rotulação de Caetano Veloso a um único setor específico em termos de arte musical. Os aspectos levantados em cada um dos capítulos acabam por construir a figura de alguém que transita entre as mais diversas culturas e seus aspectos mais específicos com propriedade e coerência, desestabilizando a noção de identidade — seja em termos de nacionalidade, tempo, estilo, cultura, forma — por vezes, e, ao mesmo tempo contribuem para a concepção de uma outra identidade, sólida e una, mas também instável e cambiante, sem com isso perder sua essência ou nexo. Sim, desde que o público viu pela primeira vez aquele jovem baiano num festival de música em 1967, até os dias atuais, em que, conforme o verso de sua canção, é possível notar “os muitos cabelos brancos na fronte do artista”11, um fato salta aos olhos: “o tempo não para / e no entanto ele nunca envelhece”12. E isto, porque, apesar das alterações atreladas à inexorável ação do tempo, Caetano Veloso se mantém como um artista marcado por um espírito inquieto, curioso que 11 VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978) 12 Idem !33 segue se propondo a experimentar, agradando e chocando, mas, acima de tudo, correndo riscos apesar de já ter se estabelecido como um nome de relevância — sendo, portanto, neste quesito, um jovem — na cena cultural brasileira. Cabe a nós, estudiosos, tentar decifrar esta “força estranha” cujos efeitos ainda nos atingem com singular intensidade, a partir de uma figura que faz jus ao seu verso, afirmando em palavras, mas sobretudo em atitudes: “eu vou / por que não?”13. 13 VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria (1967) !34 1. BOSSA-NOVA EM CAETANO E DE CAETANO: UM IMPULSO QUE SEGUE PULSANDO “Um tom pra cantar Um tom pra falar Um tom pra viver Um tom para a cor Um tom para o som Um tom para o ser [...] Um tom pra gritar Um tom pra calar Um tom pra dizer Um tom para a voz Um tom para mim Um tom pra você Um Tom para todos nós” (Caetano Veloso, Um Tom) Ao empreendermos um olhar mais criterioso sobre a obra de Caetano Veloso, em meio ao aspecto múltiplo e vário que se revela inerente tanto à sua obra, quanto ao seu posicionamento como compositor e intérprete, acabamos também por nos deparar com algumas exceções, elementos que permanecem, fixos, nestas quase cinco décadas. Um dos mais significativos é justamente a Bossa-Nova. O comportamento e atitude de Caetano em relação àquele que é o gênero musical brasileiro tipo exportação por excelência ajudam a explicar e compreender melhor a trajetória de um artista avesso aos rótulos e classificações convencionais. Apesar da obra e da atuação múltipla de Caetano Veloso no campo da música popular, a Bossa-Nova se desvela como uma constante neste processo. Tudo começa pela clássica gravação de Chega de Saudade, marcada pela arrebatadora interpretação de João Gilberto em 1958 (lançada inicialmente como single que seria incorporado ao primeiro álbum homônimo do intérprete, que seria lançado um ano mais tarde) o qual, tal qual uma imensa “onda que se ergueu no mar”, mudou para sempre o rumo das águas da canção popular. O impacto do caráter inovador introduzido pelo banquinho, o violão e a singular forma de interpretação de João Gilberto aponta a direção para o primeiro disco oficial da carreira de Caetano Veloso — em parceria com Gal Costa —, “Domingo”, em 1967, e, acaba por se tornar uma espécie de parâmetro que permeia as quase cinco décadas de uma carreira que, de certo modo, acaba por se constituir como uma !35 ressaca destas águas musicais, após a rebentação no final dos anos 50. Se o primeiro disco de Caetano se coloca como uma homenagem, um tributo à Bossa-Nova — e, já revela, ainda que timidamente, um pouco do que se poderia esperar deste cancionista estreante —, exatos quarenta e cinco anos depois, num de seus mais recentes álbuns, Caetano dedica uma faixa — a canção que abre o disco — inédita, de sua autoria que, se por um lado, musicalmente, destoa completamente da estrutura melódica característica da Bossa, por outro, na letra, retoma o tom laudatório ao estilo musical brasileiro tipo exportação desde o seu título. Assim, no período compreendido entre “Domingo” e “Abraçaço”, buscaremos investigar a relação estabelecida entre Caetano Veloso e a Bossa-Nova, revelada em suas interpretações, composições e posicionamentos como um raro tom constante na aquarela deste camaleão. Em “Verdade Tropical”, livro de memórias do Tropicalismo escrito por Caetano Veloso — que não deixa de ser também um livro de memórias do autor — Caetano narra a ocasião em que teve o primeiro contato com a Bossa-Nova. Este ponto específico se deu num estágio que pode ser interpretado como totalmente propício, tendo em vista que, segundo Caetano, foi justamente quando ele e seus “companheiros de geração” estavam “começando a aprender a pensar e a sentir”: Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: “Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. (VELOSO, 1997, p. 35) Segundo o relato, o colega em questão apenas mostrou o disco deste estranho “sujeito que canta totalmente desafinado” a Caetano pelo fato de este já ser, àquela época, um declarado apreciador “de coisas loucas”. A interpretação tão singular empreendida por João Gilberto, que soou como uma coisa louca aos ouvidos dos apreciadores da música brasileira — caracteristicamente ligada a uma tradição em termos de interpretação — pode ser explicada, em primeiro lugar, pela própria voz do intérprete. Diferentemente dos grandes cantores do rádio, ligados ao samba-canção, João Gilberto não tinha uma grande voz e, portanto, não permeou sua emissão com os inúmeros vibratos !36 característicos dos intérpretes que queriam demonstrar sua extensão vocal privilegiada. Antes, João literalmente cantou baixinho, de uma forma excessivamente contida, que se opunha frontalmente ao padrão estabelecido até a época, ligado às grandes vozes de cantores como Nelson Gonçalves e Elizeth Cardoso, e, talvez, justamente por isso, fosse percebida como uma desafinação. Esta visão preconceituosa que é natural no homem em relação ao que é novo é literalmente resumida por Caetano num verso de uma de suas canções14: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Apesar do estranhamento inicial em relação à nova forma de interpretação inaugurada por João Gilberto, esta se tornou um clássico não só apreciado nacional e internacionalmente como também reproduzido por diversos artistas nas décadas seguintes — e até a atualidade —, como uma receita de sucesso. Acerca deste peculiar modo de interpretação introduzido por João Gilberto, que se tornou padrão da Bossa-Nova, Tatit (2004) pontua: A bossa-nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas do samba-canção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito das formas temáticas, mais percussivas, de condução melódica. Neutralizou a potência de voz até então exibida pelos intérpretes, já que sua estética dispensava a intensidade e tudo que pudesse significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte das canções dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do tempo forte na batida do violão. Desfez a relação direta entre o ritmo instrumental e a dança que caracterizava as rodas de samba. Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada elaboração sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante de que música artística só existe no campo erudito (TATIT, 2004, p. 49-50). A partir da neutralização dos excessos vocais, do tom passional exagerado e da própria batucada característicos do samba-canção, João Gilberto chegou a uma modalidade de canção mais leve (em termos de ritmo e conteúdo das letras). Mas, sobretudo, as canções da Bossa-Nova se colocam como peças mais elaboradas do ponto de vista técnico, com arranjos mas requintados, quase que alcançando o nível de complexidade da música clássica, rompendo um paradigma neste sentido, haja vista o trabalho realizado por grandes maestros, como Tom Jobim. 14 VELOSO, Caetano. Sampa (1975) !37 Deste modo, que não fora aceito inicialmente, e até classificado como desafinação por grande parte do público, desde o início foi tomado por Caetano como “uma sucessão de delícias”, conforme ele mesmo afirma: A bossa-nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e — o que é mais importante — as nossas possibilidades. (VELOSO, 1997, p. 35) Mais do que um gênero que criou um novo gosto musical, Caetano Veloso ressalta o fato de a Bossa-Nova ter promovido uma elevação do “estágio cultural” dos brasileiros, já que, um estilo mais apurado só pode ser devidamente apreciado por um público suficientemente sofisticado. E, esta sofisticação resultou justamente de um processo de revisão do acervo musical brasileiro, pelo próprio público que, não só refinou o seu gosto como também passou a estar mais receptivo, permitindo que os artistas trabalhassem numa perspectiva mais ampla e não mais fadados a apenas seguirem fórmulas prontas para agradar a coletividade. João Gilberto e sua Bossa-Nova inovadora apresentada no disco “Chega de Saudade” tornaram-se o marco-zero de toda uma geração de grandes nomes da música popular — “arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”15 —, cuja obra se constitui como um eco ou resultado desta revolução no campo da música popular, conforme afirma Chico Buarque: Para todas as pessoas da minha geração, "Chega de Saudade", o tema que iniciou a bossa-nova, composto por Vinicius e Jobim e cantada por João Gilberto, foi uma epifania, uma grande revelação. Posso lembrar perfeitamente o momento em que a escutei pela primeira vez, aos 15 anos, mas afirmo que todos os músicos de idade parecida com a minha poderiam lhe contar onde, como e em que momento a descobriram. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo... Ela mudou nossas vidas. [...] Considerávamos que era o que se devia fazer, o poder daquela música era tão forte que marcou nossos caminhos (BUARQUE, 2005). Especialmente no que diz respeito a Caetano Veloso, não só a Bossa-Nova, mas também João Gilberto, de uma maneira singular, podem ser identificados como prelúdios de toda a atuação artística exercida profissionalmente por Caetano Veloso. Isso ajuda a explicar o louvor e a admiração constantemente expressos por Caetano em prosa e verso em relação ao gênero, e, particularmente ao artista em questão. 15 JOBIM, Antonio Carlos, "Texto de contracapa" do LP Chega de Saudade (1959). !38 Mesmo tendo traçado uma rota bastante variada, optando por viajar pelos estilos e não se emoldurar como um cancionista bossanovista, a Bossa parece se colocar para Caetano como o lugar de conforto ao qual ele sempre retorna, musicalmente, e João Gilberto, a “primeira referência” que vem norteando toda a sua produção e, confessadamente, sua “fruição”, conforme o próprio Caetano: João era a informação principal, a primeira referência — além de ser a fonte central de fruição estética. De fato, quando chegou para mim a hora de Guimarães Rosa ou de Proust, a hora de Godard, a hora de Eisenstein, de Stendhal, de Lorca ou de Joyce e de Webern e Bach e Mondrian e Velásquez e Lygia Clark — mas também a hora de Warhol e da revisão de Hitchcock, a hora de Dylan, de Lennon e de Jagger —, foi sempre aos valores estéticos que extraí de minha paixão por João Gilberto que me reportei para construir uma perspectiva. (VELOSO, 1997, p. 69-70) A declarada “paixão” por João Gilberto e toda uma crítica estética concebida a partir dela tornou-se, para Caetano, uma espécie de lente, a partir da qual perpassa o olhar, a fruição e o juízo de valor acerca de qualquer obra de arte. Assim, seja a literatura brasileira (Guimarães Rosa), ou estrangeira, como a francesa (Stendhal e Marcel Proust), espanhola (Garcia Lorca), irlandesa (James Joyce); a ciência (Albert Eisenstein), as artes plásticas (Velásquez, Lygia Clark e Warhol), o cinema (Godard, Warhol e Hitchcock) e a própria música, tanto em sua vertente clássica (Bach e Webern), como também a estrangeira contemporânea (de compositores como Bob Dylan, John Lennon e Mick Jagger, ligados ao contexto do rock), tudo passou (e, talvez, o que é novo ainda hoje passe) pelo filtro joãogilbertiano para Caetano chegar à literal construção de uma “perspectiva”, tendo encontrado uma forma particular de se colocar e expressar musicalmente. Esta maneira tão singular que caracteriza o trabalho artístico de Caetano Veloso, se por um lado escapa às definições convencionais no que diz respeito aos mais diferentes estilos por ele visitados, as mais variadas temáticas e assuntos por ele abordados, das mais inúmeras formas, acaba, por outro lado, revelando um artista que é um genuíno fruto da Bossa-Nova, tendo chegado a interpretar alguns de seus maiores clássicos e até a compor canções tomando como modelo este estilo musical em termos de letras e arranjos, mas, sobretudo, reverenciando-o em suas letras, em inúmeras referências ao gênero musical em si, mas também ao seu mentor João Gilberto, sem, no entanto, restringir-se a ponto de ser classificado meramente com um dos nomes da Bossa. !39 Em 1997, Caetano lançou em seu álbum “Livro” — simultaneamente ao seu literal livro “Verdade Tropical” —, a canção Pra Ninguém, a qual, desde o seu título, mantém uma intertextualidade com a canção Paratodos (1993)16, de Chico Buarque. Esta se coloca como um tributo do cancionista carioca literalmente quase que “para todos” seus colegas de profissão, de diferentes tempos e espaços, que são nominalmente citados, como: Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, Ary Barroso, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Gilberto Gil e o próprio Caetano17. Mas, tem especial destaque aquele é denominado seu “maestro soberano”, um dos ícones da Bossa-Nova, Antonio Carlos Jobim: O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Meu maestro soberano Foi Antonio Brasileiro Vale lembrar que Tom Jobim foi mais do que uma referência primordial para Chico Buarque, que, além de seu discípulo, veio a tornar-se seu amigo e parceiro na autoria de diversas canções que entraram para a história, configurando-se com clássicos do cancioneiro popular brasileiro, como: Sabiá (1968), Lígia (1972), Retrato em Branco e Preto (1968), Anos Dourados (1986) e Eu Te Amo (1980). Em Pra Ninguém, Caetano também cita não apenas diversos cantores e intérpretes brasileiros, como também os títulos de algumas das mais famosas canções que foram sucesso na voz destes. Deste modo, a estrutura básica da maioria dos versos da canção se resume ao nome do cantor ou intérprete, seguido do verbo “cantando” (algumas vezes ocorre a elipse desta forma verbal) e o nome da canção, especificamente. Nana cantando "nesse mesmo lugar" Tim maia cantando "arrastão" Bethânia cantando "a primeira manhã" Djavan cantando "drão" Chico cantando "exaltação à mangueira" Paulinho, "sonho de um carnaval" Gal cantando "candeias" E Elis, "como nossos pais" 16 BUARQUE, Chico. Paratodos (1993) “Para um coração mesquinho / Contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é inconteste / Tome Noel, Cartola, Orestes / Caetano e João Gilberto” (grifo nosso). 17 !40 A canção se inicia com referências a artistas contemporâneos de Caetano, que se revelaram nos festivais da segunda metade dos anos 60, como: Nana Caymmi, Chico Buarque, Paulinho da Viola. Gal Costa e Elis Regina, e a canções deste mesmo contexto, como Arrastão (1965) e Candeias (1966), de Edu Lobo e Como Nossos Pais (1976), de Belchior. No entanto, na continuação, passam a ser citados também representantes da geração anterior a Caetano e seus contemporâneos: Sílvio cantando "mulher" E Elisete cantando "chega de mágoa" Carmen cantando "adeus batucada" Gilberto cantando "sobre todas as coisas" Cauby cantando "camarim" Orlando cantando "faixa de cetim" Milton, "o que será?" Roberto, "a madrasta" Bosco, "rio de janeiro" E Dalva, "poeira do chão": Menções a cantores como Silvio Caldas, Elisete Cardoso, Cauby Peixoto, Orlando Silva, Dalva de Oliveira e até Carmen Miranda18 vêm a seguir, seguidas de standards como: Mulher (1940), sucesso de Silvio Caldas de autoria de Custódio Mesquita e Sady Cabra, Adeus Batucada (1935), de Synval Silva e Poeira do Chão (1952), de Klecius Caldas & Armando Cavalcanti. Os grandes nomes desta geração são permeados ainda por mais contemporâneos de Caetano como Gilberto Gil, Milton Nascimento e João Bosco. Se em Paratodos Chico deu o destaque para Tom Jobim, em Pra Ninguém Caetano o remete para João Gilberto, declaradamente seu mestre soberano, que inaugurou o estilo Bossa-Nova de interpretação, com os versos: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio / E melhor do que o silêncio só João”, dando conta de que apenas o silêncio poderia superar toda a maravilhosa profusão de intérpretes e canções da música brasileira citada anteriormente na letra. Mas, haveria ainda alguém para superar o silêncio: João Gilberto, colocado num patamar ainda mais alto, praticamente inalcançável. Um outro aspecto que poderia ser ressaltado na distinção entre estas duas canções é o fato de Paratodos, de Chico Buarque ser uma canção que 18 Que nem sequer era brasileira de fato, mas que sem dúvida fez grande sucesso no Brasil. !41 homenageia,em sua esmagadora maioria, figuras masculinas do contexto musical brasileiro — na letra inteira, as únicas artistas mencionadas são: “Nara [Leão], Gal [Costa], [Maia] Bethania, Rita [Lee], Clara [Nunes] —, enquanto que Pra Ninguém há um equilíbrio maior no que diz respeito a referências de homens e mulheres. Outra canção que se constitui como um tributo à Bossa-Nova, e alguns de seus maiores nomes, dentre os quais, logicamente, João Gilberto, é Saudosismo (1986), cujo arranjo também está ligado ao estilo Bossa-Nova. Segundo Guilherme Wisnik (2005), trata-se da “composição de Caetano que mais sintetiza a sua relação com a bossa nova”, sendo, acima de tudo, “uma declaração de amor e humor a ela”. (WISNIK, 2005, p.54) Eu, você, nós dois Já temos um passado, meu amor Um violão guardado Aquela flor E outras mumunhas mais A letra e a melodia em estilo Bossa-Nova — marcada pela execução à voz e violão —, unidas compõem uma canção que literalmente se coloca como uma real expressão de saudade do estilo musical brasileiro por excelência. Acerca do arranjo de Saudosismo, Wisnik (2005) ainda pontua: Construída aparentemente em compasso ternário, a canção desenvolve-se, na verdade, numa sutil contraposição de tempos — quatro contra três, a chamada hemiólia —, o que parece, no caso, introduzir uma inesperada marcha dentro do ambiente harmônico da bossa nova, acelerando o seu andamento. (WISNIK, 2005, p. 54) Esta espécie de Bossa-Nova marcada por um andamento acelerado, segundo Wisnik, tornou-se característica do “estilo de compor” de Caetano, a ponto de ter ganhado o apelido de “marcha caetaneada” (p. 54), e marca um aspecto de novidade em relação ao clássico gênero musical brasileiro. O verso que abre a canção já estabelece uma intertextualidade com a canção Fotografia (1977), de Tom Jobim, que é iniciada também por “Eu, você, nós dois” por meio da intertextualidade. O termo intertextualidade aponta para o conceito que foi introduzido por Julia Kristeva no âmbito da literatura. Trata-se de uma relação de diálogo estabelecida entre diferentes textos e discursos, seja por um trecho em comum, seja por !42 características temáticas e estruturais em comum. A este respeito, é a própria Kristeva (1979) quem pontua se tratar de uma característica a todo e qualquer texto: “[...] Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 2012, p. 68). Aliás, este é um processo bastante corrente tanto nas letras – o texto -, quanto nas melodias das canções de Caetano Veloso. Acerca dele, é Barthes (2004) quem comenta: O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos caminhos dessa descontrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis. [...] A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz, evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES, 2004, p. 275) Neste caso específico, a canção de Jobim está contida na de Caetano conforme as palavras de Barthes, “sem aspas“, incorporada ao texto, dada a temática comum, sendo identificada apenas por quem porventura a conheça. Saudosismo tem por tema um casal que passa a rememorar todo um “passado” em que estiveram juntos, o qual foi marcado pela Bossa-Nova — talvez como trilha sonora de momentos importantes da vida do casal em questão. Este, preserva como lembranças desta vida a dois “um violão guardado”, “aquela flor” e outras “mumunhas” — artimanhas, planos19 — ligados ao contexto da conquista amorosa, e provavelmente, ao início da união entre os dois. O “violão”, o “amor”, e a “flor” são elementos comuns às letras de grande parte das canções da Bossa-Nova, marcadas por uma temática romântica, e se colocam como referências a estas. Poderíamos citar como exemplo a letra de Corcovado (1960), outra canção de Tom Jobim, que também fez muito sucesso interpretada por João Gilberto — com a participação de Stan Getz — cuja letra acaba por se constituir como um intertexto de Saudosismo: Um cantinho e um violão Este amor, uma canção Pra fazer feliz a quem se ama 19 Disponível em: [http://www.priberam.pt/dlpo/mumunhas]. Acesso em 1 de dezembro de 2014. !43 A letra de Corcovado é iniciada pela expressão de um eu lírico que, apaixonado, coloca-se em “um cantinho”, com “um violão” e, inspirado pelo “amor” que sente, passa a escrever “uma canção” dedicada ao seu amor. Esta situação inicial desta canção de Jobim, parece remontar o referido “passado” da canção de Caetano, quase como se o eu lírico fosse o mesmo, ou então, como se o eu lírico de Saudosismo tivesse feito o mesmo, e dedicado canções — de sua autoria ou mesmo clássicos da Bossa — à sua amada. Eu, você, João, Girando na vitrola sem parar E o mundo dissonante que nós dois Tentamos inventar A continuação da canção de Caetano se dá quase que pela repetição do verso que iniciou a canção, com a diferença de que, após o “eu e o “você”, o “nós dois” fica implícito, e é citado, então, “João” — Gilberto, no caso —, intérprete dessa trilha sonora que marcou a história do casal em questão. A presença de João Gilberto é dada, metonimicamente, por meio de um disco “girando na vitrola sem parar”, repetidamente ouvido, a ponto de o caráter musicalmente “dissonante” tanto da voz quanto dos arranjos característicos das canções interpretadas por João — característico da Bossa — passar a constituir todo um “mundo” que este casal se propôs a “inventar”. Este universo particular, por sua vez, vem a ser a síntese de toda a história de um amor que, como todos, conforme já disse o poeta: “é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente”20, não se constitui apenas de momentos felizes, mas, como “um contentamento descontente”21, também é marcado pelo aspecto “dissonante” em alguns momentos, via de regra. A felicidade, a felicidade Eu, você, depois Quarta-feira de cinzas no país E as notas dissonantes se integraram Ao som dos imbecis A sequência do movimento poético se dá pelo verso constituído repetidamente da expressão “a felicidade”, que se coloca tanto como uma expressão deste “mundo” inventado pelo casal, mutuamente, como também uma referência a 20 Camões 21 Idem !44 outra canção de Tom Jobim, em parceria com Vinicius de Moraes, cujo título é constituído por esta mesma expressão, datada de 1959. Aliás, um dos versos desta canção de Jobim é justamente a afirmação de que “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”, o qual é bastante expressivo em relação à continuidade da letra da canção de Caetano. Vem à tona então o que aconteceu “depois” desta fase romântica, marcada pela sonoridade da Bossa-Nova. Como ao fim do carnaval, chegou a “quarta-feira de cinzas”, encerrando toda uma fase de alegria e prazer. No entanto, a expressão que dá conta do fim de uma série de festejos é ligada a um contexto político específico do que ocorrera “no país” — a saber, o Brasil —: a ditadura militar. A mesma expressão faz ainda referência a uma canção de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, intitulada Marcha da Quarta-Feira de Cinzas (1964). Esta canção retrata o Brasil imerso numa tristeza que até então não lhe era característica, fruto das proibições e cerceamentos promovidos pelos militares que assumiram o poder: Acabou nosso carnaval Ninguém ouve cantar canções Ninguém passa mais Brincando feliz E nos corações Saudades e cinzas Foi o que restou A letra de Saudosismo segue, trazendo a afirmação de que, neste período, “as notas dissonantes” características da Bossa-Nova foram incorporadas ao chamado “som dos imbecis” — que pode estar relacionado tanto aos que eram favoráveis ao regime ditatorial, quanto àqueles do âmbito da música popular que se opunham às ideias veiculadas por Caetano e Gil no Tropicalismo, encarando-as como algo que se opunha ao nacionalismo das canções de protesto pela incorporação de elementos de outras culturas. Sim, você, nós dois Já temos um passado meu amor A bossa, a fossa, a nossa grande dor Como dois quadradões Lobo, lobo, bobo Após reiterar a presença de todo um “passado” muito presente na história do casal, tanto uma fase boa quanto uma outra ruim, o eu lírico o sintetiza com os termos: “a bossa”, trilha sonora desta caminhada a dois, “a fossa”, síntese dos !45 momentos difíceis enfrentados pelo casal — reiterado pela expressão “a nossa grande dor”. Uma parceria mantida há tanto tempo permite configurar o casal “como dois quadradões”, que já passaram por diferentes épocas e altos e baixos de tendências, gostos, posicionamentos e etc. O verso que encerra a estrofe se constitui como uma referência à canção Lobo Bobo (1959), de Carlos Lyra, cuja letra poderia ser resumida como uma paródia do clássico conto de fadas europeu “Chapeuzinho Vermelho”. Na canção, contrariamente ao conto, a protagonista, “Chapeuzinho Vermelho” — sensualizada como uma moça “de maiô — não foi devorada pelo Lobo-Mau, mas, encantou-o e acabou até por domesticá-lo, conforme consta nos versos: Lobo canta, pede Promete tudo até amor E diz que fraco de lobo É ver um chapeuzinho de maiô Chapeuzinho percebeu Que o lobo mal se derreteu Pra ver você que lobo Também faz papel de bobo Só posso lhe dizer Chapeuzinho agora traz Um lobo na coleira Que não janta nunca mais A referência à canção em questão, um sucesso da Bossa-Nova, pode levar a entender que o eu lírico de Saudosismo, tal qual o Lobo Bobo, passou do estereótipo de machão dominador a dominado, submisso. E tamanha mudança ocorreu devido ao encantamento por sua mulher — ressaltando uma força inerente à mulher que não é revelada por uma estrutura física avantajada ou mesmo uma maneira violenta de agir, como um lutador de boxe, mas sim sutil, doce e igualmente perigosa, como o doce canto de uma sereia. Eu, você, João Girando na vitrola sem parar Eu fico comovido de lembrar O tempo e o som Ah, como era bom Mas chega de saudade A realidade é que aprendemos com João Pra sempre a ser desafinados Chega de saudade, chega de saudade !46 Após toda esta volta ao passado, tendo como fundo musical “João girando na vitrola sem parar”, o eu lírico afirma ficar “comovido” apenas por se “lembrar” daquele “tempo”, daquele “som”, e, sintetiza toda a felicidade daquele tempo com a exclamação: “Ah como era bom”. Esta expressão dá a ideia de um passado inesquecível, talvez até mais feliz do que o próprio presente, deixando no ar a ideia comum de que se era feliz sem saber, frente ao que se vive hoje. No entanto, logo em seguida o eu lírico resolve parar de apenas pensar no passado, e a expressão por ele utilizada nesse sentido não poderia ser mais plena de significado: “chega de saudade”. Trata-se justamente do título da canção de Jobim e Moraes com que João Gilberto se lançou no fim dos anos 50, abrindo para o mundo oficialmente as portas da música genuinamente brasileira que se consolidou mundialmente falando, a Bossa-Nova. A plenitude de significado da expressão “chega de saudade” é explicada pela relação direta que estabelece em relação à canção em questão, e é reforçada no verso seguinte, que traz outro trecho da lera, justamente a continuação:” a realidade é que”. Se na canção-base o fato era o de que “sem ela não há paz, não há beleza”, ou seja, uma literal confissão de amor de um apaixonado que não vê sentido em nada longe de seu amor, na canção de Caetano, permanece o mesmo tom, não em sua esfera erótica (entre uma mulher e um homem), mas na esfera de um discípulo em relação ao seu mestre, que afirma que não só ele, mas, dando voz a toda uma coletividade de uma maneira quase majestática, que todos “aprendemos com João” a trilhar o caminho da canção popular, de modo a “pra sempre”, como algo indelével, “ser desafinados”, não no sentido literal da palavra, mas, fazendo jus à letra da canção homônima de Jobim e ao modo até então inédito de interpretação inaugurado por João Gilberto. A canção é encerrada pela repetição da expressão que dá título à canção de Jobim e Moraes, e dá conta de uma situação em que o eu lírico encerra o seu momento de reflexões acerca do passado, e volta para o seu presente, a preocuparse com as questões que lhe afetam no aqui e agora. Assim também como em relação à influência de Jobim e Gilberto, a ideia é a de seguir em frente, dar continuidade a esta arte musical, partindo da inspiração e chegando à transpiração no que diz respeito a criar algo novo. !47 Acerca de Saudosismo, numa síntese, Wisnik ressalta o fato de se tratar de uma: Revisão que incorpora suas lições construtivas: a recusa do saudosismo nostálgico (“chega de saudade”), e a atitude provocativa de desafinar consensos como o modo de afirmar o próprio ser (“A realidade é que aprendemos com João [...] “Saudosismo” é exemplar como composição de um ex-aspirante a bossa-novista virado do avesso, que presta homenagem ao seu legado eterno sem deixar de enfatizar a impossibilidade de continuá-lo formalmente, alterando o seu andamento por dentro, e truncando a sua natural fluência harmônica com sequências de acordes paralelos que, num isomorfismo, deixam a canção parada, aludindo à repetição insistente de um disco riscado [...]. (WISNIK, 2005, p.55) Ao tratarmos de um sentimento de nostalgia ligado ao contexto da BossaNova somado a uma tentativa de novidade a partir desta, isto nos remete ao início da carreira de Caetano Veloso, no fim dos anos 60, mais especificamente, ao seu primeiro disco. “Domingo” (1967) é o álbum que se constitui como a pedra fundamental da carreira de Caetano Veloso, e também de Gal Costa, — que entrou como parceira de Caetano nesta obra —, e pode ser caracterizado à priori não só como uma homenagem à Bossa-Nova e um dos ecos do impacto causado por esta na dupla de artistas em questão, mas sobretudo, um disco “joãogilbertiano radical” por excelência. Na contracapa do disco, constavam três pequenos textos de Caetano Veloso, que revelam muito de seu projeto artístico já naquele momento e acabam por ecoar durante toda sua carreira. Estes são reproduzidos abaixo, para que os possamos comentar: I Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. Por isso eu considero necessária a sua presença nesse disco em que se registra uma fase do meu trabalho em música popular, algumas das canções que eu fiz até agora. Por isso, e também porque desde a Bahia que nós cantamos juntos, desde lá ela faz com que meus sambas existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a composição e o canto: cada interpretação tem a mesma idade da canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considera-la como parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de “GAL interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta !48 músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as minhas. GAL cantando o que quer que ela goste, isso já é minha música, e quando eu canto ela está presente. O seu canto (como o de Gil ou o de Bethânia) tem sido sempre meu parceiro. O produtor musical responsável pelo disco, João Araújo, por questões mercadológicas que culminavam na impossibilidade de lançar dois álbuns solo, um para cada artista, acabou por selar a parceria entre Caetano e Gal — de dois amigos de longa data, já naquela época — que atravessaria décadas, num entrelaçamento que chega aos dias atuais com o mesmo vigor, tendo em vista que Caetano Veloso consolidou-se não só como um dos mais reverenciados intérpretes, como também compositores brasileiros, e Gal Costa como uma das mais aclamadas intérpretes do cancioneiro popular brasileiro, e em especial, a maior da obra de Caetano Veloso. Basta atentarmos para a carreira de Gal. A primeira gravação oficial de Gal Costa é datada de 1965. Trata-se de um compacto, com duas canções, sendo uma delas: Sim, Foi Você (1965), de Caetano Veloso. O mais recente álbum lançado por Gal, “Recanto”, de 2011, é composto por 10 canções inéditas de autoria de Caetano Veloso e produzido por este e seu filho Moreno Veloso. Nestes quarenta e seis anos de carreira que permeiam os dois discos citados, Gal Costa já gravou mais de cinquenta canções de Caetano, muitas das quais, tornaram-se grandes sucessos em sua voz, e são até hoje peças fundamentais de seu repertório. O repórter Danilo Casaletti escreveu o texto intitulado “Divino, Maravilhoso: Gal canta Caetano” 22, que trata do álbum que a gravadora Universal lançará em 2015 para celebrar os sessenta anos de idade de Gal Costa. O disco no qual será passada a limpo grande parte da carreira da cantora será composto de trinta e seis canções de autoria de Caetano Veloso gravadas por Gal apenas entre os anos de 1967 e 1983, selecionadas pelo crítico musical e jornalista Rodrigo Faour. Segundo Casaletti, “nenhuma cantora se identifica tanto com a obra de Caetano Veloso como Gal Costa”, e o próprio Caetano, ao longo de sua carreira tem pontuado este mesmo fato. Desde “Domingo”, que continha o texto no qual ele afirmara que “desde a Bahia” ele e Gal vinham cantando “juntos” e, era justamente por meio dela que seus “sambas existam de verdade”, Gal é dada por Caetano Disponível em: [http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR71798-5856,00.html]. Acesso em 18 de dezembro de 2012. 22 !49 como “parte integrante” do seu “processo de criação” já naqueles dias e, de certa maneira, podemos afirmar que isto ocorre até hoje — haja vista o disco “Recanto” —, a ponto de configurar Gal não só uma das melhores amigas de Caetano, mas, sobretudo a dona do “canto” que literalmente “tem sido sempre” seu “parceiro”. II Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga, o último samba de um amigo. Isso é tão bom de cantar: uma música que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco, estou enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz transformadas em música por Dori, Menescal e Francis e procuro amá-las despreocupadamente, tento aceita-las como prontas (não há mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram, não aquilo que eu lhes dei. O fato de Caetano gostar de cantar vem sendo reiterado em sua carreira como intérprete, e, na posição de compositor ele também já deixou isto bastante claro em depoimentos e até em versos de suas canções, como: “Cantando eu mando a tristeza embora”23; “Minha voz, minha vida [...] / Vida que não é menos minha que da canção”24; “Por isso uma força me leva a cantar [...] / Por isso é que eu canto / Não posso parar”25, e “Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar” 26. O gosto de Caetano por “uma canção antiga” em meio à novidade de suas composições também pode ser comprovado ao longo de sua carreira, já que em seus discos está registrada a sua interpretação de clássicos tanto do repertório brasileiro quanto do inglês e do espanhol, como: Coração Materno (1951), Chuvas de Verão (1949), Cucurrucucu Paloma (1954), La Barca (1957), Nature Boy (1948) e Smoke Gets in Your Eyes (1933). “Domingo” se revelara como uma “experiência nova” para Caetano, tendo em vista que ele recebia de volta “essas coisas” — as canções — que ele fez ou apenas interpretou “transformadas em música” por Dori Caymmi, Roberto Menescal e Francis Hime, como algo novo e um tanto quanto distinto de seu projeto inicial, positivamente falando. 23 VELOSO, Caetano. Desde que o samba é samba (1993) 24 VELOSO, Caetano. Minha voz, minha vida (1997) 25 VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978) 26 VELOSO, Caetano. Como dois e dois (1971) !50 III Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (UM DIA, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está — acredito que gravei este disco na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer tranquilamente que o risco de beleza que esse disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe, a Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas de Dona Mariana, a Dó, a Nossa Senhora da Purificação e a Lambreta. O terceiro e último texto da contracapa contextualiza o presente de Caetano à ocasião do lançamento do disco. Sua “inspiração” já estava “tendendo para caminhos muitos diferentes” dos que ele seguira até então, não mais no sentido de uma nostalgia de tempos e lugares”, mas em relação à construção de todo um “projeto de futuro”. Acerca deste projeto, Caetano já havia afirmado, num debate promovido pela revista Civilização Brasileira, em 1966: Ora, a música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida que toda informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da realidade brasileira [...] Para isso nós da música popular devemos partir, creio, da compreensão emotiva e racional do que foi a música popular brasileira até agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base na criação. Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela, não só temos que sentila mas conhecê-la. É este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação (...) Aliás João Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular. (VELOSO, 1979, p. 23) Caetano desmistifica qualquer possibilidade de perda de identidade atrelada ao processo de modernização da canção — contrariamente ao que muitos à época do lançamento do disco temiam, encarando como algo antinacionalista. Contrariamente a isso, as palavras de Caetano se colocam quase que como uma teorização no que diz respeito a “fazer algo de novo” no âmbito da “tradição” da música popular brasileira. Para tanto, a primeira condição estabelecida liga-se a “conhecê-la” profundamente, afim de que se produza algo “coerente com ela”. !51 Augusto de Campos (1974), acerca das palavras de Caetano, afirma que “no panorama ainda difuso e confuso da moderna música popular” que ao grande público se dividia entre o nacionalismo ferrenho das canções de protesto, o aparente silêncio de uma postura de alienação, e o Tropicalismo — que também fazia um protesto, à sua maneira, mas era encarado como antinacionalista por ser uma expressão brasileira da influência da cultura internacional — “alguns compositores, dos melhores por sinal, da nova safra musical, parece que estão se apercebendo da cilada que lhes armavam os xenófobos conservadores” (CAMPOS, 1974, p.62). Campos atribui “extrema lucidez” à afirmativa de Caetano Veloso acerca da “retomada da linha evolutiva”, e afirma: Dificilmente se poderia fazer crítica e autocrítica mais esclarecida e radical do que esta, do jovem compositor baiano. Não se trata de nenhuma “volta a João Gilberto”, de nenhum “saudosismo”, mas da tomada de consciência e da apropriação da autêntica antitradição revolucionária da música popular brasileira, combatida e sabotada desde o início pelos verdadeiros “saudosistas”, por aqueles que pregam explícita ou implicitamente a interrupção da linha evolutiva da música popular e o seu retorno a etapas anteriores à da bossa-nova, na expectativa de uma vaga e ambígua “reconciliação com as formas mais tradicionais da música brasileira”. (CAMPOS, 1974, p. 62) Campos também ressalta o fato de que, apesar do fascínio de Caetano Veloso por João Gilberto e seu estilo característico, o objetivo do jovem baiano não se ligava a nenhuma “volta” às características e padrões do início da Bossa-Nova, mas sim, pelo contrário, a tomá-los como ponto de partida no empreendimento de uma continuação, da criação de algo novo a partir disso. O aspecto inovador proposto ia literalmente de encontro aos “saudosistas”, não só no sentido de interromper a evolução da música popular brasileira, mas sobretudo estacioná-la, retomando aspectos “mais tradicionais da música brasileira”, anteriores inclusive à própria Bossa-Nova, numa proposta literalmente passadista, voltando os olhos para trás e tentando tornar o que viesse à frente uma mera repetição. Assim, se para Caetano, João Gilberto representava já naquela época o divisor de águas que marcara de maneira precursora o momento em que “a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular” (grifo nosso), para Augusto de Campos “é preciso saudar Caetano Veloso e sua oportuna rebelião contra ‘a ordem do passo atrás’”, por estar posicionando-se no mesmo sentido e visando à criação de um futuro a !52 partir do passado — uma espécie de fruto ou resultado possível — e não meramente repeti-lo. (CAMPOS, 1974, p. 64). Nesse sentido, composto pelas doze canções: Coração Vagabundo; Onde eu nasci passa um rio; Avarandado, Um Dia; Domingo; Nenhuma Dor; Candeias; Remelexo; Minha Senhora; Quem me dera; Maria Joana e Zabelê; e tendo sido produzido por Dori Caymmi, “Domingo” é marcado por uma sonoridade bastante atrelada à Bossa-Nova, desde o que diz respeito aos arranjos, passando pelas temáticas das letras, e principalmente no que tange as interpretações. Deste modo, é possível, inclusive, identificar o emprego de alguns dos elementos mais característicos deste gênero, introduzidos anteriormente por João Gilberto, conforme afirma Tatit: A bossa nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas do samba-canção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito de formas temáticas, mais percussivas, de condução melódica. Neutralizou a potência da voz até então exibida pelos intérpretes, já que sua estética dispensava a intensidade e tudo que pudesse significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte das canções dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do tempo forte na batida do violão. Desfez a relação direta entre o ritmo instrumental e a dança que caracterizava as rodas de samba. Dissolveu as influências do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada elaboração sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante de que “música artística” só existe no campo erudito. Mesmo com todas essas neutralizações, a canção apresentada pelo músico baiano manteve-se intacta, tanto do ponto de vista técnico como perante o ouvinte, que não teve dificuldade alguma em reconhecer e prestigiar a versão totalmente despojada. (TATIT, 2004, p. 49-50) A canção que abre o disco, Coração Vagabundo (1967), em termos de interpretação e arranjo, pode ser utilizada para exemplificar as características enumeradas por Tatit. O fato de ser marcada pela redução do “campo da inflexão vocal” tanto de Caetano quanto de Gal no dueto por eles empreendido, praticamente com a neutralização do vocal dos intérpretes — contido como o de João Gilberto — e também da batida característica do samba, culminando numa levada mais leve ao violão, mas que nem por isso deixa de ser uma peça marcada por uma “requintada elaboração sonora” aliam a canção à esfera da Bossa-Nova joãogilbertiana. Meu coração não se cansa De ter esperança De um dia ser tudo o que quer !53 Conforme conta no próprio título da canção, ganha enfoque o “coração” do eu lírico. Este, personificado, é descrito nos versos que abrem a canção praticamente como um ser autônomo, “que não se cansa” não da atividade dos batimentos, característica do órgão em questão, mas “de ter esperança”, aspirar a “um dia” vir a ser “tudo o que quer”. Tal aspiração se liga a uma espécie de maturidade sentimental, de “ser o que quer” e não ser feito, moldado, ao bel prazer da pessoa amada. Justamente por ser ainda um “coração de criança”, imaturo, que não sabe se colocar, este órgão vital que, figurativamente é atrelado ao centro das emoções em que reside a afetividade, se resume, no presente a “um vulto feliz de mulher” — os destroços de uma possível primeira paixão avassaladora mal sucedida. O foco desta possível paixão apenas “passou” pela vida do eu lírico, sem ter permanecido a fim de fazê-lo feliz para sempre, tal qual nos contos de fadas. E. com isso, instaurou uma profunda tristeza, expressa pelo “chorar sem fim” dos “olhos” da voz poética. Devido a esse fato, o “coração” em questão é negativamente caracterizado como “vagabundo” — mais uma vez, assumindo uma posição pessoal até pela caracterização a ele remetida — não pela ausência de um trabalho ou um emprego, mas para acentuar seu caráter por demais inocente a ponto de ter por desejo “guardar o mundo” em si, na interioridade do eu lírico, sendo isto, impossível. Coração Vagabundo é a peça que se tornou o primeiro sucesso do disco, e mais especificamente da carreira de Caetano e Gal comercialmente falando, dando aos artistas, pela primeira vez, uma certa visibilidade no mercado fonográfico e no firmamento artístico nacional da época. Mas o valor de “Domingo” residia em muito mais do que apenas seu carrochefe, e, acerca do álbum como um todo, Augusto de Campos também afirma: Nesse disco, que engloba as primeiras composições de Caetano ao lado de Edu, Gil e Sidney Miller, aparece já bem nítida para quem souber ouvir a grande personalidade musical do futuro autor de Alegria, Alegria, sob o signo geral da “saudade da Bahia”. (CAMPOS, 2008, p. 144) Das doze canções que constituem o disco, em termos de autoria, oito das canções são assinadas por Caetano Veloso — sendo, destas, uma única parceria com Torquato Neto: Nenhuma Dor. Há também uma canção de Sidney Miller (Maria !54 Joana), uma de Edu Lobo (Candeias), e duas de Gilberto Gil: Minha Senhora e Zabelê — ambas em parceria com Torquato Neto. A “grande personalidade musical” revelada sob a atmosfera de “saudade da Bahia” — tanto de Caetano quanto de Gal — se revela por meio de canções que são marcadas por um tom memorialista, tanto em relação à Bossa-Nova, quanto em relação ao contexto da terra natal, a Bahia, de onde ambos haviam partido muito cedo ainda. Onde Eu Nasci Passa Um Rio é uma canção cuja letra traz uma metáfora do amadurecimento atrelada às águas de “um rio”. O movimento destas, segundo o eu lírico, “passa no igual sem fim”, sem ter um início ou um fim bem definidos, mas, num movimento contínuo, assim como o sentimento por seu lugar de origem, sua terra, conforme suas palavras, “passava dentro de mim”. Deste modo, assim como “o rio” cumpre seu objetivo e passa a assim ser chamado “quando chega no mar”, ou eu lírico afirma, comparando, que “o rio” de sua terra “deságua” não no mar, mas em seu “coração” — talvez, fazendo deste, assim como o “mar”, um ser completo e realizado. A letra de Um Dia (1967) tem como tema principal o hiato entre duas pessoas que se amam, justificado pelo fato de uma delas ter de ir viver num outro lugar. O eu lírico afirma à sua amada “vê se para de chorar”, tentando dar força a esta, quando, na verdade, demonstra apenas depender também desta mesma força — “quero, careço, preciso / de ver você se alegrar”, dada a sua própria tristeza. Na tentativa de minimizar a dor desta separação, os versos que constituem o refrão da canção expressam a tentativa de mudar a forma de enxergar a situação: “eu não estou indome embora / estou só preparando a hora de voltar”, mesmo antes de ter ido. Se Um Dia tematiza a despedida e a ansiedade de uma possível volta, Domingo é marcada pela expressão não só da possibilidade, mas da literal espera de um retorno. A voz poética descreve uma “praça formosa” na qual há uma “rosa pousada”. Esta “rosa”, no decorrer da letra, passa de flor a mulher, “Rosa” — o que se coloca como uma expressão elogiosa em relação à mulher em questão. Mas, o fato de esta estar “pousada”, “no meio da tarde” por todo o dia, sendo que “não há madrugada” sequer, dá conta de seu estado praticamente permanente: “esperando por mim”, segundo o eu lírico. Este, na tentativa de amenizar uma continuidade do !55 sofrimento de Rosa, adverte em claro e bom tom: “Rosa, não espera por mim”, quebrando qualquer expectativa relativa à possibilidade de volta deste. Candeias (1966), de Edu Lobo, também é marcada por uma situação de partida, mas desta vez, no sentido contrário, na perspectiva de um retorno — da “terra nova” para “Candeias”. A canção se inicia com a promessa do eu lírico à sua amada acerca do fato que de “Ainda hoje vou-me embora pra Candeias / Ainda hoje meu amor eu vou voltar”, contrariamente à letra de Domingo. Já Quem Me Dera (1967), é marcada por um tom mais melancólico de um eu lírico que parte sabendo que jamais voltará — “Adeus, meu bem / Eu não vou mais voltar”. Este carrega consigo a esperança — seja para consolar à sua amada, ou quem sabe a si mesmo — de um dia poder levá-la para junto de si. No entanto, a possibilidade em questão se revela ínfima, não estando ligada a qualquer plano efetivo, mas apenas atrelada a “Se Deus quiser” — além meramente de sua vontade ou capacidade. A temática amorosa, que já permeia todas estas canções citadas anteriormente, ganha maior destaque em canções como Avarandado (1967), de Caetano Veloso. A letra desta canção traz uma descrição de uma “estrada” a qual é permeada por diversas “palmeiras” — e, de certa maneira, do ponto de vista geográfico, remete ao contexto litorâneo da Bahia. O eu lírico afirma que cada uma delas tem “uma moça recostada” e destaca entre todas estas mulheres aquela que é sua “namorada”. O foco se volta, então, para a relação amorosa do casal em questão, e a “estrada” mencionada passa, metaforicamente, a expressar a trajetória percorrida pelos dois juntos, em termos de tempo e espaço. O casal, unido pelo amor que os enlaça, em seu dia-a-dia, vai “andando pela estrada”, figurativamente traçando um caminho cujo ponto de chegada “vai dar no avarandado do amanhecer”, um ponto iluminado, que se coloca como símbolo de uma possível futura felicidade augurada. Remelexo (1967), de Caetano Veloso, também tem por assunto o contexto amoroso. Mas, desta vez, o foco se liga, ao mesmo tempo, a inquietação e a hesitação de um eu lírico no que diz respeito a se aproximar de uma “menina” desconhecida que lhe encantara ao dançar numa roda de samba: “Que menina é aquela / que entrou na roda agora?”. Este rapaz afirma querer “falar com ela”, mas, por sua timidez e por nada saber dela — nem sequer “onde ela mora” —, resta-lhe !56 apenas seguir como os demais rapazes: encantado pelo seu “remelexo”, que praticamente o hipnotiza, a ponto de ele concluir apenas afirmando: “que valha-me Deus, Nossa Senhora”, pedindo forças a criaturas do âmbito espiritual, por seu ânimo não lhe ser mais suficiente. Maria Joana (1967), é uma canção de Sidney Miller, e inserida também no âmbito amoroso, revela uma outra faceta deste, que se assemelha apenas àquela até então abordada em Coração Vagabundo: a desilusão afetiva, mais especificamente atrelada à suspeita de uma traição, neste caso. Acerca do disco como um todo, mais do que um mero tributo passadista e reforçando seu aspecto inovador, é o próprio Caetano quem revela uma intenção mais atrelada à cultura musical como um todo, conforme ele mesmo ressalta: Enquanto eu e Gal gravávamos esse disco, que veio a se chamar Domingo, Rogério e eu projetávamos um repertório para Gal que superasse tanto a oposição MPB/Jovem Guarda quanto aquela outra oposição, mais profunda, que se dava entre bossa nova e samba tradicional, ou ainda entre música sofisticada moderna (fosse bossa nova, samba-jazz, canção neo-regional ou de protesto) e música comercial vulgar de qualquer extração (versões de tangos argentinos, boleros de prostíbulos, sambas-canções sentimentais etc.). (VELOSO, 1997, p. 215-216) Muito além da fachada de tributo, “Domingo” vinha como uma tentativa de superação dos embates entre os gêneros musicais vigentes na época, fator que alia à carga passadista do álbum um tom de novidade e quase que de protesto, ainda que velado. O tributo de Caetano à Bossa-Nova remonta o início de sua carreira, mas prossegue ao longo das décadas, podendo ser claramente identificado a partir de inúmeras referências nas letras, nos arranjos de muitas de suas canções e nos constantemente reiterados comentários em seus depoimentos e entrevistas. Mas, talvez uma das maiores expressões desta veneração pela Bossa-Nova de desvele pelo fato de Caetano ter se tornado também um singular intérprete desse gênero, tendo gravado um número significativo de canções de autores-chave desse movimento musical ao longo de sua carreira e até adaptado interpretações de canções de outros gêneros ao som do banquinho e o violão. A começar pelos discos que registram apresentações ao vivo de Caetano Veloso, em “Totalmente Demais” (1986), Caetano une num pot-pourri duas canções !57 de autoria de João Gilberto: Oba-Lá-Lá/Bim-Bom (1959), presentes no paradigmático álbum “Chega de Saudade” — mais precisamente, a primeira, quarta faixa do lado B e a segunda, também quarta faixa, do lado A. Apesar de se tratar da segunda faixa do disco de Caetano, pelos registros em vídeo e pelo comentário que transcrevemos a seguir, tudo indica que foi a canção que abriu o show. Após interpretar a canção — à voz e violão — Caetano saúda a plateia e faz questão de comentar: Boa noite e obrigado! Eu ontem quando comecei o show eu comecei exatamente com este mesmo número e, fiquei sem conseguir tocar direito, nervoso, porque não é fácil de tocar isso não. Não é a melhor coisa você chegar logo e tocar um samba, entendeu? A não ser que você seja o João Gilberto, e eu não sou o João Gilberto. Mas eu disse assim, eu vou insistir do mesmo jeito, tocar a mesma coisa que eu toquei ontem, a primeira, e enfrentar essa mesma dificuldade, e, comecei com a mesma dificuldade... Caetano Veloso inicia seu comentário ressaltando o caráter de superioridade de João Gilberto, colocando-se como um seguidor — inferior, portanto — que, ao tentar reproduzir um número de seu mestre fica “nervoso”, tendo em vista que a inusitada forma de arranjo introduzida por João Gilberto ao violão, mesmo talvez parecendo, não se trata de algo “fácil de tocar”. Mas, como a intenção de reverenciar é maior que qualquer nervosismo ou possível incapacidade — que tenta ser expressa —, Caetano resolve “enfrentar” de peito aberto seu receio e começar nesta noite com o mesmo número da anterior, apesar de todos os possíveis pesares, num perfeito tributo à Bossa e a João Gilberto. E, ao iniciar o show exatamente com este número, de certa forma, Caetano recupera a inspiração inicial para seu ofício como cancionista, e o início de sua carreira, e reitera o fato de ser um fruto — e também um exímio apreciador e por que não seguidor? — disso. Anos mais tarde, em “Circuladô — Ao Vivo” (1992), Caetano interpreta o clássico que é praticamente o hino da Bossa-Nova: Chega de Saudade (1959). O álbum — versão ao vivo de “Circuladô” (1991) —, e a turnê em si, eram também uma celebração dos cinquenta anos de idade de Caetano. Wisnik (2005), acerca do show “Circuladô” (1992), comenta e analisa de maneira detalhada: Situado entre o “desmascaro” revisionista de Estrangeiro (1989) e a revisão mais programática de Tropicália 2 (1993, em parceria com Gil), o show Circuladô (1992) realiza o resgate mais denso das !58 circunstâncias históricas que permeiam a carreira musical de Caetano, atualizando problematicamente suas questões. [...] Ali, somadas ao repertório recente, que incluía “Fora da Ordem” e “Circuladô de Fulô” (musicalização de um poema de Haroldo de Campos), outras canções pontuavam momentos nodais de sua trajetória artística, tais como “Alegria, Alegria”, “Baby”, “Os Mais Doces Bárbaros” e “Um Índio”, de sua autoria, e “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Disseram Que Eu Voltei Americanizada” (Vicente Paiva e Luiz Peixoto), “Debaixo dos Caracóis do Seus Cabelos” (Roberto e Erasmo Carlos) e “Jokerman” (Bob Dylan), além do medley “Black or White” (Michael Jackson)/ ”Americanos” (Caetano Veloso). (WISNIK, 2005, p. 23-24) Wisnik captara justamente o tom do show “Circuladô”: a soma sem contradições entre “o resgate [...] das circunstâncias históricas” de todo um passado que remonta o início da carreira de Caetano — tanto por canções de sua autoria quanto um clássico da Bossa-Nova — e a atualização de “suas questões” por meio do “repertório recente”, que incluía, além de suas canções mais atuais, desde hits de intérpretes como Carmem Miranda, até composições de Bob Dylan e Michael Jackson. Somando-se a isso, Calado27 pontua o fato de que Caetano, “além de selecionar o repertório e dirigir o show” também “participou ativamente da adaptação dos arranjos para o palco” contando com “o talento do violoncelista Jacques Morelenbaum”, músico que foi por dez anos parceiro de Tom Jobim e passou a incorporar o grupo dos músicos de Caetano Veloso, tendo sido o responsável pelos arranjos de onze dos álbuns do cancionista baiano. Caetano, antes de interpretar a canção — para um público estrangeiro, apenas à voz e violão —, afirma, em inglês: “I just like to thank, and sing one song that is for me the core, the center of the whole meaning of Brazilian music atitude”28. Partindo do comentário de Caetano, podemos afirmar que, em certa medida, Chega de Saudade pode ser considerada como o centro e talvez a mais clara tradução não apenas de toda música popular brasileira, mas, em especial, da obra de Caetano Veloso. E, também, que Caetano, ao escolher esta canção para o repertório da turnê de comemoração de seus cinquenta anos, interpreta-a num tom de agradecimento 27 No texto contido no encarte do álbum, adicionado a este numa edição comemorativa. Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=RQxp0uJvcLs]. Acesso em 09 de janeiro de 2015, às 21:51h. “Eu gostaria de agradecer e cantar uma canção que é para mim o coração, o centro do significado de toda atitude da música popular brasileira”. (tradução nossa) 28 !59 ainda ampliado, tendo em vista seu constante tributo à Bossa-Nova num ponto em que sua carreira já estava devidamente estabelecida. A mesma canção seria ainda interpretada no show “Un Caballero de Fina Estampa” (1995), que deu origem ao álbum homônimo, registro de show da turnê do disco de estúdio anterior “Fina Estampa” (1995), no qual Caetano interpretara apenas clássicos do cancioneiro de língua espanhola. “Chega de Saudade” não consta no CD, mas sim no DVD do show. Neste, Jacques Morelenbaum rege orquestra que acompanha Caetano. A canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é interpretada logo após Você Esteve Com Meu Bem? (1953), de João Gilberto, e é antecedida pelo seguinte comentário de Caetano: Esse samba foi composto pelo próprio João Gilberto, no início dos anos 50. Só existe uma gravação dele, pela Marisa Gata Mansa. Uma excelente gravação, mas, muito pouco conhecida. Por isso eu quis cantá-lo aqui, porque eu acho que ele é um pedaço do elo perdido entre o canto de Orlando Silva e a invenção de João Gilberto. Mas essa invenção nada seria se não fosse a luz intensa que se espalhou sobre ela. Uma luz de sol, cujo nome é Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. 29 Mais do que meramente citar o “elo perdido” entre Orlando Silva e João Gilberto, Caetano explica com seu comentário, e exemplifica, interpretando em sequência as canções: Lábios que Beijei (1937), de J. Cascata, que fora sucesso na voz de Orlando Silva, Você Esteve Com Meu Bem? (1953), de João Gilberto, conforme disse Caetano, gravada por Marisa Gata Mansa, e Chega de Saudade (1959), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, classicamente interpretada por Joao Gilberto. Caetano Veloso utiliza seu show para demonstrar sua versatilidade como intérprete — haja vista as canções de diferentes tempos e espaços do repertório hispânico — e acaba, também, por contar um pouco da história da evolução da música popular brasileira e até uma possível conexão entre estes dois cancioneiros, haja vista a canção que abre o show, O Samba e o Tango (1937), de Amado Reis, que contém os seguintes versos, bastante expressivos em relação à proposta de Caetano para o disco de estúdio e o show em questão: Chegou a hora, chegou chegou Meu corpo treme e ginga qual pandeiro A hora é boa e o samba começou E fez convite ao tango pra parceiro Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=AFtQfGp2YDQ — (59:08 — 59:49)]. Acesso em 09 de janeiro de 2015, às 22:37. 29 !60 Caetano ainda gravaria ao vivo Chega de Saudade mais uma vez, no álbum “Omaggio a Federico e Giulietta” (1998). O show registrado no disco em questão não traz o repertório específico de nenhum álbum anterior, mas tratou-se de uma única apresentação feita sob convite de Maddalena Fellini, irmã do cineasta Federico Fellini e cunhada da atriz Giulietta Masina. Caetano recebera uma carta de Maddalena, dando conta de que sua cunhada ficara extremamente emocionada pelo fato de Caetano, seu fã brasileiro, ter feito uma música em homenagem a ela, e convidando-o para fazer um show em Rimini. O repertório do show, registrado no disco, inclui algumas peças do cancioneiro italiano, como Luna Rossa (1950) — gravada por Caetano no Brasil para a trilha da novela “Terra Nostra” —, Gelsomina (1954) e Come Prima (1959). Fizeram também parte da lista canções de autoria de Caetano como a própria Giulietta Masina (1987), Cajuína (1979), Trilhos Urbanos (1979), e até duas canções contidas no álbum “Tropicalia ou Panis et Circensis”: a versão em latim de AveMaria, e Coração Materno (1937). Como um resumo de diferentes fases da carreira de Caetano, seja como intérprete, seja como compositor, não só não poderia, como de fato não faltou Chega de Saudade (1959), síntese da gênese de todo este processo. Em “Prenda Minha” (1998), registro ao vivo da turnê do álbum “Livro” (1997), Caetano interpreta Meditação (1961), de Tom Jobim e Newton Mendonça. No que tange o disco em questão, vale a pena citar as palavras de Sandra Almeida contidas no release do disco, datado de novembro de 1998: Caetano abre o tabuleiro com a frase "Domínio público, Jorge Ben, Fernanda Abreu, Racionais MCs, Marinheiro só, Miles Davis", para em seguida puxar "Jorge da Capadócia" do swing man Benjor. Na fala do artista, os nomes que gravaram a música e uma redenção: "foi pra comentar e ao mesmo tempo perdoar o fato de Miles Davis ter gravado 'Prenda minha' no início dos anos 60 com Gil Evans e têla registrado como sendo de sua autoria. É como se eu tivesse tentando dar a bela versão de Davis/Evans de volta aos gaúchos. E é por isso também que escolhi Prenda minha como título desse trabalho." "Meditação", de Tom Jobim, precede "Terra", tão implorada em todos os palcos onde Caetano se apresenta. A platéia explode em aplausos e perde o fôlego com "Eclipse Oculto". Pausa para respirar. Um outro texto, já escrito em Verdade Tropical, mas sempre renovado a cada citação pela força da homenagem a Gilberto Gil e Dona Canô, é a senha para "Bem devagar" e "Drão", do próprio Gil. Notas mais antigas, mas nem por isso amareladas, revelam "Saudosismo" e lembram Chico Buarque em "Carolina". Da voz de !61 Caetano, surge "Sozinho", de Peninha, já gravada por Sandra de Sá e Tim Maia. "Esse cara" e "Mel" nos lembram outras fases dessa trajetória, nunca gravadas pelo autor. "Linha do Equador", em parceria com Djavan, "Odara" e "A luz de Tieta" retomam o clima eufórico e encaminham o álbum para "Atrás da Verde-e-Rosa só não vai quem já morreu", manifesto mangueirense de amor aos baianos que mudaram o rumo da MPB. "Vida Boa" é a última faixa. Composição de Fausto Nilo e Armandinho, que encerra o disco numa espécie de sinopse de todo esse enredo: "você que faz minha vida variar, tá na luz que passa pelo ar, passa também pelo meu, seu... 'cantar' O show, permeado pela leitura de trechos de seu livro recém-lançado, e contendo alguns de seus grandes sucessos, como Terra (1968), Eclipse Oculto (1983) e Odara (1977), e referências ao estilo musical cultuado por Caetano: Saudosismo (1986), de sua autoria, e Meditação (1961) de Tom Jobim e Newton Mendonça. Há que se ressaltar, em primeiro lugar, a crítica à canção meramente de consumo, sem conteúdo, expressa pela faixa Doideca (1997), de sua autoria — na verdade, constituída mais como uma paródia, constituída por uma batida contínua da percussão, e um arranjo um tanto quanto atrelado ao aspecto “doido” referenciado no título, cujas notas e acordes apenas acompanhavam a profusão de palavras sem qualquer conexão entre si, pela qual a letra é marcada, como o verso “Gay Chicago Negro Alemão Bossa-Nova Gay”. Além disso, cabe destacar a faixa Sozinho, de Peninha, interpretada por Caetano ao violão, que tornou-se um grande sucesso, e por isso, feito do disco um recorde de vendas na época, tem sido, inclusive, lançada como single, numa versão dance — acrescida a sonoridade eletrônica do gênero à interpretação original de Caetano. Esta, no show — e conforme consta no DVD — foi permeada por um longo comentário de Caetano acerca de ter simpatizado com a canção ao ter ouvido a gravação por outros intérpretes — Sandra de Sá e Tim Maia —, e ao ter descoberto ser do compositor do qual já havia gravado anos antes a canção Sonhos (1977), teve a certeza de querer também gravar esta. Ao reafirmar seu gosto pelas canções de Peninha, Caetano também reafirma seu gosto pelo que é classificado como “brega”, demonstrado desde “Tropicália ou Panis et Circensis” pela gravação de Coração Materno (1937), uma canção extremamente dramática e bem antiga já naquela época. !62 No disco “Noites do Norte — Ao Vivo” (2001), que registra um dos shows da turnê do álbum anterior “Noites do Norte” (2000), Caetano interpretou Caminhos Cruzados (1958) de Tom Jobim e Newton Mendonça, Samba de Verão (1964), de Marcos Valle, e Eu e a Brisa (1967), de Johnny Alf. Acerca da sonoridade característica do álbum em questão, é Antonio Barbosa quem afirma, na crítica do disco duplo30: O segundo álbum funciona melhor, investindo num repertório mais leve e suingado, com uma participação maior dos músicos. Caetano já começa desarmando o ouvinte ao emendar o funk Tapinha em Dom de Iludir, a sobriedade contrastando com a galhofa. Essa surpresa não é a única da segunda metade do álbum. Em Caminhos Cruzados, Caetano joga a bossa nova no Candeal, com um arranjo que privilegia a percussão; novas aproximações com a bossa, cheia de frescor, vêm em Samba de Verão e Eu e A Brisa. De fato, em Caminhos Cruzados é a percussão que ganha destaque, destoando significativamente da batida convencional da Bossa-Nova, passando a ser marcada pela sonoridade característica dos tambores baianos. Este caráter de novidade é que garante o “frescor” até mesmo para Samba de Verão, canção a qual, apesar de ter sido gravada em estúdio por Caetano, é apresentada numa versão completamente distinta, também devido à batida. quase que integralmente atrelada à batida dos tambores. Já Eu e a Brisa, contrariamente às duas outras canções, é marcada por um tom mais intimista, com Caetano ao violão, Jacques Morelenbaum ao violoncelo e uma batida significativamente mais leve, e mais atrelada ao convencional. Em “Cê Ao Vivo” (2007), primeiro registro ao vivo das apresentações de Caetano com a Banda Cê, na turnê do álbum anterior homônimo — numa proposta mais Rock’n’Roll —, Caetano interpreta Amor Mais Que Discreto (2007), canção de sua autoria, na qual há uma citação musical (admitida no título da faixa, inclusive) de Ilusão à Toa (1963), de Johnny Alf. A canção de Caetano tematiza um romance homossexual entre dois homens com idades diferentes, fato que talvez ajude a explicar “o mais total interdito” a esta relação, conforme costa no verso que abre a canção: Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/2012/07/1998-prenda-minha-ao-vivo.html]. Acesso em 23 de janeiro de 2015, às 11:35. 30 !63 Talvez haja entre nós o mais total interdito Mas você é bonito o bastante Complexo o bastante Bom o bastante Pra tornar-se ao menos por um instante O amante do amante Que antes de te conhecer Eu não cheguei a ser No entanto, as características positivas deste jovem — suficientemente “bonito”, “complexo” e “bom” — fazem com que o eu lírico, por mais experiente que possa ser, ignore os preconceitos e venha a “tornar-se”, como num passe de mágica, “o amante” que nunca chegara a ser “antes” de o “conhecer”, vivenciando, portanto, algo também inédito. Assim, apesar do “interdito” que se coloca à priori, trata-se de um amor que merece ser vivenciado, nem que seja “por um instante”. Eu sou um velho Mas somos dois meninos Nossos destinos são mutuamente interessantes Um instante, alguns instantes O grande espelho E aí a minha vida ia fazer mais sentido E a sua talvez mais que a minha, Talvez bem mais que a minha O eu lírico, mais experiente, classifica a si mesmo como “um velho”, mas confessa, em seguida, que, estando na presença deste rapaz que lhe encantara, ambos se colocam como “dois meninos”, talvez ternamente movidos pela doçura de um primeiro amor. Além disso os “destinos” de ambos, com a possibilidade de união, se revelam “mutuamente interessantes”, seja por “um” ou alguns instantes” — para pouco tempo ou a vida inteira —, já que, frente ao “grande espelho”, a “vida” de um faria a do outro ter “mais sentido”. A do rapaz, certamente por provar da novidade e encontrar um significado até então inédito para a sua existência, atrelado a amar e ser correspondido. Já a voz poética ressalta o fato de que a “vida” de seu amado faria “mais”, “talvez bem mais” diferença na sua, tendo em vista que provar de algo completamente novo tendo já toda uma bagagem de experiências pode resultar num “sentido” marcado por um brilho ainda maior, dada a surpresa pela falta de expectativas de algo novo já na maturidade. Em relação ao sentido expresso na letra de Caetano, a canção de Johnny Alf, citada apenas na introdução estabelece um diálogo também no que diz respeito à sua letra, conforme os versos a seguir: !64 Eu acho engraçado Quando um certo alguém Se aproxima de mim Trazendo exuberância Que me extasia Ilusão à Toa também tem como tema um amor, uma situação de enamoramento por parte de seu eu lírico, o qual, extasiado pela aproximação da pessoa amada, passa a sentir o que é convencional a quem ama: “meus olhos sentem” e não apenas veem; “minhas mãos transpiram” expressando fisicamente a ansiedade e a hesitação de estar com quem lhe desperta tanto o interesse. Uma primeira diferença entre as canções de Caetano e Johnny Alf se liga ao fato de que, em Amor Mais Que Discreto, a relação amorosa descrita se dar entre dois homens, de idades diferentes e se atrelar a tabus em relação aos valores retrógrados de uma sociedade brasileira — apesar de todos os movimentos e manifestações que vão de encontro a estes mesmos valores. Já em Ilusão à Toa, não há especificação acerca de se tratar de um homem ou mulher que declara seu amor à outra pessoa — seja esta um homem ou uma mulher —, nem da idade de nenhum dos dois. Uma outra diferença a ser considerada se liga ao fato de que, em Ilusão à Toa, o amor confessado e descrito pelo eu lírico é platônico — daí talvez ser classificado no título da canção meramente como uma “ilusão” —, e, em Amor Mais Que Discreto, não, dada a reciprocidade sugerida. Mas embora agora eu te tenha perto Eu acho graça do meu pensamento A conduzir o nosso amor discreto Sim, amor discreto pra uma só pessoa Pois nem de leve sabes que eu te quero E me apraz essa ilusão à toa No entanto, esta sutil diferença que acaba por diferenciar as canções, também ajuda a uni-las em relação ao diálogo que estabelecem entre si. Na canção de Johnny Alf temos retratado um “amor discreto” devido ao fato de ser platônico, não confessado, tendo em vista, como consta na própria letra, “pra uma só pessoa / Pois nem de leve sabes que te quero”. Já em Caetano, há uma intertextualidade no que diz respeito a esta mesma expressão, que, levemente modificada, vem a ser título da canção: Amor mais que discreto, e, o fato de a discrição ser mais acentuada !65 pode estar relacionado aos preconceitos da sociedade, seja pela diferença de idades, seja pela igualdade dos sexos. Assim, mais do que uma citação na introdução, e apesar das diferenças mantidas entre si, Amor Mais Que Discreto e Ilusão à Toa estabelecem um diálogo entre si, que passa pela esfera musical, e chega à temática, no tratamento de um dos temas universais e atemporais por excelência. No álbum “Multishow Ao Vivo: Caetano Veloso — Abraçaço” (2014), Caetano canta uma de suas canções ligadas à atmosfera da Bossa-Nova, Lindeza (1991), do álbum “Circuladô” (1991). O álbum em questão, composto por dezenove faixas, registra um dos shows da turnê do terceiro álbum lançado com a Banda Cê. Em termos de repertório, além das canções de “Abraçaço” — como A Bossa-Nova É Foda, Funk Melódico e Estou Triste —, Caetano regravou alguns dos grandes sucessos de sua carreira, como: De Noite Na Cama (1974), Você Não Entende Nada (1972), A Luz de Tieta (1997), Alguém Cantando (1977), Eclipse Oculto (1983) e até sua versão musicada do poema de Gregório de Matos, Triste Bahia (1972). O registro em DVD, que contém vinte e quatro faixas, contém a íntegra do show, e traz os comentários de Caetano para a plateia, dentre os quais, a pergunta, em tom retórico: “Cadê o Amarildo?”, antes da canção Você Não Entende Nada, ligada à repercussão do caso do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza31. Segundo as investigações, ele foi morto por policiais militares do Rio de Janeiro depois de ter sido levado para prestar esclarecimentos. O caso em questão gerou uma série de protestos populares na região, que se desdobraram em outros por todo o Brasil. Isto exemplifica o caráter de protesto de Caetano Veloso em relação aos fatos cotidianos que afetam a vida dos brasileiros. Lindeza é uma canção marcada por um arranjo e também por uma temática desenvolvida em sua letra bastante comuns às canções da Bossa-Nova. Coisa linda É mais que uma ideia louca Ver-te ao alcance da boca Eu nem posso acreditar Disponível em: [hhttp://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-amarildo/ caso-amarildo-investigacoes.htm]. Acesso em 27 de janeiro de 2015, às 22:45. 31 !66 Coisa linda Minha humanidade cresce Quando o mundo te oferece E enfim, te dás, tens lugar Desde o título, é construída na letra uma expressão do encantamento do eu lírico em relação à pessoa amada. Esta, é caracterizada como uma “lindeza”, “coisa linda”, tendo sua beleza ressaltada, bem como o fato de sua existência — dada como uma espécie de milagre ou “coisa louca” — dar sentido à do eu lírico, completamente apaixonado. Em certa medida, podemos estabelecer uma relação entre esta canção de Caetano Veloso e Coisa Mais Linda (1965), de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, outro dos hits da Bossa-Nova, que também foi gravado por Caetano Veloso em 1983. Coisa mais bonita É você, assim Justinho você, eu juro Eu não sei porque você Você é mais bonita que a flor Quem dera, A primavera da flor tivesse Todo esse aroma de beleza Que é o amor Perfumando a natureza Numa forma de mulher A canção de Lyra e Moraes pode ser tomada como exemplo em relação a uma das temáticas mais frequentes da Bossa-Nova: a exaltação da mulher. Coisa Mais Linda desde seu título exalta a beleza extrema de uma mulher, a qual, supera, inclusive a da “flor” durante a “primavera” — seu apogeu. No que tange esta temática tão característica da Bossa-Nova, é o próprio Carlos Lyra quem comenta: Na minha cabeça, eu faço uma viagem assim, que a Bossa-Nova se assemelha muito àquela arte provençal, no sul da França, no século XII, né? Ali a gente encontrava os poetas, trovadores, menestréis, com seus alaúdes, com seus instrumentos. E eles estavam preocupados em cantar um tipo de música que falasse ao ouvido das mulheres. Havia um grande culto da mulher na escola provençal, e a Bossa-Nova não é outra coisa senão o grande culto da mulher. Quem não acreditar, que leia Vinicius... (LYRA, 2005)32 32 In: “Coisa Mais Linda” (2005) !67 Os compositores da Bossa-Nova podem, de fato, ser comparados aos “trovadores” e “menestréis” ligados ao contexto europeu “provençal” no que diz respeito a esta literal adoração à mulher expressa em seus textos. Caetano Veloso, em Lindeza, bebe desta mesma fonte, valendo-se inclusive de uma expressão bastante similar à de Coisa Mais Linda: ao invés de “coisa mais bonita”, é empregada a expressão “coisa linda”, sinônima, e que, no mesmo sentido, tem por objetivo chegar “ao ouvido das mulheres”, conforme Lyra ressaltou em relação à Bossa. Lyra ainda sugere, de forma irônica, a quem quer que não acredite na ligação do discurso da Bossa-Nova com o “culto da mulher”, “que leia Vinicius”, ou seja, que entre em contato com a obra do poeta e letrista notará uma constante no que diz respeito a esta “paixão pela mulher”, conforme afirmam Homem e De la Rosa (2013): Vinicius é mais conhecido por sua poesia ou sua canção? Não importa. O distanciamento proporcionado pelo tempo mostra que a vida torna-se maior que o autor. Ela escancara a máxima de sua vida: a paixão pela mulher, seja em poesia, seja em letra de música. (Homem e De la Rosa, 2013, p. XX) No entanto, quem atentar para a obra de Caetano também encontrará diversas canções cuja temática vai nesta mesma direção. Além de Lindeza, podemos destacar: Você É Linda (1983), A Tua Presença Morena (1975), Tigresa (1977), Branquinha (1989), Neide Candolina (1991), Você É Minha (1997), dentre outras. Afora estes registros em seus álbuns ao vivo, Caetano também gravou em estúdio alguns dos maiores títulos da Bossa-Nova, a ponto de ter sido lançada em 2000 uma coletânea intitulada “A Bossa de Caetano”. O disco é constituído por alguns clássicos da Bossa-Nova e também por canções de autoria de Caetano, compostas nos moldes do estilo musical reverenciado por ele, gravados ao longo de sua carreira. Uma das canções de autoria de Caetano Veloso contidas no disco é Desde Que O Samba É Samba (1993). Lançada originalmente no álbum que comemorava os trinta anos da Tropicália — “Tropicália 2” —, a canção é marcada por um arranjo totalmente nos moldes da Bossa-Nova — reforçado, inclusive, pelo acompanhamento apenas ao violão em relação ao canto bastante contido. !68 A letra, por sua vez, se coloca como uma exaltação à música como um todo, e mais especificamente, ao samba — e à “tristeza” que lhe é inerente. Acerca do sentimento em questão, é ressaltado o fato de se tratar de uma palavra feminina, e, a partir disso, afirma-se que “a tristeza é”, por definição poética, não apenas perfeitamente representada pela figura de uma mulher, não no sentido de a mulher ser triste, mas, no de ser a maior causadora do desalento — seja no homem, ou em quem quer que seja que ame —, a ponto de ser chamada de “senhora”, termo que dá conta não só de uma mulher casada ou vivenciando sua maturidade, mas, sobretudo, de quem assume uma posição de superioridade ou domínio de determinada situação, cabendo perfeitamente ao contexto amoroso. E este suposto poder delegado à mulher não se trata de algo contemporâneo, mas remonta o passado, referenciado pela expressão “desde que o samba é samba” — que dá título à canção — como um fato inegável, cuja vigência, desde que o mundo é mundo, desde que o homem é homem, simplesmente, “é assim”. Ao estabelecer a ligação entre “o samba” e “a tristeza”, Caetano Veloso recupera a temática de Samba da Bênção (1967), de Vinicius de Moraes we Baden Powell, cuja letra, que também tematiza o samba, dentre outras coisas, contém a afirmação de que “[...] Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza [...] / Senão, não se faz um samba não”, tomando este sentimento como ingrediente que não pode faltar na receita de qualquer samba. E, além disso, também se afirma, mais do que isso, numa definição poética, que “[...] O samba é a tristeza que balança”, por excelência. A partir desta afirmação, passa a se figurativizar a origem do samba, por referências: inicialmente no verso: “a lágrima clara” — que cai “sobre a pele escura” — de um negro que representa toda a coletividade do povo que introduziu o gênero no Brasil. O verso seguinte, expressando o mesmo, quase que numa comparação, dá conta “da chuva que cai lá fora” durante “a noite”. Nesse sentido, a canção de Vinicius de Moraes também contém os versos: Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia Se hoje ele é branco na poesia Ele é negro demais no coração !69 Se Caetano sugere uma origem negra do samba, poeticamente, Vinicius de Moraes afirma categoricamente se tratar de um gênero musical que “nasceu lá na Bahia”, e, se com o passar dos anos a melodia veio a se incorporar também às letras de cancionistas representantes do “branco”, sua essência, seu “coração” permanece “negro demais”. Mas, voltando à sequência do movimento poético, em meio a todo este contexto de desolação, no qual até o choro se faz presente, vem à tona “alguma coisa” que simplesmente “acontece”, como que do nada, no momento em que o eu lírico se põe a cantar “assim”. Trata-se justamente da alegria, como consolo e forma do esquecimento em relação à “tristeza” em questão, tendo em vista que o eu lírico afirma: “cantando eu mando a tristeza embora”. Nesse sentido, os versos que encerram a canção dão conta de “o samba” ser, ao mesmo tempo “pai do prazer”, pela alegria que origina, transmite e dispersa, e também “filho da dor”, por ter sido criado pelos negros, num contexto histórico de escravidão, como fruto dos ais de um povo cativo. Justamente, por isso, mais do que um gênero musical, trata-se literalmente d’ “o grande poder transformador” por excelência. Este contexto de transfiguração remete também à alteração do samba, em termos de batida — em toda a sua pluralidade de manifestações —, com a influência do jazz, ao que veio a se tornar a Bossa-Nova, um balanço ou gingado novo em relação ao original (do samba). Mas, Caetano também é marcado por um caráter ou um quê “transformador” musicalmente falando, principalmente em sua vertente de intérprete. Justamente a este propósito, vale lembrar das palavras de Wisnik (2005), que ressalta que: É conhecida a habilidade única de Caetano em construir discursos desconcertantes através da costura de canções que se comentam mutuamente — suas e de outros compositores —, gerando sentidos em segundos e terceiros graus, em teias complexas de relações cruzadas. (WISNIK, 2005, p. 24) O mesmo disco “A Bossa de Caetano” contém um claro exemplo de um destes “discursos desconcertantes” construído por meio da “costura de canções que se comentam mutuamente”, citado por Wisnik. Trata-se do pot-pourri: Nega Maluca/ Billie Jean/ Eleanor Rigby, formado por três canções de épocas, territórios e estilos !70 completamente diferentes entre si, mas unidas por Caetano, como mostra de sua versatilidade e engenhosidade, num arranjo Bossa-Nova. O samba Nega Maluca (1950), de autoria de Evaldo Luis e Fernando Lobo, foi um grande sucesso do carnaval brasileiro de 1950, interpretado não só por “cantoras do rádio” ligadas ao contexto da época, como, por exemplo Linda Batista e Lana Bittencourt, mas, posteriormente, até mesmo por Amália Rodrigues, cantora portuguesa que veio a ser chamada de “A Rainha do Fado”. Este mesmo samba também serviu de inspiração para a criação de uma fantasia homônima, que veio a se tornar das fantasias características do carnaval brasileiro. Tava jogando sinuca Uma nega maluca me apareceu Vinha com um filho no colo E dizia pro povo que o filho era meu Toma que o filho é seu Não senhor .... Guarda o que Deus lhe deu Não senhor ...... A letra do samba é marcada por um tom de relato, por parte de um homem — que assume a posição de eu lírico — o qual estava passando tempo numa atividade ligada ao lazer — “jogando sinuca” — quando, de repente, foi interrompido por uma mulher que chegou subitamente, trazendo uma criança no colo e o acusando publicamente de ser o pai desta criança — “Toma que o filho é teu”. Isto que faz com que a mulher em questão seja caracterizada pelo eu lírico como uma “nega maluca”, ao que o homem responde: “Guarda o que Deus lhe deu”, recusando-se tanto a aceitar a posição de pai da criança quanto a recebê-la para possivelmente levar consigo e responsabilizar-se por sua criação a partir de então, respondendo repetidamente: “Não senhor”. Billie Jean (1983), canção pop originalmente escrita e interpretada por Michael Jackson, acabou se tornando um dos maiores hits da carreira do artista, é marcada não só por uma distância temporal, como também física, tendo em vista que foi escrita não por um artista brasileiro, mas norte-americano, e portanto em outro idioma, o inglês. No entanto, apesar de tudo que a possa afastar do samba “Nega Maluca”, ambas têm em comum a temática que se desenvolve na letra, ligada a uma acusação de uma mulher em relação a um homem quanto à paternidade de uma criança, marcada pela negativa deste: !71 Billie Jean is not my lover She's just a girl who claims that I am the one But the kid is not my son She says I am the one, but the kid is not my son Os versos que constituem o refrão da canção, numa tradução nossa, trazem a negação do eu lírico em relação a Billie Jean ser sua amante, e também a explicação de se tratar apenas de uma garota que diz que ele é “o tal” — o pai da criança —, ao que o rapaz em questão apenas rebate afirmando: “mas o garoto não é meu filho”. Eleanor Rigby (1966), é uma canção dos Beatles — cuja autoria é atribuída a Paul McCartney apesar de constar na clássica parceria Lennon/McCartney, contida no álbum “Revolver”. A canção tem como título justamente o nome da mulher cuja história é contada na letra. O verso que inicia a canção vem justamente fechar o medley de Caetano Veloso, chamando atenção, pedindo para que se olhe para as “pessoas solitárias”: “Ah, look at all the lonely people”. A união das três canções numa única peça acaba afastando-as de seus contextos originais e promovendo a construção não só de uma outra obra, como também de um outro sentido, em que a “nega maluca” que surge com um filho no colo, acusando o homem de ser pai deste acaba tendo não só a história desse fato mais detalhada, como também suas características melhor explicitadas, inclusive no que diz respeito à sua real identificação, pela letra de “Billie Jean”, que vem, no mesmo sentido, narrando a história de uma mulher que deseja tratar da paternidade de seu filho, mas dando mais detalhes inclusive da forma como o casal se conheceu, a situação em que estavam, o que motivou a relação entre eles e até as possíveis razões do rompimento. Deste modo, o verso de “Eleanor Rigby” encerra a canção numa espécie de conclusão, chamando a atenção para as pessoas solitárias, afinal de contas, atentando para as três canções individualmente, temos, nas duas primeiras o relato acerca da vida de mulheres que solitárias, que não só passaram por relacionamentos amorosos mal sucedidos, mas trazem consigo o fruto destas relações mal sucedidas: um filho, ainda não assumido pelo suposto pai da criança, e portanto, sendo de total responsabilidade e vivendo na completa dependência destas. A canção final, “Eleanor Rigby”, coloca-se como uma síntese dessas vidas !72 infelizes, que, devido às suas similaridades, são vertidas por Caetano numa só peça de Bossa-Nova. Este pot-pourri, em especial, também se coloca como um exemplo que vai ao encontro das palavras de José Miguel Wisnik (1993): A aplicação de Caetano Veloso ao campo da canção, com intervenções deslocantes, pontes inesperadas, e sua homenagem permanente à força radiosa do que é belo e forte, faz da sua obra um comentário muito amplo do mundo através das inumeráveis refrações da palavra cantada. (WISNIK, 1993, p.8) Ora, se a colagem de um samba clássico a um hit pop dos mais significativos e com um clássico de uma das mais reverenciadas bandas de rock de todos os tempos não puder fazer jus ao que Wisnik chamou de “intervenções deslocantes” — por tamanhas as diferenças entre as três canções unificadas na peça de Caetano — e também de “pontes inesperadas” — afinal, quem no âmbito da tradição musical brasileira ousou cometer tamanha heresia? —, que acabam por culminar numa literal “homenagem” — que em Caetano, de fato, é “permanente” — “à força do que é belo e forte”, por uma amostra deste “comentário muito amplo do mundo” por meio destas “refrações da palavra cantada”, o que o fará? Em 2004 Caetano lançou o álbum intitulado “A Foreign Sound” — numa tradução nossa: um som estrangeiro —, contendo apenas standards do cancioneiro em língua inglesa, desde Cole Porter até Kurt Cobain. Caetano fez questão de imprimir um tom exótico às interpretações das vinte e três canções contidas no álbum. Diana (1957), de Paul Anka, talvez seja a mais significativa no âmbito da Bossa-Nova. A canção, que ganhou versões nos mais diversos estilos e idiomas com o passar dos anos, enfim ganhou uma roupagem e interpretação genuinamente bossanovistas. Em 2012, Caetano lançou o álbum “Abraçaço”, terceiro trabalho com a banda Cê, numa sonoridade mais atrelada ao rock’n’roll. A qualquer um que desconheça Caetano talvez soe estranho o fato de a canção que abre o álbum ser justamente A Bossa-Nova É Foda (2012), mas, trata-se apenas da manutenção de uma coerência que norteia toda sua carreira — literalmente desde o seu início. !73 Desde o título, esta canção de Caetano se coloca como uma homenagem à Bossa-Nova um tanto quanto diferente de todas as anteriores por estar atrelada a uma pesada atualização ao contexto pós-moderno, haja vista a expressão empregada para elogiar, a qual, inicialmente dada como uma expressão de baixo calão, popularizou-se entre a juventude como sinônimo de “muito bom”, “excepcional”. No decorrer da letra, podemos encontrar, numa linguagem cifrada, referências a alguns dos grandes nomes da Bossa-Nova, tais como João Gilberto (“O bruxo do juazeiro numa caverna do louro francês”), Carlos Lyra (“O magno instrumento grego antigo diz que quando chegares aqui / Que é um dom que muito homem não tem, que é influência do jazz”), Tom Jobim (“O tom de tudo comanda as ondas do mar / Ondas sonoras com que colore no espacial”), e também ao cantor e compositor norte-americano Bob Dylan (“E tanto faz se o bardo judeu romântico de Minessota”). Além destes jogos de palavras que constituem referências a grandes nomes da música nacional e internacional, são também nominalmente citados alguns lutadores brasileiros de MMA (Mixed Martial Arts — Artes Marciais Mistas): “Minotauros”, “Junior Cigano”, José Aldo”, “Lyoto Machida”, “Victor Belfort” e “Anderson Silva”, fator que reforça a contextualização atual, totalmente atrelada aos nossos dias — até pelas referências a uma modalidade de artes marciais tão popular neste contexto — do culto de Caetano. Assim, aquilo que poderia soar controverso: o fato de um artista surgir como fruto da Bossa-Nova e criar toda uma carreira praticamente na contramão desta via de regra, optando por viajar pelos mais diferentes estilos e épocas, acaba por constituir a coerência da atuação deste artista baiano. Apesar da devoção por João Gilberto, Caetano valeu-se da inspiração para construir uma persona que vai de encontro à de seu mestre, afastando-se do caráter singular, uno, e multiplicando-se em muitos, conforme ressalta Tatit (2002): Fascinado por João Gilberto, talvez por isso mesmo, Caetano transformou-se em seu antípoda. Enquanto João Gilberto filtra os diversos momentos da canção popular numa dicção única, a sua própria, Caetano, ao compor e ao interpretar, prefere viajar pelas dicções dos outros cancionistas, encarnando seus dons. (TATIT, 2002, p. 263) !74 Tatit ressalta o caráter diverso de Caetano no que diz à sua dicção. No entanto, este se manifesta também em outros aspectos que compõem este personagem, que poderia estar restrito à cultura musical brasileira, e à Bossa-Nova, mas acaba por extrapolar estes limites. Se, por um lado, Caetano se revela como um artista brasileiro que insiste em dispersar, segundo um verso de uma de suas canções, “o que eu herdei de minha gente e nunca posso perder”33, por outro lado também pode ser tomado “como um objeto não identificado”, ao fazer brotar os mais diversos frutos a partir desta semente comum, miscigenada por elementos de diversas outros tempos, povos e culturas. A Bossa-Nova, em Caetano, coloca-se como embrião do artista e, norteando evolução deste, incorpora-se em seu DNA, desvelando-se em toda a sua atuação. Seja no rock, no pop, no forró, no bolero, na marcha, seja falando de amor, ódio, protesto, defesa, a constante reside no fato de se revelar em Caetano um “coração” no qual, atemporalmente, “batuca um samba de tamborim”34. 33 VELOSO, Caetano. Não Enche (1997) 34 VELOSO, Caetano. Tropicália (1968) !75 2. TROPICÁLIA: UM DIVISOR DE ÁGUAS NA CULTURA BRASILEIRA “Com amor no coração Preparamos a invasão Cheios de felicidade Entramos na cidade amada [...] Alto astral, altas transas, lindas canções Afoxés, astronaves, aves, cordões Avançando através dos grossos portões Nossos planos são muito bons” (Os Mais Doces Bárbaros, Caetano Veloso) Falar sobre o Tropicalismo é falar sobre uma das fases mais interessantes de toda a carreira de Caetano Veloso, e também de um divisor de águas não apenas na música, mas na cultura brasileira como um todo. Neste capítulo, buscaremos investigar um pouco dos antecedentes, que resultaram na revolução liderada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, os princípios norteadores desta, durante a plena atividade dos artistas, e até mesmo algumas de suas consequências, que se mantêm até a atualidade, após o fim da Tropicália. Para tratarmos da fase anterior à eclosão do Tropicalismo, precisamos nos situar no final da segunda metade dos anos 60. Mais especificamente, 1967. Este ano foi marcado por acontecimentos relevantes na história da música popular brasileira, e especificamente, marcou a entrada oficial de Caetano Veloso para o cenário da canção popular brasileira, com a gravação de “Domingo”. No que tange o cenário da cultura musical brasileira, vale lembrar do evento que se sucedeu em 17 de julho deste ano, a chamada: “Passeata da MPB”. Esta, que tinha como slogan: “defender o que é nosso”, ficou mais popularmente conhecida como a “Passeata contra a Guitarra Elétrica”. Ocorrida na cidade de São Paulo, a passeata saiu do Largo São Francisco e teve como ponto final o Teatro da Paramount, na Av. Brigadeiro Luis Antonio, em que seria realizado o programa: “Frente Ampla da MPB”. Contando com a presença de nomes como: Elis Regina, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4 e outros famosos que já figuravam como grandes nomes da MPB da época, o evento poderia ser resumido a !76 uma medida protecionista que visava a impedir a incorporação de um elemento da cultura estrangeira no cenário da música brasileira. Caetano, que não participou da passeata, comenta: [...] Na noite do primeiro, creio que a cargo de Simonal, preparou-se uma passeata, em mais uma macaqueação da militância política. Era a Frente Ampla da MPB contra o Iê-Iê-Iê, com faixas e cartazes pelas ruas de São Paulo. Eu conversara com Gil sobre a reunião. (...) Ficou claro entre nós que todo aquele folclore nacionalista era um misto de solução conciliatória para o problema de Elis dentro da emissora e saída comercial para os seus donos. Que Gil aproveitasse a oportunidade para lançar as bases da grande virada que tramávamos. Mas nunca considerei aceitável que ele participasse, ao lado de Elis, Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e outros (dizem que Chico chegaria a se aproximar por alguns minutos) dessa ridícula e perigosa jogada de marketing. Nara e eu assistimos, assombrados, de uma janela do Hotel Danúbio, a passagem da sinistra procissão. Lembro que ela comentou: `Isso mete até medo. Parece uma passeata do Partido Integralista (a versão brasileira do nazi-fascismo, um movimento católico-patriótico-nacionalista de extrema direita nos anos 30, do qual alguns antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar)’. (VELOSO, 1997, p.161) O fato de Caetano Veloso não ter se engajado neste movimento, negativamente caracterizado por ele como “mais uma macaqueação política”, “folclore nacionalista” e “ridícula e perigosa jogada de marketing”, foi no mínimo óbvia, tendo em vista que Caetano, na posição de artista, desde o início assumiu uma postura ligada à assimilação tranquila e pacífica de elementos de outras culturas, sem qualquer temor de que isso se colocasse como algo que viesse a ameaçar o seu trabalho, ou toda a cultura musical brasileira. Tratava-se de uma negativa à incorporação da guitarra elétrica na música brasileira — ou seja, um embate do velho em relação ao novo —, num tempo em que a Jovem Guarda já fazia sucesso com canções que eram fruto da inspiração na efervescência da cultura do Rock’n’Roll britânico, ligado aos Beatles. Apesar de se tratar de uma arte que, em certa medida, era completamente desvinculada da realidade brasileira, inclusive politicamente falando, Caetano não só era simpatizante do Iê-Iê-Iê, como também conseguiu perceber antecipadamente que todo este purismo em defesa da cultura nacional era literalmente, conforme a expressão popular, pro inglês ver. !77 Na total contramão desta xenofobia, Caetano, que havia gravado um disco marcado por um caráter passadista, o qual se colocava como um tributo à BossaNova, já “estava em outra”, conforme ele mesmo afirma: Quando "Domingo” foi lançado eu já estava em outra, com a cabeça no meu disco individual, que saiu em 1967. Comecei a andar com o Rogério Duarte e a gente só falava em música comercial, sambascanções bregas e Roberto Carlos — sobretudo porque Bethânia nos chamou a atenção para o Roberto. Eu já andava interessado em sair daquele cerco, daquele mundo da MPB dita de boa qualidade. Até hoje, na verdade, vivo esperneando pra sair desse negócio, mas é difícil. Essas definições que o mercado preestabelece são terríveis. O tropicalismo queria fazer misturas. Queríamos, sim, ouvir e curtir Roberto Carlos. (...) Às vezes tinha um iê-iê-iê de Roberto Carlos, que estava estourando entre as empregadas domésticas, mas nossa turma de música popular não conseguia ver se aquilo tinha ou não força poética. E, às vezes, tinha muita força poética. Por outro lado, como cantor o Roberto Carlos era muito bom; mas isto não podia nem ser dito naquela época. Era um tabu. (VELOSO, 2002) Neste contexto inicial, Caetano já se mostrava avesso aos rótulos e classificações. Marcado por um dos aspectos que norteariam toda a sua carreira, ele se interessava pelas “misturas”: não apenas “MPB”, nem “sambas-canções bregas” ou mesmo “iê-iê-iê de Roberto Carlos” isoladamente, mas tudo isso misturado e filtrado, contrariando inclusive as tendências “que o mercado preestabelece”. Na verdade, Caetano expressava uma personalidade artística tão forte, bem ao modo do que é expresso no verso: “onde queres um canto, [sou] o mundo inteiro”35. Há que se ressaltar também que, no mesmo ano de 1967, foi lançado o paradigmático álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club Band”. Este, que foi o oitavo disco de estúdio dos Beatles, segundo a revista “Rolling Stone”36, é: [...] the most important rock & roll album ever made, an unsurpassed adventure in concept, sound, songwriting, cover art and studio technology by the greatest rock & roll group of all time. Considerado um álbum revolucionário, pelo fato de ter convertido o rock’n’roll em arte — não apenas pelas letras e arranjos, mas, sobretudo pela arte gráfica do álbum —, “Sgt Pepper’s” foi também um disco pioneiro em diversos aspectos. Foi o 35 VELOSO, Caetano. O Quereres (1984) O mais importante álbum de rock & roll de todos os tempos, uma aventura inigualável em termos de conceito, som, composição, arte da capa e tecnologia de estúdio da melhor banda de rock & roll de todos os tempos (versão nossa). Disponível em: [http://www.rollingstone.com/music/lists/500greatest-albums-of-all-time-20120531/the-beatles-sgt-peppers-lonely-hearts-club-band-20120531]. Acesso em 12 de fevereiro de 2015, às 22:09h. 36 !78 primeiro disco concebido para ser ouvido de uma forma contínua, sem qualquer intervalo entre as faixas. Foi também o primeiro a conter as letras das canções impressas, capa dupla e até brindes como um cartão, um button de papel, uma insígnia e um bigode de papelão similar ao dos componentes da banda. Além disso, marcando o início daquela que é chamada de “fase madura” do quarteto de Liverpool, as canções que compõem o álbum são marcadas por uma sonoridade completamente inédita até então nos discos do gênero, seja pela orquestra de quarenta músicos em A Day in The Life, ou pelo caráter psicodélido de Lucy in The Sky With Diamonds — ambas inicialmente censuras nas rádios, devido a uma suposta apologia ao uso de drogas. O disco do Sargento Pimenta e sua banda Clube de Corações Partidos (numa tradução nossa) marcou o início da era dos álbuns conceituais, influenciou e segue influenciando gerações de artistas, dentre os quais podemos destacar Caetano Veloso e seus demais companheiros no Tropicalismo. E foi justamente no mesmo ano de 1967 que Caetano Veloso e Gilberto Gil participaram do III Festival Internacional da Canção, promovido pela Record em 21 de outubro de 1967, defendendo, respectivamente, as canções: Alegria, Alegria e Domingo no Parque, as quais iam totalmente na contramão da música popular apreciada na época, ligada ao banquinho e violão da Bossa-Nova, e com letras de cunho esquerdista, expressando protesto em relação ao regime ditatorial brasileiro vigente. Caetano e Gil tiveram coragem de literalmente remar contra a maré, e trazer a público as duas primeiras composições que, num futuro bem próximo, acabariam por deflagrar o Tropicalismo. Nesse sentido, Favaretto (1995) afirma: Em outubro de 1967, quando Alegria, Alegria e Domingo no parque foram lançadas no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record de São Paulo, não se apresentavam como porta-vozes de qualquer movimento. Contudo, destoavam das outras canções por não se enquadrarem nos limites do que se chamava MMPB (Moderna Música Popular Brasileira). Ao público consumidor desse tipo de música — formado preponderantemente por universitários — tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou certo lirismo, que davam tônica à maior parte das canções da época. (FAVARETTO, 1995, p. 19/20) Segundo o ponto de vista defendido por Favaretto, as canções defendidas por Caetano e Gil no III Festival da Música Popular Brasileira ainda não se colocavam !79 como “porta-vozes” do movimento liderado por estes artistas, prestes a surgir. Mas, historicamente falando, acabaram por se constituir como marco-zero da proposta tropicalista. De qualquer modo, estas canções já destoavam completamente do padrão de canção que agradava o público que apreciava a chamada “MMPB”, por apresentar uma outra forma de “postura política” — diferente das canções de protesto —, e até mesmo de “lirismo”, em comparação ao das letras de canções da época. O grande público, apesar de ter notado o caráter de “novo” instaurado por Alegria, Alegria e Domingo no Parque, certamente não conseguiu apreciá-lo em sua totalidade — “é que Narciso acha feio o que não é espelho” —, mas foi por ele confundido, embora se tratasse de algo bastante elementar, conforme Favaretto afirma: A novidade — o moderno de letra e arranjo —, mesmo que muito simples, foi suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo público sancionados por festivais e crítica. Segundos tais critérios, que associavam a “brasilidade” das músicas dos festivais à carga de sua participação político-social, as músicas de Caetano e Gil eram ambíguas, gerando entusiasmos e desconfianças. Acima de tudo, esta ambiguidade traduzia uma exigência diferente: pela primeira vez, apresentar uma canção tornava-se insuficiente para avaliá-la, exigindo-se explicações para compreender sua complexidade. Impunha-se, para crítica e público, a reformulação da sensibilidade, deslocando-se, assim, a própria posição da música popular que, de gênero inferior, passaria a revestir-se de dignidade — fato só mais tarde evidenciado. (FAVARETTO, 1995, p.20) Favaretto deixa bem claro que as simples mudanças ligadas à letra e o arranjo das canções serviram não só para “confundir” o público e o júri, tendo em vista seus critérios pré-estabelecidos, mas, sobretudo, para elevar “a posição da música popular”, tirando dela quaisquer resquícios de um suposto “gênero inferior”, mas, colocando-a como algo suficientemente complexo, a ponto de mobilizar os artistas no que diz respeito a elucidações acerca da interpretação dos sentidos nelas construídos. Este fator acaba também por se ligar à exigência de um público mais sensível, crítico e culto, capaz de apreciar peças com um nível maior de elaboração, marcadas por uma profundidade tal que não permite a concepção de um juízo de valor após ser ouvida pela primeira vez, seja pelos críticos, seja pelo público. Alegria, Alegria (1967) foi lançada inicialmente como single, num compacto que tinha no seu lado B a canção Remelexo (1967), e depois foi incorporada ao álbum intitulado “Caetano Veloso”, lançado no mesmo ano. !80 Ao esboçarmos uma interpretação da letra, temos de atentar aos diferentes níveis de significação e às relações que subjazem à superfície das palavras. Em primeiro lugar, o fato de a canção se iniciar pelo verso “Caminhando contra o vento” — expressão de liberdade e talvez até mesmo de transgressão — já a coloca como uma inspiração para a canção que seria escrita posteriormente Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (1968), de Geraldo Vandré, que ficaria em segundo lugar no Festival Internacional da canção de 1968. Esta tornou-se um hino de resistência dos movimentos civil e estudantil que se contrapunham à ditadura militar brasileira, e por isso mesmo, foi censurada por muitos anos. Apesar de não ser marcada exatamente pelo mesmo tom contestador da canção de Vandré, Alegria, Alegria se inicia descrevendo alguém que está “caminhando contra o vento”, expressão que equivaleria a outras como “remando contra a maré”, ligada à contrariedade em relação a algo muito mais forte. O “vento” em questão pode, figurativamente, ser a síntese ou representação de muitos elementos ligados ao contexto da época. Desde a postura contrária à de muitos cancionistas e intérpretes ligados à canção de protesto em relação à ditadura militar, como também a visão antiquada das pessoas em relação à manutenção de uma tradição no âmbito da canção popular e até mesmo o próprio governo militar em plena vigência. Além do posicionamento antagônico em questão, a voz poética afirma também estar “sem lenço” e “sem documento”. Este fato, especificamente, vai de encontro a uma das imposições do regime militar aos cidadãos, tendo em vista que, qualquer pessoa que fosse abordada na rua por uma autoridade sem estar portando seus documentos, poderia ser reprimida por um dos muitos militares, ao ser classificada como “vadia”. Nesse sentido de oposição ao regime militar, a voz poética da canção de Caetano não só caminha “contra o vento”, “sem lenço sem documento”, como expressa uma coragem ou ousadia extremada e pouco recomendável na época, ao afirmar apenas: “eu vou”, como que contra tudo e todos, sem temer quaisquer limites ou imposições, mas, completamente livre. Outro aspecto inovador que, inicialmente chocou a todos foi citar a marca de refrigerantes “Coca-cola”, personalidades internacionais como as atrizes Claudia !81 “Cardinale” e “Brigitte Bardot” e termos atrelados às revoluções estudantis que ocorriam — tanto no Brasil quanto no exterior — “guerrilhas”, “bomba” e “fuzil”, fato até então inédito na canção popular brasileira. Apesar destes elementos incomuns incorporados à letra, por outro lado podemos identificar um certo lirismo que permeia a letra da canção, à medida que este mesmo jovem, se por um lado pode ser classificado como contestador, rebelde, por outro revela características e aspirações comuns a qualquer representante de sua geração, “no coração do Brasil”. Desde o fato de ter “os olhos cheios de cores” e “o peito cheio de amores vãos”, como expressões da força e energia inerentes à juventude, passando pelos planos de quem “pensa em casamento” ao amar pela primeira vez, ou tem o desejo de “cantar na televisão”, até a aspiração por paz, “sem livros e sem fuzil”, sem mais a necessidade de manifestações estudantis para que os jovens tenham seus direitos assegurados e possam apenas “seguir vivendo”. Nesse sentido, a locução que já foi comentada anteriormente, ganha outro significado: “eu vou”, se torna a expressão de uma aspiração para um futuro promissor, como cidadão. E isto sem qualquer receio ou temor — mesmo em meio à vigência de uma ditadura militar —, mas, ao contrário, com a valentia e tenacidade suficientes não só para afirmar isto, como também questionar — a si mesmo e aos seus semelhantes -: “por que não?” Não bastasse o conteúdo expresso na letra, a estrutura da mesma também se apresentava como algo que era até então, não somente inédito, mas, principalmente, “inconcebível”, conforme comenta Tatit: Se você pega “Alegria, Alegria”, que foi uma das músicas que detonaram, né, o Tropicalismo naquele momento, você tem versos assim: “Eu tomo uma coca-cola / Ela pensa em casamento / E uma canção me consola”. Isso era inconcebível dois anos atrás. Dois anos atrás o que se tinha era “A Banda”, do Chico Buarque, em que você tem uma narrativa muito clara de uma banda passando pela cidade e maravilhando todo mundo, né? Esse tipo de verso do Caetano, já dois anos depois, isso que eu estou chamando de “justaposição”. Você tem, parece que assuntos diferentes de verso pra verso. Isso era inconcebível. Hoje você vê uma letra do Djavan, é, as letras são todas assim. Parece... você nem entende qual é o assunto que ele tá falando, às vezes. Você sabe, às vezes, que é amoroso, e tal, mas você não entende a conexão de um verso pro outro, né? Isso vem do Tropicalismo, que já usou um pouco de influência literária, aí, não tem dúvida de que houve uma influência literária, mas, sobretudo, uma liberdade de se fazer letra. (TATIT, 2008) !82 De fato, qualquer um que tente comparar Alegria, Alegria e A Banda acabará por se deparar por peças que são completamente opostas entre si, praticamente água e vinho, especialmente no que diz respeito ao conteúdo. A intenção de Caetano Veloso era justamente ir na contramão da “narrativa muito clara” que marcava as letras das canções até então. Rompendo com isso, Caetano constrói uma letra completamente atrelada ao que era contemporâneo na época, seja pelo que é tratado nos versos, mas, sobretudo pela forma de estruturálos. Alegria, Alegria revela uma letra concebida por uma perspectiva cinematográfica — conforme Décio Pignatari classifica, uma “letra câmera na mão” — num pleno diálogo com o “Cinema Novo”, de modo que, a “conexão de um verso pro outro” se dá da mesma maneira que os mais diferentes elementos são focalizados por uma câmera, constituindo uma única cena, sem por isso perder a unidade ou coerência. Os próprios versos citados por Tatit como algo “inconcebível” frente à tradição musical brasileira até então exemplificam a construção de uma cena, com a focalização dos diferentes elementos que a constituem. Primeiro, a voz poética, tomando seu refrigerante. A seguir, a câmera se desloca para sua amada, a mulher que está a pensar “em casamento”, fazendo planos, e, ao fundo, uma canção — trilha sonora ao fundo ou rádio ou vitrola sendo focalizado — que “consola” o homem em questão, fazendo-o, ao ser levado pela melodia, fugir do contexto caótico em que está inserido — seja mental ou fisicamente. Por outro lado, embora se trate de uma canção inovadora, em termos de arranjo, Alegria, Alegria é marcada por uma melodia totalmente ligada à estrutura simples da “marcha”, consagrada por Chico Buarque em “A Banda” — que obteve primeiro lugar no mesmo festival em 1966 — fator que, neste âmbito, aproxima as duas canções. É o próprio Caetano Veloso quem chama a atenção para um “critério de composição” presente em Alegria, Alegria, o qual, embora empregado aparentemente “sem cuidado e sem seriedade”, sutilmente, acaba por revelar as “intenções e as possibilidades do momento tropicalista”, conforme o próprio Caetano ressalta: Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossanova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência, aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em !83 relação insólita. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles. (VELOSO: 1997, p.169). O emprego da “justaposição” não se dá apenas na ordenação dos versos, ressaltada por Tatit, mas também pela repetição de uma estrutura musical característica do Rock’n’Roll, em que os acordes maiores não são colocados convencionalmente, apenas em oposição aos seus relativos, mas ordenados justapostos, numa “relação insólita”. Alegria, Alegria, portanto, está bem mais para Beatles que para João Gilberto. E isto se dá de tal forma, a ponto de Caetano revelar uma intertextualidade musical presente em sua canção em relação a um dos hits contidos no álbum “Sgt. Peppers”, lançado naquele mesmo ano pela banda inglesa: Contudo, ouvindo a gravação hoje, embora o andamento da versão de estúdio seja deprimentemente lento e meu canto demasiadamente tímido, comovo-me com a forma da introdução, com a citação velada de “Fixing a Hole”, com o acorde final saltando para fora do ambiente harmônico já de si cheio de mudanças bruscas, enfim, de tudo o que Marcelo Maurício, Toyo, Tony e Willie possibilitaram que acontecesse nessa experiência tateante e fundadora. (VELOSO, 1997, p.169) Exatos trinta anos após a apresentação no festival, em meio a uma autocrítica — processo bastante corrente em Caetano Veloso —, o cancionista baiano confessa a inspiração da introdução de Alegria, Alegria com Fixing a Hole, e reafirma o caráter contemporâneo não apenas em relação ao que se passava no Brasil, mas no mundo, de sua canção. Além de dividir os créditos com os componentes da banda que lhe acompanhara, Caetano emprega dois termos bastante felizes para sintetizar toda esta “experiência”. Trata-se de algo “tateante”, sem a menor dúvida, já que Caetano ousou experimentar, provar do uso de elementos inéditos e de culturas internacionais para compor a sua peça. E, a partir disso, podemos nos referir a este momento como uma prática “fundadora” no sentido mais amplo da palavra. Conforme Tatit pontuou em seu comentário anteriormente citado, todos os aspectos inicialmente dados como incabíveis no contexto da canção popular brasileira daquela época, após serem introduzidos por Caetano permaneceram e foram tão empregados a ponto de se tornarem característicos da nossa contemporaneidade musical, do trabalho de artistas com Djavan, Lenine, RoupaNova e tantos outros representantes dos nossos dias. !84 Na noite do festival, Caetano foi praticamente sabatinado por repórteres, todos, representantes da tradição, muito curiosos acerca das características inovadoras, ligadas ao pop, impressas na canção que seria por ele defendida. Reali Jr., um repórter da época, perguntou37 a Caetano nos bastidores do Festival: “[...] Define aqui pros ouvintes da rádio Record, da Jovem Pan, e pros telespectadores do canal 7, em palavras bem simples... Assim, porque eu li no jornal uma porção de coisas que não entendi bem. Música pop. Define.” A pergunta em questão deixa claro não só o completo desconhecimento, mas, sobretudo a não aceitação da adoção de tendências ligadas ao pop numa canção a ser apresentada no festival em questão. O repórter, talvez, pudesse ter intimidado Caetano Veloso, com uma pergunta até certo ponto complexa, de definição de uma tendência musical internacional que nem sequer ele tinha compreendido ainda, mas não conseguiu. Talvez esperasse uma declaração que fosse de encontro aos ânimos nacionalistas exacerbados de alguns dos cancionistas participantes e de grande parte do público. Caetano, muito tranquilamente, em resposta, apenas afirmou: Ah, isso é meio difícil de definir, porque é uma... Pop é uma... Nem sei se o que a gente tá fazendo é pop, tá entendendo? Isso é um negócio que eu admito como termo, porque, de alguma forma, a gente tá tendendo pra um tipo de cultura pop, quer dizer, de assumir todas as formas da cultura massificada e tudo mais, entende? Por exemplo, revista em quadrinhos é uma coisa pop, entende? É! O fato de Caetano não se propor a definir formalmente, como uma espécie de dicionário, mas, contrariamente a isso, até hesitar e expressar dúvida acerca do enquadramento de sua canção como pop e sintetizar sua resposta com o verbo “é”, parece ter irritado o repórter que fez a pergunta. Este, parecendo não acreditar no que ouvira, replicou em seguida com outro questionamento: “Pop é aquilo que é? É apenas é o que é, e o que acontece? Ao que Caetano, mais uma vez, com muita calma, respondeu, agora de uma maneira mais completa: “Pop” é do “popular” inglês, parece, esse negócio de arte de massa, quer dizer, um negócio feito utilizando aquilo que tem sucesso de massa, todos os elementos das coisas que tem comunicação direta com a massa. Tem a pintura pop... 37 Uma Noite em 67. !85 De uma maneira quase didática, Caetano tenta explicar o significado do termo, originário de um outro idioma, até citando exemplos, mas o repórter, provavelmente sem ter entendido, encerra de maneira irônica, afirmando: “É o Veloso pop? Porque maior comunicação com a massa que Caetano Veloso eu tô pra ver ainda nesses tempos...”, de certa maneira zombando da proposta de Caetano, tomando-a como algo que estaria muito além de uma concreta possibilidade não só realização, mas, principalmente de obtenção de êxito. Num outro momento do festival, Caetano é abordado por um casal de repórteres que lhe pergunta como ele se sente com a classificação de sua canção. Caetano responde: ‘Tô contente com a classificação, porque, ah, não sei... Tô contente por qualquer coisa! Porque foi tão bacana, cantei duas vezes, o público tava super cantando a minha música, gostando! Muito bacana! E com as outras classificações, tô contente também. Ponteio, Domingo no Parque e Roda-Viva eu acho geniais! Acho mesmo! Em sua resposta, Caetano expressa sua felicidade. Logicamente pela classificação de sua canção, mas, sobretudo pela monumental aceitação da mesma, fator que faz com que este sentimento lhe seja bastante amplificado. Ele ainda, com humildade, num tributo aos seus colegas de profissão, chegou a comentar a alegria pelo fato de as canções de Edu Lobo, Gilberto Gil e Chico Buarque terem também sido classificadas para a final do festival, reconhecendo o valor das obras de seus colegas, e, no contexto do festival, oponentes. Após este comentário de Caetano, vem então a pergunta que muita gente gostaria de fazer ao autor de Alegria, Alegria: “Veloso, o que o levou a você fazer uma música bem moderna, pegando “coca-cola”, “guerrilha”, “Brigitte Bardot”? Como você teve essa ideia, quando teve a ideia e quando começou a executar a sua música?” A reposta dada por Caetano soou no mínimo desconcertante ao repórter: “O que me levou a falar em Coca-Cola e Brigitte Bardot, Cardinale, foi a Coca-Cola, Brigitte Bardot, Cardinale, bomba, guerrilha, as coisas que tão aí...”, sem demais justificativas, apenas pela própria existência destes elementos na realidade mundial. No entanto, não satisfeito e insistindo em arrancar de Caetano algo que justificasse a estranheza causada em tantas pessoas, o repórter prossegue: “Mas, !86 quando você disse que ia fazer uma música assim, não teve gente que falou assim: mas, logo, misturar Cardinale e Coca-Cola, alguém não estranhou?” Caetano quebra totalmente as expectativas de quem fez a pergunta, e esperava que ele dissesse que chocou a muitos, ao responder afirmando apenas: “Não, porque eu não disse nada pra ninguém.” Então, a repórter que estava junto do homem que fizera as perguntas, afirma: “Escreveu, né? Pronto e acabou”, como se o caráter insólito atribuído à canção pudesse ser justificado por um descuidado ou despreparo no processo de composição. Mas, Caetano, então, replicou, afirmando: Depois de pronta, eu mostrei a alguns amigos meus que acharam genial, bacana o negócio, entendeu? Principalmente o pessoal da Bahia. Eu fui a Salvador, antes do festival, mostrei aos meus amigos lá, e eles acharam bacana, inclusive, fazer com o conjunto de guitarras. Eu fiquei contente pra burro porque lá no Rio, escreveram assim: “Caetano vai usar guitarras, e quando chegar na Bahia, vai tomar uma surra de berimbau”. Quer dizer, eles não sabiam que os baianos estão além... A resposta de Caetano foi totalmente de encontro às expectativas do entrevistador. Ao afirmar que “o pessoal da Bahia” gostou da canção, e da execução com guitarras no arranjo, sem quaisquer preconceitos, contrariamente às opiniões jocosamente veiculadas no jornal Rio de Janeiro, Caetano acaba por evidenciar uma visão superficial e preconceituosa, da qual Caetano e seus conterrâneos baianos mostraram estar “além”, acima. Afinal, será que a Bahia poderia ser resumida ao som de berimbaus e batuques? E o Rio de Janeiro, como polo cultural, mais moderno e civilizado, talvez — na visão destes repórteres não teria os créditos da primazia desta influência internacional? A partir de um ponto de vista cruelmente preconceituoso, esta seria a lógica, a mesma que fora desmontada por Caetano. A repórter, que havia questionado Caetano anteriormente, após a afirmação do cancionista baiano, acerca de os baianos estarem “além”, rapidamente encerra a entrevista, ironicamente dizendo: “Além da imaginação, né?”. Ou seja, ela deixa claro o fato de o arranjo original da canção ser algo além do concebível. E, sem permitir qualquer réplica de Caetano, apenas o agradece: “Muito obrigada, Caetano”. Quebrando quaisquer possíveis tabus em relação ao caráter de “inconcebível”, Favaretto, acerca de Alegria, Alegria, explica: !87 A marchinha pop Alegria, Alegria denotava uma sensibilidade moderna, à flor da pele, fruto da vivência urbana de jovens imersos no mundo fragmentário de notícias, espetáculos, televisão e propaganda. Tratava, numa linguagem caleidoscópica, de uma vida aberta, leve, aparentemente não empenhada. Tais problemas, enunciados de forma gritante em grande número de canções da época, articulavam-se à maneira de fatos virados notícias. Através de procedimento narrativo, as descrições de problemas sociais e políticos, nacionais ou internacionais, misturavam-se a índices da cotidianidade vivida por jovens de classe média, perdendo, assim, o caráter trágico e agressivo. A tranquilidade do acompanhamento dos Beat Boys e da interpretação de Caetano reforçava tal neutralização, surpreendendo um público habituado a vibrar com declarações de posição frente à miséria e à violência. Ambígua, a música de Caetano, intrigava; em sua aparente neutralidade, as conotações políticas e sociais não tinham relevância maior que Brigitte Bardot ou a Coca-Cola, saltando estranhamente da multiplicidade de fatos narrados. Através da operação que realizava, a linguagem transparente de Alegria, Alegria fazia que a audição do ouvinte deslizasse da distração ao estranhamento. (FAVARETTO, 1995, p. 20/21) Alegria, Alegria, por sua “linguagem caleidoscópica”, colocava-se como um registro fiel da juventude da época, por um lado imersa em meio aos “problemas sociais e políticos” e, por outro ligada a “índices da cotidianeidade” específica e comum à vida de jovens de uma mesma faixa etária. O fato de isso tudo vir à tona numa literal “tranquilidade” tanto da voz de Caetano quanto do acompanhamento dos Beat Boys acabou por surpreender um público já acostumado com canções marcadas por uma temática de protesto, produzidas e veiculadas à exaustão num contexto de regime militar no Brasil. Em certa medida, Alegria, Alegria revelou-se mais expressiva no que diz respeito à realidade urbana e contemporânea destes jovens que, mesmo com todos os possíveis e imagináveis problemas e conflitos decorrentes da ditadura, apesar destes, seguiam suas vidas, bem como é expresso nos versos da canção de Caetano: “eu vou / por que não?”. A participação de Caetano Veloso no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 21 de outubro de 1967, além do talento e do intuito inovador, é reveladora também de alguns aspectos performáticos e da personalidade do artista em questão. A começar pela primeira apresentação, antes da classificação. Assim que foi anunciado, Caetano, ao estar entrando com os componentes da banda Beat Boys, que o acompanhariam, foi recepcionado de uma maneira bastante calorosa, não sob os aplausos, mas sob as vaias de uma esmagadora maioria da plateia. Nelson !88 Motta, autor de uma das canções que também concorriam, e que presenciou o acontecimento, comenta38: Olha que situação! Tô lá assistindo o festival, numa tripla condição: como jornalista, como amigo do Caetano Veloso, e como concorrente, que a minha música tava ali, na final! Quando entrou o Caetano, e aqueles argentinos dos Beat Boys, né? Rock’n’roll. Foi uma vaia monumental! Pra vocês verem como o ser humano não vale nada... Eu pensei assim, falei: “Meu Deus! Menos uma!” Eu não vaiei, né? Mas, não me incomodei que estivessem vaiando ali. Aí, a música foi andando, o Caetano Veloso paradinho ali no palco, sorrindo, com esse carisma dele, foi dobrando o público, as vaias foram baixando, foram começando uns aplausos aqui, e ali e mais aplausos, mais, mais aplausos, ele virou o público. Quando eu olhei, provando que o ser humano vale alguma coisa, até eu tava aplaudindo, ovacionando o meu concorrente, ali no festival, porque foi uma das maiores emoções que eu tive no show business, de ver um artista num palco, ali, virar completamente uma multidão feroz, sem dizer uma palavra só, cantando... Foi lindo isso! (MOTTA, 2010) Apesar da acolhida, que passou muito longe de ser afetuosa, Caetano Veloso permaneceu no palco, e começou a entoar a canção mesmo sob as vaias do público, permanecendo “paradinho” no palco, e até “sorrindo”, expressando todo o seu “carisma”, numa dispersão de simpatia que o fez, praticamente sozinho, equiparar-se, numa posição de igualdade, em relação à intensidade da multidão furiosa que o vaiava. Este choque — justamente por Caetano não reagir, por exemplo, como Sérgio Ricardo e colocar-se a discutir com a plateia inflamada e até quebrar o violão — fez com que, em pouco tempo, o som das vaias se convertesse em aplausos, de um grande coral que, junto a ele, passou a entoar a canção. Esta, ao seu término, foi aplaudidíssima, e Caetano, que, inicialmente fora vaiado, acabou literalmente ovacionado, numa completa mudança de postura por parte do grande público, que, provavelmente, se identificou com os aspectos dados como inconcebíveis pelos representantes da tradição. Pode-se afirmar que isso só aconteceu, grande parte devido à postura assumida por Caetano, conforme ele mesmo afirma: O fato é que, enquanto meu currículo era enunciado pelos apresentadores do programa, os Beat Boys, como estava estipulado que todos os grupos acompanhantes de cantores fizessem, apareceram no palco para ligar seus instrumentos e tomar posição, surpreendendo a platéia com seus cabelos longos, suas roupas corde-rosa e suas guitarras elétricas de madeira maciça. Iniciou-se uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa antes que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores, 38 Depoimento de Nelson Motta. In: Uma noite em 67. !89 diretores, produtores e público. Esse susto foi tanto maior quanto a constatação de que a não-observância da tradição de usar smoking na gala desses festivais não se restringia aos meninos da banda: minha entrada intempestiva era ainda mais chocante por eu estar usando, diferentemente de todos os outros cantores, dos músicos e dos apresentadores, um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo. (VELOSO,1997, p.173). Caetano, na verdade, munido de uma irreverência não desrespeitosa, nem sequer esperou que seu “currículo” fosse anunciado pelos apresentadores do festival, mas simplesmente entrou no palco, com uma expressão amedrontadora no rosto, em resposta às vaias do público dirigidas aos Beat Boys, apenas pelos seus “cabelos longos”, “roupas cor-de-rosa” e “guitarras elétricas”, sem que eles tivessem sequer terminado de ligar os instrumentos e a suas aparelhagens específicas. Em oposição à grande maioria dos outros participantes, Caetano ousou contestar as regras, e todo um comportamento de formalidade, até pela maneira como estava vestido: não de smoking, como quem vai a uma cerimônia de gala, mas, apenas com um terno e uma camisa “de gola rulê”, de uma cor viva e chocante para o ambiente formal das pessoas “na sala de jantar”39. Isso tudo era apenas o início de todo um choque arquitetado em parceria com Gilberto Gil, que, a saber, se daria através do movimento nomeado Tropicalismo. O primeiro álbum individual de Caetano Veloso, intitulado apenas com o seu próprio nome, foi lançado em 1968, e continha as canções: Tropicália; Clarice; No dia em que eu vim-me embora; Alegria, alegria; Onde Andarás; Anunciação; Superbacana; Paisagem útil; Clara; Soy loco por ti América; Ave-Maria e Eles. Em termos de inovação, engana-se quem pensar que este caráter residia apenas nas letras e arranjos das canções. O álbum, como um todo, era uma expressão da proposta articulada por Caetano e Gilberto Gil. O design gráfico do disco foi assinado por um artista que abriga em si o talento expresso nas diversas funções de artista gráfico, músico, compositor, poeta, tradutor e professor: Rogério Duarte. Este soube — como talvez ninguém conseguisse, naquela época — expressar por meio dos elementos gráficos do disco — capas, ilustrações e fotos — o tom de ruptura e de modernidade proposto por Caetano, não só em suas canções, 39 VELOSO, Caetano. Panis et Circensis (1968) !90 mas, em todo seu comportamento como artista, revelado inclusive em sua performance. Duarte, que era já naquela época um profundo conhecedor das artes gráficas, tinha seus trabalhos reconhecidos devido a um caráter de ruptura, marcado pelo exercício contínuo de transgredir, tendo por objetivo não permitir que a tradição no âmbito do design gráfico internacionalmente falando — advinda da Suíça, especificamente — viesse a ditar regras no Brasil, tornando-se um dogma, tendo em vista que, segundo ele próprio, “quando vira dogma perde a vida”. Antes, Duarte foi sempre um artista movido por um desejo de mudança e de renovação. Isto era manifesto, naquele contexto, em relação a um “pseudonacionalismo” ao qual também se opunham Caetano e seus demais companheiros tropicalistas. Nesse sentido, Duarte 40 pontua: Naquele tempo havia uma visão elitista que abraçava um pseudonacionalismo purista, preso à noção de “nossos bons negros, nosso autêntico samba”, como se todas as coisas estivessem estagnadas e não sujeitas à transformação. O movimento internacional durante a época da Tropicália estava basicamente informado por uma visão terceiro mundista que era receptiva às perspectivas negras e africanas. No plano estético, o etnocentrismo branco oficial começava a perder o seu poder. (Duarte apud Dunn, 2001, p.155) Apoiando-se muito mais nas tendências de todo um “movimento internacional” que se dava “durante a época da Tropicália”, ligada ao contexto hippie e também ao Rock’n’Roll, a capa do disco de Caetano Veloso se coloca como uma expressão completamente contemporânea, opondo-se frontalmente ao que era padrão para os discos do Brasil, misturando foto com desenho, em meio a cores quentes, gritantemente chamativas, e contornos nas imagens, característicos das HQ’s. Melo (2000) descreve com minúcias a capa em questão: Duarte se apropriou de uma ilustração anônima composta por uma moça seminua com longos cabelos segurando um dragão, e, entre eles, um ovo, além de uma serpente, folhagens e bananas. Sobre o ovo, Duarte estampou uma foto de Caetano. [...] Reproduzindo a estética das ilustrações das histórias em quadrinhos, o designer enfatizou os contornos das figuras, fazendo com que elas se destacassem do fundo. As retículas super ampliadas são aplicadas em alguns pontos de sombra, como na serpente e nas bananas, contrastando com a luz no cabelo e no corpo da moça. (MELO, 2006, p. 200) 40 Depoimento de Rogério Duarte para o autor. Salvador, 2000. !91 A foto de Caetano, na capa, está inserida numa ilustração, mais especificamente na de um “ovo”, o qual está entre uma “moça seminua” e um “dragão”, bastante similar às figuras das histórias em quadrinhos, um elemento cultural ligado também às massas, que fora utilizado por Caetano como exemplo quando convidado a definir o que era pop, para um repórter no Festival. Melo ainda ressalta a contraposição do “arcaico” em relação ao “moderno” — o embate entre o velho e o novo — outro aspecto comum também à proposta tropicalista, expressa na capa, em que: [...] a composição é convencional — foto do artista no meio, nome em cima, centralizado — mas, por outro lado, os elementos estéticoformais (tipografia, os fundos cromáticos, elementos pictóricos) são fortes, agressivos, exuberantes. A moça pode ser Iracema ou Brigitte Bardot, já que as duas convivem no universo tropicalista. A serpente pode representar o sexo; as bananas, o nosso subdesenvolvimento. (MELO, 2000, p. 201) Apesar das ilustrações e tudo mais, o padrão das capas é mantido, com a foto centralizada, o nome do artista acima, e etc. Numa tentativa de interpretação da ilustração utilizada, à luz das letras das canções, Melo afirma que a moça pode ser “Iracema”, protagonista do romance nacionalista homônimo de José de Alencar, que remonta, ficcionalmente, as origens da América — caracterizada como “a virgem dos lábios de mel” —, ou “Brigitte Bardot”, atriz francesa citada na letra de Alegria, Alegria. Mas, por se tratar de uma mulher, poderia ser também uma representação de Clara, ou mesmo de Clarice — as duas únicas canções do álbum, cujos títulos são constituídos por nomes próprios femininos. No que diz respeito ainda à modernidade e inovação, não bastassem a capa e as canções, Caetano escreveu um texto41 para a contracapa do disco — classificado por ele como “prafrentex”. Foi o próprio Caetano que, anos depois, o explicou para um jornal da época: “O Pasquim”42: Quando eu estava preparando meu segundo LP (aquele para o qual Rogério Duarte fez uma capa com mulher e dragão e retrato oval), escrevi um texto prafrentex para a contracapa. Durante o período de gravações, recebi em São Paulo a visita de Fernando Lôbo (autor de ‘Chuvas de Verão’, música que vim a gravar algum tempo depois na cidade de Salvador, onde gozei grilado quatro meses de 41 Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/monta_encarte.php?id_disco=67]. Acesso em 08 de março de 2014. Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/search/label/1967] Acesso em 25 de fevereiro de 2014. 42 !92 confinamento). Era uma visita profissional; ele vinha buscar o texto da contracapa e marcou, pelo telefone, um encontro no Patachou pedindo que eu o levasse. Eu disse OK mas não achei o texto na hora de sair nem nunca mais. À mesa do restaurante, eu informei Fernando da perda e ele me informou da necessidade de voltar na manhã seguinte para o Rio com tudo pronto para imprimir a contracapa: caso contrário o disco atrasaria um mês. Como eu preferia que o disco saísse péssimo do que atrasado, concordei em aceitar o papel e a caneta que ele me oferecia enquanto me ameaçava com a terrível informação. Reescrevi ali mesmo o babado todo que eu pensava ter esquecido. Enquanto eu trabalhava, as pessoas conversavam. Inclusive comigo. "Eu gostaria de fazer", eu ia tentando lembrar, "uma canção de protestos de estima e consideração, mas esta língua portuguesa me deixa louco" eu escrevi e imediatamente percebi que não tinha escrito "rouco" como da primeira versão. Cortei "louco" e escrevi "rouco" em seguida. Não sei se foi isso que deu a Fernando a idéia de reproduzir meu manuscrito na contracapa do disco ou se ele já havia falado nisso antes. Só sei que concordei com essa idéia para não dificultar as coisas: na época eu teria preferido que o texto saísse datilografado; algum tempo depois eu preferiria impresso mesmo; hoje, não sei. De qualquer forma, eu gostava da piada. Não tanto da que resultou do erro, mas da piada original. Por nada: apenas porque dizer que a língua portuguesa me deixa rouco era verdade, enquanto que dizer que a mesma me deixa louco dava a impressão de que eu tinha em mente ressaltar mais uma vez o fato de nós falarmos e escrevermos numa língua não exportável. Quando, na verdade, eu não estava, sentindo nada disso. Pelo contrário: estava alegríssimo, compondo desbragadamente, sem sonhar com exportação. O texto em questão, de fato, destoa completamente de uma forma de escrita convencional em prosa, pelo fato de, praticamente, ocorrer uma mudança de assunto de um período para outro, sem quaisquer elementos empregados para a coesão do texto. Desse modo, a compreensão do mesmo fica bastante prejudicada do ponto de vista de uma análise formal. No entanto, o último período deste texto é bastante revelador de um caráter proposital no que diz respeito tanto à forma como o texto foi escrito, quanto à dificuldade de compreensão causada por esta: “porque eu não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada.” Iniciado pela citação de um comentário de Miles Davis, acerca do fato de ser um “maravilhoso país, o nosso”, pelo fato de se poder contratar quarenta músicos, mas não para executarem uma determinada peça como uma orquestra — com todas as divisões de timbres e tipos de instrumentos —, mas, “um uníssono”, o texto se inicia com a referência a um “país”, o qual não pode ser exatamente determinado, se o Brasil, ou o Estados Unidos, terra-natal do trompetista, compositor e bandleader de jazz a quem a fala é atribuída. !93 A seguir, já se muda de assunto, e o foco passa para o passado da música brasileira — já naquela época. Ressalta-se um “antes”, em que “havia” aquele que foi chamado “o cantor das multidões”, uma das principais vozes da canção brasileira da primeira metade do século XX, “Orlando Silva”, e também um dos instrumentos mais característicos dos arranjos das canções interpretadas por Silva e outros de seus contemporâneos, as “flautas”. O fato de ter sido produzida uma primeira versão do texto, a qual não fora encontrada “na hora de sair nem nunca mais”, e uma segunda, às pressas, em que Caetano conseguiu se lembrar e escrever novamente “o babado” que ele “pensava ter esquecido”, deixa clara a intencionalidade do autor em relação ao caráter ambíguo do texto, que foge completamente às regras de composição e estruturação — quando se tem por objetivo informar algo —, mas, bem aos moldes de um dos clássicos bordões do apresentador de TV Chacrinha: “Eu vim para confundir, e não para explicar”. O álbum “Caetano Veloso” é iniciado justamente pela canção-manifesto do Tropicalismo: Tropicália (1968). Esta, diferentemente de muitas das canções de protesto lançadas desde o ano anterior, e que davam conta de realidades específicas do Brasil, é uma canção marcada por um grau elevado de complexidade, até por ser um fruto de manifestações culturais da época. O título da canção foi inspirado numa instalação homônima do artista plástico e performático Hélio Oiticica montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967. Acerca da obra em questão, é o próprio Oiticica quem explica: Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços que o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando, os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como tendo sua origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. É extraordinário a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa banqueta, as imagens de televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta. Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em todas as suas formas: as estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesa-mondrianesca), as imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão ha três tipos de coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva. [...] Eu criei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem é colocado aqui objetivamente, mas desde que !94 é um problema universal, eu também propus este problema num contexto que é tipicamente nacional, tropical e brasileiro. Eu quis acentuar a nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem que poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos colocar contra uma imagética internacional da pop e pop art, na qual uma boa parte dos nossos artistas tem sucumbido. (OITICICA, 1969) O artista Hélio Oiticica, reconhecido por suas aspirações anarquistas, assim como toda a vanguarda artística brasileira da época foi afetado pelas mudanças de ordem política e social pelas quais o país passava, e produziu obras de caráter experimental. Movido pelas palavras contidas na obra “Assim Falou Zarathustra”, de Nietzsche — de quem Oiticica era leitor inveterado — e também pelos conceitos que norteavam a produção de uma arte transgressora, Oiticica se propôs à criação de obras que expressassem as múltiplas e variadas conformidades totalmente contraditórias entre si, mas que, somadas, compunham o Brasil. É de sua autoria a obra “Bólide Caixa 18” que continha a bandeira com a máxima: “Seja marginal, seja herói”, que se tornou um dos slogans da juventude brasileira do final dos anos 60. Esta, se colocava como homenagem a vítimas da opressão social e policial — dados como heróis —, como expressões máximas da revolta individual inerente à sociedade, a qual passa a ser ocultada e reprimida por meio do processo civilizatório. Outro dos grãos culturais dos quais o Tropicalismo e a canção Tropicália são fruto é justamente o Cinema-Novo. Mais especificamente, o filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. A obra fílmica em questão se coloca como uma espécie de parábola relativa à história do Brasil entre os anos de 1960 e 1966, à medida que metaforiza as diferentes tendências políticas ligadas a este contexto em personagens, numa crítica a todo o sistema. Ainda que marcada por uma visão mais atemporal, mas, nesta mesma direção, Tropicália se inicia com uma narração do seguinte trecho: Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis, escreveu uma carta ao rei: Tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou.... Apesar de poder ser confundido com um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, à ocasião da chegada das caravelas de Cabral ao !95 litoral baiano brasileiro, o trecho em questão nada mais é que o fruto de um teste de som realizado no microfone do estúdio onde Caetano gravava seu disco — aliás, o “Gauss” citado no trecho era justamente o técnico de gravação, Rogério Gauss. A narração em questão adianta o tom paródico da interpretação tropicalista do Brasil — do passado até seu presente. A letra da canção é marcada por uma linguagem simbólica, na qual, por detrás das muitas metáforas se desvela um retrato do Brasil daquela época. A voz poética revela uma posição intermediária, entre “os aviões” que passam “sobre a cabeça” e “os caminhões” que se locomovem “sob” seus “pés”. Esta disposição sugere o avanço científico e tecnológico atrelado à modernidade no alto, representado pelos “aviões”, o caráter arcaico, ultrapassado, na posição mais inferior, “sob os […] pés”, pelos “caminhões”. Ao centro, o “nariz” apontando em oposição aos “chapadões” — uma síntese das diversas e diferentes realidades rurais do Brasil — revela uma posição contrária, que pode ser lida como urbana, mais desenvolvida e mais civilizada, até certo ponto. Justamente a partir deste ponto estratégico, vem a voz de um “eu”, o qual, imperativamente, afirma ser o responsável por organizar “o movimento” — termo que pode exprimir tanto as ações de toda uma coletividade de pessoas coabitando um determinado lugar, quanto um grupo específico arquitetando uma ação contra os desmandos de um governo ditatorial. Este mesmo “eu” também é o responsável por orientar “o carnaval”, designação até certo ponto antitética, tendo em vista que a festa em questão é caracterizada justamente pela folia, alvoroço e desordem. Este mesmo “eu” se coloca como o responsável pela inauguração do “monumento no planalto central do país”. Esta expressão remete diretamente à cidade de Brasília, escolhida como capital federal do Brasil e sede do distrito federal, a qual, ao ser dada como um “monumento”, vai completamente na contramão dos poderes nela fixados, dando uma ideia de beleza e imponência — até pelo seu caráter projetado e arquitetado —, porém, completa estagnação. Num outro verso consta o fato de que “o monumento é de papel crepom e prata”, ou seja, construído, ao mesmo tempo, com a beleza e resistência de um metal — o qual também é utilizado na cunhagem de moedas — dando conta de seu caráter imponente, e a extrema fragilidade de uma das variedades de papel mais frágeis, !96 que sugere o aspecto rúptil não da capital em questão, mas dos poderes, da política nela centralizada. Além disso, afirma-se acerca do “monumento” em questão, que este “é bem moderno”, e que “não tem porta”, dado como um local praticamente inacessível, cuja “entrada”, segundo os versos a seguir, é situada em “uma rua antiga estreita e torta” completamente díspar em relação à modernidade do “monumento”. E, como se não bastasse, neste caminho tortuoso que dá acesso ao mesmo, encontra-se “uma criança”, mas não como símbolo de uma esperança de tempos melhores em desenvolvimento, mas “no joelho” — prostrada —, por um lado “sorridente”, mas por outro, “feia e morta” numa posição de quem clama por ajuda ou misericórdia — “estende a mão”, dando conta de que, se esta esperança de um futuro melhor já existiu, no presente está extinguida, em meio ao caótico contexto político brasileiro. Os cinco refrões presentes na letra são semelhantes entre si apenas em termos de estrutura. Todos eles são marcados por uma exclamação de aplauso, exaltação — “viva” —, em relação a dois elementos, por vezes, completamente antagônicos. No primeiro, temos os termos “bossa” e “palhoça”. O primeiro deles se coloca como uma expressão de toda alegria e balanço característicos do povo brasileiro, mas, pode também se referir à Bossa-Nova, estilo musical brasileiro apreciado pelo mundo afora, cujas canções tinham como tema mais comum a beleza da mulher e da natureza de um contexto litorâneo como Ipanema. Em oposição a isso, vem a “palhoça”, termo que se refere a uma construção extremamente rústica que serve de moradia às pessoas pobres. O refrão seguinte contém os termos “mata” e “mulata”, o primeiro abrange toda a natureza exuberante do território brasileiro em termos de fauna e flora, e o segundo, exprime a miscigenação, o caráter plural característico do nosso povo, fruto da literal mistura de praticamente todas as raças, por excelência. O quarto refrão tem seu “viva” direcionado a “Maria” e Bahia”, dois substantivos próprios, sendo, o primeiro, o prenome mais comum dado às mulheres e, portanto, coloca-se como um tributo a todas as mulheres brasileiras. Já o segundo, é justamente o nome do estado brasileiro situado na região nordeste do país, em cujo litoral aportaram as caravelas de Cabral em 22 de abril de 1500. Além !97 disso, é também o estado de origem de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e muitos outros representantes do Tropicalismo. O refrão que encerra a canção se coloca como um tributo às expressões: “a banda” e “Carmem Miranda”, a canção de Chico Buarque que vencera o Festival de Música Popular Brasileira de 1966 e a cantora e atriz luso-brasileira que fez grande sucesso no Brasil e nos Estados Unidos entre os anos de 1930 e 1950. Tropicália, acima de tudo, registra a convivência dos mais diferentes aspectos positivos e negativos que, somados, resultavam no Brasil de então, e, revela muito da proposta Tropicalista; a qual não se reduzia apenas a um progresso ou a um retrocesso, mas a uma síntese da convivência entre todos e quaisquer aspectos, por vários que sejam, entre si — portanto, uma visão realista. Vale ressaltar que o álbum de Caetano Veloso, além do manifesto do movimento, trazia também canções inéditas, dentre as quais uma espécie de resposta à Inútil Paisagem (1964), de Tom Jobim, em Paisagem Útil (1968); uma exaltação ao guerrilheiro Che Guevara em Soy Loco Por Ti América (1968), e até uma versão de Ave Maria (1968), de autoria de Caetano Veloso. Com este disco, Caetano já conseguiu mostrar a que veio. E ainda havia mais por vir… No mesmo ano de 1968, foi lançado o disco “Tropicália ou Panis et Circensis”. Contendo as canções: Miserere Nobis; Coração Materno; Panis et Circensis; Lindonéia; Parque Industrial; Geleia Geral; Baby; Três Caravelas; Enquanto Seu Lobo Não Vem; Mamãe Coragem; Bat Macumba e Hino do Senhor do Bonfim, tratase do disco-manifesto da Tropicália, e é marcado pela reunião dos artistas ligados ao movimento: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes — banda brasileira de rock psicodélico composta por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee Jones — e até Nara Leão. Sob os arranjos e regência de Rogério Duprat, e com a produção musical assinada por Manuel Barenbein, o álbum foi gravado em maio de 1968, nos estúdios da RGE, em São Paulo. A capa do disco já se coloca como uma representação alegórica do Brasil, em que um grande retrato contempla todos os artistas que participaram do disco — os presentes, posicionados de uma maneira patriarcal, e os ausentes em retratos nas mãos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Como moldura para este retrato temos faixas com as cores nacionais, posicionadas de uma maneira que dá um efeito de !98 profundidade. As expressões que constituem o título estão posicionadas de ambos os lados dessa moldura, com as letras também coloridas com as cores nacionais e com o mesmo efeito de profundidade desta. A contracapa contém a mesma foto da capa, mas em tamanho menor, em preto e branco e centralizada logo abaixo do título “Tropicália”, e acima dos títulos das canções que compõem o disco. Todos os elementos da capa fazem referências ao movimento tropicalista, conforme pontua Rodrigues: Os signos que aparecem na capa jogam cos os signos do conteúdo do disco. E assim, vê-se o nordestino na figura de Tom Zé; o casal recatado é Gal e Torquato; a irreverência do movimento dadaísta está presente pelo urinol, que Rogério Duprat segura como se fosse uma xícara; Gil, o negro, à frente de todos segura a foto de Capinam enquanto Caetano mostra a foto de Nara, musa da Bossa Nova, agora tropicalista, e atrás de todos, Os Mutantes trazendo as guitarras elétricas, o pop, o moderno. (RODRIGUES, 2007, p. 58) A foto que se constitui como capa do disco, se coloca como o avesso da tradição: apesar da mesma estrutura, não é um retrato de família, como das famílias nobres, pendurado na parede da sala de jantar, mas com o grupo de artistas representando os muitos e diferentes Brasis que constituem a maior nação da América do Sul, propondo abrir as portas para a novidade, para o moderno, em termos não só de música, mas de artes em geral e, sobretudo, em termos de posicionamento, como jovens. A contracapa também contém um texto, o qual é marcado por uma estrutura comum ao gênero dramático, e assemelha-se à um roteiro, seja de uma peça de teatro, seja de um filme, pelo fato de ser separado em falas atribuídas a personagens (colocadas ao lado do respectivo nome de cada um). Estas, por sua vez, são justamente os artistas ligados ao álbum, desde Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam — compositores e intérpretes das canções —, Os Mutantes, Nara Leão — intérpretes das canções escritas pelos cancionistas mencionados —, Rogério Duprat — arranjador que se tornou o George Martin do Tropicalismo, e até mesmo João Gilberto, influência primeira dos cancionistas baianos, e que não poderia faltar em seu manifesto. A fala que abre o texto é remetida a Duprat, e dá conta justamente da mudança de perspectiva que marcou sua atuação. O arranjador e maestro iniciou !99 sua carreira fazendo jus à sua formação erudita e participando da Orquestra de Câmara de São Paulo. Como uma síntese deste processo, a ele é atribuído o comentário inconformista acerca do fato de que “A música não existe mais”, e, portanto “é necessário criar algo novo”. Este “algo novo” é justamente o Tropicalismo — “Já não me interessa o municipal, nem a queda do municipal, nem a destruição do municipal”, em que Duprat pode mesclar os conhecimentos de sua formação erudita com a criação de jovens cancionistas populares. Ironicamente, ele remete uma questão aos “baianos”, acerca de terem “a coragem de fuçar o chão do real” e tentar uma mudança de perspectiva e de gosto de todo um público. Apesar de suas boas intenções, será que se atentaram ao fato de que “o disco é feito para vender”, e, portanto, se coloca como mais um bem de consumo do capitalismo? Em seu projeto inusitado que, se vislumbrava um futuro para a música popular, também valorizava todo um passado, como lidariam com “um jovem paulista nascido na época de Celly Campelo” — um dos ícones da JovemGuarda, que gravou sucessos como “Banho de Lua” e “Estúpido Cupido” — e que nem sequer conhecia “Aracy [de Almeida], [Dorival] Caymmi e Cia.?”, grandes nomes de toda uma tradição musical que se colocava como uma fonte da qual os baianos beberam, e a partir disso foram movidos pelo impulso criador que originou suas obras. Mas, mais do que lidar com este possível “jovem”, será que os “baianos” teriam a “coragem para reconhecer que este jovem tem muito para lhes ensinar... — posicionamento que ia na contramão de todos os apreciadores que tinham seu gosto atrelado apenas à tradição da música brasileira ligada à Bossa-Nova. As respostas dos cancionistas baianos são também carregadas de ironia. Caetano ousa afirmar que “este gênero está caindo de moda”; Gilberto Gil se vale de um dos slogans relativos ao regime militar ao afirma que “O Brasil é o país do futuro” — numa perspectiva diferente de seu contexto original —, e Torquato Neto vai até mais longe e cita a possibilidade de o historiador e antropólogo “Câmara Cascudo” não compreender a proposta Tropicalista e achar que se tratava de “dizer que o bumba-meu-boi e ‘iê-iê-iê’ são a mesma coisa”. Ao que estas dúvidas todas permeiam e poderiam até intimidar os jovens baianos, vem uma fala atribuída a João Gilberto — “Em NY conversando com A. Campos” — tranquilizando-os: “Diga que eu estou aqui, olhando pra eles”, como !100 uma espécie de divindade, que, estando num plano superior, o mero fato de olhar, prestar atenção — demonstrando interesse e respeito, diferentemente de grande parte do público, defensor de uma tradição, contrariamente a um dos principais representantes desta — se coloca como uma espécie de bênção, em termos não só de aprovação, mas de proteção em meio ao cenário caótico no qual se inseria o Tropicalismo. O fato disso tudo ser expresso num texto marcado pela estrutura dramática pode sugerir a assunção de papéis dos artistas baianos — e até da intérprete carioca tida como um dos ícones da Bossa-Nova, Nara Leão — no cenário musical e cultural brasileiro. Rogério Duprat, que anteriormente vivenciara toda uma experiência no contexto erudito, alerta e questiona Caetano Gil e seus companheiros Tropicalistas como num teste. Será que eles realmente sabiam o que estavam fazendo? Tinham mesmo noção do grau de ousadia de seu projeto? E, por isso mesmo, será que estavam preparados para uma possível incompreensão por parte do público? Ao que as respostas vêm carregadas de refrões e posicionamentos desta mesma pretensa coletividade preconceituosa em relação ao novo. O disco-manifesto do Tropicalismo já é iniciado por um pedido de misericórdia, a canção Miserere Nobis, de Gilberto Gil e Capinam. O título desta é composto pela expressão em latim, cuja tradução para o português equivaleria a “tende misericórdia de nós”, expressão bastante significativa de todo o povo brasileiro sob as garras de um regime ditatorial que, às custas de um milagre econômico, dia após dia ia tolhendo a liberdade e os direitos de todos. Historicamente, vale lembrar que nesta época o regime ditatorial no Brasil chegava à sua fase mais drástica, justamente por meio do Ato Institucional nº5, datado de 13 de dezembro de 1968, que dava ao então presidente da república o poder de decretar o recesso de órgãos como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores de todo o país, os quais só voltariam à atividade mediante uma convocação do próprio presidente. Coração Materno (1937) era uma canção antiga já naquela época, de autoria de Vicente Celestino, que foi também um dos cantores brasileiros de maior relevância do início do século XX. !101 A interpretação original da canção, datada de 1937, e realizada pelo seu próprio compositor, é marcada por uma dramaticidade exacerbada, e pelos excessos do cantor que, com seu timbre de tenor, consegue fazer jus ao tom sombrio do tema desenvolvido na letra. Associando-se mais propriamente a um poema narrativo, os versos — ainda que mais atrelados à poesia que a prosa, até pela sua forma —, mais do que expressar questões subjetivas de um eu lírico, acabam por construir um enredo, contando uma história, a qual é sintetizada por Caetano Veloso: “Coração Materno” conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à sua amada, como prova de amor, o coração da própria mãe. O matricídio se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um oratório. O jovem, depois de rasgar-lhe o peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada levando-o nas mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta: “Magoou-se, pobre filho meu?”, e, num último e extremo golpe comovedor, exorta: “Vem buscar-me que ainda sou teu”. (VELOSO, 1997, p.293) O dramalhão que é revelado a partir do enredo constituído na letra da canção é literalmente um prato cheio para cantores como Orlando Silva, Francisco Alves e Vicente Celestino, que, na posição de cantores, interpretavam a dramaticidade do conteúdo da letra por meio das nuances criadas com sua voz, comprovando sua privilegiada extensão vocal, num timbre quase que operístico, o qual Caetano, em sua gravação, tentará imitar, de uma forma que beira a caricatura. Não só a inserção, como também a interpretação de Caetano Veloso de uma canção que remonta o passado musical brasileiro, se colocam como atitudes totalmente carregadas de significado em relação à proposta da Tropicália, conforme Severiano e Mello afirmam: [...] Em 1968, “Coração Materno” foi utilizado com grande repercussão por Caetano Veloso, no disco Tropicália, simbolizando o culto ao cafona. Em flagrante contraponto à versão patética de Vicente Celestino, Caetano deu-lhe uma interpretação linear e fria, acompanhado por uma orquestração de Rogério Duprat, numa generosa e propositada caricatura kitsch original [...] (SEVERIANO e MELLO, 1997, p. 156) Apesar da tentativa de reproduzir o canto quase lírico dos cantores do passado — que poderia ser lido como uma paródia —, Caetano o faz com reverência, mostrando que a novidade, a renovação, não culminam !102 necessariamente na negação de todo um passado, mas pelo contrário, se colocam como o mais genuíno fruto deste. Em sua interpretação “linear e fria”, que destoa completamente das acaloradas interpretações de alto cunho dramático de cantores como Vicente Celestino, Caetano demonstra a possibilidade de convivência entre o antigo e o novo, a tradição e a novidade, sem necessariamente quaisquer negações ou deturpações. Panis et Circensis (1968) é uma canção de autoria de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que foi originalmente gravada pelo grupo Os Mutantes. Rita Lee, que estava presente, junto de Caetano e Gil à ocasião da composição da canção, relata43 a experiência de presenciar um fato como este, inédito, inclusive, para ela e seus colegas de grupo na época, prestes a gravar um disco: ‘Tava no apartamento do Caetano na Avenida São Luis, e Os Mutantes iam fazer, iam gravar o primeiro disco, e a gente não compunha. Então, eu me lembro que tinha uma mesa, uma mesa de bilhar na sala — o apartamento era muito louco! —, e tinha uma outra mesinha do lado. O Gil tava com o violão, e o Caetano com um papel, e começaram os dois a fazer o ping-pong, um interferia na coisa do outro, e eu lá assistindo, ali, na boca da coisa. O Serginho ‘tava com o outro violão, bicando o Gil, Arnaldo já meio que ensaiando um baixo pra aquilo ali... ‘Tava-se ali! E eu ‘tava bicando. E eles começaram: “Eu quis cantar uma canção iluminada de sol / Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres... Boa! Legal!” Aí, “mas as pessoas na sala de jantar... Boa! Legal!” “Mas as pessoas...” Sabe? Os dois e aquele ping-pong delicioso. De repente, “o solar”. Quê que é o solar? Por que solar? Ah, o solar da bossa, solar da fossa, no Rio. “‘Cê não conhece?” Não. “‘Cê nunca foi pro Rio? Então, tem o solar da fossa, viva todo mundo lá”, não sei o quê, contaram toda a história do solar, então... coisas que eu não entendia direito eu perguntava, e eles iam... De repente, ‘tava a música ali inteira” Que coisa louca essa música! O comentário de Rita Lee deixa clara a razão de ela atribuir a Caetano e Gil o mérito por ela ter tido coragem de entrar para o ramo da música, vindo, futuramente, a ganhar notoriedade e se configurar como uma das mais notórias artistas brasileiras femininas — cantora e compositora — ligadas ao rock. O título da canção por si só já é bastante revelador da crítica veiculada pelos tropicalistas. “Panis et Circensis” é uma expressão latina que, traduzida para o português, pode ser entendida como “Pão e Circo”, locução que nos remete à política do Império Romano. 43 LEE, Rita. Ovelha Negra. (2007) !103 Com a expansão do império, e do contingente populacional, passaram também a aumentar os problemas de cunho social. Grande parte destes problemas surgiram devido às medidas arbitrárias de um governo corrupto, que priorizava o seu interesse, privado, em detrimento dos interesses da população como um todo. Desse modo, é possível estabelecer uma comparação entre o contexto descrito em Roma, e o regime militar no Brasil, época marcada por uma repressão política inigualável, que deixou o povo num estado de medo e pânico constantes, por questões péssimas que, infelizmente, só tendiam a piorar, conforme afirma Rezende: 13 de dezembro — o ministro Gama e Silva, da justiça, anuncia o AI-5 — Ato Institucional nº5 —, que reforça a repressão, acaba com o habeas corpus e permite, entre outras coisas, a prisão sem ordem judicial, a invasão de domicílios por forças policiais e a aposentadoria compulsória de professores considerados subversivos. Era presidente na época o general Arthur da Costa e Silva, que substituiu Castello Branco em 1967. (Rezende, 2000, p. 226) Na letra da canção, temos toda a expressão de desejos, intenções do sujeito lírico — “eu quis” —, como “cantar minha canção iluminada de sol” — com total liberdade de expressão. E, além disso, movido pela inspiração e pela liberdade que estão sempre atreladas à arte, este mesmo relata: “soltei os panos, sobre os mastros no ar / soltei os tigres e os leões, nos quintais”, versos que carregam uma noção de liberdade no que diz respeito a soltar o que estava agarrado ou aprisionado. No entanto, apesar de “os panos”, “os tigres” e “os leões” terem sido soltos, isto não ocorreu de uma forma que lhes permitisse cumprir sua função e, de certa maneira, seu destino, com a devida independência. Não havia mastros para amparar “os panos” — possíveis bandeiras. Não havia toda uma mata virgem a ser desbravada e dominada pelos “tigres” e “leões”, mas sim “quintais”. E, enquanto tudo isso acontecia, “as pessoas na sala de jantar” — ligadas à tradição, ou uma classe social favorecida — não se importavam, estando apenas “ocupadas em nascer e morrer”. A canção Lindonéia (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi composta sob encomenda para Nara Leão — aliás, é aúnica do álbum a ser intperpretada por Nara. Inspirada na obra “Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio”, uma tela do artista plástico Rubens Gerchman, e contendo o subtítulo: “Um amor impossível. A bela Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente”, a obra se coloca como uma !104 expressão de protesto, de denúncia da criminalidade presente na cidade do Rio de Janeiro da época, conforme comenta Caetano Veloso: Por sua vez, Nara Leão, cujas conversas conosco revelavam sua total independência em relação aos preconceitos anti-Tropicália exibidos por seus ex-companheiros de bossa-protesto e pela plateia de Pra Ver a Banda Passar (programa que ela comandava ao lado de Chico Buarque na TV Record), encomendou-nos, a mim e a Gil, uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman, o qual representava, em traços distorcidos com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato três-por-quatro de uma moça pobre que — dizia o texto-título — fora dada como perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração floral. Gil fez a música — um bolero entrecortado de iê-iê-iê — e eu fiz a letra da canção, que manteve o nome “Lindonéia” e a história da suburbana desaparecida. O quadro de Gerchman, por ser uma espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalinguístico, tinha parentesco direto com o tropicalismo musical, e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética. (VELOSO, 1997, p. 274) Nara Leão, apesar de ser uma figura ligada a movimentos como a BossaNova — integrada à literal origem do movimento, com o encontro de alguns de seus maiores artistas na casa de Nara — e teatro de arena — como a peça “Opinião”, ligada à tradição musical brasileira —, se mostrava independente, liberta dos possíveis rótulos que a pudessem pender, deixando-a estática, como porta-voz de uma única causa e movimento e, sobretudo, olhando com desdém ou preconceito as propostas da Tropicália. Parque Industrial é uma canção de autoria de Tom Zé. Apenas o título em si, que constitui-se como uma referência direta ao livro homônimo de Patrícia Rehder Galvão, mais conhecida pela alcunha de Pagú — figura de destaque no movimento modernista, iniciado na paradigmática Semana de Arte Moderna, em 1922 —, que foi a primeira mulher a ir para a prisão no Brasil por motivos políticos, já antecipa sobremaneira o tom da canção. A mera referência ao movimento modernista é plena de significado em relação à proposta de Caetano Veloso e Gilberto Gil — talvez podendo ser lida como a atualização das intenções dos autores do chamado “Romance de 30”. Geleia Geral (1967) é uma canção de autoria de Gilberto Gil e Torquato Neto, cujo título foi inspirado numa expressão do poeta Décio Pignatari, que surgiu44 num Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/blog_post.php?post_id=1245]. Acesso em 18 de abril de 2014. 44 !105 texto da revista “Invenção”, bem na abertura — como um trocadilho à expressão “geleia real”45. O significado, no contexto, revelava um sentido crítico. A mesma expressão foi também título da coluna escrita por Torquato Neto no Jornal “Última Hora”, entre os anos de 71 e 72. Os tropicalistas, por meio de um humor quase que tragicômico, em sua intervenção na cultura brasileira, acabaram por construir uma espécie de panorama da história do Brasil, conforme Favaretto afirma: “[...] o Brasil emerge da montagem sincrônica de fatos, eventos, citações, jargões, resíduos, fragmentos”, vindo a se configurar como uma “imagem mítica” (FAVARETTO, 1996, p.56). Geleia Geral (1967), cuja letra foi escrita por Torquato Neto, e musicada por Gilberto Gil, se coloca justamente como uma expressão desta “imagem mítica” mencionada por Favaretto, como um agrupamento de diferentes elementos relativos à cultura nacional, passado pelo filtro do ideal de revolução — em seu âmbito cultural —, defendida pelos tropicalistas, pela menção de elementos como: o “Jornal do Brasil”, a casa de espetáculos “Canecão”, as escolas de samba “Mangueira” e “Portela”, o verso de Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove”, a dança típica do folclore brasileiro “bumba-meu-boi”, a designação anterior à chegada de Cabral, ligada às regiões que, num futuro próximo, formariam o Brasil, “Pindorama”. Andrade (2002) classifica Geleia Geral como “uma das letras-síntese da imagem tropicalista do Brasil”, conforme ele mesmo pontua: O poeta-letrista sintetiza, como poucos, os “princípios filosóficos” do tropicalismo, reinterpretando os mitos primitivos da cultura urbana industrial, ao misturar elementos diversos da cultura nacional. A letramanifesto, ao desnudar as contradições de um Brasil arcaico/ moderno, explora as ambiguidades implícitas do processo de modernização do terceiro mundo. A polifonia de vozes (o poeta conservador, o bumba-meu-boi, a comunicação de massa, o jornal, a bandeira, o mundo dos trópicos, a cultura pop) ilumina o pensamento tropicalista, que evita qualquer tentativa de conciliação ou unificação das diferenças, adotando as contradições e as ambiguidades como elementos essenciais da própria construção da estética do grupo. (ANDRADE, 2002, p. 53) Torquato Neto, em sua “letra-manifesto”, satiriza as contradições de um país colonizado, “de terceiro mundo”, que, já naquela época, buscava a modernização desconsiderando suas raízes, e, voltando para si mesmo um olhar europeu ou norteA sentença que continha a expressão era: "Alguém tem de ser medula e osso na Geléia Geral brasileira" 45 !106 americano, elitizado. De fato, estes elementos foram essenciais para os tropicalistas, no que diz respeito à construção de sua estética, com uma visão emergente não dos polos culturais brasileiros como Rio de Janeiro e São Paulo, no sudeste, mas das entranhas de um Brasil-profundo, desconhecido por muitos até os dias atuais, ligado ao contexto do norte e nordeste. Baby (1967), de Caetano Veloso, é uma canção que se coloca como uma declaração de amor numa linguagem jovem e moderna para a época, a começar pela expressão em inglês que dá título. Inspirada no hit de Paul Anka Diana (1956), esta canção de Caetano Veloso contém uma intertextualidade musical em termos de arranjo. Quem ouvir com atenção, logo perceberá que os acordes que embalam o refrão de Baby — “Baby, baby, eu sei que é assim” — são literalmente uma citação do refrão: “Oh, please stay by me, Diana”. Acerca da letra de Baby, Favaretto ressalta um “lirismo” e afirma: O lirismo de Baby não deixa de tematizar a dominação, misturando o dado econômico (essencial) da gasolina com os do consumo (supérfluo): margarina, sorvete, lanchonete, aprender inglês, Carolina e Roberto Carlos. Estes dados são homogeneizados na construção da letra, feita de simples enumeração de fatos, nomes, mitos [...] (FAVARETTO, 2000, p. 97) Desse modo, “por entre fotos e nomes”46 que à primeira vista se ligam apenas a uma declaração de amor, subjaz a expressão da “dominação” da cultura norteamericana em relação à brasileira, e a familiaridade como os mais diversos elementos — até mesmo em termos de vocabulário — já se colocavam como algo comum, característico do dia-a-dia dos jovens brasileiros. Acerca de Baby, é Augusto de Campos quem identifica a sugestão imperativa acerca da devoração, do consumo, dos elementos identitários de um padrão jovem, não a partir da assunção de uma postura submissa, mas, como sujeitos, conscientes, a partir da proposição de uma “[...] transculturação; melhor ainda, uma transvaloração: uma visão crítica da história [...] capaz tanto de uma apropriação como de desapropriação, desierarquização e desconstrução” (CAMPOS, 1992, p. 234). 46 VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria (1967) !107 Três Caravelas (1968) é o título da versão de João de Barro da canção Las Tres Carabelas, de A. Algueró Jr., G. Moreu. A letra da canção, originalmente em espanhol, tematiza a descoberta da América por Colombo, conforme consta nos versos: Un navegante atrevido Salió de Palos um día Iba com três carabelas La Pinta, la Niña y la Santa María No entanto, o pretenso relato é feito justamente por um cubano: “[...] algunos años después / Em esta tierra cubana / Yo encontré a mi querer” que comemora o descobrimento da América justamente por ser este o território onde ele encontrara seu amor. João de Barro traduz a letra para o português fazendo algumas alterações e até mesmo acréscimos. Nos trechos em português, não consta a referência a Cuba, mas sim uma espécie de contextualização, que insere também o descobrimento do Brasil: Muita coisa sucedeu Daquele tempo pra cá O Brasil aconteceu É o maior Que que há?! Assim, na canção, cuja letra mescla o espanhol e o português, a exaltação que era destinada a Cuba — “que viva la pátria mía” — é redirecionada ao Brasil. Tendo sido gravada anteriormente por ícones do rádio brasileiro — as chamadas ”cantoras do rádio” —, dentre os quais a cantora Emilinha Borba, ao ser interpretada por Caetano Veloso e Gilberto Gil ganha outro tom, que vai ao encontro da proposta tropicalista de revisitar o passado — no caso, a origem de nosso país. Mais uma vez, citando e apropriando-se do que poderia ser já naquela época ser negativamente classificado como brega, Três Caravelas evidencia o caráter de redescobrimento de um Brasil talvez esquecido, e, sobretudo, numa postura como a de Cabral, demarca um território no campo da música e cultura popular, estabelecendo um diálogo com as culturas dos demais países sul-americanos, falantes do espanhol. !108 Enquanto Seu Lobo Não Vem (1967), de Caetano Veloso, apesar das referências às fábulas, que, à primeira vista, poderiam apontar para uma temática mais infantil, se constitui uma das canções de cunho mais politizado escritas por Caetano no contexto da Tropicália. Partindo da postura amedrontada da Chapeuzinho Vermelho em relação à presença de um Lobo-Mau, Caetano Veloso metaforiza a postura de toda uma nação brasileira assombrada por toda a repressão de um governo militar. O movimento poético é permeado por um convite — do eu lírico àquela que é designada como “meu amor” — inicialmente ligada ao conto infantil, acerca de “passear na floresta escondida”, o qual desliza para um contexto urbano contemporâneo brasileiro, acerca de andar, com liberdade, “na avenida”, “nas veredas”, “no alto” — dando conta do direito de ir e vir, um dos que foram desrespeitados pelos militares. A canção também traz referências a “uma cordilheira sobre o asfalto”. O termo “cordilheira” se trata de uma alusão à cordilheira denominada Sierra Maestra, local onde se formou o grupo guerrilheiro que tomou o poder na Revolução Cubana, em 1959. O fato de a situar “sobre o asfalto” constrói uma referência aos brasileiros que, tal como os guerrilheiros cubanos, tentavam resistir à opressão — ou mesmo uma possível sugestão, comparando o posicionamento ideal do provo brasileiro ao do povo cubano. Favaretto pontua o fato desta canção aludir não apenas ao caráter de repressão, ligado ao governo militar, mas também ao “populismo”, atribuído ao presidente Getúlio Vargas, cujo nome é citado na canção, junto de termos negativos, como “lama”, a ele atribuídos. (2000, p.102). A canção contém também intertextualidades no âmbito musical, ligadas ao arranjo. Jeszensky e Zan (2000) ressaltam a presença de instrumentos de sopro como trompas, trompetes, flautas e flautim, cuja sonoridade remete justamente aos toques militares de clarins (p.24), bem como a citação musical do segmento inicial do “Hino da Internacional Comunista”, executada pelo trompete exatamente após o verso “vamos passear escondidos”, reforçando o sentido sugestionado, acerca de militarismo, e, junto dos versos “debaixo das bombas / das bandeiras / debaixo das !109 botas”, trompete e trompa, em uníssono, executam um trecho do “Hino à Bandeira”, reforçando o sentido sugerido, de parada militar. Mamãe Coragem (1968) é fruto da parceria entre Caetano Veloso e Torquato Neto, e se trata de uma canção marcada pelo pedido de “coragem” de um filho à sua “mamãe”, após este ter crescido e saído de casa. Sobre Torquato Neto, seus manifestos e letras em parceria com Caetano e Gilberto Gil — dentre as quais, Mamãe Coragem —, Andrade (2002), ressalta: No período da explosão do tropicalismo (1967/1968), Torquato Neto é um dos principais articuladores do movimento e, em termos “teóricos”, um dos mais empolgados. Tomando a frente das discussões sobre a revisão da cultura nacional dos anos 60, como fica visível na radicalidade e irreverência dos manifestos “Torquatália III”, “Tropicalismo para iniciantes” e “Vida, paixão e banana”, bem como nas letras de músicas “Geléia Geral”, “Mamãe Coragem”, “Marginália II”, Torquato e seu grupo demonstram como absorviam, de modo crítico, informações culturais, advindas de diversas origens, da cultura pop americana, da comunicação de massa, da música erudita, a fim de empreender uma discussão sobre a ideologia nacionalista, e, ao mesmo tempo, enfatizar o caráter de dependência do Brasil e o seu lado arcaico, terceiro-mundista. (ANDRADE, 2002, p. 23) A canção de Veloso e Neto se coloca justamente como um fruto desta absorção crítica de “informações culturais” de várias e diferentes origens, da “cultura pop americana”, da “comunicação de massa” e da “música erudita”, apontada por Andrade, tendo em vista o caráter moderno ligado à juventude brasileira — e também à americanas e inglesa —, no que diz respeito a comportamento, atitudes e, dentre estas, a própria emancipação. Bat Macumba (1968) é uma canção escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil, seguindo à risca os moldes da poesia concreta. Batmakumbayêyêbatmakumbaobá Batmakumbayêyêbatmakumbao Batmakumbayêyêbatmakumba Batmakumbayêyêbatmakum Batmakumbayêyêbatman Batmakumbayêyêbat Batmakumbayêyêba Batmakumbayêyê Batmakumbayê Batmakumba Batmakum Batman Bat Ba !110 Bat Batman Batmakum Batmakumba Batmakumbayê Batmakumbayêyê Batmakumbayêyêba Batmakumbayêyêbat Batmakumbayêyêbatman Batmakumbayêyêbatmakum Batmakumbayêyêbatmakumbao Batmakumbayêyêbatmakumbaobá Segundo Favaretto (2000, p. 111-112), Bat Macumba é “única música que, nos três discos tropicalistas, realiza a proposta concreto-antropofágica de modo intencional”. A letra de Bat Macumba é composta apenas por um único verso: “Bat macumba iê iê, bat macumba obá”, o qual, consta inteiro apenas no primeiro e último versos da canção, e, desde o início vai perdendo uma sílaba por vez, até se tornar apenas o monossílabo “Bat”, e, depois, ir voltando a constituir o verso completo, com o acréscimo das sílabas, uma a cada vez que passa a ser repetido novamente — expressando na letra, literalmente, a tensão entre o devorar e o expelir antropofágicos. Guimarães (2004) pontua o fato de a canção Bat Macumba não ser constituída por uma letra, meramente, mas por um poema-visual completamente atrelado à estética concretista — conforme consta no relato dos próprios autores da canção, e é plenamente reconhecido pelos poetas ligados a este movimento artístico — que se constitui como uma inovadora proposta relativa a “romper a leitura horizontal, com um novo tempo de leitura, que não se prenda à linearidade da sequência verbal, mas esteja atento à simultaneidade que a produção poética suscita”. (GUIMARÃES, 2004, p.2). Bat Macumba, como “poema-visual” — que vem a formar um “K” pela disposição de seus versos — de fato rompe com o caráter linear de leitura ocidental, atrelado a um aspecto “horizontal” marcado por uma “linearidade da sequência verbal”, e instaurando uma leitura que deve ser pautada pelo aspecto fonético inicialmente, tendo em vista a criação de “ilhas sonoras”, conforme afirma Guimarães: !111 No texto Bat Macumba, a sílaba Ba funciona como barreira fônica, sendo um som também presente no início do vocábulo Batman e no final de macumba. Esta bilabial (b) seguida de vogal aberta (a) efetua um contraponto ao som vocálico iêiê, visualmente destacado no poema, configurando verdadeiras “ilhas” sonoras. [...] A repetição dos sons é também uma iconização fônica das “batidas” dos tambores nos rituais de terreiro. Bat (inglês = morcego) sonoramente remete a “bate” (port. Verbo bater). (GUIMARÃES, 2004, p. 7) O termo “bat” pode apontar tanto para o som da batida dos tambores de um ritual ligado a religiões afro-brasileiras como o candomblé e a macumba, quanto para sua tradução do inglês — “morcego”, mas, é curioso perceber que, tanto no processo de montagem como no de desmontagem do verso, vão se originando — sonoramente — outros termos, como, por exemplo, o “iê iê” que pode estar atrelado ao “iêiêiê” característico do gênero musical atrelado ao rock britânico, e totalmente associado à Jovem Guarda, na época. O termo “Bat” e a primeira sílaba de “macumba” — “Batman” — quase forma o nome de um herói das revistas em quadrinhos da Marvel Comics, “Batman” — designado como “o homem-morcego”, e essa pluralidade de referências que se desvela a partir do único verso que constitui a letra da canção, vai diretamente ao encontro da proposta tropicalista e do próprio “antropofagismo oswaldiano”, recuperado no movimento em questão. A canção que encerra o disco é justamente Hino do Senhor do Bonfim (1923), de João Antônio Wanderley e Arthur de Salles. Trata-se de uma canção de cunho religioso e cívico, dedicada ao santo que dá nome à Igreja, a qual se constitui como um patrimônio arquitetônico e religioso brasileiro, localizado na cidade de Salvador, Bahia — terra natal de Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros ícones tropicalistas. Os baianos não só trouxeram consigo a proposta para renovações no âmbito cultural brasileiro, mas também fazem questão de hastear sua bandeira, com todos os aspectos ligados à sua formação, inclusive em termos de crença, haja vista a inclusão do Hino do Senhor do Bonfim, encerrando o disco-manifesto, num ato que se assemelha ao de pedir a bênção, como expressão de devoção ao santo padroeiro, em relação ao movimento, agora plenamente estabelecido e devidamente levado a público. A Tropicália — tanto no que diz respeito ao disco que se impôs como obra coletiva quanto ao movimento em si — deu uma visibilidade maior a Caetano Veloso também com compositor, tendo em vista que ele escreveu canções que, já naquela !112 época, se tornaram grandes sucessos nas vozes de outros intérpretes, sem jamais ter sido gravadas por ele. Um exemplo específico, que pode ser citado como um caso especial é Divino Maravilhoso (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, genialmente interpretada por Gal Costa em 14 de novembro de 1968, no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, numa performance por meio da qual se desvelou uma intérprete completamente diferente da evidenciada em “Domingo”. Acerca da canção, Caetano a comenta e ressalta o fato de que esta: [...] trazia sugestões do clima de rebeldia estudantil contra a ditadura e quase prefigurava, em suas imagens violentas, a luta armada. A melodia era, deliberadamente, o pop mais doce e pegadiço. Mas as palavras chamavam uma “menina” (quantos anos você tem?”) para participar de algo não dito mas que requeria a “atenção para as janelas no alto / Atenção, ao pisar o asfalto, o mangue / Atenção para o sangue sobre o chão”, tudo convergindo para o refrão (que se anunciava explicitamente: “Atenção, tudo é perigoso / Tudo é divino, maravilhoso / Atenção para o refrão”): “É preciso estar atento e forte” / Não temos medo de temer a morte”. (VELOSO, 1997, p. 330) Fica clara a sugestão no que diz respeito à rebeldia dos jovens, tendo em vista que é ressaltada sua coragem e intrepidez, como pessoas que devem agir e não perder tempo vendo a vida passar e apenas reduzir seu poder de mobilização e atuação a uma atitude completamente passiva, de massa de manobra que é controlada e não controla coisa alguma, dedicando seu tempo apenas a “temer a morte”, sem nada fazer. Zuza Homem de Melo comenta a performance de Gal Costa no IV Festival da MPB, realizado pela TV Record em 1968: [...] entrou depois do início da música e, andando sem parar, ultrapassou o poço e foi cantar na passarela atrás dos jurados e perto do público, que imediatamente aderiu ao contagiante refrão: “É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”. Aquela baianinha meiga e tímida, apelidada “João Gilberto de saias”, havia se transformado numa figura espantosa, com uma cabeleira blackpower, roupas berrantes e atitudes agressivas: parecia um bicho quando gritava “UaaauI” antes do refrão. (MELLO, 2003, p.318) Para quem já conhecia Gal Costa e seu repertório ligado à Bossa-Nova, a ponto de ter lhe conferido a alcunha de “João Gilberto de saias”, e viu a que se apresentou no festival da Record em 1968, defendendo Divino Maravilhoso, certamente pensou se tratar de uma outra cantora, e de uma outra mulher, pela !113 atitude e a ruptura com as expectativas de seu público, inclusive, numa performance avassaladora mais comumente atribuída a um astro do rock — Janis Joplin, talvez? — que a um ícone da música popular. Em 15 de novembro do mesmo ano, Caetano Veloso participou do III Festival Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo, interpretando a canção É Proibido Proibir (1968), de sua própria autoria. Esta, segundo o próprio Caetano, acabou por se colocar como uma “peça de grande poder de escândalo”, e contribuiu para que a noite em questão fosse bastante acalorada. É Proibido Proibir, desde seu título, deixa clara a ousadia de Caetano Veloso por, num contexto marcado pelo regime militar e pelos atos institucionais repletos de proibições e cerceamento de direitos garantidos na constituição ao povo brasileiro, participar de um festival da visibilidade e repercussão que tinha o festival promovido pela TV Record, com uma canção de autoria própria cujo título e refrão se colocam como um brado de liberdade acerca da proibição de quaisquer proibições possíveis — e tão presentes naquele contexto. Foi uma ação bastante corajosa, e, obviamente, gerou as mais variadas e exaltadas reações, desde o que tange público até as autoridades brasileiras da época. Se Caetano Veloso já tinha chocado muita gente, sem querer, por conta de seu caráter displicente no festival de 1967, em que interpretou Alegria, Alegria, com o arranjo contendo a guitarra elétrica, o grupo de rock argentino acompanhando-o, mas, também no que diz respeito à sua figura, principalmente pela forma como estava vestido — não usando smoking, como a maioria dos seus colegas —, no festival de 68 ele real e intencionalmente se propôs a provocar — e chocar — a plateia da MPB, conforme ele mesmo relata: Meu cabelo estava muito grande e, entregue à sua própria crespidão rebelde, mais parecia uma mistura do de Hendrix com os de seus acompanhantes ingleses do Experience. Eu estava vestido com uma roupa de plástico verde e preta, o peito coberto de fios elétricos com tomadas nas pontas, correntes grossas e dentes de animais grandes. (VELOSO, 1997, p. 299) O caráter de protesto não estava contido apenas na letra da canção defendida por Caetano, mas em toda sua atitude como artista, desde o que diz respeito à sua forma de se vestir, e, ainda mais pelos recursos por ele empregados na interpretação, uma performance que culminou num verdadeiro happening. !114 Depois da longa introdução — que já arrancava vaias por seu atonalismo e sua total indefinição rítmica — eu começava a cantar os tolos versos (“A mãe da virgem diz que não/E o anúncio da televisão /E estava escrito no portão”) acompanhando-os de uma dança que consistia quase exclusivamente em mover os quadris para a frente e para trás, porém não tanto à maneira brusca e algo mecânica de Elvis, antes ao modo relaxadamente sexual das baianas, das sambistas de morro, dos homens e mulheres cubanos. (VELOSO, 1997, p. 300) Letra, roupas, dança, interpretação. Caetano Veloso levou às últimas consequências sua posição de artista, empregando todos os recursos que lhe eram possíveis, e se empenhou na tentativa de abrir os olhos de toda uma massa que batia palmas para um possível milagre econômico ao qual subjazia uma ditadura feroz que beirava a desumanidade, e a perda de todos os direitos garantidos e conquistados pela população brasileira. Acerca do happening, Glusberg pontua o fato de que a manifestação artística em questão: [...] articula sonhos e atitudes coletivas. Não é abstrato ou figurativo, não é trágico nem cômico. Renova-se em cada ocasião. Toda pessoa presente a um happening participa dele. É o fim da noção de atores e público. Num happening pode-se mudar de “estado” à vontade. Cada um no seu tempo e ritmo. Não existe mais só “uma direção” como teatro ou no museu, nem mais feras atrás das grades, como no zoológico.” (GLUSBERG, 1987, p. 34) A apresentação de Caetano Veloso vai ao encontro da definição de Glusberg, já que, envolveu a “toda pessoa presente”, desde o próprio Caetano, mas o público, os jurados, e, de certa maneira, conjuntura política da época. Além disso, Caetano literalmente propôs-se a “mudar de ‘estado”, passando de um cancionista que defenderia uma canção no festival, tal qual todos os demais participantes, e cantou, dançou, planejava recitar, mas acabou por fazer de improviso um acalorado discurso em meio às vaias. Desse modo, não se tratou de apenas um espetáculo com princípio meio e fim, mas uma chamada à reflexão justamente pelo choque, cujos significados e sentidos passaram a ser decifrados também posteriormente, e, de certa maneira, também atualizados no que diz respeito à proibição de uma proibição. Delleuze e Guattari (1992), acerca do happening, ainda ressaltam que: O happening não é de maneira nenhuma o estado das coisas, ele se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem !115 uma parte sombria e secreta que não para de subtrair ou de se acrescentar à sua atualização. (DELEUZE, 1992, p. 202) A repercussão disso realmente se atualizou num “estado de coisas”, não se restringiu ao juízo de valor da canção em si, mas trouxe à tona depois de um bom tempo a liberdade tão esquecida. Além disso, partindo de todo um “vivido” do povo brasileiro em meio aos atos institucionais do governo militar, instaurou uma outra possibilidade de vivência, de liberdade de expressão, de ir e vir. Sua “parte sombria e secreta” ecoou em termos de ressignificação e reatualização em todo um cenário artístico que se descortinou posteriormente. Como parte de seu happening, Caetano Veloso planejava também recitar o poema de Fernando Pessoa que reproduzimos abaixo: Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? No entanto, assumindo a postura positiva do “louco” da poema de Pessoa, em meio às vais de uma plateia que se virou de costas para o palco, ao que Caetano, em reação, apenas virou também de costas para a plateia e começou a proferir um inflamadíssimo discurso acerca do qual discorreremos a seguir a, criticando toda uma “juventude” que agia de uma forma ambígua, no mínimo, querendo, por um lado, “tomar o poder”, e, por outro, preconceituosamente fechando os olhos para o novo — quase que da agindo de forma semelhante à das autoridades que tanto criticavam — uma “música” que eles “não teriam coragem de aplaudir no ano passado”, conforme o discurso47 que Caetano literalmente vocifera ao público: Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não Disponível em: [http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano]. Acesso em 15 de março de 2014, às 21:35. 47 !116 diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! [...] Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega! Caetano Veloso compara o público enfurecido que o está vaiando aos militares que espancaram os atores que faziam uma peça marcada por um tom de protesto. A juventude que protestava contra o regime militar, talvez, sem perceber, acabava por se posicionar tal e qual a este. Antes de poder ser hostilizado por todo o júri do festival, Caetano pede sua desclassificação e questiona os critérios destes profissionais que avaliavam as canções. Performance, interpretação musical, ousadia política Passados mais de quarenta anos, Caetano Veloso, que já se tornara “o homem velho” que tematizou numa de suas canções 48, nos anos 80, segue marcado pela mesma intrepidez, parecendo agora questionar: mas é isso que fez a juventude que tanto queria tomar o poder? Em plena atividade, e num diálogo muito aberto com os jovens, Caetano é criticado por não assumir nos dias de hoje a postura e posicionamento que lhe foram característicos no final da década de 60. Se em sua juventude ele tivera a coragem de assumir um papel tão adulto, em sua maturidade, Caetano se revela um caráter quase pueril, trazendo à baila a dor e a delícia que permeiam a vida dos brasileiros atualmente, sem no entanto tomar à frente dos possíveis protestos, apenas apontando o caminho, como que dizendo: agora é a vez de vocês. No entanto, ao observarmos cautelosamente, poderemos identificar uma coerência quase que total em relação aos princípios e ideais defendidos nos dias cinzentos daqueles anos de chumbo. Suas canções seguem marcadas por um traço político nas décadas subsequentes, e chegam à atualidade fugindo de quaisquer padrões e rompendo expectativas. 48 VELOSO, Caetano. O Homem Velho (1984) !117 Por quê? Perguntam-se muitos. E a resposta pode estar contida na própria letra citada a pouco: porque “já tem coragem de saber que é imortal”. !118 3. A CENA DO CAMALEÃO. LUZES, CÂMERA: CANÇÃO “I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo In the Eletric Cinema or on the telly, telly, telly Nine out of ten movie stars make me cry I’m alive” (Caetano Veloso, Nine Out Of Ten) Apesar de ter optado pelo âmbito da canção, Caetano Veloso sempre manteve um diálogo com outros setores da arte, dentre os quais a literatura, o teatro, mas, sobretudo, o cinema. Nestas quase cinco décadas de carreira, é possível identificar uma ligação um tanto quanto constante do cancionista baiano com a sétima arte. Caetano já atuou, dirigiu um filme próprio, produziu trilhas sonoras e expressou sua opinião acerca de obras fílmicas em geral em prosa e verso. O presente capítulo se coloca justamente como uma uma investigação da relação de Caetano Veloso com o cinema. Na verdade, o cinema representa uma das grandes paixões e remonta as intenções de Caetano Veloso no que diz respeito à entrada no cenário artístico. Entre os anos de 1960 e 1962, tendo completado dezoito anos de idade, Caetano tornou-se o responsável pela produção textos de crítica cinematográfica para dois jornais: “O Archote”, de Santo Amaro da Purificação, e “Diário de Notícias de Salvador”. Acerca desta crítica cinematográfica, Ramos (1997), comenta: Suas atividades como crítico são marcadas pelo gosto pessoal de imagens em movimento narrando histórias. Ainda quando morava em Santo Amaro, que tinha na época três cinemas, revezava-os de modo a poder ver filme todos os dias. A distribuição norte-americana não dominava completamente o mercado exibidor e o jovem cinéfilo pôde ter acesso a clássicos do cinema italiano, francês e alguma produção mexicana. (RAMOS, 1997, p 559) Logicamente que a essa altura, Caetano não tinha qualquer formação específica que lhe permitisse, de fato, assumir a posição de crítico, a não ser, conforme mencionou Ramos, não apenas um “gosto”, mas uma literal paixão “pessoal”. !119 Em “Verdade Tropical”, Caetano narra com minúcias suas idas ao cinema ainda durante a infância, em Santo Amaro, e o efeito de tudo isso no homem e no artista que se tornou. É o próprio Caetano quem conta o seguinte episódio: Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La Strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor — o único que chegou a ter cinemascope — dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar — e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina. (VELOSO, 1997, p. 31) Fica clara nas palavras de Caetano a sensibilidade exacerbada no que tange a sétima arte. Em 3 de abril de 1994, Caetano publicou no jornal “Folha de São Paulo”, mais especificamente no caderno intitulado “Mais”, um texto sobre Giulietta Masina, dias após o falecimento da mesma. Intitulado “A Voz da Lua”, este já se inicia com um juízo de valor pessoal — atrelado ao “gosto” ressaltado por Ramos —, citando o “melhor” e o “pior”, mas sobretudo exaltando o trabalho de Fellini, e atribuindo muito de seu êxito à atriz italiana em questão: O melhor filme de Fellini (Noites de Cabíria) e o seu pior (Julieta dos Espíritos) são com Giulietta Masina. Isso, a meu ver, demonstra quão inexoravelmente o desenho dessa figura e o espírito dessa mulher atravessam a totalidade desse artista tão genuíno quanto se pode admitir que um cineasta o seja. (VELOSO, 1994) Entre o primeiro filme citado, datado de 1957, e o segundo, datado de 1965, e no que tange muito mais que este espaço temporal entre estas duas obras, mas, os quarenta anos de produção (literalmente de 1950 a 1990), Caetano ressalta o caráter genuíno” de um diretor responsável por obras que, marcadas por um caráter poético, mesmo quando expressavam duras críticas à sociedade como um todo, nunca perderam o tom inexplicável de magia atrelado à sétima arte. E grande parte disso, afora o incontestável talento de Fellini, se deve justamente ao trabalho de sua esposa, Giulietta Masina, que atingiu o ápice de sua carreira com esta parceria, que marcou a história do cinema. Caetano chegou a escrever uma canção homenageando a atriz em questão, cujo título é constituído pelo nome da mesma: Giulietta Masina (1987). !120 Pálpebras de neblina Pele d’alma Lágrima negra tinta Lua lua lua lua Giulietta Masina Fazendo jus à poeticidade dos filmes de Fellini protagonizados pela musa em questão, Caetano faz uma descrição poética, praticamente abstrata da atriz italiana, não tendo por objetivo descrevê-la fielmente como num retrato, mas, com elementos que se ligam à atmosfera dos filmes e das personagens por ela encarnados. Desse modo, suas “pálpebras” tem a coloração ou aspecto de uma névoa densa, indefinida, que, figurativamente, pode estar atrelada a uma escuridão intensa. Esta pode ocultar todas as reações e intenções de uma mulher cuja personalidade e existência se multiplicam, personagem após personagem, situação após situação. Já sua “pele” transmite a quem quer que a olhe, sua “alma”. Esta expressão dá conta de toda uma expressividade, o talento de transmite uma determinada ideia sem sequer verbalizar, apenas sendo observada. E sua “lágrima”, na tela branco-e-preto, cai como uma “negra tinta”, exprimindo toda a profundidade de uma tristeza, sob a atmosfera da escuridão, dissipada apenas pelo brilho da “lua”. A canção da qual tratamos a pouco foi lançada no álbum “Caetano” (1987), e regravada no registro ao vivo “Omaggio A Federico E Giulietta” (1999), título em italiano que, numa tradução nossa, corresponde a “Homenagem a Federico e Giulietta”. O encarte do disco em questão contém o relato de Caetano Veloso acerca dos elementos que culminaram na realização do show em Rimini, na Itália: Eu estava em Nova Iorque mixando “Circuladô” quando recebi a carta de Maddalena Fellini me sugerindo, em nome da Fondazione Fellini, que eu fizesse uma apresentação em Rimini em homenagem a Federico e Giulietta. A irmã de Federico me contava que Giulietta chegara a conhecer a canção que eu escrevera sobre ela e que ficara tocada. Maddalena deplorava (quase tanto como eu) que o casal tivesse morrido sem que um encontro pessoal nos tivesse sido concedido pelo acaso, o destino, Deus, os deuses. Ela tinha lido minhas declarações à imprensa italiana de amor à poesia do cinema de Masina/Fellini. Amor que se destacava como especial dentro da minha admiração pelo cinema italiano dos anos 40, 50 e 60. O fato disso encontrar resposta no misterioso amor de alguns italianos famosos e anônimos pela minha música, levou-a a considerar a oportunidade de um tal concerto. A carta me arrebatou. !121 Caetano, que registrara em prosa — e depois em verso — sua literal paixão pelo cinema italiano, e sobretudo pelo trabalho do diretor Fellini, e também de sua esposa, a atriz Giulietta Masina, numa recíproca verdadeira, despertara o interesse de seus admiradores italianos por sua música. No entanto, esta via de mão dupla não foi o suficiente para que fosse promovido a tempo o tão desejado encontro entre Caetano e o casal em questão — tendo em vista que Fellini faleceu em 1993, e Masina em 1994. Apesar disso, Maddalena — irmã de Fellini — confirmou o fato não só de Giulietta ter tomado conhecimento da canção de Caetano, como também ter se sentido “tocada” por tal homenagem — de alguém não só de outro país, mas de outro continente, marcado por toda uma cultura ligada a outro idioma, mas que ainda assim era grande apreciador de seu trabalho. O convite para o concerto em questão é fruto da admiração de Caetano, e também de sua relevância como artista na cultura italiana, logicamente. No dia em que finalmente cheguei a Rimini para cantar, minha voz apresentou um tipo de problema que eu até então desconhecia: bem no fundo da laringe, algo quase me impedia de emitir qualquer som, embora os sons que, com um incômodo sem dor, eu conseguia produzir, saíssem consideravelmente límpidos. De modo que o controle da afinação e sobretudo das intensidades se limitava exasperantemente. Estava frio e úmido em Rimini, mas havia também uma emoção grande demais em mim. Essa emoção envolvia tristeza, orgulho exaltado e vagos medos ligados ao sentido de minha vida. O clima frio somado a toda uma emoção quase impedira Caetano de cantar. Mas, algo mais forte, atrelado inclusive ao “sentido” da vida do cancionista baiano foi mais forte, culminando numa espécie de dedicação a elementos totalmente díspares entre si, mas completamente coerentes do ponto de vista da formação pessoal de Caetano: “Dama das Camélias” para Pina Bausch, “Patricia” para Anita Ekberg, “Que Não Se Vê” para Marcello Mastroianni, “coração Materno” para Tonino Guerra, tudo para Fellini e Giulietta, minha Daia, Nossa Senhora da Purificação e Lambretta. As canções citadas se colocam como homenagens, respectivamente, para a coreógrafa e dançarina de balé alemã Bausch, reconhecida por romper com as formas tradicionais da chamada “dança-teatro”; a atriz sueca Anita Ekberg, que se tornara um ícone após dar vida à personagem Sylvia em “A Doce Vida” (1960), de !122 Fellini; o renomado ator italiano Marcello Mastroianni, que estrelara tanto “A Doce Vida” quanto “8½” (1963), também de Fellini, e, logicamente, a totalidade para o casal Fellini e Masina — foco da homenagem inicial. No entanto, vêm à tona também referências não do contexto das artes, mas, aquela que fora apelidada de “minha Daia” por Caetano, sua tia, e a santa padroeira de sua cidade natal e até o veículo marcado por um baixo custo de produção, manutenção e com um maior grau de proteção que a motocicleta — veículo do qual a “Lambretta” era uma espécie de versão. Vale ressaltar que, dentre estas reverências, as duas últimas — à “Nossa Senhora da Purificação” e à “Lambretta” — são repetições das citadas em relação ao “risco de beleza que este disco” — o primeiro da carreira de Caetano, “Domingo” (1967) — “possa correr”, conforme estava no texto contido na contracapa do disco. Este fator reforça e deixa ainda mais claro a coerência e o caráter de “sentido da [...] vida” mencionado por Caetano, ao retomar suas origens, e, mais especificamente, o trabalho que o lançara na vida artística como cancionista e intérprete, exatos trinta e dois anos depois, numa proposta completamente diferente. Contudo, apesar do comentário revelador de Maddalena Fellini acerca da reação de Giulietta Masina em relação á canção de Caetano — seja ele verdade ou mentira —, a questão é que a impressão de Caetano tinha sido exatamente o oposto até então. Nesse sentido, justamente num “P.S.” de 1994, Caetano, após uma breve retomada, confessara: P.S.: quando eu era adolescente, sonhava com frequência que encontrava Giulietta Masina e Federico Fellini, e conversávamos. Não sei o conteúdo dessas conversas, mas lembro a intensidade da emoção. Assim, defendendo meus próprios fantasmas benfazejos contra a fúria esnobe da crítica, que, por vezes, precisou tentar empurrá-los para baixo na escalada do alpinismo intelectual, fiz uma canção com o nome dela e gravei num disco. Algum tempo depois, eu estava em Bari, no Sul da Itália, dormindo num hotel, e minha mulher atendeu uma chamada telefônica de Roma, “da parte da senhora Giulietta Masina”, que queria saber de mim e da canção. Só fui informado quando acordei, algumas horas depois. Não tinha tempo de parar em Roma na minha viagem de volta para o Brasil. Pablo Scharnecchia, um amigo italiano que é um grande conhecedor de música e tinha acesso aos Fellini, ofereceu-se para entregar o disco a ela. E o fez. Voltei à Itália por duas vezes depois disso, e dessas vezes ficando em Roma. Ela não me procurou mais. Concluí, sem nenhuma surpresa, que ela não gostou da música. (VELOSO, 1994) !123 O interesse inicial, o desencontro e o aparente desdém posterior da atriz italiana fizeram Caetano chegar à conclusão de que Giulietta “não gostou da música”. No entanto, tomando a canção como obra de arte, no fim das contas, o suposto apreço ou desapreço da musa canção em relação a esta não era o que mais importava. Como cancionista, Caetano Veloso apenas expressou em letra e música — em arte — sua paixão, assim como qualquer artista. Quem poderá mensurar o verdadeiro impacto causado em Giulietta Masina, ou mesmo em todo um público — geração após geração — que aprecia o trabalho de Caetano? Mas os exercícios de crítica cinematográfica de Caetano começaram décadas antes disso. Num texto, datado de 30 de outubro de 1960, publicado em “O Archote”, e intitulado: “Cinema e Público — Entretenimento e Arte”, Caetano traz uma crítica em relação ao público que teoricamente aprecia a sétima arte. Caetano abre seu texto ressaltando o fato de que o público, apesar de apreciador do cinema, acaba por se importar apenas com fatos quase que irrelevantes acerca dos filmes: Vamos constantemente ao cinema. Lemos todos os números das “revistas especializadas”. Sabemos os nomes e temos decoradas as caras (e os gestos) de Rocks Hudsons, Tonys Curtis, Elizabeths Taylors e nos consideramos a par das coisas de cinema quando sabemos dos novos casamentos dos atores, quando estamos em dia com os últimos divórcios, quando conhecemos os últimos boatos e mexericos. Mas não conhecemos um só nome de diretor. Não procuramos ver quais as mensagens dos seus filmes. Nem supomos que é ele o importante numa película, e não o ator. Temos notícia do que vestiu Marilyn Monroe na noite da avant-première, mas não tentamos compreender o que pensou Fellini ao realizar La strada ou o que sentiu De Sica ao criar Ladrões de bicicletas. Para nós o importante é Brigitte Bardot, e não Jean Renoir, é Sophia Loren e não Rossellini. (VELOSO, 1960) Reside no texto de Caetano uma crítica feroz aos ditos apreciadores de arte — no caso, o cinema — que, no entanto, não passam da mais rasa superfície da obra de arte em termos de leitura e compreensão, mas apenas repetem comentários chavões, e tão somente preocupam-se com os aspectos menos importantes do ponto de vista da análise: frivolidades acerca da vida pessoal dos atores, daqueles dos quais possivelmente se saiba o nome — por estar constantemente na mídia. !124 Caetano retoma a mesma temática em outro texto seu, de 4 de dezembro de 1960, publicado em “O Archote”: “Cinema, Ator e Diretor”, para explicar melhor sua tese acerca da importância de ator e diretor num filme: Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o “ator” e sim o “diretor”, o importante num filme. O cinema é uma estética, uma arte. E o diretor está para a obra de arte fílmica assim como o pintor está para o quadro. Os materiais de que dispõe um realizador cinematográfico são a câmera, o celuloide, os cenários, as coisas, os atores etc.; como são materiais à disposição d’um pintor a tela, os pincéis, as tintas. Pus propositadamente os atores entre os “materiais” para frisar que dentre os estudiosos de cinema eles são considerados como simples objeto na mão do realizador. O que é mais um exagero usado como antídoto do “estrelismo” do que a realidade mesma. (VELOSO, 1960) Ao estabelecer a comparação entre filme e quadro, pintor e diretor, Caetano exemplifica melhor a sua tese acerca da importância do diretor, que vai totalmente na contramão do “estrelismo” que valoriza apenas o que seria mais superficial do ponto de vista técnico na sétima arte: “o estrelismo” atrelado aos protagonistas. Ao valorizar o realizador por trás de toda uma estética contida nos filmes, uma vez mais Caetano apela a um nível mais profundo em termos do apreço de obras fílmicas, e exige de seu possível público leitor o mesmo nível de sofisticação. Outro destes textos de Caetano Veloso, que foi publicado no jornal “O Archote”, em 12 de maio de 1962, é intitulado: “Os Grandes do Momento”. Nele, Caetano se propõe a comentar cinco daquelas que, na sua opinião, são grandes “obras do grande cinema moderno” e que “já foram exibidas no Brasil e algumas na Bahia”. São elas, respectivamente: “A Doce Vida” (1960), de Federico Fellini; “Hiroshima, meu amor” (1959), de Alain Resnais; “A Aventura” (1960), de Michelangelo Antonioni; “De Crápula a Herói” (1959), de Roberto Rossellini, e “Rocco e seus irmãos” (1960), de Luchino Visconti. Caetano inicia seu texto contextualizando, a seu ver, uma fase atual e mais frutífera do cinema: Depois de um período pouco profícuo, o cinema mundial volta à velha moda de obra-prima, com o surgimento de novos realizadores geniais (como Alain Resnais e François Truffaut) e com o retorno, em grande forma, de “velhos” imensos (como Visconti e Rossellini). (VELOSO, 1962) !125 Além do entendimento do artista baiano por filmes, o trecho acima revela todo um conhecimento — fruto da paixão — pelo cinema, a ponto de analisar períodos de maior ou menor proveito em termos de produção cinematográfica de qualidade. O crivo de Caetano se propõe até à avaliação de “novos realizadores geniais” — os dois franceses: o então estreante e o já reconhecido fundador do movimento cinematográfico Nouvelle Vague —, como também ao elogio do já consagrado diretor de teatro, ópera e cinema, e também do grande nome do neorrealismo italiano. Perpassam pela crítica de Caetano definições primorosas das cinco obras. “A Doce Vida” é dada como “uma obra forte, terrivelmente pessimista, que traz a visão felliniana do mundo com maior largueza e profundidade que nunca”. “Hiroshima, meu amor” é apontado como “uma revolução estética no cinema” que “traz para o filme as experiências antes feitas em literatura”. “A Aventura”, é definido como “um pequeno drama entre personagens do nosso tempo, cujas reações, cujos comportamentos, são a marca do homem atual”. “De Crápula a Herói”, por sua vez, é apontado como “um belíssimo drama humano, partindo do estudo da transformação dos sentimentos pela guerra.” E, “Rocco e seus irmãos” é simplesmente “o maior dos grandes filmes modernos” por estudar “decadência do homem premido pela sociedade burguesa”. Estas conceituações denotam uma profunda leitura, interpretação e compreensão em termos de enredo, atuações, ambientações e trilha sonora no que tange aparato teórico, e também pela contextualização, da ficção para a vida real, por parte de Caetano — literalmente, aquilo que “o filme quis dizer”49. Caetano também se propôs a fazer uma lista dos melhores filmes exibidos em Santo Amaro no ano de 1961, no texto “Os Melhores do Ano”, literalmente, conforme ele mesmo afirmara “teimosamente”, tendo em vista que “não foram os filmes que mais agradaram ao grande público” e, mais do que isso, compunham a lista títulos “que a maioria não conhece”. No entanto, engana-se quem achar que Caetano ficou atrelado apenas ao cinema de arte — ou seja, europeu —, deixando de lado toda uma produção americana efervescente já naquela época. 49 VELOSO, Caetano; GIL, Gilberto. Cinema Novo (1993) !126 Em “Filme e Juventude”50, Caetano comenta “Juventude Transviada” (1955), que fora exibido em Santo Amaro apenas “depois de tanto tempo de seu lançamento” — exatos seis anos. Muito além dos gestos dos atores em geral e especialmente de meros elogios a James Dean, Caetano se aprofunda numa análise do que subjaz ao filme: “a denúncia contra uma sociedade burguesa decadente que causa, com sua falsidade moral e religiosa, todo o desespero ético e metafísico da geração nova” (1961). Além disso, Caetano também escreveu textos acerca de filmes brasileiros. Iniciando-se pela produção ainda nos anos 60, do ainda estreante diretor Glauber Rocha: “Um Filme de Montagem”, acerca de “Barravento” (1962). Caetano abre seu texto afirmando se tratar de “um filme cheio de intenções”, e, ao tratar destas, acaba por sintetizar os propósitos do Cinema Novo como um todo: Como todos os filmes que têm surgido do movimento Cinema Novo, ele não é uma obra gratuita: é uma tentativa de cinema vinculado com a verdade e a cultura do Brasil. Um cinema que supere a nossa pré-história (chanchada) e redima os erros dos que tentaram iniciar uma arte brasileira do filme, mas que correram para o preciosismo alienado ou que não saíram da intenção de fazer cinema caboclo (Vera Cruz; produtores independentes). (VELOSO, 2005, p. 233) A fim de demarcar o caráter literalmente “novo” do cinema de Glauber Rocha, Caetano se propõe a estabelecer a distinção em relação à “chanchada” — filmes brasileiros carnavalescos, comuns entre os anos de 1930 e 1960 no Brasil, produzidos pela “Atlântida” — e o “preciosismo alienado” ou “cinema caboclo” característico da cia. “Vera Cruz”. A proposta de Glauber se ligava justamente a vincular a ficção fílmica diretamente a questões da realidade e da brasileiras, a fim de produzir filmes genuinamente nossos, que retratassem o Brasil e seu povo de uma maneira fiel. Caetano ressalta o fato de que, literalmente, “desde o início” é possível notar as características que permitem associar o filme ao movimento do Cinema Novo. No entanto, se por um lado, positivamente, “as intenções surgem claras”, por outro, infelizmente, “os resultados não têm a sua força”. 50 “O Archote”, nº11. Santo Amaro, Bahia, 20 de setembro de 1961. !127 Para pautar sua análise do filme de Glauber Rocha, Caetano estabelece uma comparação com o drama “A Grande Feira” (1961), de Roberto Pires, filme que integra o chamado “Ciclo Baiano de Cinema” ao lado de “Redenção” (1959) e “Tocaia no Asfalto” (1962), todos do mesmo diretor. É ressaltado um fator que aproxima estes dois filmes: a intenção de “lançar a mensagem social sem rodeios, diretamente”. E esta intenção é de fato cumprida nos dois filmes. No entanto, ao mesmo tempo em que este fato aproxima as duas obras fílmicas, ele também permite estabelecer uma cisão entre elas: [...] se no filme de Roberto esses discursos surgem motivados por situações e, desse modo, são prolongamentos da ação dramática, Glauber levou isso às últimas consequências: a relação dramática entre o discurso e a ação é anulada pela montagem e a mensagem surge acintosamente pura e seca. (VELOSO, 2005, p. 233) Em “Barravento”, a mensagem que deveria vir subjacente a todo um enredo, por meio das ações das personagens acaba por se reduzir a mais um discurso, e justamente por isso não cumpre seu objetivo estético. No entanto, ao final do texto, Caetano afirma se tratar de “um filme chocante para o gosto do povo”, o qual por isso mesmo, possivelmente “agradará mais ao pequeno-burguês semiletrado do que ao povo mesmo”. Apesar dessa crítica à gênese do movimento, uma das maiores inspirações que influenciaram Caetano na concepção da Tropicália foi justamente o “Cinema Novo”. Partindo da ideia da valorização das raízes de um verdadeiro Brasil profundo, frente a influências internacionais, passamos pelo caráter cinematográfico de letras como a de Alegria, Alegria. Nesse sentido, é o próprio Caetano que, numa entrevista51, ao responder à pergunta: “Qual a importância da narrativa em sua obra? Você, quando cria, deseja contar uma história?”, afirma: Quase nunca desejo contar uma história. Mas o cinema foi e é modelo consciente ou inconsciente de minhas canções. Alegria, alegria é toda feita de montagem. Na verdade, as canções tropicalistas têm muito de montagem de cinema. Enquanto seu lobo não vem, Superbacana, Tropicália, todas as canções dessa época têm a ver com cinema, sobretudo o cinema de Godard. Mas não só as minhas: Domingo no parque, de Gil, é muito cinematográfica. Disponível em: [http://www3.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2013/05/entrevista-com-caetano-veloso/]. Acesso em 17 de março de 2015, às 00:02h. 51 !128 A resposta de Caetano é muito reveladora da importância ou relevância da sétima arte em seu trabalho como cancionista. Apesar de ter se ligado às canções, e não aos filmes, o “cinema” e suas peculiaridades se revelam como um plano de fundo que permeia todo seu processo de composição. Caetano chega a citar canções Tropicalistas como Enquanto Seu Lobo Não Vem, cuja letra, além do intertexto dos contos infantis, revela também uma dimensão cinematográfica, como uma possível história a ser contada por meio de um filme. Ocorre o mesmo como o super-herói antiamericano e anti-imperialista Superbacana, e até com a canção-manifesto Tropicália. Marcadas por um traço descritivo, que permitem ao ouvinte visualizar as personagens, cenários e situações cantados na narrativa-poética da letra, todas estas, e mais muitas das canções de Caetano Veloso apresentam um diálogo muito forte com o cinema e as artes visuais. E não só as relativas ao âmbito nacional, como o Cinema Novo de Glauber Rocha, ou o Cinema Marginal de diretores como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, João Silvério Trevisan, mas, também o vanguardista-político de Godard e o neorrealismo italiano de Fellini. A partir da efervescência cultural ocorrida na Europa, um dos maiores reflexos no Brasil dos anos 60 se deu justamente no cinema. Partindo de influências de movimentos culturais consagrados internacionalmente, como o Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa, cineastas brasileiros começaram a articular uma proposta de inovação da linguagem cinematográfica como um todo, visando torná-la mais fiel ao contexto específico em que eram produzidas as obras audiovisuais, como bem pontua Avellar: O que se discutia não era a criação de uma gramática normativa. Não era a unificação da linguagem. Tratávamos, isso sim, de desenvolver uma expressão tal como a língua viva se faz e se transforma continuamente como diálogo entre as diferentes linguagens sociais, entre as várias palavras, dialetos, gírias profissionais, e expressões poéticas nascidas de distintas práticas e concepções de mundo. Singularidade plural. Tratávamos de pensar o cinema latino-americano como um diálogo entre as naturalmente diversas experiências de cada país. Pensar cada filme como imagem completa mas inacabada. Como língua, mas como dialeto. Como expressão independente mas dependente do diálogo de diferentes formas de expressão. Pensar o cinema como vontade de conversar através de filmes. (AVELLAR, 1995, p.95) Ao tratarmos de uma arte cinematográfica marcada pelo desejo de, de fato, se colocar como “diálogo” estabelecido, ao mesmo tempo “entre as diferentes !129 linguagens sociais” e “entre as naturalmente diversas experiências de cada país”, a maior expressão encontrada no cenário brasileiro se deu por meio da ação de cineastas como Glauber Rocha, Carlos Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emílio Salles, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e outros que, juntos, integravam o grupo do chamado “Cinema Novo”. O movimento cinematográfico brasileiro em questão caracterizou-se pela tentativa de inserção das questões políticas e sociais do âmbito nacional no cinema, a partir de uma inovadora estética realista, marcada por uma perspectiva crítica que ia de encontro à produção cinematográfica brasileira até então, totalmente atrelada à estética de uma cultura fílmica pautada por interesses industriais — guardadas as devidas proporções, pode-se afirmar que praticamente o mesmo ocorreu no âmbito da canção, com o Tropicalismo. Assim, fazendo jus ao título, o “Cinema Novo” ambicionava a produção de filmes que se constituiriam como novidade para o público brasileiro, a começar por não serem produzidos por uma “entidade privilegiada do Brasil”, como os grandes estúdios da época: Vera Cruz e Atlântida, mas, assumidamente, por um “fenômeno dos povos colonizados”, que se colocava à margem da indústria e, talvez por isso mesmo, fosse dotado de um certo caráter heroico, conforme afirma o próprio Glauber Rocha: O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe de Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe de Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. (ROCHA, 2008) Rocha deixa claro ao seu público que o “Cinema Novo” é um movimento cinematográfico “marginal”, tanto em termos econômicos e culturais, por estar à margem da produção latino-americana, como um fruto dos “povos colonizados”, quanto por se opor à “mentira” e “exploração” características da indústria !130 cinematográfica, não comprometida com a qualidade e originalidade, mas, apenas com o lucro. À data da comemoração de trinta anos do Tropicalismo, Caetano, em parceria com Gil, gravou um disco intitulado “Tropicália 2”, colocando-se justamente como um segundo volume do consagrado disco-manifesto lançado em 1968, contendo algumas regravações e também canções inéditas, compostas especialmente para a ocasião. Uma das canções inéditas contidas neste álbum é Cinema Novo (1993), que, trinta anos depois, se coloca praticamente como um hino de louvor a uma das principais influências que motivaram a concepção do Tropicalismo. Os versos que abrem a canção dão conta do sentido, do que “o filme quis dizer”. E a resposta a este questionamento implícito é justamente: “Eu sou o samba”. O fato de um filme — síntese de toda uma coletividade atrelada à produção cinematográfica brasileira — poder ser definido definir como “samba” já seria bastante nacionalista, tendo em vista a importância deste ritmo na cultura brasileira. Mas, o que acentua este caráter é justamente o fato de se tratar exatamente do verso que abre a canção A Voz do Morro (1955), de Zé Keti. Este samba tornou-se um grande sucesso no ano de seu lançamento, ao compor a trilha do filme “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos. Afora esta conexão com a sétima arte, A Voz do Morro se constitui com uma expressão nacionalista genuinamente popular, exaltando o estilo musical que leva “a alegria para milhões de coações brasileiros”, com uma unanimidade tamanho, a ponto de se configurar “a voz do povo do país”. Desse modo, com o movimento do Cinema Novo, a proposta é a de que este papel passe a ser desempenhado também pelos filmes, como a imagem do povo do país. A partir deste novo significado atrelado às obras fílmicas, consta no próprio verso da canção de Caetano Veloso a afirmação de que “começaram a se configurar / visões das coisas grandes e pequenas / que nos formaram e estão a nos formar”, ou seja: todo um chamado “jeitinho brasileiro” passa a ser protagonista de uma produção nacional efervescente. !131 Caetano Veloso, ao trigésimo aniversário do movimento por ele inaugurado em parceria com Gilberto Gil, passa a citar as referências — títulos de filmes — que estavam por trás de toda esta alegorização do Brasil, conforme já afirmou Roberto Schwarz. Podemos mencionar alguns dos citados, como “Deus e o diabo [na terra do sol]” (1964); “Os Fuzis” (1963); “Os Cafajestes” (1962); “O Padre e a Moça” (1966); “A Grande Feira” (1961); “O Desafio” (1965), e, logicamente “Terra em Transe” (1967), filme especialmente citado por Caetano como um dos maiores impulsionadores em relação à concepção do Tropicalismo. Cinema Novo ainda narra, em seus versos, o contexto em que surge o movimento homônimo. Afirma-se que “a bossa-nova passou na prova” e “nos salvou na dimensão da eternidade”, dando conta de todo o sucesso deste estilo musical brasileiro, nacional e internacionalmente falando. No entanto, mesmo com o surgimento da Bossa, “aqui em baixo” — abaixo da eternidade conquistada pelo estilo musical em questão —, numa citação de um verso de Fernando Pessoa, de sua obra, “Mensagem”, é sintetizada a existência dos brasileiros: “a vida” não passava de “mera metade de nada”, ou seja, seguia sem sentido ou significado, como num impasse — “nem morria nem enfrentava o problema”. Deste modo, de uma maneira quase que salvadora, “foi por isso que as imagens do país desse cinema / entraram nas palavras das canções”. Haja vista o movimento Tropicalista e a confessada influência cinematográfica em letras de canções como Alegria, Alegria (1967) e Domingo no Parque (1967), que literalmente chocaram júri e público no contexto dos festivais — por destoarem da produção cancional padrão até então —, mas, sobretudo, revolucionaram a cultura, e em especial o processo de produção musical a nível nacional. Há uma referência particular à obra “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, com a afirmação de que, a partir deste filme — dado como um divisor de águas na cultura nacional —, toda “a terra entrou em transe” com o significado, a mensagem transmitida pelo filme. Isto se deu de uma forma e com uma intensidade tamanhas a ponto de “as vozes do poema” — a literatura — terem precisado “transformar-se tanto” que, numa recíproca verdadeira ao verso que abriu a canção de Caetano Veloso, agora “o samba quis dizer: eu sou cinema”, e até mais do que isso: “eu quero ser poema” — a forma literária mais requintada. !132 Com menções a “Atlântida” e “Vera Cruz” — as duas principais produtoras cinematográficas brasileiras, respectivamente dos anos 40 e 50 —, e também a personagens como “Xica [da Silva]”, “Índia”, “Macabéia”, “Stelinha” e “Inocência” — originalmente advindas de obras literárias e que foram adaptadas para filmes —, a canção é encerrada pelo verso: “eu sou o samba viva o cinema”, que dá conta da intersecção dos mais diferentes setores da arte num propósito nacionalista de fato. Ainda acerca do “Cinema Novo” de Glauber Rocha, é o próprio Caetano quem explica: O movimento do Cinema Novo, na primeira metade dos anos 60, opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção — quase hostilidade — a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas. Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro “Revisão crítica do cinema brasileiro” argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. (VELOSO, 1997, p. 100) Apesar de seu apreço pelo movimento cinematográfico liderado por Glauber Rocha, Caetano Veloso ressalta o caráter injusto da “hostilidade” em relação a produções significativas da companhia “Vera Cruz”. De fato, o filme “O Cangaceiro” (1953), com direção e roteiro assinados por Lima Barreto, e os diálogos elaborados por Rachel de Queiroz, tem grande importância, em primeiro lugar, histórica, pelo fato de ter sido o primeiro filme brasileiro a ser levado para as telas do mundo afora, e também, por sua qualidade — tendo permanecido em cartaz por cinco anos apenas na França.. Contando a história de Lampião, o filme foi premiado no Festival Internacional de Cannes, tendo recebido os prêmios de melhor filme de aventura e de melhor trilha sonora. Caetano, inclusive, cita o comentário do próprio Glauber Rocha ligado à comparação do Cinema Novo ao Neorrealismo Italiano, movimento cultural que teve sua maior expressão no cinema, com os filmes de diretores como Roberto Rosselini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti, todos marcados pela incorporação de elementos da realidade em suas obras de ficção, de modo a registrar a literal realidade socioeconômica italiana a partir da segunda metade da década de 40. !133 Acerca dos trabalhos de Caetano Veloso como ator, Ramos (2000), comenta Caetano Veloso costuma dar declarações bastante críticas com relação às suas atuações como ator. Diz não se sentir à vontade em frente da câmera como se sente à vontade diante de refletores que têm a plateia de um show por detrás. É nos filmes de Júlio Bressane que Caetano encontra um espaço maior para tentar elaborar personagens e enfrentar o desafio de ser ator. (RAMOS, 1997, p. 560) Apesar de uma sensação maior de conforto estar naturalmente atrelada ao palco, Caetano Veloso participou de um número considerável de filmes na posição de ator. Particularmente, Caetano atuou em três filmes do cineasta brasileiro Júlio Bressane. “Tabu” (1982) foi o primeiro dos filmes de Bressane estrelados por Caetano, no qual ele interpretou o papel de Lamartine Babo, um dos mais significativos compositores da canção popular brasileira dos anos 30 e 40. O filme, num resumo, narra o encontro fictício entre o compositor brasileiro Lamartine Babo e o poeta modernista Oswald de Andrade, propiciado por João do Rio, conforme consta na sinopse da Cinemateca Brasileira: Não há história textual, há uma história audiovisual de um encontro imaginário entre Lamartine Babo e Oswald de Andrade promovido pelo cronista João do Rio. De quebra, a presença de Isadora Duncan, Jacob do Bandolim, Manuel Bandeira, Chico Alves, Mário Reis. Na pauta, os encontros da poesia (Não faço poesia quando quero e sim quando ela quer), João do Rio, o carnaval (o que o brasileiro faz melhor, Oswald), as charadas, Rancheira, a rã que cheira a noite inteira. Mas o filme refere-se não só ao encontro que não houve, às conversas, músicas e passeio pelo Rio, como intercala cenas do TABU original, a obra-prima de Murnau de 1930, e ainda cenas de antigos filmes pornográficos. Como princípio narrativo, TABU, o de Bressane, parte da junção de três elementos — imagem, fala e música — unidos, por uma montagem ideogrâmica, que consiste na relação entre uma imagem e outra sem surgir uma terceira, mas sim uma relação de conflito entre as duas. Para além do roteiro que tematiza o encontro de Lamartine Babo e Oswald de Andrade, em “Tabu” temos literalmente um “passeio” pela cultura do “Rio”. No que diz respeito ao carnaval, além de Lamartine, temos personagens como Francisco Alves e Mário Reis, intérpretes também ligados a esta fase áurea do rádio brasileiro. Ao dar vida ao personagem Lamartine Babo, Caetano interpreta alguns dos maiores sucessos deste compositor brasileiro, dentre os quais podemos destacar O Teu Cabelo Não Nega (1932), Linda Morena (1933), e também uma canção de sua !134 autoria ligada ao contexto do carnaval: A Filha da Chiquita Bacana (1977), contida no álbum “Muitos Carnavais” (1977). Eu sou a filha da Chiquita bacana Nunca entro em cana porque sou família demais Puxei à mamãe, não caio em armadilha E distribuo banana com os animais Na minha ilha, iê, iê, iê que maravilha, iê, iê, iê Eu transo todas sem perder o tom E a quadrilha toda grita iê, iê, iê Viva a filha da Chiquita iê, iê, iê Entrei pra "Women\'s Liberation Front" A letra desta canção de Caetano Veloso tematiza uma mulher de personalidade forte e traços como o de esperteza — “nunca entro em cana” —, e tudo isso é justificado pelo fato contido na própria afirmação desta: “Puxei à mamãe”. Esta relação filial não reside apenas na ficção da letra da canção, mas na intertextualidade estabelecida com a marchinha Chiquita Bacana (1949), de Alberto Ribeiro e João de Barro. Desse modo, se “A Filha da Chiquita Bacana”, com esta personalidade tão forte, afirma ter entrado para a “Women’s Liberation Front”, a mãe fora caracterizada como “existencialista com toda razão”. Assim, de fato, numa comparação entre as letras das canções de Veloso e Ribeiro/Barro, justifica-se esta possível herança genética, tendo em vista que a marchinha de 1949, que caracteriza a “Chiquita Bacana” tem versos como: Chiquita bacana lá da Martinica Se veste com uma casca de banana nanica Não usa vestido, não usa calção Inverno pra ela é pleno verão Existencialista com toda razão Só faz o que manda o seu coração A comparação entre as letras das canções permite a identificação de elementos comuns não só em relação às personagens, mas no contexto. “Chiquita Bacana” se vestia “com uma casca de banana nanica, já “A filha” afirma distribuir “banana com os animais”. A personalidade forte, decidida e o contexto carnavalesco em que se inserem ambas as canções reforça a aproximação entre elas. No filme de Júlio Bressane, a partir das semelhanças entre o autor das marchinhas de carnaval e hinos de clubes e o autor de toda uma obra marcada por !135 um tom de protesto que beira o satírico, valorizando o português falado no Brasil, e que introduziu na literatura brasileira os conceitos de poema-piada e poema-minuto, ocorre uma identificação entre as personagens. Isso se dá de um tal modo, a ponto de Oswald, num determinado momento do filme, afirmar a Lamartine: Lamartine, você é minha espinha dorsal! Eu vou te levar pra Paris. Aqui os chateaus-boys não vão te sacar nunca. O mundo se chama mundo porque é imundo. Lamartine, você não é utopia, você é atopia. Lamartine, você é eu! A empatia entre Lamartine e Oswald de Andrade constitui praticamente um jogo de espelhos, entre artistas ligados à palavra (letra de canção e texto literário propriamente dito) e entre si. Movidos por mais do que a manifestação popular expressa seja por marchinhas de carnaval e hinos de times de futebol — totalmente atrelado ao gosto de grandes massas, em oposição à chamada MPB —, seja por uma poesia que destoa dos parâmetros ditados pelos europeus em termos de estilo e linguagem — indo literalmente na contramão disso, empregando a linguagem informal e cotidiana, sem a preocupação com os elementos clássicos da poética —, Lamartine e Oswald promoveram rupturas em termos de arte, e justamente por isso, foram um tanto quanto incompreendidos por seus companheiros de geração. Conforme consta no diálogo entre as personagens, Oswald se enxerga em Lamartine devido à incompreensão dos outros, e não somente por uma espécie de utopia traduzida na arte de cada um, mas, literalmente por uma “atopia” 52. Deste modo, a presença de aspectos tão singulares em Lamartine se justificaria por uma possível — e, assim como o encontro entre os dois no filme, imaginária — vocação de caráter hereditário. E, ainda neste suposto reflexo, Geraldo Carneiro identifica este mesmo elemento no que diz respeito à relação entre personagem e intérprete, mais especificamente, Lamartine e Caetano: O Lamartine [...] sempre foi político, maravilhosamente incorreto, do ponto de vista político, e é uma figura, enfim, ligada ao carnaval até por razões profissionais. Agora, o Caetano que o encarna é uma das figuras também mais carnavalescas e mais antropofágicas da cultura brasileira. Você tem aí um jogo de espelhos que o Júlio faz com perfeição. (24:10 — 24:30) Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o significado do termo aponta para: “Predisposição hereditária para determinadas reações alérgicas”. Disponível em:[http:// www.priberam.pt/dlpo/atopia]. Acesso em 08/04/2015, às 19:13h. 52 !136 Político, carnavalesco e antropofágico. Esta descrição é perfeita tanto para Oswald de Andrade quanto para Caetano Veloso, e faz uma referência à possível ligação entre estas duas figuras: o Tropicalismo. Ora, se no âmbito da literatura — e das artes em geral, à época — o Modernismo representou a tentativa mais bem-sucedida até então de produção de uma arte literalmente brasileira, rompendo com os modelos e padrões europeus, e buscando uma real aproximação com o cotidiano de nosso povo, o Tropicalismo, exatos quarenta e cinco anos depois, foi um movimento marcado por uma premissa bastante próxima. Num contexto de ditadura militar, em que as vozes da canção de dividiam entre a alienação e o protesto — sendo que este era marcado também por preconceitos em relação ao estrangeiro, ao diferente, enfim... o novo — Caetano Veloso, junto de Gilberto Gil, provam que é possível adotar elementos e procedimentos de culturas estrangeiras sem com isso fazer com que a cultura nacional seja diminuída ou venha a perder sua identidade. Apresentando uma retomada da Antropofagia proposta por Oswald de Andrade no contexto do Modernismo, Caetano Veloso demonstra ser possível devorar o diferente, digerir, em termos de absorção e interpretação, e expelir, no que diz respeito à produção de uma obra nova e inédita, marcada pela influência, pela incorporação do que até então era totalmente diferente e ameaçadoramente oposto. Se o Tropicalismo retoma a Antropofagia Oswaldiana quase meio século depois, Júlio Bressane resgata mais uma vez este aspecto — sessenta anos após Oswald, e quinze após Caetano —, adaptando esta fonte comum a partir da filtragem tropicalista, e inserindo-a no âmbito da sétima arte. Em “Tabu”, Bressane, desde o início, deixa claro a quem assiste o tom experimental que permeia todo o filme, o qual, dentre outros elementos, é revelado por uma espécie de colagem, por meio da qual o diretor insere cenas de filmes europeus e até de filmes pornográficos. Geraldo Carneiro interpreta este procedimento do autor como uma prática da antropofagia em termos culturais e artísticos, e comenta: O grande momento antropófago do filme talvez seja aquela sequência em que ele usa o filme do Murnau, as nativas dançando lá nos mares do sul, e ele sonoriza com um samba, com o carnaval !137 carioca. Então, é realmente uma fusão extraordinária. Duvido que o Murnau se atrevesse a sonorizar aquilo de uma outra maneira. E ficou tão interessante aquela fusão. (CARNEIRO, 2013) Júlio Bressane em seu filme, “Tabu” praticamente faz uma colagem de cenas de um filme ligado ainda ao contexto do cinema mudo, homônimo, de 1931, do cineasta alemão Friedrich Wilhelm Murnau. O ato de Bressane não deixa de se constituir como uma devoração cultural, ao colocar a cena com uma trilha sonora tão caracteristicamente brasileira. Assim, a obra fílmica em questão, longe dos enredos marcados por narrativas lineares caracteristicamente hollywoodianos, se comparada à pintura, estaria longe de um retrato fiel de determinada imagem — como forma anterior à fotografia — mas poderia ser definida como uma representação altamente abstrata. A título de exemplificação, Estevão Garcia descreve53 o início do filme: Um índio anuncia com uma trombeta mágica (no Tabu de Murnau) o caos que tomará conta da Terra, ou da tela. Árvores balançam solenemente ao som de canários. Sentimos a união do movimento com o cantar dos pássaros até que da banda sonora surge a música de Lamartine Babo simultaneamente com o aumento da velocidade das imagens. A imagem torna-se irreconhecível, as árvores se fundiram em uma coisa só, o começo do começo foi implantado através da vertigem do mundo. O mundo está confuso e desconexo, percebemos o ritmo da tontura e do desequilíbrio. Tudo está torto e prestes a cair. Um céu abstrato rodopia entre copas de árvores e depois se dirige ao caule e à um emaranhado de pontos assanhados, uma imagem que lembra os mitos de origem, a origem de tudo, o começo dos tempos e assim se inicia Tabu. (GARCIA, 2006) Garcia ressalta o fato de não só a cena da dança das nativas ter sido assimilada no filme de Bressane, mas também a primeira, que continha um índio — fator que, somado ao título comum dos filmes, reforça o diálogo entre estes. A obra fílmica em questão de Bressane é iniciada por um tom que se assemelha à Cosmogonia mitológica, ou ao Gênesis bíblico: a origem de tudo, com a diferença apenas de se tratar, ao mesmo tempo, de um anúncio acerca de um “caos”, que é reforçado inclusive pelo aumento da intensidade do som, a velocidade e o teor das imagens, culminando num contexto “confuso e desconexo”. In: “Tabu, um disco de vinil visual”. Disponível em: [http://www.contracampo.com.br/45/ tabuvinil.htm]. Acesso em 12 de março de 2015, às 22:39h. 53 !138 Em “Contraplano — Um Cinema Antropofágico”, Celso Favaretto e Geraldo Carneiro discutem a antropofagia contida neste filme de Bressane, e é Favaretto quem assinala a influência tropicalista em que se insere “Tabu”: Esse uso que ele fez [...] daquelas cenas do Murnau e as cenas de carnaval, essa justaposição, isso repercute fundamente um outro ponto do Manifesto Antropófago, que é “a conversão permanente do tabu em totem”. E daí que chama o filme “Tabu”. [...] Esse filme do Bressane, aliás, como outros filmes do Bressane é exatamente centrado no tabu. Quer dizer, de como o tabu é dissolvido: no filme dele é criticado, a sexualidade, a floresta, a música, tudo isso junto produz um descongelamento da norma e daquilo que estaria estabelecido como moralmente a norma, a convenção. [...] A passagem entre os espaços abertos, sempre do Rio de Janeiro e da floresta. Os espaços fechados, do prostíbulo, do botequim, etc. Esse jogo de aberto e fechado é uma corrosão dos dois polos, e uma interconversão numa outra coisa que, alegoricamente, alude sempre a este outro Brasil, ou, o outro do Brasil, que é alegorização. [...] O Júlio leva aos extremos a alegorização tropicalista. (FAVARETTO, 2000) Assim como o Tropicalismo, o filme de Bressane traz à tona uma alegoria de Brasil. Se em “Tabu” são utilizadas cenas de outros filmes, com uma trilha sonora praticamente insólita tendo em vista o contexto original das cenas assimiladas ao filme, da mesma maneira ocorreu na Tropicália. Basta nos atentarmos ao discomanifesto do movimento — “Tropicália ou Panis et Circensis” (1968) e mesmo para as apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil nos festivais da época. A novidade proposta pelos tropicalistas era também composta pela revisão do antigo. Caetano Veloso interpreta Coração Materno, de Vicente Celestino, mas também incorpora a uma canção inédita, de sua autoria, a guitarra elétrica — advinda do rock’n’roll inglês. São apenas fatos levantados a fim de se confirmar que o procedimento adotado por Bressane é essencialmente o mesmo. Além de “Tabu”, como ator, Caetano Veloso participou de um número razoável de filmes. “Onda Nova” (1983) é um filme cujo elenco é composto por nomes como: Carla Camurati, Vera Zimmermann, Tânia Alves, Regina Casé, e até o próprio Caetano Veloso. O roteiro e a direção são creditados a José Antônio Garcia e Ícaro Martins. Uma das temáticas abordadas no filme diz respeito justamente à diversidade sexual, e está ligada ao dia-a-dia de garotas que fundaram um time de futebol feminino, chamado “Gayvotas Futebol Clube” que vem a ser patrocinado por !139 um clube profissional. A preocupação dos pais em relação a uma possível “masculinização” das garotas, em decorrência da proximidade delas com o futebol, e a relação destas com seus namorados dá o tom de comédia ao filme. O próprio José Antônio Garcia faz um comentário sobre o filme: Onda Nova é uma crônica bem-humorada e juvenil de um time de jogadoras de futebol, o Gayvotas Futebol Clube (que, aliás, é o subtítulo do filme). É um grupo de garotas dispostas a vencer preconceitos, compartilhar amizades, enfrentar desafios, concretizar sonhos e, sobretudo, se divertir. É um filme leve, descompromissado, mas também muito experimental, lúdico e anárquico. O plano de tomar a Boca e fazer um cinema que mostrasse a nossa cara, iniciado em O Olho Mágico do Amor, aqui é levado às últimas conseqüências. [...] Por causa do bom retorno de O Olho Mágico do Amor, o pessoal da Boca estava animado com nosso novo projeto. Tivemos uma verba um pouco maior, mas nada que evitasse o aperto com o qual já havíamos nos acostumado. [...] Novamente, a gente contou com o zeitgeist daquela nossa geração, a vontade de ajudar, de fazer acontecer. Rolaram novas participações afetivas e até mesmo de gente que já tinha pintado no O Olho Mágico do Amor (...) O objetivo geral do filme era brincar com os papéis: os papéis que homens e mulheres supostamente exercem na sociedade. Como parte da nossa crítica se concentrava contra aqueles que impediam as mulheres de se expressarem no esporte, espalhamos ao longo de Onda Nova várias referências trocadas do que se acredita ser masculino ou feminino. (NADALE, 2008, p. 47) A troca de referências em relação aos estereótipos construídos acerca do masculino e feminino, numa espécie de “brincadeira” com estes “papeis” teoricamente exercidos num contexto social é a tônica do filme e se assemelha bastante à temática de muitas canções de Caetano, e, sobretudo o comentário que ele vem fazendo a este respeito, seja por meio de sua performance, a maneira de se vestir, mas, sobretudo, por suas declarações, tomadas de postura em sua carreira, frente aos mais diversos assuntos. Caetano Veloso, numa das únicas cenas em que aparece — e que, nem por isso deixa de ser marcante no filme—, entra num táxi acompanhado de uma fã, e passa a se atracar com ela dentro do carro. Sentados no banco de trás, e aos beijos e abraços, eles percorrem a cidade de São Paulo, passando por pontos como o Trianon, o Minhocão e até o bairro da Liberdade. A sequência é quase cômica, pelo fato de que, a cada parada, eles pedem ao motorista para que que ele continue rodando, e cada uma dessas paradas é marcada também por uma alteração da trilha sonora. !140 Ao final, a cena já nada protocolar, confirma esse caráter e ganha até comicidade, com Caetano, sem dinheiro para pagar a corrida, tentando justificar-se para o taxista, afirmando: “é que não estou acostumado a andar com dinheiro, pois todo mundo paga as coisas para mim”. À parte do filme, duas das suas protagonistas tornaram-se musas de Caetano: Vera Zimermann e Regina Casé. Caetano homenageou-as em canções de sua autoria. A canção feita para Vera Zimmermann é intitulada Vera Gata (1981), do álbum “Outras Palavras”. A letra, pontuada por um cunho erótico, brinca, desde o seu título, com as acepções da palavra ‘vera’, que pode ser um substantivo próprio, nome de uma pessoa, ou então, um adjetivo, sinônimo de “verdadeira”. Era uma gata exata Uma vera gata Das que não tem dúvida dúvida Éramos fogo puro O amor total Padrão futuro, éramos éramos Puro carinho e precisão Eficiência, técnica e paixão Os versos transcritos acima, que abrem a canção, constituem uma descrição. Em primeiro lugar, de uma mulher, metaforicamente caracterizada como “gata”, num elogio à sua beleza. Mas, este elogio é ainda intensificado pela expressão “vera”, cujo significado ambíguo pode tanto referir-se a uma “verdadeira gata” ou a uma mulher chamada “Vera, que é uma “gata”. Esta tem atributos como “exata”, “que não tem dúvida” — ou seja, decidida, segura — ressaltados. A seguir, a união do enunciador a esta mulher passa a ser descrita. Inicialmente como “fogo puro”, fruto de uma paixão avassaladora e uma atração ímpar, mas, ao mesmo tempo, “amor total”, um sentimento pleno e verdadeiro permeando esta relação. O amor entre os dois é dado como algo inédito, “padrão futuro”, definido, ao mesmo tempo por “carinho” e “paixão”, demonstrações do afeto e da atração que os unia, e também, “eficácia” e “técnica”, como o cumprimento de uma função determinada, a prática esperada a partir de uma teoria, elementos que destoam do !141 caráter imprevisível da “paixão”, da “atração” e outros estados atrelados à conquista amorosa. Já a homenagem feita para Regina Casé está contida em Rapte-me Camaleoa (1981), canção que está contida no álbum “Outras Palavras” (1981). Rapte-me camaleoa Adapte-me a uma cama boa Capte-me uma mensagem à-toa De um quasar pulsando loa Interestelar canoa Esta canção é marcada por um apelo erótico, em que o amante pede à mulher amada — caracterizada como “camaleoa” — para que o “rapte”, mas provavelmente não no sentido literal da palavra, mas, que o tome, arrebate de uma outra maneira. A partir disso, os planos atrelados a este pedido dizem respeito à adaptação “a uma cama boa” — imagem que reforça o tom erótico que subjaz à letra -; e, talvez, antes e mais do que isso, que “capte” o recado ou aviso que, aparentemente, é realizado “à toa”, mas, que, na verdade, tem uma intenção, um objetivo bastante claro. Tanto é assim, que esse caráter “à toa” se assemelharia a um “quasar”, fonte de energia bastante potente, o qual, está “pulsando” e emitindo elogios, expressões laudatórias, mas com uma segunda intenção (“loa”). Este praticamente literal convite ao deleite e ao prazer se constitui, poeticamente, numa viagem que o emissor deseja fazer com a “camaleoa” em questão, e, para tanto, é necessário embarcar na “canoa” que os poderá levar para bem perto, entre as estrelas — expressão figurada que daria conta de um estado mutuamente muito bom, prazeroso, satisfatório. A designação de “agitador cultural” atribuída a Caetano Veloso é bastante propícia ao tratarmos daquela que foi sua primeira e, até então, única experiência como diretor no contexto da sétima arte. Em 1986, foi lançado o filme “Cinema Falado”, assinado pelo cancionista baiano. Diferentemente do processo convencional de muitos cineastas que são movidos por uma inspiração — somada, é claro, à uma capacidade e formação inerentes — e que, com uma dedicação praticamente exclusiva, logo em seguida passam a trabalhar na construção de um roteiro, escolha de elenco, trilha sonora e etc., ainda que isto, por vezes, possa levar anos a fio, o filme de Caetano Veloso é fruto de um desejo até certo ponto reprimido que remonta sua infância, passa pela !142 sua juventude, suas escolhas ao adentrar o cenário artístico e permeia a produção de seus quase vinte anos de carreira à data. Confessadamente, a inspiração vem de uma canção — e todo o seu contexto —, inserida num filme, e também uma obra literária. Assim, “Cinema Falado” é fruto de uma filtragem a partir de uma mistura sinestésica de peças artísticas de diferentes setores. Nesse sentido, Caetano Veloso explica: Quando foi nessa altura, eu, depois de fazer vários projetos que não levei adiante, me surgiu a ideia de fazer. Eu vi, no filme do Rogério Sganzerla, a Aracy de Almeida cantando a música do Noel: Não tem Tradução, em que ela fala: “o cinema falado é o grande culpado...”. Quando eu ouvi essa frase, com as imagens, assim, eu logo pensei na ideia de um filme que fosse assim, em que as pessoas falassem, como no livro “Três Tristes Tigres”, de Cabrera Infante. Foi uma das primeiras ideias que me vieram. Eu pensei, podia ser um filme assim. (VELOSO, 2003) Antes de tratarmos propriamente do filme em questão, esta múltipla inspiração soa bastante reveladora acerca do comportamento de Caetano Veloso em relação às artes como um todo, e, particularmente, no que tange seu modo de lidar com a cultura — com receptor, intérprete e, a partir disso, autor. Em primeiro lugar, o filme de Sganzerla mencionado por Caetano sem seu comentário é o curta-metragem “Noel por Noel” (1981), de Rogério Sganzerla, cineasta que figura entre os grandes nomes do “Cinema Marginal” brasileiro, responsável também, dentro outras obras, por “O Bandido da Luz vermelha” (1968) um dos mais marcantes filmes brasileiros de todos os tempos, o qual veio a ser indicado pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. O samba Não Tem Tradução (1933), de Noel Rosa, e interpretado por Aracy de Almeida, é colocado pro Sganzerla justamente como trilha sonora do trecho final da cinebiografia, permeado por imagens de objetos pessoais, cartas e fotos do sambista carioca. Mas, a influência do samba em questão em relação ao “Cinema Falado” de Caetano extrapola o contexto específico do filme de Sganzerla e remonta a obra de Noel Rosa, e mais especificamente, o contexto de produção da canção em questão. Não Tem Tradução é um samba marcado por um teor praticamente de protesto em relação à absorção de elementos de culturas estrangeiras — mais especificamente, americanos — pela brasileira. Nesta esfera, o cinema americano !143 do fim dos anos 20 — e, em especial “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland, filme que marcou a introdução de falas em obras cinematográficas — é escolhido por Rosa como uma espécie de bode expiatório, que sintetiza esta relação intercultural tão mal vista por muitos na época. Fazendo jus à alcunha de “cronista da vila”, Noel Rosa anuncia na letra de seu samba ter encontrado “o grande culpado da transformação” de uma série de elementos atrelados a uma tradição genuinamente brasileira. A gíria que o nosso morro criou Bem cedo a cidade aceitou e usou Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote Na gafieira dançando o Fox-Trote [...] Amor lá no morro é amor pra chuchu A gíria do samba não são I love you E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny Só pode ser conversa de telefone... Conforme é claramente expresso nos versos da canção, todo um vocabulário, suas gírias e expressões específicas, desde uma simples saudação “alô boy” — num literal aportuguesamento da expressão Hello, até a expressão de amor “I love you” — passando pela predileção por um estilo de dança genuinamente americano como o “Fox-trote” — em síntese, Noel Rosa legitima uma superioridade do nacional em relação ao estrangeiro, dentre os vários argumentos — marcados pela fina ironia característica de Noel —, pelo fato de que todo um jeitinho brasileiro tão nosso e diferentemente de qualquer outro, literalmente, “não tem tradução”. Somando-se a esta dose de ufanismo protecionista via canção e cinema, vem a literatura: o romance “Três Tristes Tigres” (1964), do cubano Guillermo Cabrera Infante, ninguém menos que o homem que foi considerado o mais tenaz opositor de Fidel Castro. Escrita durante o exílio londrino de Infante, a obra é marcada pela experimentação estética. A começar pelo próprio título, que é composto por um trava-línguas famoso em espanhol, já nos é adiantado o tom da narrativa: as vidas até certo ponto entrelaçadas das diversas personagens ligadas ao famoso bairro de Havana chamado La Rampa. Um conjunto de arrojados jovens intelectuais que estabelecem uma convivência ao vagar entre as sortes e reveses da noite cubana pré-castrista, como assíduos frequentadores dos cabarés, e estabelecendo longos diálogos entre si. !144 Trata-se, indiscutivelmente, de um romance fragmentário e polifônico em que ganha destaque a oralidade, nos vários diálogos que tematizam assuntos como o passado, a vida, a música, a mulher e Cuba. Constituído por pequenas narrativas que se somam, o romance acaba também por se colocar como um mosaico da plural realidade cubana num contexto anterior a Fidel Castro, salpicada de elementos de outras culturas, portanto. Nélida Piñon, escritora e membra da Academia Brasileira de Letras, assina a orelha do livro de Infante, e comenta que a obra, representa para o autor “forçado a abandonar a ilha na década de 1960” um meio pelo qual ele “retorna a ela através da memória e da profunda melancolia”, e discorre: [...] Três Tristes Tigres, na linha de frente da modernidade criativa do nosso continente, é exemplo desta transfiguração estética. Sua estrutura, densamente fragmentada, propicia mudanças abruptas, metamorfoses, o jogo radical da palavra. A presença irradiadora do seu bisturi paródico, do humor feroz com que golpeia a condição humana. Nas suas páginas romanescas, Cabrera Infante multiplica e mitifica Havana, a fim de suas peças se encaixarem, formando um mosaico que, visto de longe, ou de perto, tem como sustentação antropológica a fascinante superfície daquela urbe. De uma cidade em que a fabulação do autor busca subsídios para fazer desembocar sua fascinante urdidura inventiva. A exuberância descritiva de Cabrera Infante é sutil e acumulativa. Não se pode perder uma única palavra de uma formulação que em sua radicalidade descarna o verbo para que seus personagens, arrogantes e desiludidos, sangrem a qualquer hora do dia. Graças a uma peculiar estratégia narrativa, rompe-se a insularidade caribenha. E logra o escritor situar Cuba no epicentro nervoso do mundo. Enquanto a imaginação insubordinada rastreia as vertentes culturas existentes e alia-se a elas. Esse autor destaca-se no panteão das Américas. É, sem dúvida, um narrador universal. Marcado por sua elaboração “densamente fragmentada”, o romance de Cabrera Infante se coloca como um fator que “multiplica e mitifica” a cidade de Havana — terra-natal de Infante —, por meio de uma infinidade de personagens, “arrogantes e desiludidos”, que convivem e se relacionam, deixando “sangrar”, ao mesmo tempo, peculiaridades humanas por excelência, e, caracteristicamente cubanas, de um contexto pré-castrista. Música popular brasileira, ufanismo, “cinema marginal”, literatura cubana, oposição a uma ditadura. Cultura em movimento. As influências marcam o tom de “Cinema Falado” e já adiantam bastante de seu conteúdo. Aliás, nesse sentido, a sinopse diz muito a este respeito: !145 O experimental se mescla ao documental. Textos para serem ditos: de prosa e de poesia, de filosofia, escritos pelo próprio cineasta ou por seus escritores prediletos. Pessoas de quem ele gosta, atores com quem convive. Exercícios de som e de fotografia, um pouco de dança e de teatro. Lugares onde mora, na realidade ou na lembrança. 54 Se há uma classificação totalmente pertinente que possa ser dada ao filme de Caetano, é justamente “experimental”. Amante de cinema, e dotado de uma personalidade reconhecidamente camaleônica, Caetano ousa trilhar a contramão do estilo hollywoodiano convencional e opta voltar às suas origens, seus primeiros contatos com a sétima arte, ainda em Santo Amaro, totalmente atreladas ao cinema europeu classificado como “de arte”. Assim, a ficção de “Cinema Falado” está mais relacionada a uma espécie de confissão artística, a qual, de fato, é marcada por uma perspectiva “documental”. No fim das contas, é o próprio Caetano — numa dimensão profundamente pessoal — que se revela por meio dos “textos, “pessoas”, “exercícios”, “dança”, “teatro, “lugares”, enfim, da obra fílmica constituída a partir da soma de todos estes elementos. Ramos (1997) comenta e analisa detidamente alguns dos principais aspectos do filme em questão: Realizado em ritmo de quem compõe uma canção, Cinema Falado traz para a tela um universo pessoal: seu “velho e vasto estranho reino”. Dentro desse universo, o filme caracteriza-se por ser uma obra de textos e de falas que se sobrepõem. Caetano diz não ter escrito um roteiro, mas sim textos para serem lidos. O filme foi concebido a partir de programas de entrevistas, “assistindo ao TV Mulher nas horas de insônia matinal” e com a idéia de que “assistir a gente falando interessa sempre”. No horizonte, encontra-se a nítida influência de Godard e a maneira através da qual este, segundo Caetano, “mescla leituras e declarações às suas quase-histórias”. É na proximidade com a linha de filmes em primeira pessoa, hoje uma tendência forte no cinema documental (e também ficcional), que Cinema Falado pode ser visto. Quando isolados entre si, trazem manifestações de sensibilidade e do gosto estético do diretor, que deixa de exprimir-se através da forma que mistura letra e música para utilizar-se de recursos audiovisuais. Os planos e a fala fluem como as longas canções dissertativas, que Caetano costuma colocar (em geral não mais que uma) em cada disco. Um cinema de textos, de citações, em que seus amigos Regina Casé, Antonio Cícero, Paulo César Souza, Hamilton Vaz Pereira, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Júlio Bressane, Rogério Duarte, Felipe Murray, seu filho Moreno, sua então namorada Paula Lavigne, sua ex-mulher Dedé, Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/filme_interna.php?id_filme=4]. Acesso em 22 de fevereiro de 2014. 54 !146 sua mãe dona Canô e seu irmão Rodrigo Veloso recitam, cantam ou devaneiam. Thomas Mann, Heidegger, Guimarães Rosa, Godard, Fellini, Freud, Fidel Castro, Velásquez escorrem da boca dos amigos e familiares em primeiro plano. (RAMOS, 1997, p.560) De fato, a organização do filme é marcada pela poeticidade do ato de composição de uma canção — letra e música. Praticamente todas as cenas que constituem o filme parecem ter sido concebidas a partir da música que as envolve. Há uma preocupação com a conexão entre o assunto da fala e o conteúdo da canção — seja letra, melodia, estilo ou época. No entanto, esta pretensa conexão não se dá exatamente pela similaridade, mas, na grande maioria das vezes, pelo contraste, a oposição, que acaba por transformar a narratividade das cenas em paradoxos. Isso, de certa forma, não permite uma concentração de quem assiste apenas na imagem, tendo em vista que acaba a produção de um certo estranhamento, mas uma apreciação múltipla — que, como todo paradoxo, demanda análise e interpretação para ser decifrado —, que culmina numa experiência sinestésica, planejada pelo diretor. A este propósito, é o próprio Caetano quem explica: Imagine-se o filme de um estreante anônimo que contivesse uma longa discussão crítica sobre a fala no cinema (e sobre o cinema no Brasil) encenada como um diálogo amoroso entre uma mulher e um rapaz, sob música de Walter Smetak; um texto de Thomas Mann sobre casamento e homossexualidade dito em alemão por um jovem caboclo numa praia do Rio, sob música de Schoenberg […]; um diálogo de Sansão e Dalila, de Cecil. B. DeMille, dito, em tradução brasileira, pelo casal que fala de cinema […] enquanto se ouve a versão brasileira da “Canção de Dalila”, cantada por Emilinha Borba. (VELOSO, 2005: p. 206-207) A partir destes paradoxos em termos de imagem, texto e trilha sonora, desvela-se um comentário crítico acerca de um povo e de uma cultura em formação — o brasileiro —, e marcado pela pluralidade. As palavras de Mann — escritor alemão — recitadas ao som da música erudita do compositor austríaco Schoenberg, mas não por um europeu, mas por um caboclo, típico brasileiro, que estabelece a oposição em relação a toda esta atmosfera inerente a todo o desenvolvimento do primeiro mundo, berço da civilização e do conhecimento. Da mesma forma, mas em oposição, também é recitado um diálogo do filme épico “Sansão e Dalila” (1949), por um casal de brasileiros que discute assuntos !147 relativos à sétima arte, tendo como trilha sonora a versão em português da canção principal do filme, cantada por aquela que foi considerada a “rainha do rádio” e que ganhara popularidade justamente ao interpretar marchinhas de carnaval. Estes dois casos e tantos mais contidos no filme são expressões artísticas — literatura, cinema, música — que dão conta da miscigenação do povo brasileiro e sua respectiva cultura. Não bastasse a mescla de setores da arte e comunicação até aqui citados, a inspiração de Caetano veio por meio de um “programa de entrevistas”, a televisão também permeia a concepção do filme. De fato, “Cinema Falado” tem muito em comum com muitas das “longas canções dissertativas” compostas por Caetano Veloso — as quais, ao mesmo tempo, dão prova de sua erudição e de seu caráter crítico, político, em geral, mas também, fazem com que Caetano seja alvo de críticas ou até mesmo se torne base de piadas que o satirizam, tomando-o como um pretenso pseudo-intelectual verborrágico55 em qualquer manifestação. Independentemente disso, ao reunir amigos e familiares que leem ou recitam textos de alguns de seus autores prediletos, ao som de canções também de seu gosto, e construindo os paradoxos mencionados, Caetano Veloso revela muito de si em “Cinema Falado”, e veicula por meio deste um comentário crítico acerca de arte e cultura, em termos de oposição entre primeiro e terceiro mundos, produtor e receptor, dominante e dominado e traz à tona novamente a discussão do contexto da canção de Noel Rosa, mas num sentido de afirmação e não de crítica em relação não só ao contato, mas ao apreço e à absorção de elementos de outras culturas. Obviamente, sua intenção não fora mercadológica ao dirigir um filme, no sentido de esperar salas de cinema lotadas, filme em cartaz na maioria dos grandes cinemas do país, sucesso de bilheterias e um grande lucro para seu idealizador. Mas, apenas um exercício, literalmente aventurar-se, partindo de sua paixão pelo cinema, criando uma obra fílmica que expressasse seu ponto de vista, e levasse A esse respeito, Caetano Veloso, ironicamente, apenas rebateu afirmando: “Não é tão mal assim ser um pseudo-intelectual de miolo mole. Talvez não seja propriamente pior do que ser um verdadeiro intelectual de miolo duro.” Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=CBjfFRIieSs — 0;09 — 0:18]. Acesso em 11 de abril de 2015, às 23:31h. 55 !148 (a)o público — grande ou pequeno — (a) uma reflexão, seja pela identificação, seja pelo estranhamento — pelo agrado ou pela provocação. E, para a compreensão do que é discutido no filme, exige-se também um público com uma certa bagagem de cinema, de música, de literatura, enfim, de uma opinião formada acerca de sua posição neste universo pós-moderno e multicultural. Em certa medida, Caetano, em “Cinema Falado” retoma a prática antropofágica empregada por Bressane em “Tabu” e, ao colocar um texto de um escritor alemão lido por um “caboclo” de um sertão brasileiro, tendo como trilhasonora a adaptação de uma canção americana, interpretada por Emilinha Borba, Caetano faz o mesmo que Bressane, ao colocar a cena das nativas dançando ao som do carnaval carioca, expressando o fruto do devorar e do digerir o estrangeiro, aclimatando-o à esfera nacional. No entanto, apesar de já ter se revelado tanto na posição de ator e diretor no âmbito do cinema, em 2009 o cineasta Fernando Grostein Andrade lançou “Coração Vagabundo”, longa-metragem sintetizado na frase contida na capa do mesmo: “Uma viagem com Caetano Veloso”. Andrade acompanhara Caetano Veloso por dois anos durante a turnê do álbum “A Foreign Sound” [2004] pelo Brasil, Estados Unidos e Japão de uma maneira tão próxima a ponto de reunir material suficiente para produzir este documentário tão revelador acerca do artista baiano, principalmente no que tange sua esfera pessoal. Acerca do filme, a sinopse, apesar de sintética como de praxe, é bastante expressiva no que tange o conteúdo do mesmo: Um Caetano Veloso na intimidade, despido em tudo (até literalmente), contando piadas, falando sobre suas alegrias, angústias e tristezas. É assim que o cantor e compositor baiano poderá ser visto no documentário Coração Vagabundo, de Fernando Grostein Andrade. O longa, além de boa música traz momentos felizes do artista Caetano, intercalados com reflexões tristes do homem Caetano. Todo o material foi captado pelo cineasta Fernando Grostein Andrade em São Paulo, Nova York, Tóquio e Kyoto durante a turnê´ A Foreing Sound. O filme tem participações especiais dos cineastas Pedro Almodóvar e Michelangelo Antonioni, da modelo Gisele Bündchen, e do músico David Byrne. 56 Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/filme_interna.php?id_filme=3]. Acesso em 13 de abril de 2015, às 22:20h. 56 !149 No que diz respeito ao cinema, “Coração Vagabundo” contém a participação de dois grandes nomes dessa área: o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, e o italiano Michelangelo Antonioni. Num dado momento do filme, Caetano fala com Andrade, num tom quase que de brincadeira, pelo fato de que ele terá de ficar em silêncio a fim de descansar a voz, após ter feito um show num horário pouco convencional, no meio da tarde. Em meio a este pedido, Caetano comenta: [...] Tenho que ficar calado agora. Você vai fazer agora um filme de Bergman: “O Silêncio”. E outro de Antonioni comigo. Aquele cara calado, câmera parada. Uma parede e uma cara de uma pessoa. Antonioni. Eu acho que o Antonioni é divino. Ele tem... Pelo menos dois filmes são obras-primas: “L’ avventura” e o “Passageiro Profissão Repórter”. No “Passageiro Profissão Repórter” tem aquele plano sequência-final que é... ‘Cê já viu esse filme? Porque tem um plano-sequência que a câmera começa na cara do Jack Nicholson, ele deitado na cama assim, dormindo, e a câmera então vai andando pelo quarto, sai pela janela, vira assim, e sai pela janela mesmo. Caetano compara sua situação de silêncio a filmes marcados por esta temática — no que diz respeito à sua concepção e elaboração. A começar pelo filme sueco do diretor Ingmar Bergman “O Silêncio” (1963), que conta a história de duas irmãs hospedadas num hotel num país europeu não especificado, em meio a um contexto de guerra. Ester é o nome da irmã mais velha, marcada por um caráter culto, que é tradutora de livros e sofre de uma doença terminal. irmã mais jovem, a bela Anna, é marcada por um aspecto carnal e lascivo até mesmo em decorrência de sua juventude e beleza. Talvez, por isso mesmo, Anna negligencia completamente seu filho, Johan, um garoto de aproximadamente doze anos de idade, o qual convive predominantemente com o silêncio ao passar os dias vagando sozinho pelo hotel praticamente vazio. Bergman, a partir das duas irmãs, constrói uma clara oposição entre espírito (Ester) e corpo (Anna). Ao falar de Michelangelo Antonioni, a quem Caetano caracteriza como “divino”, são citados dois de seus filmes, considerados pelo cancionista baiano “obras-primas”. O primeiro deles é “L’avventura” — em português, “A Aventura” — (1960), drama que inicia a “trilogia da incomunicabilidade”, com os filmes “A Noite” (1961) e “O Eclipse” (1962). Já o segundo, sobre o qual Caetano se detêm mais, é “O Passageiro — Profissão Repórter” (1975), que tem como protagonista David Locke — interpretado por Jack Nicholson —, um jornalista que, enfadado em !150 relação à sua própria vida, ao cobrir uma guerrilha na África resolve assumir a identidade de um colega seu, logo após a morte deste. Este fato fará com que David se envolva numa perigosa trama. Caetano comenta detalhadamente uma das cenas que melhor expressam este vazio existencial do personagem David Locke, e, curiosamente, esta se coloca como uma síntese do cinema de Antonioni, e também ecoa numa canção escrita por Caetano justamente em homenagem ao cineasta italiano. A canção é intitulada Michelangelo Antonioni (2001)57 e está contida no álbum “Noites do Norte” (2001). Visione del solenzio Angolo vuoto Pagina senza parole Una lettera scritta sopra un viso Di pietra e vapore Amore Inutile finestra A canção de Caetano Veloso retrata a atmosfera característica da obra do cineasta italiano em questão, trazendo à tona, inclusive, alguns dos principais elementos que a compõem. Ganha enfoque, na letra, uma ideia de ausência, construída a partir de imagens como o “silêncio”, o “vazio”, uma “página” em branco, “sem palavras”, e até mesmo “um rosto” que não é constituído de carne, osso, pele e os demais elementos comuns de sua configuração (olhos, boca, nariz, orelhas...), mas, apenas “pedra” e “vapor”. É como se as imagens refletissem, mimetizassem o vazio existencial tão ressaltado por Antonioni em seus filmes, como fruto de sua leitura das relações interpessoais. Aliás, fazendo jus a estas, somado ao caráter abstrato e sinestésico das imagens, o “amor” — sentimento o qual por excelência constituiria a interrelação entre as pessoas — é definido poeticamente como uma “inútil janela”, a qual provavelmente é assim caracterizada por propiciar uma visão do nada, algo sem sentido e que não causaria qualquer reação a quem porventura olhasse através dela. Em certa medida, podemos relacionar estas imagens Pa cena de “O Passageiro — Profissão Repórter” descrita por Caetano Veloso, desde o que tange o Visão do silêncio / Canto vazio / Página sem palavras / Uma carta escrita acima de um rosto / De pedra e vapor / Amor / Inútil janela (tradução nossa). 57 !151 personagem David Locke no geral, até mais especificamente o “plano sequência final” revelado pela câmera que encerra o filme. Em “Coração Vagabundo”, Antonioni aparece junto de sua esposa, frente ao computador, emocionado, ouvindo a canção que Caetano lhe fizera. O outro cineasta que participa de “Coração Vagabundo” é o espanhol Pedro Almodóvar. Este, mais atrelado ao círculo de convivência dos amigos de Caetano, em seu depoimento, define a proximidade que tem com artista baiano afirmando: “Yo me siento mucho como um Hermano más de Caetano, como si fuera mi hermano mayor”58. Além disso, Almodóvar comenta a participação de Caetano em seu filme “Fale com Ela” (2002). Neste, Caetano, numa cena, interpreta ao vivo a canção Cucurrucucu Paloma (1954), de Tomás Mendes. A canção, peça bastante famosa do cancioneiro em língua espanhola, tem uma letra que se coloca como expressão do sofrimento de um homem separado de sua mulher amada pela morte, conforme consta em versos como: Dicen que por las noches No más se le iba en puro llorar Dicen que no comia No mas se le iba en puro tomar Juran que el mismo cielo Se extremecia al oir su llanto Como sufria por ella Que hasta en su muerte la fue llamando Esta atmosfera dramática, marcada por um tom de desconsolo é bastante propícia considerando o enredo do filme. O personagem principal é Benigno Martín, um enfermeiro que mora num apartamento situado exatamente na frente de uma academia de balé comandada por Katerina Bilova. Martín acompanha atentamente, de sua janela, os ensaios tendo sua atenção voltada especialmente para uma das bailarinas: Alicia Roncero. Esta personagem, após sofrer um acidente de carro, acaba internada no mesmo hospital em que Martín trabalha. Estando em coma, Alicia é cuidada por Martín com uma atenção especial e que vai muito além do convencional, em se tratando de um enfermeiro. Eu me sinto muito como mais um irmão de Caetano, como se ele fosse meu irmão mais velho. (32:01 — 32:05) 58 !152 Acerca da escolha, tanto da canção, quanto de Caetano para interpretá-la, Almodóvar comenta: Los momentos musicales, para yo estar seguro de que el público entiende que este hombre llora, tenía que poner algo que a mí me hubiera provocado a las lágrimas. Y el lo cual confiara yo también en que podia provocarle a la APREZADOR esa emoción, una emoción absoluta, uma emoción NÍTIDA. Pero, como yo recordaba, que mientras escribía yo ya había llorado mucho mientras escribía Habla com Ella oyendo Cucurrucucu Paloma, estava seguro que poniendo a Caetano en vivo. Claro, a Caetano cantándolo, porque necesitaba que fuera uma sensación muy directa, y uma sensación de corazón a corazón, de piel a piel, de ser humano a ser humano, de que era algo vivo. Y además también esa espécie de embellezo y de fascinación com que todas las personas que están a la fiesta deliran. Eso, se tu haces un play-back o pones un disco, la gente no mira dese modo. Entonces, puse a Caetano como, como te decía yo, porque era lo que más seguridad me dava en que iba a provocar uma emoción tan grande que todos los personajes romperian en lágrimas. O cineasta espanhol praticamente explicita a maneira como trabalha com determinada cena, tendo como objetivo causar uma emoção específica em quem assiste ao filme. Para que fique claramente expressa a tristeza do personagem que chora, Almodóvar afirma que escolhe algo que lhe tenha comovido primeiro, que lhe tenha causado pranto. No caso, com a clara intenção de expressar algo “de coração a coração”, não poderia ser um “play-back” — talvez pela atmosfera artificial que se impusesse —, mas a interpretação ao vivo é que conseguiria transmitir, expressar este sentimento de uma forma mais eloquente — tendo em vista que na cena específica, o personagem não diz uma só palavra, apenas expressões faciais. Caetano, para Almodóvar, era quem mais lhe dava certeza no que diz respeito a provocar uma emoção tão forte a ponto de fazer todos romperem em pranto, desde os atores em cena, até possivelmente os espectadores que assistissem ao filme. Em se tratando de uma canção em espanhol, que já foi gravada inúmeras vezes, pelos mais variados interpretes, o fato de Caetano Veloso ser escolhido pelo diretor revela o alcance de sua interpretação, independentemente do idioma. Desse modo, podemos admitir que a relação de Caetano com o cinema — seja o nacional, ou internacional — se dá pela mescla de autor, intérprete, ator, diretor, enfim, fazendo jus à personalidade deste artista que tem se dedicado a “criar confusões de prosódia / e uma profusão de paródias” literalmente como “um camaleão” dentro do cenário artístico brasileiro. !153 4. UM CANTO POR TODOS OS CANTOS: A VOZ DO CAMALEÃO “Quando você me ouvir cantar Venha não creia, eu não corro perigo Digo, não digo, não ligo Deixo no ar Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar” (Caetano Veloso, Como Dois e Dois) O apreço de Caetano Veloso pelo ato de cantar, entoar uma canção, já foi por ele reiteradamente declarado ao longo dos anos literalmente em prosa e verso e vem sendo demonstrado pelo próprio exercício de sua função. Versos como “Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar”59, “Cantando eu mando a tristeza embora”60, “Eu quis cantar / Minha canção iluminada de sol”, “Que tenho a dar? / Só Tenho a voz / Cantar, cantar, cantar”61, “Me deixa cantar, me deixa cantar, me deixa cantar” 62, “Por isso é que eu canto / Não posso parar”63, para muito além da ficcionalidade inerente à letra da canção, são declarações acerca deste deleite vertido em hábito. E talvez justamente o gosto por cantar ajude a explicar por que Caetano Veloso manifeste por meio de canções seu caráter plural, explorando ao máximo o leque de opções desta forma de composição em termos de expressividade. Nesse sentido, é Wisnik quem afirma: As canções de Caetano falam de praticamente tudo: é difícil pensar num tema que elas não tenham aflorado de alguma forma; é difícil lembrar um gênero ou setor da música popular que elas não tenham revisitado com suas interpretações. A aplicação de Caetano Veloso ao campo da canção, com suas intervenções deslocantes, pontes inesperadas, e sua homenagem permanente à força radiosa do que é belo e forte, faz da sua obra um comentário muito amplo do mundo através das inumeráveis refrações da palavra cantada. (WISNIK, 1994, p.8) 59 VELOSO, Caetano. Como Dois e Dois (1971) 60 VELOSO, Caetano. Desde que o Samba é Samba (1993) 61 VELOSO, Caetano Veloso. Sou Seu Sabiá (2000) 62 VELOSO, Caetano. Não Enche (1997) 63 VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978) !154 Ao tratarmos das “canções de Caetano”, esta designação extrapola os limites da obra autoral do cancionista baiano, e engloba também todas as canções de outros autores por ele cantadas ao longo destas quase cinco décadas de carreira. Assim, a partir do comentário de Wisnik desvela-se uma das faces mais importantes de toda a atuação artística de Caetano Veloso: o caráter múltiplo, vário de “suas interpretações”. Mais do que interpretar suas próprias composições — o que por si só já seria louvável e de uma expressividade ímpar — Caetano também já se consolidou como um dos grandes intérpretes não só da canção popular brasileira, mas também de cancioneiros internacionais dos mais diferentes tempos, estilos e espaços. De fato, ao voltarmos nosso olhar não só para a obra, mas para a atuação de Caetano no campo da canção, realmente encontramos uma grande dificuldade no que diz respeito a “lembrar um gênero ou setor da música popular” que não tenha sido visitado por ele na posição de intérprete. Trata-se de um movimento contínuo que põe em xeque os limites entre o tradicional e o popular, o velho e o novo, o aclamado e o brega. E é justamente ao construir este “comentário muito amplo do mundo” por meio de suas interpretações que a face de agitador cultural de Caetano Veloso vem à tona com grande força e de maneira exemplar. Quando tratamos de interpretação, no âmbito musical, referimo-nos à transformação de signos gráficos de um texto ou partitura numa modalidade específica de som: música. Assim, para poder interpretar, o músico-intérprete precisa ter toda uma compreensão prévia da obra que vai executar, seja num instrumento musical, seja por meio de sua própria voz, cantando. Schönberg ressalta a importância deste ato: A interpretação é necessária para preencher a lacuna entre a idéia do autor e o ouvido contemporâneo, [e depende] da habilidade de assimilação do ouvinte em seu tempo (SCHÖNBERG, 1984, p.328). Segundo Schönberg, a interpretação é justamente o elo estabelecido entre dois extremos: as intenções de quem produz uma determinada obra e a possibilidade de apreciação do público. Logicamente que esta vai ser condicionada pelas múltiplas — todavia não ilimitadas — nuances que se desvelam a partir de uma obra de arte, em termos de percepção e leitura. !155 Chartier (2001) pontua que o fator que estabelece os limites entre a liberdade de criação por parte do autor e as possibilidades para um leitor que estabelece uma relação com o texto está ligado a contingências sócio históricas, marcadamente variáveis e diversas entre si. Justamente por isso, este ato prescinde a transcendência de limites e o estabelecimento de um processo, uma linha tênue ou corda bamba, entre a restrição e a transgressão. Nesse sentido, Caetano Veloso tem empreendido um literal malabarismo, que vai ao encontro das palavras de Tatit (1996) acerca do “cancionista”, especificamente no que tange sua “gestualidade oral”, tão relevante ao tratarmos do intérprete: O cancionista mais parece um malabarista. [...] é um gesticulador sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes metaforizada com a figura do malandro, do apaixonado, do gozador, do oportunista, do lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte. (TATIT, 1996, p. 9) Ao empreendermos um olhar mais atento a todo o repertório interpretado por Caetano Veloso durante sua carreira, acabamos por nos deparar com um exemplo bastante singular da “perícia intuitiva” citada por Tatit, e com um processo praticamente contínuo de metaforização de uma figura que, como um camaleão, transita com propriedade por entre os mais variados cenários da canção popular, tendo já se estabelecido e ganhado o devido crédito por parte de seus audientes. Em Caetano Veloso, a interpretação até passa pela mera reprodução — nunca sem ser fruto de toda uma leitura, dotado de uma intencionalidade específica —, mas, grande parte das vezes, vai muito além. Assim, a tentativa de delimitação da face deste camaleão vai ao encontro das palavras de Hegel, que apregoa o fato de que um intérprete dotado de “virtuosismo” e “genialidade”: [...] em vez de se limitar à simples execução, pode atingir um ponto em que [...] começa a compor, a preencher lacunas, a aprofundar o que lhe parece demasiado superficial [...], enfim, a dar a impressão de um esforço independente e de um trabalho criador (HEGEL, 1993, p.527). Conforme Hegel, a interpretação em Caetano Veloso pode ser sintetizada como um “trabalho criador”, ou talvez “[re]criador”, à medida que passa por todo um processo de adaptação e transformação da obra tomada por base, de modo a !156 culminar numa apropriação tão singular que chega a quase por em xeque a estabilidade da canção e a própria noção de autoria. Nesse sentido, Almeida é quem afirma: A canção está sujeita a transmutar-se constantemente através de intérpretes e arranjadores. Nestes, leitura e autoria se bifurcam> intérpretes e arranjadores são leitores da canção, mas leitores produtivos que se tornam renovados pontos de origem e referência. [...] Caetano Veloso, como ninguém, mostra a infinita instabilidade estrutural da canção [...] Caetano as recria com tal originalidade, deixando-lhes marcas tão pessoais, que acaba por desestabilizar a própria noção de autoria. (ALMEIDA, 2008, p. 320) As palavras de Almeida vão ao encontro das de Hegel, e reforçam o talento de Caetano Veloso no que diz respeito a esta transmutação “constante” da canção. No âmbito da interpretação vocal, Luiz Tatit (1996) ressalta a importância da dicção do intérprete. Esta, por sua vez, é definida pelo autor como a “maneira de dizer o que diz, sua maneira de cantar, de musicar, de gravar” (p.11), ou seja, esta maneira tão singular de reprodução que beira a apropriação, tendo em vista o caráter de entrega e de auto revelação contidos neste ato. E é justamente a partir da dicção, numa análise bastante criteriosa, que Tatit elucida com maior propriedade este aspecto vário de Caetano: Caetano Veloso compreendeu todas as dicções da canção popular brasileira. [...] Caetano, ao compor e interpretar, prefere viajar pelas dicções dos outros cancionistas, encarnando seus dons. Gosta de ser Jorge Ben Jor, Roberto Carlos, Chico Buarque, Carmem Miranda, Vicente Celestino, Peninha, João Gilberto, gosta de ser um pouco de cada um. Quando volta a ser Caetano, sua obra está miscigenada e fortalecida por muitas dicções. Isso sem contar a constante absorção que faz da música popular internacional, dos Beatles a Michael Jackson, de Mick Jagger a Prince, passando por Bob Dylan, Bola de Nieve, Bob Marley, Steve Wonder. (TATIT, 1996, p. 263) Tatit literalmente ressalta a pluralidade de vozes contida na dicção, e, portanto, na figura de Caetano Veloso, a ponto de se permitir cometer um excesso. Mas, qualquer um que se proponha a uma análise mais detida das quase cinco décadas de carreira deste cancionista baiano perceberá que não é exagero ressaltar a mais que evidente abrangência de “todas as dicções da canção popular brasileira”. Além de gostar de “ser”, dando vida ao assumir uma dicção similar, Caetano Veloso como intérprete visitou os repertórios e deu voz à canções de todas estas figuras citadas por Tatit, e também de inúmeras outras. !157 Grosso modo, os intérpretes citados por Tatit podem ser divididos em três grandes categorias: os nacionais, os de língua espanhola e os de língua inglesa. As referências de Tatit se iniciam por figuras nacionais, compositores e intérpretes contemporâneos de Caetano ligados ao contexto da canção popular brasileira. A primeira canção de Jorge Ben Jor que consta na discografia de Caetano Veloso é Olha o Menino (1967), contida no álbum “Bicho” (1977). Depois, Quem Cochicha o Rabo Espicha (1972), no álbum “Muito (Dentro da Estrela Azulada)” (1978), Jorge de Capadócia, em “Qualquer Coisa” (1975) e Charles Anjo 45 (1969), em “Caetano Canta” (1994). Em “Prenda Minha — Ao Vivo” (1998), Caetano abre o show com esta canção, declarando, durante a introdução da mesma, num tom laudativo: “Domínio Público, Jorge Ben, Fernanda Abreu, Racionais MC’s, Marinheiro Só, Miles Davis”, nomes de outros artistas que interpretaram a canção, desde seu compositor, passando por grupos de rap, um dos grandes nomes do jazz norte-americano e, chegando ao “domínio público“, não em seu sentido judicial, mas no popular, devido a uma desestabilização da noção de autoria dada a grande popularidade da peça em questão. Caetano participara, num dueto, da gravação de uma canção de bastante sucesso de Jorge Ben, Ivy Brussel, em 1980. O lançamento desta canção e desta parceria se deu em 1980, no programa televisivo “Fantástico”, da Rede Globo. Literalmente num estúdio de gravação, em meio a uma plateia composta apenas por mulheres, espalhadas pelo estúdio, Jorge Ben, Caetano Veloso e a banda que os acompanhava, todos sem exceções vestidos com roupa branca. A TV Globo repetiu este encontro memorável anos depois no programa “Som Brasil: Jorge Ben”, numa clara expressão do sentido dos versos de Caetano: “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”. Apesar de ambos já com seus cabelos brancos e com a presença de outros elementos que evidenciam a inexorável ação do tempo, as vozes, os timbres e os sorrisos permanecem praticamente intocáveis — inclusive, por cantarem exatamente no mesmo tom —, assim como a atitude e o !158 posicionamento como artistas com suas carreiras completamente solidificadas e resistindo a todas as possíveis intempéries. Com Roberto Carlos, Caetano mantém uma relação de amizade desde os anos 60, época em que ambos estavam inseridos em correntes distintas em meio à cultura musical nacional: Caetano no Tropicalismo, e Roberto Carlos como um dos ícones da Jovem-Guarda. Caetano gravara um dos hits mais famosos de Roberto Carlos do contexto da Jovem-Guarda para uma série de discos que comemorava os trinta anos do movimento, O Calhambeque (1964) — versão de Erasmo Carlos da canção Road Hog, de John Loudermilk e Gwen Loudermilk —, em 1995. Também gravara Fera Ferida (1982), no disco “Caetano” (1987) e Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim (1967) ao vivo no disco “Um Barzinho, Um Violão 2”, em 2009. Mas, a amizade entre os dois rendeu duas canções em especial: Debaixo dos Caracóis do Seus Cabelos (1971) e Força Estranha (1978). A primeira delas, Roberto Carlos escrevera em homenagem a Caetano, durante os anos do exílio deste. Na letra da canção, o autor vislumbra o cenário do retorno de seu amigo ao Brasil, em especial, ao litoral de sua tão amada terra-natal, a Bahia: Um dia a areia branca Seus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos A água azul do mar Janelas e portas vão se abrir Pra ver você chegar E ao se sentir em casa Sorrindo vai chorar Conforme se pode depreender da letra, a cena narrada, de um retorno, pode ser lida como uma alusão à volta de Caetano, e as referências a este se dão pela ambientação, a situação e até mesmo por traços da aparência: os “caracóis” dos “cabelos”, numa referência aos cachos característicos da imagem de Caetano nesta época. A segunda, por sua vez, Caetano escrevera em homenagem a Roberto Carlos. A letra de Força Estranha, à moda dos sonetos de Camões acerca do amor, se propõe a explicar o que é praticamente inexplicável objetivamente. No caso, tratase da motivação ou razão que “leva [alguém] a cantar” — caracterizada justamente pela expressão que serve de título à canção. !159 Em 2008, Caetano e Roberto Carlos fizeram um show em homenagem a Tom Jobim, que fora registrado em CD e DVD: “Roberto Carlos e Caetano Veloso e a música de Tom Jobim”. No disco, das dezesseis faixas, Caetano e Roberto interpretam cinco canções solo, cada um, e seis duetos. Em relação a esta divisão de repertório, Caetano fica com canções marcadas por um tom dramático mais acentuado, as quais não são exatamente as mais conhecidas ou as primeiras mencionadas quando pensamos no repertório de Tom Jobim. São elas: Por Toda Minha Vida (1959) e O Que Tinha De Ser (1959). Além destas, Caetano também canta Meditação (1960), Ela é Carioca (1964) e Inútil Paisagem (1963) — canção também marcada por uma atmosfera dramática bastante acentuada —, a qual, em especial servira de inspiração para Caetano na composição de uma canção de sua autoria intitulada Paisagem Útil (1967), contida no disco “Caetano Veloso” (1967). Já Roberto Carlos se encarrega das canções mais populares do “maestro soberano”, tais como Eu Sei Que Vou Te Amar (1959), Lígia (1972), Corcovado (1960) e Samba do Avião (1964). Em suma, trata-se de dois dos maiores intérpretes da música popular brasileira reverenciando um dos principais compositores desta. Já em relação a Chico Buarque, Caetano Veloso, apesar de contemporâneo e colega de profissão, mantém uma posição de reverência — talvez pelo fato de Chico Buarque ser, além de cancionista, escritor, ficcionista. Na verdade, esta pretensa rivalidade entre os dois surgira na época dos grandes festivais de música realizados no fim dos anos 60, e passou também pela participação dos dois em programas de TV como “Esta Noite Se Improvisa”. Para muito além de um suposto antagonismo ou concorrência entre estas duas figuras tão relevantes do âmbito da canção popular brasileira, o que de fato permaneceu e se consolidou através dos anos foi uma grande amizade. Caetano gravou algumas das canções de autoria de Buarque, compôs em parceria com ele, e ambos já gravaram um disco juntos, registro de um show de 1972 realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Especificamente neste álbum: “Chico e Caetano — Juntos e Ao Vivo” — primeiro encontro “oficial” de Chico e Caetano registrado em disco —, Caetano dá voz a algumas canções de Chico Buarque. São elas: Partido Alto (1972), Morena dos Olhos d’Água (1966) e A Rita (1965). !160 A versão de Caetano Veloso de Partido Alto (1972) é totalmente diferente da original, de Chico Buarque. Para começar, esta canção, na voz de seu compositor, é um samba, e com Caetano o ritmo é marcado por um andamento bastante desacelerado, fazendo com que a canção perca a característica de samba, e, com a ênfase na marcação do baixo, destaque o sentido de descrença ou desesperança. Quando Caetano inicia seu canto, é possível notar um tom ou modulação de sua voz — uma velocidade inferior à convencional, a ênfase nas vogais das palavras de modo a prolongá-las —, as quais tornam sua emissão similar à de alguém que está embriagado. Esta característica é bastante propícia para esta canção, em termos de interpretação, tendo em vista que a figura do “bêbado”, durante os anos da ditadura militar, era utilizada como designação para pessoas com um comportamento inapropriado ou inconveniente — na maioria das vezes, artistas, poetas e músicos que ousavam vociferar contra os desmandos da sobriedade às avessas instaurada do governo militar. E, nesse sentido, a canção de Chico cai como uma luva: o tom de alguém angustiado a ponto de estar descrente, possivelmente afogando suas mágoas na bebida, e com isso, passando a falar o que provavelmente não devia ou poderia enquanto sóbrio. O refrão motivador acerca do fato de que “Deus dará” é literalmente colocado em xeque. Afinal de contas, as expectativas dos otimistas ou dos que ainda têm fé se ligam a uma ação divina no sentido de resolução de seus problemas. No entanto, a voz que entoa a canção, imersa num pessimismo ímpar, se propõe a pensar não nesta sorte, mas no revés: “E esse Deus não dar?” A partir desta conjuntura, o desabafo em questão se converte numa interpelação que beira o conflito, não chegando a este apenas pelo fato de se tratar de um monólogo. Neste, “Deus” é caracterizado como “um cara gozador”, e a “Jesus Cristo” é reservada uma advertência em tom de ameaça: “inda me paga / um dia ainda me explica” no que diz respeito à existência da voz poética. Esta, por sua vez, se caracteriza, por um lado, como “cabreiro” e “batuqueiro”, nascido “na barriga da miséria”, a saber, Rio de Janeiro, e como “um cara chato, desbocado e feio / pele e osso simplesmente, quase sem recheio”, negativamente. Mas, apesar de todos estes senões, também, por outro lado, não lhe falta força e ousadia, e ao ser desafiado ou ter sua mãe ofendida, ao ser colocada “no meio” de qualquer !161 discussão ou provocação, revela-se perigoso: “dou pernada a três por quatro / e nem me despenteio”, conforme a confissão contida nos versos que seguem: Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia Deus me deu muitas saudades e muita preguiça Deus me deu pernas compridas e muita malícia Pra correr atrás de bola e fugir da polícia Um dia ainda sou notícia Ou seja, se Deus lhe deu aspectos positivos, como “mão de veludo” e “saudades” — atreladas a um contexto romântico — também lhe deu aspectos que vão na contramão destes, atrelados a um caráter de malandragem, como: “malícia”, aspecto da personalidade cuja aplicação é muito vária, o qual no entanto está diretamente ligado a futebol e criminalidade. Aliás, é destes dois contextos díspares que surge a possibilidade de se tornar “notícia” — seja como grande jogador ou grande criminoso. A interpretação de Caetano faz com que ele, intérprete, se transforme na voz poética, assuma suas características e vocifere seu desabafo dentro do arranjo da canção. Ocorrem também duetos dos dois cancionistas, tanto em canções de Caetano — Você Não Entende Nada (1972) —, quanto de Chico — Cotidiano (1971) e Bárbara (1972). As canções Você Não Entende Nada e Cotidiano são cantadas em sequência, e a transição entre as canções ocorre sem qualquer interrupção, mas, numa junção do verso final da canção de Caetano com o trecho do verso que abre a canção de Chico, de modo a construir um novo verso: “E quero que você venha comigo todo dia”. Isto ficou tão marcado para os fãs de Caetano que no CD/DVD “Caetano Veloso: Multishow Ao Vivo: Abraçaço” (2014), no qual Caetano interpreta a mesma canção, é a plateia quem completa este verso criado junto a Chico. Caetano entoa o fechamento de sua canção: “E quero que você venha comigo”, ao que, inicialmente apenas a plateia, e depois também Caetano completa, num coro: “Todo dia”. Além disso, os dois já chegaram a apresentar juntos um programa de TV, na Rede Globo, chamado “Chico e Caetano”, no qual receberam muitas figuras do cenário musical nacional e até internacional, com as quais fizeram duetos. Dentre !162 estas, podemos destacar Tom Jobim (com quem Chico e Caetano cantaram Águas de Março — ao que Tom, ao Piano, sozinho, entoara Coração Vagabundo), Paulinho da Viola, RPM, Ney Matogrosso e até Mercedes Sosa. Após estes, Tatit passa a citar figuras de outros estilos e épocas, os quais Caetano revisitou com suas interpretações. A primeira delas é Carmem Miranda, a intérprete que ficou conhecida pela alcunha de “Pequena Notável”, e que teve alguns de seus maiores sucessos reinterpretados por Caetano. Aliás, acerca desta figura notável — que já havia sido mencionada por Caetano na letra de Tropicália — é o próprio Caetano quem comenta: [...] Carmen Miranda surgia nestes discos como uma reinventora do samba. Cheia de frescor e impressionantemente destra, ela, sem ser sempre cuidadosa ou capaz na definição das notas, era um espanto de clareza de intenções. A dicção rápida e a comicidade alegre no trato com o ritmo faziam dela uma mestra, para além da própria significação histórica. O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) — aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados. (VELOSO, 1997, p. 268) O comentário de Caetano Veloso acerca de Carmen Miranda engloba as diferentes visões em diferentes momentos de sua vida. Parte de uma primeira visão negativa, atrelada a uma certa reserva devido ao fato de esta se tratar de “figura caricata”, mas chega à fase de reconhecimento de sua importância, tanto por suas características específicas como intérprete, quanto pela ousadia de se lançar e apresentar ao Brasil o contexto de “mass culture” americana que fora tão expressiva no contexto do advento da Tropicália. Ora, o fato do sucesso em Hollywood que inicialmente soava de uma maneira desagradável na verdade se revelara como uma grande possibilidade em termos de enriquecimento e não negação da cultura brasileira. Haja vista os elementos introduzidos por Caetano e Gil em suas canções no festival de 1967, a vaias e em seguida a aclamação do público por elementos até !163 então inéditos na canção popular brasileira, mas que ao serem introduzidos, com o passar do tempo se consolidaram e são hoje característicos da mesma. Além disso, Caetano em toda sua careira, tem mantido um diálogo muito aberto e constante com a cultura de países de língua inglesa como os EUA e a Inglaterra, interpretado canções neste idioma e até composto canções de sua autoria também na referida língua. Ao fazer isto, Caetano está fazendo nada mais ou menos que assumir a mesma postura que inicialmente criticava em Carmen Miranda, e, com isso, provando o possível resultado positivo de uma mudança de paradigmas, e que Narciso pode não achar feio o que não é espelho64, mas, pelo contrário, pode encontrar belezas até mais vigorosas. No show registrado em “Circuladô Vivo” (1992), Caetano interpreta a canção Disseram Que Eu Voltei Americanizada (1940), de Vicente Paiva e Luiz Peixoto, que foi sucesso na voz de Carmem Miranda. O contexto em que a canção se insere originalmente se liga a uma fase de grande sucesso da Pequena Notável em Hollywood, em musicais nos quais ela falava e cantava em inglês. Após voltar ao Brasil, num de seus shows, quando Carmen canta uma de suas canções em inglês, a reação do público é unanimemente negativa: este passa a vaiar com uma veemência tal que faz com que a intérprete deixe o palco, chorando. Deste modo, Disseram Que Eu Voltei Americanizada se coloca como uma resposta à altura da hostilidade sofrida por Carmen Miranda, e, apesar do título, num discurso indireto, o que se deixa claro a entender, de modo direto é: “Eu Não Voltei Americanizada”. Aliás, nesse sentido, os versos desta canção de Paiva e Peixoto contém os seguintes versos: Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno Eu posso lá ficar americanizada Eu que nasci com o samba e vivo no sereno Topando a noite inteira a velha batucada Nas rodas de malandro minhas preferidas Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you Enquanto houver Brasil Na hora da comida Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu Na contramão de seu verso “´É que Narciso acha feio o que não é espelho”, da canção Sampa, ligada ao mito do personagem mitológico referido. 64 !164 Os autores da canção escreveram a letra na perspectiva de um possível comentário de Carmen Miranda acerca do “veneno” e preconceito das pessoas que julgavam que ela tivesse se americanizado apenas por ampliar sua carreira em território estadunidense. O que, de certa maneira, traz à tona novamente o preconceito em relação ao novo, ao estrangeiro, ao diferente, tão presentes na obra e na atitude de Caetano Veloso. Inclusive, Caetano citara a expressão contida no verso que fecha a canção de uma forma praticamente paródica em Língua (1984), ironizando o sotaque de Carmem Miranda na pronúncia em inglês de uma expressão tipicamente brasileira: Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas E o falso inglês relax dos surfistas Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas! Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda Ao incitar ao imperialismo característico dos EUA, Caetano põe em discussão uma aspiração até certo ponto característica dos povos subdesenvolvidos e de terceiro mundo — dentre os quais, o brasileiro — acerca de obter êxito tentando a vida nos EUA, ou mesmo sofisticando seu vocabulário e modo de agir de acordo com o “american way of life”, num jogo de aparências atrelado a uma suposta posição de superioridade65. No entanto, ao interpretar o hit que se consagrara na voz da Pequena Notável, Caetano, numa execução a violão e voz, mantém exatamente o ritmo de samba da gravação original, e transpõe o seu sentido do protesto de Carmen Miranda para homenageá-la e também como uma espécie de justificativa ao seu comportamento, sua atitude como cancionista. Ora, Caetano também passara um tempo considerável num país de língua inglesa, a Inglaterra. Logicamente, que não pelas mesmas razões que Carmen Miranda. No caso de Caetano, foi uma imposição política, tendo ele sido exilado e obrigado a partir para Londres. O fato é que seria terrivelmente empobrecedor não considerar que as influências britânicas — que já tinham um peso considerável em 1967, com o lançamento de Alegria, Alegria — apenas aumentaram e vieram a Aliás, nesse sentido, cabe citar outro hit de Carmen Miranda, intitulado “South American Way”, ligado a esta temática. 65 !165 enriquecer ainda mais não só o trabalho de Caetano Veloso, como também sua postura política de artista, o seu crivo crítico de formador de opinião. Em relação a “Circuladô Vivo”, os dois álbuns anteriores de Caetano são, respectivamente: “Estrangeiro” (1989) e “Circuladô” (1991). Ambos os discos contêm canções de autoria de Caetano Veloso que trazem uma visão crítica muito realista, quase que um protesto em relação a questões que permeavam Brasil da época. Em “Estrangeiro”, a canção O Estrangeiro (1989) contém os seguintes versos: E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento Sigo mais sozinho caminhando contra o vento E entendo o centro do que estão dizendo Aquele cara e aquela: É um desmascaro Singelo grito: "O rei está nu" Muito além da questão ficcional atrelada ao eu lírico do texto, temos a confissão de quem se sente “estrangeiro” não pelo lugar — fator que permitiria esta classificação com justiça, no âmbito da realidade —, mas pelo “momento”, pelo contexto histórico, que faz com que um brasileiro não se reconheça como tal em seu próprio território. Já em “Circuladô”, a canção O Cu do Mundo (1991) traz uma triste definição do Brasil — além do título — em versos como: A mais triste nação Na época mais podre Compõe-se de possíveis Grupos de linchadores Um ponto que deve ser sempre considerado é que, Caetano, apesar de cidadão do mundo por excelência, jamais abre mão de suas raízes e sua identidade — sul-americano, brasileiro, baiano. E é justamente a partir deste aspecto identitário tão fortemente presente em seu trabalho e, sobretudo, em sua postura, que Caetano toma a liberdade de criticar com tanta veemência sua própria terra natal, sem que isto se coloque como uma atitude antinacionalista, mas, pelo contrário, é propriamente por um amor e respeito ao Brasil que estas análises e desaprovações vêm à tona. !166 Além da resposta em relação a uma suposta americanização, ou, mais propriamente um ponto de vista que soa como exterior, Caetano interpretara outros sucessos de Carmen Miranda, desde muito antes em sua carreira. Num dueto com Gal Costa, Caetano interpretara No Tabuleiro da Baiana (1936), de Ary Barroso, em 1980. Esta gravação consta no álbum “Aquarela do Brasil” (1980), de Gal Costa. A intérprete em questão gravara este álbum inteiro como uma homenagem ao centenário de Ary Barroso. O casal de intérpretes baianos literalmente se delicia na menção dos mais variados elementos atrelados especificamente à cultura regional baiana, desde a culinária até o vocabulário específico, conforme os versos a seguir: Vatapá, oi Caruru Mungunzá Tem umbu Pra ioiô As palavras que constituem os versos acima transcritos desta canção de Barroso estão ligadas a um vocabulário e são expressões de toda uma cultura africana instaurada no Brasil, mais especificamente na Bahia. As menções iniciamse pela culinária, com a menção de pratos como “vatapá” e “caruru”, que tem por base frutos do mar e o famoso óleo de dendê característico da culinária baiana. Seguem com o “mungunzá” outro prato, agora doce, que tem como base a canjica, o fruto “umbu” e a forma de tratamento característica dos escravos africanos para seus senhores ou para as crianças do sexo masculino “ioiô”. Desse modo, a estrofe em questão se coloca como um retrato fiel da cultura baiana, especialmente de seu falar característico. Em “Fina Estampa Ao Vivo” (1996), Caetano abre o show com O Samba e o Tango (1937), canção lançada na voz de Carmen Miranda. A canção é classificada como um samba-tango, por misturar características musicais e rítmicas destes dois estilos tão peculiares. E a letra, por sua vez, tem por tema o encontro destes dois gêneros, conforme o verso: “A hora é boa e o samba começou / E fez convite ao tango pra parceiro”; A parceria em questão, que traduz a união ou mistura de elementos tão característicos de culturas diferentes — a saber, a brasileira e a !167 argentina — se dá na voz de um brasileiro, o qual se identifica, na letra, da seguinte maneira: Eu canto e danço sempre que possa Um sambinha cheio de bossa Sou do Rio de Janeiro Ao interpretar esta canção, Caetano assume a posição da voz poética da letra da canção, e esta identificação é plenamente justificável. Ora, Caetano, compositor e intérprete brasileiro — atrelado, portanto, ao “samba” — fazia uma apresentação de sua turnê do álbum “Fina Estampa”, no qual cantava grandes canções do repertório em língua espanhola — sintetizado por um dos estilos mais característicos deste cancioneiro: o “tango”. O próximo artista mencionado por Tatit é ninguém menos que um dos maiores ícones da música brasileira das décadas de 30 e 40, que também passou por este filtro interpretativo de Caetano Veloso: Vicente Celestino. Ora, consta já em “Tropicália ou Panis et Circensis” (1968), o disco-manifesto do Tropicalismo e segundo da carreira de Caetano Veloso, a interpretação de Coração Materno, canção de autoria de Vicente Celestino e que se tornou sucesso na voz deste exatos trinta e um anos antes, em 1937. É o próprio Caetano quem revela que este fato estava ligado a um “plano [...] totalmente tropicalista”: Na concepção do disco Tropicália ou Panis et Circensis havia um plano, este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção brasileira em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental “Coração Materno”, um dos maiores sucessos de Vicente Celestino, o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava os anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de sucesso, operetas e filmes, como o recordista de bilheteria “O ébrio”, de 46. (VELOSO, 1997, p. 293) A retomada de algo tão antigo já naquele contexto evidencia a característica da proposta tropicalista que dizia respeito não a uma negação de todo o passado, voltando os olhos para o futuro, mas também a recuperação de todo um valor ligado às tradições do passado que já haviam caído no preconceito de serem encaradas como ultrapassadas, passadistas ou mesmo bregas. Caetano, em sua interpretação de Coração Materno, num tom que mescla o caráter laudatório e o paródico, chega a tentar imitar os vibratos característicos da !168 interpretação de Celestino. Mais do que uma mera tentativa de imitação, este fator, por um lado reforça o caráter ultrapassado da canção, tendo em vista que, com o advento da Bossa-Nova, o aspecto que passou a marcar a emissão dos cantores foi justamente a contenção, que culminava em notas lisas e de intensidade bastante baixa, quase num sussurro, e, por outro, exalta a beleza deste tipo de interpretação — e das grandes vozes dos intérpretes — já não mais praticada naquele contexto. No que tange as grandes vozes masculinas da canção brasileira, Caetano revisitara outras figuras deste cenário. Pertencente ao mesmo contexto histórico, e tendo sido sucesso na voz de outro grande intérprete brasileiro desta época, Orlando Silva, Caetano Veloso também gravou a valsa Lábios Que Beijei (1937), de Álvaro Nunes e Leonel Azevedo. Esta característica atrelada a uma recuperação de um passado não se apresenta apenas na sua fase tropicalista de Caetano, mas pode ser identificada em vários outros momentos posteriores de sua carreira. Podemos citar como exemplo Peninha, outro dos nomes mencionados por Tatit em seu comentário. Este é o autor de duas canções que se tornaram grande sucesso na voz de Caetano: Sonhos (1977), no disco “Cores, Nomes” (1982) e Sozinho (1995), no disco ao vivo “Prenda Minha” (1998), respectivamente, e que até trilhara uma carreira como intérprete, sem grande sucesso ou prosseguimento. Em meio à execução desta segunda canção, Caetano tece um longo comentário que se coloca quase que como uma justificativa, uma explicação ao fato de sua escolha por interpretá-la: Tão bonitinha! Essa música é muito bonitinha. Eu ouvi a gravação da Sandra de Sá, tocava no rádio sempre. Eu achava linda, e pensava assim: próximo show que eu fizer, eu vou cantar essa música. Não sabia nem de quem era a música. Aí, um dia eu ‘tava ouvindo uma rádio dessas que dizem o os nomes dos autores da canção, aí o cara falou assim, Sandra de Sá, Sozinho, de Peninha. Eu disse, porra, a música é de Peninha? Aí é que eu vou cantar mesmo! Porque, olha, veja bem, eu já ‘tava apaixonado pela música, a gravação de Sandra era linda, já ‘tava decidido a cantar no próximo show que eu fizesse, ainda fiquei sabendo que a música era de Peninha, aí, tinha tudo mais a ver. Mas, um dia eu ‘tava no carro, com o rádio ligado, e ouvi no rádio do carro a gravação dessa música com Tim Maia. Aí eu desisti de cantar. E, no entanto, ‘tô aqui cantando ela. É porque eu desisti mas eu não resisti. É que, bom, eu não ‘tô cantando ela, né? Eu ‘tô apenas mencionando a canção. Porque a gravação de Sandra é lindíssima, e a de Tim Maia, arrasadora. Mas, eu pensei assim: bom, se eu cantar no meu show, as pessoas que veem ao meu show !169 vão querer reouvir a gravação de Sandra e procurar a gravação de Tim Maia. O argumento explicitado por Caetano Veloso se resume ao gosto. Ele ouvira a canção na voz de dois grandes intérpretes da canção popular brasileira, descobrira ser de um compositor a quem Caetano admira e até já havia gravado anteriormente uma canção. Soa inclusive interessante a forma blasé como Caetano se refere ao trabalho de seus colegas Sandra de Sá e Tim Maia, afirmando não estar cantando, mas apenas “citando” a canção, como se sua interpretação estivesse num nível inferior à e seus colegas. No entanto, ao estar “cantando ela”, Caetano expressa o fato e ter algo a acrescentar, um caráter pessoal e diferente que talvez ainda não tivesse sido revelado nas interpretações “linda” e “arrasadora” dos outros intérpretes. Prova disso é o sucesso que a pretensa mera citação de Caetano fez. A gravação de Caetano Veloso de Sozinho tornou-se trilha de uma telenovela de muito sucesso na época — “Suave Veneno”, da Rede Globo —, e fez um sucesso estrondoso, tendo vendido mais de um milhão de cópias em pouquíssimo tempo, e até ganhado uma versão Dance, remixada, passando também a ser sucesso nas boates e baladas da época, sendo dançada pelos jovens na batida que era sucesso, ainda na voz de Caetano. A questão é que o estrondoso sucesso de Sozinho com Caetano Veloso trouxe à baila um novo argumento à crítica que atacava o cancionista baiano: estaria Caetano Veloso preocupado apenas em fazer sucesso com canções antigas já lançadas por autores e intérpretes que não foram bem-sucedidos em suas carreiras, tendo já caído no esquecimento? Haveria por parte de Veloso um interesse puramente mercadológico na escolha das canções que ele interpretaria, visando ao sucesso imediato, e, portanto, apenas ao lucro? Ora, o próprio comentário de Caetano em seu show durante a execução de Sozinho deixa claro que sua intenção não era promover um estouro de mercado, mas apenas citar uma canção que lhe agradara, inclusive na voz de outros intérpretes de bastante sucesso e relevância no contexto da canção popular brasileira. Em 2003 foi lançado o filme “Lisbela e o Prisioneiro” — adaptação fílmica da peça teatral de Osman Lins —, com direção de Guel Arraes. Numa situação similar à da canção de Peninha, Caetano Veloso interpretara a canção que serviu de tema !170 para o par romântico que protagoniza o filme: Você Não Me Ensinou A Te Esquecer (1979), de Fernando Mendes. Este é outro compositor e intérprete ligado a um passado já naquela época, que fizera um sucesso considerável, mas, tendo entrado para a categoria classificada como “brega”, tornou-se desconhecido para as gerações posteriores — dentre as quais, a de jovens que apreciaram a interpretação de Caetano Veloso a ponto de lhe atribuir também a autoria da canção. Esta canção fez sucesso interpretada por seu compositor em 1979, e já havia sido regravada por duplas sertanejas como Chrystian e Ralf, e Bruno e Marrone. Mas, o sucesso que fizera vinte e cinco anos após o seu lançamento, na voz de Caetano Veloso, foi algo até então sem precedentes em relação à canção. Inclusive, esta versão foi indicada ao Grammy Latino como Melhor Canção Brasileira de 2003. Se Caetano deu voz ao brega e passadista, gerando críticas, ele também as recebeu por lançar compositores e estilos no âmbito da canção popular brasileira. Ora, Caetano foi o primeiro cantor ligado a uma linha de tradição da música brasileira a dar voz a uma canção do estilo axé, composição de Carlinhos Brown, numa época em que este era ainda anônimo para o grande público e o estilo, praticamente desconhecido fora do contexto da Bahia e adjacências. Trata-se de Meia Lua Inteira (1989). No arranjo podem ser identificados elementos característicos do estilo Axé: a batida executada por instrumentos de percussão, a guitarra elétrica e o baixo ditando o ritmo. Acerca deste estilo musical, em particular, Guerreiro (2000) comenta de uma forma bastante detida: Nos anos 80, o meio musical de Salvador estava tramando um novo movimento. A música percussiva produzida pelos blocos afro – o samba-reggae -, cujas letras celebravam o universo negro, saía das periferias da cidade para ocupar um lugar de destaque na cena musical baiana e não tardaria a aparecer nos cadernos de cultura do país como um criativo pólo do mundo da música no Brasil. A força da linguagem dos tambores influenciou diretamente a musicalidade dos trios elétricos – uma das trilhas carnavalescas do Brasil. As bandas de trio, atentas ao interesse que a percussão despertava, rapidamente incorporaram o samba-reggae e não demoraram a alcançar projeção nacional com um repertório basicamente montado a partir das composições dos blocos afro mais famosos da Bahia, como Ilê Aiyê, Olodum, Muzenza, Ara Ketu e Malê Debalê. Imprimindo um aparato pop ao samba-reggae, as bandas de trio eletrizaram as canções produzidas nos guetos de Salvador, sem dispensar a percussão de tambor que as identifica. A mídia batizou a nova música produzida em Salvador de axé-music. Axé é um termo iorubá oriundo do candomblé, espaço sagrado de !171 tambores e ritmos. [...] A partir desta mestiçagem estética, que fazia a fusão entre a nova musicalidade percussiva e o frevo trioeletrizado, a música que balançava as periferias de Salvador alcançou os consumidores de classe média que, desde os anos 70, já corriam atrás do trio elétrico. (GUERREIRO, 2000, p. 15-16) Guerreiro, em seu comentário, cita a eletrização – com a guitarra elétrica – do samba, e a partir desta mescla, gerando uma sonoridade mais pop, a origem do estilo denominado Axé Music. Estas características deste estilo podem ser conferidas perfeitamente em Meia Lua Inteira. A letra, por sua vez, também traz elementos deste estilo: um canto quase que percussivo de letras essencialmente onomatopaicas atreladas à percussão, de maneira a servir de referência à dança e aos demais movimentos do corpo, solto ao ar livre. Ora, Meia Lua Inteira tem sua letra marcada por elementos assim, conforme os versos transcritos abaixo, do refrão da canção: Poeira ra ra ra, Poeira ra ra ra Terça-feira, capoeira ra ra ra, Tô no pé de onde dera rara ra Verdadeiro ra ra ra, Derradeiro rara ra Não me impede de cantar ra ra ra ra, Tô no pé de onde dera ra ra ra Conforme é possível identificar no trecho acima transcrito da letra da canção de Carlinhos Brown, esta é marcada não por uma narratividade, mas por versos cuja conectividade se dá mais no âmbito da oralidade, da literal sonoridade, pela repetição das sílaba “ra” que encerra as palavras da maioria dos versos — fator que se aproximaria do tom onomatopaico característico citado há pouco. Caetano também se aventurara no Forró, tendo interpretado um dos mais famosos xotes deste estilo musical e de todo o cancioneiro brasileiro: Asa Branca (1947), de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Esta gravação consta no álbum intitulado apenas “Caetano Veloso”, de 1971, a saber, o primeiro gravado durante seu exílio londrino. A canção é a única das sete que compõem o disco em questão que não é de autoria de Caetano Veloso e cuja letra é em português. A letra de Asa Branca descreve um contexto característico das regiões norte e nordeste do Brasil, assolada pela seca que dizima plantações, criações e até mesmo as vidas dos habitantes que, tentando fugir desta terrível regra, transformam-se em verdadeiros nômades, chamados retirantes. !172 O espaço marcado pela “terra ardendo qual fogueira de São João” devido à falta de água e o calor extremado, do habitante deste território, que, num desespero extremado chega a questionar “a Deus do céu” acerca do porquê de “tamanha judiação”, em que até a ave chamada “asa branca” — que serve de título à canção — característica da região, “bateu asas e voou” são empregados como uma metáfora da condição real de Caetano Veloso. Este, imerso num Brasil que sofria as consequências de um governo ditatorial — assemelhando-se à terra seca e infrutífera do sertão em termos de liberdade artística e de expressão —, ao bradar não a qualquer divindade, mas protestar em relação a seus compatriotas, em refrões de canções como É Proibido Proibir, fora deportado, tendo sido obrigado a partir, assim como a ave da canção de Gonzaga e Teixeira, para um outro território, em busca de sobrevivência, não apenas como criatura, mas como ser pensante, artista que sempre tem algo a dizer e expressar. Assim, a água está para a sobrevivência da ave em questão da mesa maneira que a liberdade para um artista como Caetano. Aliás, o tom, a melancolia expressa na voz de Caetano ao entoar este baião marca esta atmosfera de saudosismo em relação ao seu lugar de origem, e de sua profunda tristeza pela imposição acerca de partir, deixar este território. O êxodo-rural, mais especificamente ligado ao contexto do Norte e Nordeste assolados pelas secas, é uma temática constante e característica da canção popular brasileira. Outro estilo musical o qual Caetano visitou tanto na posição de intérprete quanto na de compositor é o funk carioca. Em “Noites do Norte Ao Vivo” (2001), está contida a faixa Dom de Iludir/Tapinha, pot-pourri composto, respectivamente, pela canção do próprio Caetano Veloso, e pela canção de MC Naldinho e Dennis DJ, um funk carioca. Tapinha (2000) tem sua letra permeada pela repetição do verso “Um tapinha não dói”, expressão que pode tanto estar ligada ao consumo de drogas — ação popularmente exprimida pela expressão “dar um tapinha” — quanto à sua acepção mais literal, no sentido de um ato de violência, no caso, de um homem em relação a uma mulher. Neste âmbito, o ato de violência não seria assim encarado pela vítima, mas estaria atrelado a um contexto de intimidade sexual, sendo, inclusive, requisitado por esta. !173 A maneira tão singular de se tratar a mulher — a qual, no âmbito do funk carioca é comumente também caracterizada por termos que à primeira vista soariam como ofensivos em outros contextos, tais como: cachorra — vai de encontro às concepções tradicionais, ligadas ao respeito e zelo pela figura feminina, ainda mais em se tratando de um homem. O que possibilita a junção com a canção Dom de Iludir é justamente o fato de a letra desta ter por tema precisamente “a malícia de toda mulher”, traço dado como inerente a todo e qualquer ser humano do sexo feminino — um “dom” particular e específico —, conforme consta nos versos: Você diz a verdade E a verdade é o seu dom de iludir Como pode querer Que a mulher vá viver sem mentir Desse modo, tendo em vista este caráter dissimulado e astucioso atrelado à mulher, vem à tona uma discussão acerca da forma de tratamento desta figura, em que, a violência, forma mais habitual e primitiva de correção e coerção do ponto de vista de ação e reação, passa a ser tomada como uma expressão de carinho, fruto da atração e da sensualidade características da mulher. Na verdade, poucos anos depois da gravação de Caetano, a discussão alcançara a esfera judicial. Exatos três anos após o lançamento do funk carioca em questão, a ONG Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero moveu uma ação no Ministério Público Federal contra a empresa que detém os direitos de Tapinha alegando que esta canção “ banaliza a violência contra a mulher, transmite uma visão preconceituosa contra a imagem da mesma, além de dividir as mulheres em boas ou más conforme sua conduta sexual”66. Passados sete anos em meio a tramitações, em 2010 o processo culminou na condenação da empresa Furacão 2000 Produções Ltda., com a determinação do pagamento de uma multa de R $500.000. No entanto, três anos depois, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Rio de Janeiro) absolveu a mesma empresa por meio da alegação do desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior, que recorrera, ressaltando Disponível em: [http://direitosfundamentais.net/2008/03/31/um-tapinha-que-doeu/]. Acesso em 28 de julho de 2015, às 20:21h. 66 !174 a possibilidade de “considerar que letras de funk como a desta música podem até ser de mau gosto, mas não incitam a violência.”67 Soma-se aos sentidos construídos pelas canções individualmente e pela junção das mesmas o fato de que Dom de Iludir (1986), de Caetano Veloso, é uma canção inspirada num samba da velha guarda: Pra Que Mentir (1934), de Noel Rosa e Vadico. Aliás, entre as canções se estabelece uma relação de intertextualidade, já que a canção de Caetano desenvolve a mesma temática e até contém trechos da canção de Noel68 : Pra que mentir se tu ainda não tens Esse dom de saber iludir? Pra quê?! Pra que mentir Se não há necessidade de me trair? Pra que mentir, se tu ainda não tens A malícia de toda mulher? Este fato só vem a enriquecer o debate proposto por Caetano Veloso no âmbito da cultura — não trazendo em si apenas uma crítica ou elogio, de maneira fechada, mas, pelo contrário, completamente aberta às mais variadas conclusões — especialmente no que diz respeito aos costumes. Ao aproximar três canções de estilos e épocas tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, tão próximas em termos de temática (não apenas por similaridade), pode-se construir um panorama acerca das diferenças no tratamento dado à mulher em tempos, espaços e comunidades totalmente diversas entre si. Partindo do tom desprestigiado de um funk carioca em relação ao público em geral — e não apenas aos seus apreciadores — e chegando à tradição e prestígio de um samba de Noel Rosa, tão reveladora de toda uma herança, expressão de um legado da cultura e do povo brasileiro como um todo. Caetano também chagara a gravar um funk carioca de sua autoria, intitulado “Funk Melódico” (2012). O arranjo é similar ao característico dos funks cariocas: ênfase numa batida constante da bateria, e quase que ausência de arranjo musical propriamente dito. Há, inclusive um trecho que se iguala às peças deste estilo, em que Caetano canta — na verdade, de uma forma quase atrelada meramente à fala, conforme é regra no funk carioca — o longo trecho: 67 Disponível em: [http://oglobo.globo.com/cultura/funk-um-tapinha-nao-doi-nao-incita-violencia-dizjustica-8916481]. Acesso em 28 de julho de 2015, às 20:21h. 68 Grifos nossos. !175 Num abraço, abraçaço, essa letra te juro Esse papo de céu foi só pelo Noel Nem com cheiro de flor bateria em você Não sou bravo nem forte e nem mesmo do norte Sem canto de morte no meu HD O paralelepípedo é o jeito diverso Que quer dizer raiva e mais raiva e mais raiva Raiva e desprezo e terror, desamor Vale ressaltar a referência a Noel Rosa, também o imperativo acerca da não violência em relação à mulher — tão em discussão na contemporaneidade, e principalmente nas letras de funk carioca —, e a menção ao estereótipo da violência inerente ao “cabra-macho” do “Norte”, ligados ao sentimento de “raiva” expresso, possivelmente de um homem a uma mulher. Apesar de destoar da violência do possível “tapinha”, o funk de Caetano Veloso de um retrato dos nossos dias, e traz à tona uma possível discussão acerca do tratamento devido ou indevido dado à mulher — seria possível um funk carioca cuja letra é dotada de lirismo? A propósito, o samba é mais um dos territórios pelos quais Caetano Veloso permitiu-se viajar na posição de intérprete, no âmbito da canção popular brasileira. Caetano gravou suas versões de sambas-de-roda clássicos, atrelados praticamente ao domínio público. É denominado “samba de roda” um estilo de samba característico do Recôncavo Baiano, cuja origem está atrelada aos escravos africanos que habitaram a região há séculos. Trata-se do primeiro estilo musical brasileiro que foi reconhecido e registrado pela UNESCO como “patrimônio cultural imaterial”. O autor Oliveira Pinto define o Samba de Roda como o elo estabelecido entre os três principais elementos de tradição da cultura específica do Recôncavo Baiano, a saber: o “candomblé” — religião de origem africana —, a “capoeira” — arte marcial originada por crioulos brasileiros — e o “maculelê” — categoria de dança folclórica brasileira, com origens na cultura afrodescendente (PINTO, 1991). Constam na discografia de Caetano Veloso sambas de roda como Marinheiro Só (1969), no disco “Caetano Veloso” (1969), Viola, Meu Bem (1973), no disco “Araçá Azul” (1973), Cavaleiro (1965), samba gravado no primeiro compacto, datado de 1965, mas também contido na coletânea “Cinema Olympia” (2006). Sambas de Ary Barroso, como Isto Aqui O Que é? (1942), Na baixa do Sapateiro (1938), Faixa de Cetim (1942) também fizeram sucesso na voz de !176 Caetano. Trataremos com especial destaque a interpretação de Caetano Veloso do samba-exaltação também de Barroso Aquarela do Brasil (1942), numa apresentação ao vivo na TV Record, em 1970. Nesta ocasião, Caetano Veloso, que ainda estava em seu exílio londrino, interpretou o samba de Barroso de uma maneira totalmente introspectiva: a batida consideravelmente mais lenta — e a voz colocada de uma maneira muito suave e também lenta, quase que idêntica à fala ou uma recitação. Esta forma de interpretar, tão expressiva para a situação de Caetano Veloso naquela época, consagrou-se na voz de João Gilberto em relação a todo o repertório da Bossa-Nova. O samba também foi o estilo musical escolhido por Caetano para a adaptação de poemas em canção. É o caso de Escapulário (1975), do disco “Jóia” (1975) e que fez parte do set list de “Multishow Ao Vivo: Abraçaço”, não constando no CD, mas apenas no DVD. A letra deste samba é, na verdade, um poema de Oswald de Andrade. Poeta nacionalista da geração mais comprometida com a produção de uma arte genuinamente nacional — e, literalmente, como no verso de Caetano, deixar “os Portugais morrerem à míngua”69 — talvez não houvesse estilo musical mais propício para servir de melodia a estes versos que o samba, em termos de brasilidade. Uma das figuras-chave deste estilo musical que teve alguns de seus sucessos e composições interpretados por Caetano foi nem mais nem menos que o próprio Noel Rosa. Caetano interpretara num dueto com Zeca Pagodinho o samba Com Que Roupa?, no show registrado em disco e DVD “Casa de Samba II”. Em meio à execução da canção, num trecho instrumental após a alternância dos dois intérpretes nos diferentes trechos da letra, trava-se um diálogo entre Zeca Pagodinho e Caetano Veloso: - É, meu compadre, [...] pouca roupa tá bom, né? - Qualquer roupa é boa! Isso assim cantado por Zeca Pagodinho, as palavras e as notas de Noel Rosa na voz de Zeca Pagodinho, isso é o Rio de Janeiro inteiro! - Valeu! 69 VELOSO, Caetano. Língua (1984) !177 Se há outro aspecto que pode ser considerado como característico de Caetano Veloso em toda sua carreira, é justamente o tom laudatório com que sempre se refere aos seus colegas de profissão. O comentário acima é apenas um dos exemplos: Caetano enaltece a figura de Zeca Pagodinho associando-o à figura de Noel Rosa pelo contexto e o estilo comuns a ambos, o Rio de Janeiro e o Samba — estilo musical do qual o “pagode” é uma variação. Em “Prenda Minha” (1998), Caetano interpreta o samba que foi enredo da escola de samba que homenageou a Tropicália em 1994, Atrás Da Verde E Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu (1994). Este samba, desde seu título e em toda sua letra, mantém uma intertextualidade com o samba “Atrás do Trio Elétrico” (1969), do próprio Caetano, que contém o verso: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. A letra do samba-enredo em questão contém referências às principais figuras do Tropicalismo, Caetano, Gil, Gal, Bethânia, ao conjunto por eles formado nos anos 70 e até a algumas das canções mais distintivas deste movimento e de cada um destes intérpretes: Caetano e Gil, ô Com a Tropicália no olhar Doces Bárbaros ensinando A brisa a bailar A meiguice de uma voz Uma canção No teatro opinião Bethânia explode coração Domingo no parque, amor Alegria, alegria, eu vou A flor na festa do interior Seu nome é Gal No intuito de homenagear Caetano, Gil, Gal e Bethânia, as menções não se restringiram ao contexto do Tropicalismo. Se de Caetano e Gil foram mencionados verdadeiros hinos deste movimento — Alegria, Alegria e Domingo no Parque —, de Gal não foi mencionada uma canção deste período, mas Festa no Interior (1981), de Moraes Moreira e Abel Silva, e de Bethânia, que nem chegou a efetivamente participar do Tropicalismo, apenas um de seus grandes sucessos: Explode Coração (1977), de Gonzaga Jr. Caetano Veloso também fez suas incursões pelo Rock nacional de artistas e bandas brasileiras. !178 Conta no disco “Caetano Canta” a interpretação de Caetano de Ouro de Tolo (1973), de Raul Seixas. Na versão de Caetano, podemos ressaltar a falta da bateria ou de elementos percussivos que marquem uma batida mais forte, mas apenas um tamborim em meio ao som das cordas de violões. Isto atenua o tom de protesto e desconserto pelo qual é marcada a canção em sua gravação original, na voz de Raul Seixas. Além disso, Caetano canta de uma forma leve e suave — sem os quase gritos do “aluco “Beleza” — dando um caráter mais lírico à atmosfera narrada nos versos da letra. Caetano também homenageara o rei do Rock brasileiro numa canção do álbum “Noites do Norte” (2000) intitulada justamente Rock’n’Raul, numa inserção do nome de Raul Seixas na sigla “rock’n’roll”, utilizada para nomear o estilo em questão. Caetano também participou do show que foi registrado em CD/DVD “oBaú do Raul” (2004), cantando Maluco Beleza (1977), de Raul Seixas. Nesta apresentação, Caetano dá mostras de sua extensão vocal de tenor e, mesmo permanecendo em seu timbre costumeiro, chega a agudos — sem falsete — de modo a vociferar — quase num grito — o refrão da canção, reforçando a ideia da letra, de um “maluco”, avesso ao sistema e às convenções em geral que, por outro lado, é dado também como “beleza”, calmo, tranquilo, pacífico. Em “Totalmente Demais” (1986), Caetano Veloso interpretou Todo Amor Que Houver Nesta Vida (1982), de Cazuza e Frejat Inclusive, Caetano foi um dos primeiros artistas ligados já a uma espécie de tradição já estabelecida naquela época, a dar voz ao rock dos jovens de bandas surgidas nos anos 80. Em relação à gravação original desta canção, Caetano praticamente a transforma. Diferentemente do ritmo acelerado e da presença da bateria, baixo e guitarra elétrica ligados ao hit de rock lançado pela banda Barão Vermelho, a versão de Caetano reduz a intensidade rítmica a um violão e voz, mas nem por isso diminui a intensidade da dramaticidade da letra. Aliás, pelo contrário. Caetano canta num tom mais agudo do que o seu convencional, de maneira a expressar pela batida ao violão e as nuances em sua voz o desespero de quem implora, desejando “ser o seu pão, a sua comida”, ou seja, algo essencial e substancial em relação à provável pessoa amada. !179 No âmbito da língua portuguesa, Caetano Veloso também chegou a interpretar canções do repertório lusitano. O álbum “Totalmente Demais” (1986) contém a interpretação do fado Estranha Forma de Vida (1965), de Alfredo Marceneiro e Pedro Homem de Mello. Caetano, apenas ao violão, canta este fado reproduzindo com perfeição o sotaque lusitano característico dos intérpretes portugueses, apesar da execução num tom que permite que seu timbre permaneça natural. No entanto, Caetano voltara a interpretar este mesmo fado vinte um anos depois, e o registro não está contido num disco, mas num filme: “Fados” (2007), de Carlos Saura. Nesta interpretação, Caetano canta enquanto um casal dança, logo após uma sequência de cenas que continham trechos de interpretações de Amália Rodrigues, uma das mais aclamadas fadistas portuguesas. Talvez justamente por esta referência, Caetano interpreta Estranha Forma de Vida, mais uma vez ao violão, mas, desta vez cantando em falsete, num registro muito mais agudo que o seu timbre natural, o qual se aproxima bastante do timbre de Amália Rodrigues. Aliás, os únicos cantores brasileiros que participaram do filme de Saura foram Caetano e Chico Buarque. A participação de um artista brasileiro como Caetano num filme que tem por tema o estilo musical lusitano por excelência acaba por trazer à tona sua relevância como intérprete, ainda mais em se tratando de uma peça de tamanha relevância de um estilo musical totalmente distinto daquele no qual ele se consagrou — o que só reforça sua versatilidade. No show registrado no disco “Omaggio a Federico e Giulietta” (1998), Caetano interpreta Coimbra (1947), de Raul Ferrão. Acompanhado por Jacques Morelenbaum ao violoncelo, seu próprio violão e um piano, Caetano, canta em seu próprio timbre de tenor, mas modula sua voz em meio aos vibratos e na pronúncia das palavras de modo a reproduzir com excelência o estilo dos cantores lusitanos de modo a fazer sua “língua roçar a língua de Luis de Camões” musicalmente com propriedade. O intérprete Caetano Veloso não se restringiu apenas ao repertório em língua portuguesa, mas, pelo contrário, conforme afirmou Tatit, literalmente empreendeu uma “constante absorção” de outros repertórios em línguas estrangeiras. E um dos mais expressivos na obra deste intérprete é justamente o de língua inglesa. !180 Tatit, em seu comentário, inicia a menção aos artistas de língua inglesa por uma das maiores bandas britânicas de todos os tempos: os Beatles. E, em Caetano Veloso, quando o assunto é Beatles, a referência primordial é o álbum “Qualquer Coisa” (1978). Neste, das doze faixas, três são canções assinadas pela famosíssima parceria Lennon/McCartney: Eleanor Rigby (1966), For No One (1966) e Lady Madonna (1968). A primeira delas é marcada por uma roupagem completamente distinta da versão original. Esta é marcada pela presença do quarteto duplo de cordas no arranjo e o andamento similar às trilhas sonoras características de clímax de filmes de suspense. Caetano transforma esta atmosfera em algo mais ameno em sua execução apenas ao violão, e por sua dicção mais cool. Já For No One, na voz de Caetano Veloso, ganha uma leveza em relação à atmosfera dramática da versão original dos quatro rapazes de Liverpool. A letra da canção tem por tema justamente um hiato numa relação amorosa, e, em especial as possíveis lágrimas sem significado, atreladas apenas a um fingimento — “por ninguém”, conforme a expressão que dá título à canção. A gravação original é marcada apenas por uma batida ao piano e a inserção posterior de uma orquestra, inclusive pelo solo de instrumentos de sopro. Já Caetano constrói uma versão marcada pelo violão e a guitarra elétrica, além de uma leve batida de percussão, iniciada pelo assovio da melodia, conferindo à canção uma versão mais atrelada à Bossa-Nova ou mesmo um Samba vestindo-a numa outra roupagem, tropical, brasileira. No que tange a interpretação vocal, o ritmo mais leve e despojado permite a Caetano uma emissão, ao mesmo tempo, mais leve, marcada por recursos da oralidade, e também mais presa ao que seria o clássico pelo emprego dos vibratos característicos do intérprete baiano. Estes, no entanto, fogem completamente à concepção operística deste efeito, executado por grandes vozes deste contexto, mas se caracteriza apenas por uma leve trepidação vocal em sons vocálicos — fator presente em todas as imitações de teor humorístico de Caetano Veloso, até pelo movimento do queixo que tremula. !181 Lady Madonna, por sua vez, originalmente também tem a base de sua melodia ligada ao som do piano, numa batida quase semelhante às trilhas de filmes faroeste ou mesmo dos filmes mudos que tinham a execução ao piano realizada ao vivo durante a exibição dos mesmos. Se nas duas canções anteriores a versão de Caetano foi marcada por uma mudança ascendente em termos de ritmo, com Lady Madonna ocorre o oposto. A melodia comum às trilhas de filmes faroeste ao piano é trocada por uma batida mais lenta ao violão, marcada apenas pelo toque nas cordas, de modo a sonorizar o acorde, mas sem qualquer elemento que caracterize um ritmo específico ou mais agitado. Mas, para além da interpretação das canções, no disco “Qualquer Coisa” a citação da banda britânica começa pela capa, marcada pela estrutura idêntica à de “Let It Be” (1970). Neste, que se constitui como o último álbum da discografia dos Beatles, a capa já evidencia o afastamento entre os integrantes da banda; Em meio a um fundo preto, quatro fotos, uma de cada integrante da banda, em formato quadrado, alinhadas no mesmo formato, com o título do álbum grafado em branco na parte superior. A mesma capa poderia ser de um disco que reunisse canções de quatro diferentes intérpretes, uma espécie de coletânea com os greatest hits, por exemplo. A capa de “Qualquer Coisa” é idêntica, descontando-se o fato de que o título grafado em branco que aparece na parte superior é o do álbum de Caetano, e os quatro espaços das fotos são preenchidos pela mesma imagem de Caetano, apenas marcada por cores diferentes — talvez numa referência às diferentes nuances da personalidade de um único compositor e intérprete, que literalmente dá voz e vez, com qualidade, a “qualquer coisa”. Caetano também interpretou canções de Michael Jackson, o rei do pop, mas, logicamente, conferindo a estes um caráter que lhe é próprio. O hit Billie Jean (1982) entrou num pot-pourri criado por Caetano, à voz e violão, junto com Nega Maluca (1950), samba de Fernando Lobo e Evaldo Rui, e Eleanor Rigby (1966), de Lennon e McCartney, por uma similaridade temática, presente nas letras das três canções que, ao serem ligadas, constituem uma só narrativa, conforme mencionamos anteriormente. !182 No álbum “Circuladô Vivo”, Caetano interpreta outro grande hit de Michael Jackson, mais uma vez num pot-pourri, mas numa perspectiva diferente em relação à faixa de que já tratamos. Trata-se de Black Or White (1991), de Michael Jackson, lançada no álbum “Dangerous”. Esta canção, que se coloca como um hino de promoção à igualdade racial, foi concebida como uma resposta de Jackson a todas as críticas que vinha recebendo pelo fato e se tratar de um homem negro cuja pele estava cada vez mais branca. Grande parte da mídia e da crítica acreditava se tratar de mais uma excentricidade do milionário artista, que na verdade — conforme revelara anos mais tarde — de fato sofria os efeitos de um vitiligo e, a partir do branqueamento de grande parte de seu corpo, passara então a usar uma base que lhe conferira a aparência de um perfeito ariano, para disfarçar as manchas em sua pele. A letra da canção é literalmente permeada pelo verso: “Não importa se você é preto ou branco” e apregoa a igualdade de direitos, os quais são inerentes ao homem, ao ser humano, independentemente de suas crenças, posicionamentos, gênero, e, sobretudo, de sua raça. Caetano Veloso se vale deste protesto veiculado pelo rei do pop norteamericano em relação a um preconceito tão forte por parte de seus semelhantes — especialmente de seus compatriotas — para também protestar contra o preconceito racial no Brasil, hemisfério sul, subdesenvolvido, e, de maneira mais sutil, também contra a posição hegemônica da nação Estados Unidos da América em relação ao mundo, numa canção de sua autoria intitulada exatamente Americanos (1992). Para os americanos branco é branco, preto é preto (e a mulata não é a tal) Bicha é bicha, macho é macho Mulher é mulher e dinheiro é dinheiro E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se Concedem-se, conquistam-se direitos Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime Em Americanos, Caetano compara a questão do politicamente incorreto em âmbito estadunidense e brasileiro. Enquanto lá, sendo ou não questionável, as posições são todas muito claras e definidas — sem eufemismos que aparentem a ausência de preconceitos —, “aqui embaixo”, no coração da América do Sul, tudo se dá de forma velada. Um povo historicamente marcado pela miscigenação ousa pregar a igualdade racial e agir de uma forma totalmente contrária ao seu discurso, !183 num preconceito que tem raízes históricas e remontam um passado sombrio e vergonhoso, mas que no entanto é trazido à atualidade e chega, em plena pósmodernidade, como um ranço inadmissível. Seguindo nas referências dadas por Tatit, além dos Beatles, Caetano Veloso também deu voz a uma canção dos Rolling Stones, e, em algumas fases de sua carreira, até manteve alguns pontos de semelhança com o vocalista da banda, Mick Jagger, em termos de performance — até pela semelhança da constituição física dos dois cantores. Let It Bleed (1969), de Mick Jagger e Keith Richards foi gravada por Caetano — numa versão ao vivo —, e consta na coletânea “Pipoca Moderna” (2007). Este hit da banda britânica Rolling Stones se constitui como uma ironia desta em relação aos Beatles, em especial à canção de Lennon e McCartney Let It Be. A versão de Caetano é marcada por um andamento — e, portanto, um ritmo — completamente semelhante ao da gravação original da banda britânica, mas sem o amparo da bateria, baixo e guitarras, somente voz e violão. Extrapolando a possível rivalidade entre as duas bandas de rock britânicas, Caetano Veloso soube dosar a medida no que tange sua atuação — tanto como intérprete quanto como compositor, mas sobretudo como figura pública de relevância — entre o deixar “estar” e o deixar “sangrar”. No âmbito do Rock, em sua vertente norte-americana, Caetano deu voz a um dos principais nomes deste estilo: Bob Dylan. Caetano gravara Jokerman (1983), no disco “Circuladô Vivo” (1992). A versão original da canção é marcada por uma levada quase atrelada ao reggae, mas com a batida rock marcada pela bateria. Ganham destaque um possível sintetizador ao fundo, e, principalmente, a guitarra elétrica, formando o contexto ao qual se encaixa a voz de Bob Dylan. Com Caetano, a base passa a ser o violão, e ao invés do possível sintetizador e a batida da bateria, temos tambores e outros elementos percussivos ligados ao suingue baiano e bem leve, o violoncelo de Morelenbaum. Algo a ser especialmente ressaltado é justamente o tom mais agudo em que Caetano canta, literalmente abusando do vibrato. A atmosfera rock’n’roll é praticamente substituída por uma atmosfera quase africana, brasileira característica de um bloco-afro. !184 Aliás Bob Dylan é uma figura do cenário musical internacional com a qual podemos estabelecer uma comparação com Caetano Veloso devido a algumas similaridades muito marcantes entre os dois. Surgidos praticamente no mesmo contexto, entre os anos 60/70, marcados por canções de crítica e protesto, com letras absurdamente longas e bastante expressivas em termos da cultura de cada um de seus povos, respectivamente. Após todas estas incursões pontuais pelo repertório em língua inglesa, apenas em 2004 Caetano dedicou um disco inteiro a interpretações como estas. “A Foreign Sound” (2004) é um disco em que Caetano Veloso assume exclusivamente a posição de intérprete e dá sua versão de alguns dos mais famosos standards do repertório em língua inglesa. O álbum é composto pelas canções: Carioca (The Carioca); So in Love; I only Have Eyes For You; I’ts Alright, Ma (I’m Only Bleeding); Body And Soul; Nature Boy; The Man I Love; There Will Never Be Another You; Smoke Gets In Your Eyes; Diana; Sophisticated Lady; Come As You Are; Feelings; Summertime e Detached. Em meio a um contexto em que o mundo todo expressava certa aversão aos Estados Unidos — devido à forma inusitada de governar do então presidente George W. Bush — Caetano Veloso finalmente torna realidade um projeto seu acalentado há décadas — na verdade, desde a época de seu exílio em Londres -: um disco contendo os grandes standards do repertório americano. A gravadora, Unisersal Music, promovera uma publicidade que tomava uma página inteira em todos os jornais brasileiros, na qual constava o slogan: “A grande música do mundo nunca foi tão brasileira. Apesar de não ser uma ideia totalmente inédita em si — muitos intérpretes já o tinham feito — no caso de Caetano, este projeto, classificado por ele como um disco “anglo-americano” foge completamente ao convencional. Foi durante os anos 90, década em que Caetano já tinha sua carreira internacional devidamente solidificada, que Bob Hurwitz, presidente da Nonesuch — gravadora que edita os discos de Caetano nos EUA — praticamente exigira de Caetano a gravação de um álbum nesse estilo, valendo-se do argumento de que “só ele poderia gravar Cole Porter e Bob Dylan num mesmo CD” com a mesma naturalidade. !185 No período que se seguiu, em meio a uma sequência de trabalhos de fôlego por parte de Caetano — a saber, álbuns como: “Circuladô”, “Livro”, “Prenda Minha”, “Noites do Norte” e o livro “Verdade Tropical” — o tão acalentado projeto acabou por ser colocado num segundo plano, e os ânimos, neste sentido, esfriaram. Entretanto, neste mesmo contexto foi que Caetano declarou que o ato de revisitar o grande repertório americano já havia se tornado lugar-comum para os músicos de sua geração, e, sem qualquer falsa-modéstia — bem ao seu estilo característico — também que, no ponto de sua carreira em que se encontrava à época, sem mais precisar provar nada a ninguém, ele já gozava de uma liberdade tal que o permitiria fazer “qualquer coisa”. Assim, mesmo em meio ao turbulento cenário político norte-americano em relação ao mundo, “A Foreign Sound” foi lançado em 2004, ao que Caetano declarara no release do disco da forma polêmica que lhe é usual: “Cantar as canções americanas é voltar a pontos de minha vida e da cultura de massas do século XX. Tenho ternura pelo material. Eles produziram a canção pop mais bonita do mundo, todas essas músicas já foram cantadas pelos melhores. O nível de composição e de execução dos americanos é um paradigma para o Ocidente”. O crítico João Máximo, em seu texto publicado no jornal O Globo, ressaltou que, em termos de escolha de repertório, em “A Foreign Sound”, o que de fato importa é o que Caetano sente, e não as expectativas dos chamados “apóstolos do bom gosto”: É nítida sua ligação com os grandes nomes da canção americana, Cole Porter (um So In Love primoroso), o pouco lembrado Vincent Youmans (The Carioca), Jerome Kern (Smoke Gets In Your Eyes) George Gershwin (The Man I Love, cantada como deve ser), Irving Berlin (Blue Skies), Harry Warren em dose dupla (I Only Have Eyes For You e There Will Never Be Another You), Dyke Ellington (Sophisticated Lady). E também os clássicos Star dust(e não Stardust como está no disco), Body and Soul e Cry Me A River. Ao mesmo tempo em que percorre algumas canções que ninhuém associaria àqueles grandes mestres (Nature Boy, Love me Tender, Diana, If It’s Magic e Jamaica Farewell, esta de um nova-iorquino que fazia calipsos para Harry Belafonte e que, entre outros foreign sounds, compôs o hino nacional de Barbados), Caetano prova que ele e aquele produtor estão certos: pode cantar tudo. Hugo Sukman, outro crítico, do mesmo jornal, em seu texto realçou os paradoxos e as provocações contidas nas escolhas de Caetano: !186 “Ivan Lins é música; Nirvana é lixo”, diz Caetano no encarte do disco. Poderia cantar Ivan, nosso compositor mais internacional, em inglês. Não canta. Mas canta Come As You Are, de Kurt Cobain, lindo lixo. Seja cantando Cobain, seja cantando Gershwin, Caetano celebra a música que conquistou o povo do planeta. Quer, meio sério, meio de brincadeira, conquistar o mundo. Se conseguir Corisco terá vencido, o sertão virado mar e o mar sertão. Sukman, em seu comentário, retoma o contexto original da citação de “Grande Sertão: Veredas” feita por Caetano Veloso no encarte do disco e compara sua missão ou intenção como intérprete — revelada, dentre outros elementos, pela escolha de repertório do disco — à profecia que tange o mar e o sertão. Na verdade, a atuação de Caetano Veloso é pode ser comparada de maneira bastante feliz nesta expressão de Guimarães Rosa: seu esforço de levar sertão para o mar, dispersando mundo afora os mais variados estilos da canção produzida no Brasil nos mais diferentes tempos e espaços, e, ao mesmo tempo de trazer muito do que há fora, além-mar, para enriquecer a canção brasileira, o sertão. No caso específico, a partir de um comentário polêmico de Caetano Veloso, acerca da banda estadunidense Nirvana em comparação a um de seus colegas cancionistas brasileiros, e, no entanto, interpretando o que ele ironicamente chamou de “lixo” e não o que fora classificado como “música”. Mas será que esta frase expressa a verdadeira opinião de Caetano Veloso, ou apenas traz à tona por meio de sua voz a opinião de muitos puristas que vociferam juízos de valor com este sem o devido conhecimento de causa? Se Nirvana é mesmo “lixo”, vai do gosto e opinião de cada um que se propõe a ouvir. Mas, que Caetano, no cenário musical e cultural brasileiro tem realizado a intenção de Corisco: vencer, é inegável. “A Foreign Sound” se coloca como mais uma expressão do caráter plural de Caetano Veloso e de sua versatilidade como intérprete, já que, por meio do repertório contido no disco em questão, o intérprete baiano dá provas de sua propriedade como intérprete em termos de conhecimento dos mais diferentes estilos e épocas. Logicamente que esta incursão pelo repertório, e, portanto, pela cultura de língua inglesa não ocorreria sem comentários críticos por parte de Caetano Veloso. No encarte do CD está contido um texto escrito por ele, o qual anula qualquer possibilidade de crítica relativa a uma americanização ou preferência de uma cultura estrangeira em relação à sua, brasileira, nacional. !187 Caetano vale-se da ironia para tecer uma crítica mordaz à suposta superioridade norte-americana em relação a tudo e a todos, não só na área da música, mas, partindo da própria origem do universo: Então o mundo começou com um “big-bang”. Não só as criaturas mais estranhas da galáxia mais remota aparecem falando inglês nos filmes: o próprio universo surgiu emitindo uma expressão tipicamente inglesa. Era tão parecido com “bang-bang” que o cientista britânico que a criou não resistiu. Por que não um “bubble-gum”? — enquanto eu me deleitava em inventar piadas como essas, meu amigo Zé Miguel Wisnik (que contribuiu com a frase “Se tudo começou no Big Bang só podia acabar no Big Mac”) lembrou ainda a tirada que Nelson Rodrigues repetia em suas crônicas sobre futebol: “O mundo começou num Fla-Flu”. Nelson certamente estava se referindo à importância transcendental das partidas em que o Flamengo e o Fluminense se enfrentavam, mas ele também nos trazia à mente o sentimento de certas tardes de domingo, luminosas, ainda que envoltas em mistério. O fato é que “Fla-Flu” soa muito mais como o sopro divino do que a cena de duelo de caubóis proposta pelo cientista inglês. E, no entanto, aquele que é nas palavras de Caetano simplesmente o maior escritor brasileiro do século XX, Guimarães Rosa, fez o personagem central de sua obra-prima “Grande Sertão: Veredas” dizer: “E Deus, se vier, que venha armado”. O texto de Caetano traz à tona o fato de a língua inglesa — e, portanto, toda esta cultura americana, do norte — se estabelece com uma supremacia em relação a todas as outras — dadas como inferiores. Ora, não bastasse a influência cultural, em termos de música, cinema, estilo de vida, organização social, o inglês se faz presente desde classificação da explosão que teria assinalado o começo da expansão do universo. Eles estiveram sempre lá, à frente. Seja no Big-Bang, a explicação de nossas origens, no cinema, o gênero faroeste com os filmes de “bangbang” — e a onomatopeia que se tornara mundialmente característica para o som do disparo de uma arma de fogo — e na construção de toda uma indústria cinematográfica cujos filmes, atores e diretores fazem sucesso e ditam regras ao redor do mundo todo, a mundialização do fast food com o Big Mac, também em proporções globais, segundo o comentário de Wisnik. Sim, tudo na cultura americana é “big”, e até demais. No entanto, toda esta grandiosidade é deixada de lado para um brasileiro, seja frente a uma disputa clássica entre os times cariocas Flamengo e Fluminense, ou mesmo diante da obra não de um, mas do grande escritor Guimarães Rosa, que trouxera na figura do brasileiro, sertanejo, pobre e subdesenvolvido uma complexidade que supera os conflitos dos filmes de faroeste, e, no entanto, propõe a !188 mesma forma de combate. Aliás, não entre dois homens, mas entre um homem e Deus. E quem diria que os grandes hits com letras na língua universal viriam a ser cantados por um estrangeiro? Aliás, não só cantados. Adaptados de maneira a permitir a performance genuína e original de um intérprete em potencial, não inglês ou norte-americano, mas, brasileiro, baiano, santo-amarense, do hemisfério sul, abaixo, no que tange a posição geográfica — pela perspectiva de leitura que se tem, geopoliticamente falando —, mas que se equivale, por talento e capacidade. Caetano ousa demonstrar que, em termos de cultura, e de música, não há barreiras. Não há dominantes e dominados. Há sim, as grandes canções, suas versões clássicas e consagradas, mas há também a possibilidade de uma proposta diferente. Grandes vozes como as de Elvis Presley e Frank Sinatra, por exemplo, por incríveis e merecidamente apreciadas que sejam, não encerram as possibilidades de interpretação, e, sobretudo, de beleza. Caetano se propõe a apresentar as canções por uma perspectiva que talvez soe dessemelhante ou estranha aos ouvidos de quem se prendeu a modelos, não se permitindo abrir seus horizontes. Caetano oferece um canto diferente, um som diferente, exterior, um som estrangeiro (“A Foreign Sound”), a partir da perspectiva não do dominante, mas do dominado. Não do desenvolvido, mas de um representante dos povos que buscam ainda o desenvolvimento, em termos socioeconômicos, mas nem por isso podem ser chamados de subdesenvolvidos cultural e artisticamente falando. E, por incrível que possa parecer, Caetano Veloso assume esta postura não de uma maneira violenta ou combativa. Mas, num grande tributo — sem, por isso, deixar de se posicionar, conforme suas palavras, também contidas no encarte do mesmo disco: Por todo o mundo há pessoas que gostariam de achar um meio de agradecer à música popular americana por ter enriquecido e embelezado suas vidas. Muitos tentam. É o que faço aqui. Considerando o texto que comentamos anteriormente, Caetano contraria as possíveis expectativas ao encerrar a citação dos comentários com um de sua autoria, na contramão de qualquer protesto, mas na expressão de um agradecimento — o qual se liga à tentativa de muitos, mas que, neste caso, fora !189 realizado por ele. Enquanto muitos se perdem em meio aos planos para encontrar uma maneira, Caetano Veloso realizou a tão difícil ação — sem deixar, é claro, de conferir a si mesmo os possíveis louros por tal realização. Rodrigo Faour chama a atenção para o fato de que à época do lançamento desse disco caracterizado por ele como “sofisticadíssimo”, Caetano ainda fazia sucesso nas rádios brasileiras com “uma versão pop/romântica do hit brega Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, de Fernando Mendes, incluída na trilha sonora do filme “Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (2003), fato que pode ser lido como a repetição, “não com a mesma intensidade, mas com certa força” o sucesso de Sozinho, de Peninha. A este respeito, Faour levanta, ironicamente, o questionamento: “Nada mais natural para Caetano, concordam?”. Apesar disso, logo depois de “A Foreign Sound” ter sido lançado no Brasil, Caetano fez um show no Carnegie Hall para um público lotado de americanos — conforme pode ser conferido no documentário “Coração Vagabundo” (2009), de Fernando Grostein Andrade. Nature Boy (1948), de Eden Ahbez, foi gravada também, originalmente, por Nat King Cole. Mais do que apenas cantar, Caetano fez uma versão em português da canção, a qual foi gravada por ele mesmo em “Totalmente Demais” (1986), e também por Maria Bethânia. Love Me Tender (1956), de Elvis Presley e Vera Matson, grande sucesso de Elvis Presley ganha a roupagem de uma cantiga de ninar. Isto fica bastante claro pelo andamento da canção e pelo acompanhamento por um piano cuja sonoridade é característica das melodias de caixinhas de música, por exemplo. Além disso, Caetano canta em falsete, bastante agudo, numa voz que pode se assemelhar tanto à de uma mãe ninando seu filho, quanto de uma criança adormecendo ao som de uma melodia de ninar- aliás, nesse sentido, Love Me Tender é a faixa que encerra o álbum, reforçando esta possibilidade de leitura. No que tange a língua inglesa, “A Foreign Sound” não se coloca como a estreia de Caetano como intérprete de canções neste idioma. Antes, Caetano não só interpretara canções dos mais variados estilos tanto do império do Tio Sam quanto do reino da Rainha Elizabeth, mas também compôs diversas canções nesta língua. !190 Constam na discografia de Caetano álbuns quase que totalmente constituídos por peças de sua autoria com a letra na referida língua. O álbum intitulado apenas “Caetano Veloso” (1971), tendo sido o primeiro gravado durante o exílio londrino do cancionista baiano contém sete faixas, sendo que, destas, seis são composições de Caetano: A Little More Blue, London London, Maria Bethânia, If You Hold A Stone, Shoot Me Dead, In The Hot Sun of A Christmas Day. Assim, na língua inglesa, Caetano não só interpretou com também produziu muitas canções — fator que talvez ajude a explicar a liberdade com que ele transita pelo cancioneiro em língua inglesa. Canções dos anos dourados de Hollywood, dos grandes musicais da Metro Goldwin Mayer também ganharam versões de Caetano Veloso. Por exemplo, Caetano gravara Let’s Face The Music And Dance (1964), de Irving Berlim. Acerca de sua performance, é o próprio Caetano quem comenta: Let’s Face The Music And Dance é a canção de Irving Berlim que Fellini escolheu para “Ginger e Fred”. Pusemos o tema de “La Dolce Vita” como introdução e frisamos o parentesco dos temas de Rota com as composições americanas dos anos 20 e 30. Nós a tocamos como se fôssemos uma banda fuleira que toca na rua por esmolas. [...] a atmosfera geral (e a dinâmica em particular) faz do número um momento encantador para mim. Esta canção está contida no álbum que registrou a apresentação de Caetano Veloso em Rimini, na Itália, a convite da irmã de Federico Fellini, Maddalena. Este fator explica a atmosfera cinematográfica em que se insere a canção, desde sua escolha. Cheek to Cheek (1935), também de Irving Berlim, foi originalmente interpretada por Fred Astaire no filme “Top Hat” (no Brasil “O Picolino”) (1935), do diretor Mark Sandrich. No entanto, Caetano a gravou num dueto com Cauby Peixoto, transpondo-a para um ritmo latino. Esta faixa consta no álbum de Cauby intitulado “Cauby canta Sinatra” (1995). Há também um álbum que registra a apresentação de Caetano Veloso com David Byrne no Carnegie Hall: “Caetano Veloso and David Byrne Live at Carnegie Hall” (2012). O show em questão aconteceu durante o festival “Perspectives”, e contou com a presença de Jacques Morelenbaum ao violoncelo, e Mauro Refosco, !191 na percussão, acompanhando Veloso e Byrne. Aliás, o músico, compositor e produtor musical em questão, fundador do grupo “Talking Heads”, já era há muito tempo amante confesso da obra de Caetano Veloso, portanto, o registro deste encontro coroa uma amizade surgida de uma admiração que se tornara mútua. Caetano também deu voz a um considerável número de canções do repertório em língua espanhola de diferentes tempos e espaços. Tatit (1995) citara o cantor, intérprete e pianista cubano Bola de Nieve, cujo real nome era Ignácio Jacinto Villa Fernández e este tem um papel especial na carreira de Caetano Veloso, em relação às interpretações do cancioneiro hispânico por ele empreendidas. Tanto canções de autoria de Bola de Nieve quanto canções que foram sucesso na voz deste permeiam a carreira de Caetano Veloso em suas mais diferentes fases. Em 1978, no álbum “Qualquer Coisa”, Caetano gravara La Flor de La Canela (1950), de Chabuca Granda, um grande sucesso de Bola de Nieve. Enquanto a gravação deste, datada de 1950 é marcada pelo acompanhamento unicamente pelo piano, em sequências de arpejos grande parte da canção, e apenas em alguns trechos uma batida mais atrelada ao estilo original do compositor cubano, a gravação de Caetano é marcada por um acompanhamento de cordas, numa cadência que, desde o início traz marcado o ritmo um pouco mais acelerado. Neste mesmo álbum Caetano gravara não a versão original, mas uma versão de sua autoria de uma canção de Eliseo Grenet que foi sucesso na voz de Bola de Nieve: Drume Negrita (1949) — no caso, Drume Negrinha. A canção de Grenet é fruto da tradição oral de escravos negros que viviam em Cuba, e a conceberam como uma canção de ninar. A versão de Caetano adapta a realidade de Cuba ao contexto brasileiro, mais especificamente da Bahia, e com um vocabulário constituído por expressões contemporâneas: Drume negrinha Que eu te transo uma nova caminha Que venha ter muito axé Que tenha gosto d'ocê Drume pretinha Que eu te trago de toda Bahia Tudo que der pra trazer Com quase todo prazer !192 Se tu drume eu te descolo um araçá Cor do céu de lá Se não drume esse mandu de carnaval Não vai pegar Da versão original, além do ritmo e do arranjo, é mantida na letra a expressão “drume” — ao invés da sua correspondente em português: “dorme” —, que pode ser expressão da fala das pessoas socioeconomicamente menos favorecidas. Além disso, elementos da cultura especificamente baiana — conforme a menção ao estado baiano — ganham lugar, tais como: “axé”, “araçá”, “mandu” e “carnaval”, e, assim, a “negrita” — “negrinha” — passa a “pretinha”, conforme a canção que foi um dos maiores sucessos do conjunto Novos Baianos, Preta Pretinha (1972), de modo que a personagem da canção é transposta para uma menina brasileira. De autoria de Bola de Nieve, propriamente, Caetano gravara Ay, Amor!, da década de 50, em seu disco “Fina Estampa Ao Vivo” (1995). Mas, mais do que gravar canções desta referida figura, Caetano homenageou-a com a canção Canto Do Bola De Neve (1987). Esta canção, na verdade não contém uma letra, e nem sequer uma melodia muito clara, mas somente Caetano ao fundo, emitindo palavras que praticamente não podem ser identificadas, reproduzindo os vibratos característicos do cantor cubano em questão. Aliás, Caetano gravara um disco inteiro composto apenas por hits do cancioneiro em língua espanhola, e a motivação para tanto é no mínimo interessante. O ano era o de 1994, e Caetano recebera um convite de sua gravadora para lançar a versão de alguns de seus maiores sucessos em língua espanhola — como fizeram tantos outros cancionistas como Chico Buarque e Roberto Carlos, por exemplo — de modo a conquistar sucesso com o público de países hispânicos. Apesar de se tratar de uma boa jogada mercadológica, Caetano se recusou. Ao invés de produzir versões em espanhol de suas próprias canções, Caetano ousou fazer diferente: escolher algumas de suas canções favoritas em língua espanhola, de outros compositores, e gravá-las. A partir desta premissa, o álbum “Fina Estampa” foi lançado em 1994. Este se coloca como um movimento não “para fora”, visando a ampliação de público, mas, !193 “para dentro”, totalmente intimista, numa retomada da memória afetiva, conforme Caetano explicou para a “Folha da Bahia”, no mesmo ano70: Para mim, o destino ideal deste disco é aprofundar o diálogo com algumas pessoas que, espalhadas pela América Espanhola, vêm há algum tempo generosamente prestando atenção à minha música. A ambição de aumentar o número dessas pessoas, embora me pareça legítima, é secundária e só aparece como subproduto do desejo da gravadora para a qual trabalho, de ampliar o mercado' hispanoamericano para os meus discos. O que importa, no entanto — e o que define o perfil desta 'fina estampa' — é que, apesar de ser aparentemente um gesto dirigido para fora da minha língua e da minha cultura, trata-se antes de um movimento para dentro de minha memória mais íntima e para o interior do Brasil: na cidadezinha de Santo Amaro, na Bahia, onde nasci e vivi até os 18 anos, ouviam-se, nos anos 40 e 50, canções cubanas, mexicanas, argentinas, paraguaias ou porto-riquenhas que marcaram a formação de toda uma geração. Elas são 'minhas', estão ligadas a recordações de família e de amizade que me dão uma espécie de direito sobre elas — e sem dúvida lhes dão um imenso poder sobre mim. Se hoje sou capaz, às vezes, até mesmo de conversar em espanhol (se o interlocutor não fala português), devo-o aos boleros e às rancheiras, às rumbas e aos tangos, aos merengues e as guarânias. A única coisa que não posso dizer é que foi com muita dor e dificuldade que deixei de fora um número pelo menos tão grande de canções igualmente representativas disso e, portanto, igualmente adequadas a este disco, quanto o das que gravei. E o que o número das gravei — e de que não quis abrir mão — é maior do que a gravadora desejaria. “Fina Estampa” é constituído por quinze canções, sendo elas: Rumba Azul; Pecado; Maria Bonita; Contigo Em La Distancia; Recuerdos de Ypacarai; Fina Estampa; Capullito de Aleli; Un Vestido Y Un Amor; Maria La O; Tonada De Luna Llena; Mi Cocodrilo Verde; Lamento Borincano e Vete de Mi. Com este álbum, Caetano, na posição de intérprete, embarca numa viagem que se inicia no México e percorre, em direção ao sul: Cuba, Porto Rico, Venezuela, Peru, Argentina, Paraguai e Uruguai, de 1931 a 1992. Numa entrevista, Violeta Weinschelbaum perguntou a Caetano Veloso: “Como foi recebido um disco como Fina Estampa no Brasil?” Ao que Caetano respondeu: Muito bem, foi meu disco que mais vendeu no Brasil. Quase toda a música que está aí foi escutadíssima no Brasil dos anos cinquenta e até princípios dos anos sessenta. Então, os mais velhos lembravam daquilo e os mais jovens, que não conheciam aquela música, encontraram ali uma série de canções agradáveis, que chegaram já filtradas pela bossa nova e pelo tropicalismo. O que aconteceu foi uma soma de públicos. É uma experiência, por mais que soe doce e Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/search/label/1994]. Acesso em 31 de março de 2014. 70 !194 agradável, um pouco estranha, porque passa por esse filtro de refinamento da bossa nova e pelo filtro irônico do tropicalismo. As canções estão ali com essa pequena distância e isso as torna modernas para os modernos. Mas são canções sentimentais e populares e por isso têm um público mais amplo. (VELOSO in WEINSCHELBAUM, 2006, p. 21) Apesar de um disco composto apenas por canções estrangeiras, Caetano o classifica superlativamente como “o [... disco que mais vendeu”, dando a entender um sucesso superior inclusive à toda sua produção em língua portuguesa, como compositor/intérprete. Tendo agradado aos mais velhos, que, assim como Caetano, ouviram as versões originais de todas estas canções, e despertado a curiosidade e o gosto dos mais jovens, que provavelmente vieram a conhecer estas mesmas canções na voz de Caetano. Como de praxe, Caetano ressalta o filtro da “bossa nova”, pelo qual passa toda sua produção musical, e no caso das canções latinas marca o caráter de recriação destas peças. Não se dando por satisfeito, Caetano lança três anos depois, em 1997 o disco “Fina Estampa Ao Vivo”, registro de uma das apresentações da turnê de seu álbum anterior. Contendo as canções: O Samba e o Tango; Lamento Borincano; Fina Estampa, Cucurrucucu Paloma; Haiti; Canção de Amor; Suas Mãos; Lábios Que Beijei; Você Esteve Com Meu Bem?; Vete De Mi; La Barca; Ay, Amor!; Pulsar; Contigo Em La Distancia e Itapuã, o disco ao vivo permitiu a Caetano tranquilizar sua consciência — em meio à sua autocrítica — no que diz respeito à forma correta de interpretar algumas de suas canções favoritas. Assim, as razões que motivaram a gravação de um disco que contém todo o repertório de um outro disco exatamente anterior são explicadas por Caetano num texto de sua autoria que vem impresso na contracapa do disco, no qual ele explica: Quis regravar a canção “Fina Estampa” somente por causa dos erros de letra do disco de estúdio. No show em que o número saiu tecnicamente bem e musicalmente razoável — e em que corrigi todos os outros erros — eu insisti em cantar “justes” em vez de “fustes”. Talvez um dia tenha que gravar essa canção de novo no estúdio. Por agora, apenas peço perdão. Ampliar o mercado? — Onde quer que eu vá, levo comigo minha versão pessoal do desenvolvimento da música popular brasileira (uma tradição de que devemos mesmo nos orgulhar): a paixão que o canto de Orlando Silva despertou em João Gilberto, levando-o a criar um estilo de música popular moderno que influenciou todo o mundo e revolucionou o Brasil. “Você esteve com meu bem?” pode ser um !195 pedaço do elo perdido entre o canto de Orlando e a invenção de João. Essa invenção nada seria não fosse pela luz que Antonio Carlos Jobim lançou sobre ela. A turnê e o registro em disco do show ao vivo estão ligados — além da divulgação do disco “Fina Estampa”, é claro — se colocam também como uma espécie de errata no que diz respeito à gravação da canção que serviu de nome ao disco. Caetano mais uma vez pontua seu posicionamento em relação a uma proposta de gravação de versões de suas canções em espanhol visando “ampliar o mercado”, advinda da gravadora: não. Ao invés disso, Caetano optara por gravar versões suas de grandes canções do cancioneiro em língua espanhola. Desse modo, tendo cometido um erro na letra de Fina Estampa, Caetano cria um espetáculo e lança um outro disco contendo, inclusive, outras canções — tanto em português quanto em espanhol — que não estavam contidas originalmente no álbum de estúdio. Caetano reafirma em seu texto, e com sua atitude na posição de artista, sua “versão pessoal do desenvolvimento da música popular brasileira”, a qual, passa por outros tempos, espaços, culturas e estilos. Bastante expressiva em relação a esta intersecção com as canções em língua espanhola e o viés político que permeia toda sua obra e sua atuação como artista é uma canção de autoria de Caetano Veloso, intitulada Quero Ir A Cuba (1983). Iniciada pelo verso: “Mamãe eu quero ir a Cuba”, a canção é marcada por um tom de curiosidade de uma provável criança que desejaria conhecer o país insular em questão. Passando por aspectos da “ilha”, a qual é comparada “à Bahia”, referência a uma de suas mais reconhecidas cantoras, Célia Cruz,e, é claro, à Revolução Cubana. Acerca desta, a voz poética confessa “que tocou [seu] coração” de um tal modo que é reproduzido o pedido de Peti: “Cuba seja aqui”, possivelmente numa crítica política que tange, sobretudo o desenvolvimento humano dos cidadãos cubanos, para muito além do governo de Fidel Castro. Deste modo, em meio aos vislumbramentos de tudo isso, a mesma voz que iniciara a canção com o desejo de ir até lá, encerra a canção com os versos: “Mamãe eu quero ir a Cuba / E quero voltar”, deixando claro ser um desejo de !196 apenas conhecer, e não de vir a lá se fixar — o qual dá a entender, no que provavelmente subjaz ao texto, que, por difícil que seja, a vida no Brasil não seria trocada por qualquer outro território que seja. Vem à tona uma brasilidade que não está ancorada em ufanismos políticopartidários, mas apenas ao fato de ser brasileiro e amar sua terra. Isto se revela tanto nas composições, quanto nas interpretações de Caetano. E, aliás, acerca de seu próprio ofício de interpretar cantando, Caetano, em sua canção Genipapo Absoluto (1991), sintetizou o sentido deste ato, e também do que tem sido sua atuação nesse sentido: Cantar é mais do que lembrar É mais do que ter tido aquilo então Mais do que viver do que sonhar É ter o coração daquilo De fato, a propriedade — no sentido de real conhecimento de causa — de Caetano ao visitar tanto o cancioneiro nacional quanto os internacionais, dando sua voz a estas e tantas outras canções ao longo de sua carreira, revela por meio de sua prática efetiva o fato de “ter o coração” de tudo isso. E, ao pensarmos no coração como a fonte deste canto ou desta voz única que se revela e manifesta numa multiplicidade de outras em Caetano Veloso, chegamos a uma compreensão mais clara do verso que se coloca como síntese de uma das canções confessadamente preferidas de autoria própria deste cancionista baiano: “Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”. !197 CONCLUSÃO: COMPREENDER CAETANO VELOSO: O QUE QUER, O QUE PODE ESTE CAMALEÃO? UMA PROPOSIÇÃO “You don’t know me Bet you’ll never get to know me You don’t know me at all Feel so lonely The world is spinning round slowly There’s nothing you can show me From behind the wall” (Caetano Veloso, You Don’t Know Me) Configurou-se como o objetivo central desta tese trazer à tona esta faceta de agitador cultural exercida por Caetano Veloso ao longo de sua carreira, e em toda sua atuação ao longo destes quase cinquenta anos. Há que se ressaltar que esta é apenas uma das muitas e possíveis reflexões que podem ser realizadas a partir de uma figura e obras tão singulares, no que tange a construção de sentidos e os diferentes contextos socioculturais em que ambas estão inseridas. Em “Bossa-Nova de Caetano e em Caetano: Um impulso que segue pulsando” procuramos investigar a relação do cancionista baiano com este estilo musical — que marca a inspiração que motivara o início de sua carreira artística — e de que maneira este elo teve continuidade até os dias atuais. Apesar de não ter se tornado um compositor ou intérprete atrelado apenas à Bossa-Nova — de modo a não poder ser caracterizado ou reconhecido apenas por este estilo musical —, Caetano Veloso trilhou uma jornada marcada por um movimento que o fizera sê-lo também uma figura emblemática deste gênero musical brasileiro tipo exportação, seja por suas interpretações de um número considerável de canções deste repertório em especial, seja por suas composições neste estilo, mas, sobretudo, por seu posicionamento, sua postura como artista, na qual a BossaNova tornou-se uma espécie de filtro, ou fio condutor tanto do gosto e das preferências que remontam o pessoal, até toda sua produção, destinada ao público em larga escala. Em Caetano Veloso, tudo começa com a Bossa, é avaliado e desenvolve-se a partir desta, e, durante todos estes anos, parece voltar a esta, como um fruto ou resultado que faz jus à sua origem. !198 Justamente a partir desta imersão na Bossa-Nova, surge a inspiração vertida em missão no cenário musical, não atrelada apenas a uma repetição, num constante tributo, mas, acima de tudo, da construção e produção de uma continuidade no movimento inaugurado por João Gilberto e Tom Jobim: o Tropicalismo. Em: “Tropicália: Um divisor de águas na cultura brasileira” ganha enfoque a novidade ou inovação proposta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que tem os olhos voltados para o futuro, sem no entanto perder de vista tudo o que foi significativo no passado. Aliás, pelo contrário, na verdade o Tropicalismo pode ser lido como a adoção de uma liberdade criativa em prol do desenvolvimento da arte musical e cancional brasileira, a fim de impactar a juventude da época tanto quanto a Bossa impactara e se impusera como divisor de águas neste segmento ao fim dos anos 50. O constante diálogo com a sétima arte, seja por meio das temáticas de suas canções, seja por seus esporádicos e pontuais exercícios de efetiva prática neste segmento, ou até pela tentativa de roteirização e produção de uma peça cinematográfica sua também trazem à tona o agitador cultural, que navega com propriedade e até certa tranquilidade pelos mais variados estilos, tempos e espaços do cinema, de modo a encontrar sua maneira de expressão, seu tom pessoal neste segmento. Em: “A Cena do Camaleão. Luzes, Câmeras, Canção” a proposta se liga a investigar o todo o percurso de Caetano Veloso com o cinema. Da crítica cinematográfica em jornais, ainda na Bahia, durante sua juventude — e, logicamente sua paixão que norteou suas intenções iniciais em termos de atuação —, à participação em peças e filmes, como ator, a constante adoção de sua poética musical como trilha sonora de inúmeros filmes, seriados, peças e novelas ao longo destes anos, podemos constatar um movimento paralelo à música, marcado por constantes intersecções entre estas duas áreas da arte, até mesmo em termos de performance ao palco, em se tratando de todo um jogo cênico que confunde realidade e ficção, pessoa e personagem em Caetano Veloso. O ciclo se encerra com “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão”, uma investigação do caráter também múltiplo e multifacetado musicalmente falando não apenas do compositor, mas do intérprete, que dá voz a todo um universo no âmbito da canção, de modo a criar ou instaurar um universo seu, particular e paralelo. As canções e os intérpretes que Caetano Veloso traz em sua voz, partem do original num exercício de mimese que dá origem, traz à tona outras !199 possibilidades de sentido, em termos de interpretação, impactando o público, tanto ao revelar o que é próximo, parecido, quanto ao revelar o inverso, totalmente oposto, na linha tênue, como um equilibrista, entre o agrado e o choque, bem condizente com a arte, em termos de proposta. O interessante é perceber que, se por um lado, Caetano Veloso é uma figura muito comunicativa e que sempre está a tecer comentários sobre os mais diversos assuntos, e inclusive sobre sua obra, por outro ele acaba sendo bastante reservado, sem evidenciar da maneira clara que lhe é característica as intenções que subjazem sua produção artística. Logicamente que a sua obra, por si só, seja talvez mais expressiva do que qualquer tentativa de elucidação por palavras. Até mesmo porque, em termos de arte, a questão da inspiração e de sua concretização não se trata de um processo objetivo e nem tão previsível quanto eventualmente se gostaria que fosse — aliás, deixando de lado a questão formal dos estudos e análises, ainda bem, já que a surpresa com cada novidade, no prosseguimento do trabalho de uma figura tão inventiva quanto Caetano Veloso, revela-se, ao mesmo tempo como um deleite, para um apreciador, e também mais um enigma a ser decifrado, oportunidade de um exercício de exame, análise e reflexão. Nesse sentido, colocamo-nos, como muitos o fazem, indo ao encontro das teorizações em geral, partindo da concepção uma possibilidade de interpretação e passando, então, a desenvolvê-la, no sentido de desdobrá-la e examiná-la, a fim de chegar a uma compreensão mais profunda sobre Caetano Veloso, suas canções, seu comportamento e todos os seus possíveis desdobramentos. Um trabalho de criação artística como esse, pautado pela linguagem em sua multiplicidade de manifestações — verbal, musical, corporal, comportamental, e portanto, cultural — já tem passado pela prova do tempo com êxito e se configurado como cânone. Desse modo, não se restringe ao que já se consolidara como a tradição, mas, antes, inicialmente pode chocar, por superar os limites desta, mas, com o passar do tempo, soma a ela elementos antes inadmissíveis como tal. Eduardo Gianetti da Fonseca numa pergunta a Caetano Veloso no programa “Roda Viva” 71, explicitou uma hipótese no que diz respeito à compreensão desta figura camaleônica: 71 “Roda Viva” — 23/09/96 !200 Eu queria arriscar uma generalização... Eu te ouço desde 1978, encontrei realmente o seu trabalho em 78, quando saiu o LP Muito. E, de lá para cá, estou acompanhando com muita intensidade. Gosto muito do seu trabalho! E identifico uma trilha que aparece no seu trabalho, que eu gostaria de arriscar aqui e ouvir o que você pensa disso. Acho que, de um lado, você defende a conquista de uma ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na política, na economia que a nossa convivência pública seja bem ordenada e seja civilizada. Isso é muito presente, é muito forte, é muito contínuo. De outro lado, você também defende o nosso coração iorubá [de origem africana], a nossa alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria espontânea que brota do fundo do fundo da nossa alma brasileira. E acho que a grande utopia que você coloca para todos nós é combinar essas duas coisas. Conquistar a civilização, mas não perder o que nós temos de melhor, que é essa grande alegria, essa grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia que está em todos nós. Acho o seguinte, Caetano: será que essas duas coisas podem ser combinadas? Será que alguém vai conseguir juntar uma coisa sem perder a outra? Temo que a civilização entristeça a alma humana. [risos] E nenhum povo conseguiu escapar disso! E nós, no Brasil, resistimos muito a isso. Acho que a grande utopia, os "trópicos utópicos" que vejo em você é exatamente na busca dessa fusão. Você refaz essa fusão na sua arte e eu acho que, na arte, a equação se fecha. Na vida prática, não vejo como fechar essas duas coisas e acho que, à medida que o Brasil se civiliza, infelizmente nós vamos perder, aos poucos, essa alegria, essa vitalidade emocional, essa coisa fantástica que ainda está viva. (FONSECA, 1996) Fonseca, em seu comentário, ressalta uma característica de Caetano Veloso — expressa tanto por meio de sua obra, quanto por meio de seu comportamento e postura como artista — a combinação de elementos aparentemente impossíveis de serem aliados ou agregados. Fonseca contrapõe a “conquista de uma ordem civilizada no Brasil” — uma ideia de desenvolvimento, atrelada à realidade de contextos como o europeu — a “o nosso coração ioruba”, a essência de nossas múltiplas raízes atreladas a culturas indígenas e africanas. O economista em questão ressalta o fato de esta união dar certo na arte de Caetano Veloso, mas duvida, questionando-se em relação à realidade, tendo em vista o caráter excludente entre os dois elementos. Caetano Veloso, em sua resposta, ressalta uma plena identificação da hipótese levantada por Fonseca com os seus ideais, do ponto de vista artístico: A sua pergunta, para mim, não precisa de resposta! Não precisa de resposta. Gostei imensamente do modo como você formulou. E acho que ela, de uma certa forma, abrange — posso dizer mesmo — a totalidade dos meus interesses. [risos] Pelo menos dos meus interesses que podem ser tornados, ou precisam ser, tornados públicos. Acho que você tocou num ponto que é fundamental! Mas a minha ambição talvez seja ligeiramente maior do que a própria questão da fusão, entendeu? A minha ambição seria a de tomar !201 posse da civilização, porque acho que há dados universais ligados à convivência social. E acho que são dados definitivos e que esses dados devem ser compartilhados por todos os seres humanos, que devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. (VELOSO, 1996) Ao concordar plenamente, a ponto de nem sequer precisar elaborar uma real resposta para o questionamento de Fonseca, mas apenas comentar ainda mais o assunto nele levantado, Caetano Veloso toca num ponto fundamental para a reflexão que estamos empreendendo, em relação à sua face de agitador cultural: “tomar posse da civilização” para poder partilhar e distribuir “dados universais ligados à convivência social”. Desse modo, podemos depreender alguns pontos que se colocam como respostas a alguns dos questionamentos levantados ao longo desta tese. Em primeiro lugar, a importância da questão da cultura, independentemente se de nações do norte ou do sul, desenvolvidas ou subdesenvolvidas. Tudo que tem beleza, força e promove uma ruptura dos limites e barreiras que estabelecem estas separações todas — e todas as consequências delas advindas. Para tanto, Caetano Veloso adota uma postura literalmente antropófaga — não apenas no Tropicalismo, mas em toda sua carreira — culturalmente falando, no que diz respeito à devoração, a tomada para si de elementos exteriores (tanto nacional quanto internacionalmente falando), a digestão (a familiarização, o pleno conhecimento das características destes), e o verter o expelir de uma obra nova, inédita e diferente do que servira como base, marcada já pela plena assimilação do que até então era o diferente ou oposto, não num roubo, ou mera cópia, mas num ato de compartilhamento. Essa atitude ou comportamento ajuda a entender porque não há limites em termos de área de atuação, temáticas desenvolvidas, estilos musicais, posturas, enfim... Aliás, isto vai ao encontro do próprio conceito de cultura, conforme pontua Bauman (2013): Segundo o conceito original, a “cultura” seria um agente da mudança do status quo, e não de sua preservação; ou, mais precisamente, um instrumento de navegação para orientar a evolução social rumo a uma condição humana universal. (BAUMAN, 2013, p. 12) Caetano faz jus às palavras de Bauman, questionando e modificando o status quo, numa constante absorção de praticamente tudo, que, da realidade, passa para !202 a arte, fazendo jus à função do cancionista, contida nos versos de uma canção de Caetano Veloso. Nesta, o cancionista (compositor/intérprete) é dado como “todo aquele que nos empresta sua testa construindo coisas pra se cantar”, colocando-se como um representante de toda uma grande coletividade, e talvez até mesmo por isso, conseguindo atingi-la com tamanha veemência por meio de suas canções. Aquilo que é expresso nas canções, a síntese do que se passa ou poderia se passar com todo um povo, é dado na mesma canção como: Tudo aquilo que o malandro pronuncia E o otário silencia Toda festa que se dá ou não se dá Passa pela fresta da sexta e resta a vida Vale ressaltar que a canção em questão, Festa Imodesta (1974), nunca foi gravada oficialmente por Caetano Veloso, mas fora composta por encomenda para compor o álbum de seu colega de ofício, Chico Buarque de Holanda que tivera todas as suas canções censuradas, no contexto da ditadura militar brasileira. Em meio a um completo desrespeito às liberdades e diretos dos cidadãos como um todo, Caetano ousa dar esta festa completamente imodesta em termos de expressão e de protesto, até ao empregar na letra os termos “malandro” e “otário”, referindo-se justa e respectivamente à designação daqueles que se expressavam contra os desmandos dos militares, e os mecanismos de censura que impediam os próprios artistas de se manifestarem por meio de sua arte, com a liberdade devida. Caetano Veloso há quase cinquenta anos tem mantido os olhos atentos a todas as possíveis frestas das mais diversas cestas e vertido todos estes fatos em arte, em canções, legando para a história uma maneira diferente de fazer aqueles que tem vindo ou ainda virão depois conhecerem tudo que aconteceu. O trânsito entre as culturas e, tanto o louvor quanto o protesto, por meio da arte, se traduz numa literal agitação que faz as pessoas que entrem em contato com sua obra — sejam fãs ou não — pararem, refletirem, e, sobretudo se posicionarem nas mais variadas esferas atreladas ao convívio e existência. Por tudo isso, “salve o compositor popular” e salve o agitador cultural Caetano Veloso. !203 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS I. Livros e Periódicos ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: Uma Poética de Estilhaços. São Paulo: Annablume, 2002. BARTHES, Roland. Inéditos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BAUMAN, Zygmunt. A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. BENEDITO, Mouzar. Ousar Lutar — Memórias da Guerrilha que Vivi. São Paulo: Viramundo, 2000. BUARQUE, Chico. Compositor fala de música, literatura e política em entrevista a José Andrés Rojo — Em Nova York. 27/04/2005. CECATTI, J. G. 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