Felipe Pupo Pereira Protta

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA
CAETANO VELOSO: UM CAMALEÃO NA CENA CULTURAL BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
São Paulo
2015
FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA
Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor em
Letras
Orientadora: Profª. Dra. Marlise Vaz Bridi
São Paulo
2015
FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA
CAETANO VELOSO: UM CAMALEÃO NA CENA CULTURAL BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor em
Letras
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi — Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Alleid Ribeiro Machado
Centro Universitário Sant’Anna
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Regina Helena Pires de Brito
Universidade Presbiteriana Mackenzie
À minha mãe, Rozana, e à minha avó Ruth
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar. Toda a capacitação, força, e a própria vida para
realizar tudo que tenho realizado vem dele, portanto, a glória deve ser dada a ele.
À minha mãe, Rozana, e minha avó, Ruth — minha mãe ao quadrado —, por
todo amor, carinho, apoio e o suporte em todos os momentos de minha vida.
À memória de meu avô Dilson Pereira, e de meu bisavô — e pai ao cubo —
Antonio Pupo.
Ao meu Pai, Francisco, por ter investido em minha formação, na educação
básica e em meu ensino superior, até o mestrado.
À minha querida orientadora Marlise Vaz Bridi, sem a qual nada disso seria
possível.
Ao meu amigo e irmão Victor Costa, por toda disposição e pela efetiva ajuda
que me deu para a realização do presente trabalho.
À Nasjla Saba da Silva e Flávio Miúra.
Às minhas queridas Teresa, Inês, Geralda e Elizabeth, inspiração para o
caminho que decidi trilhar.
Ao MackPesquisa e à CAPES, pelo apoio à realização de meu doutorado, e à
minha pesquisa.
RESUMO
A presente tese se coloca como uma investigação dos aspectos que propiciam a
classificação de Caetano Veloso como um agitador cultural, a partir da análise de
sua trajetória em diferentes setores da arte. Numa reverência ao que há de belo e
forte no passado sem qualquer despreocupação com o futuro, mas, pelo contrário,
buscando partir disso para a criação de algo novo tão interessante quanto, este
artista baiano segue uma trilha de coerência entre a crítica e o elogio, o velho e o
novo, o nacional e o estrangeiro, o choque e o apreço, indo bem ao encontro dos
princípios norteadores da arte como um todo. Caetano Veloso é um artista
multifacetado que compõe o firmamento artístico brasileiro. Apesar de estar ligado
ao contexto da canção popular, sua atuação extrapola os limites desta área,
chegando a muitas outras. Seja por meio de suas canções, suas interpretações,
seus comentários, sua performance e persona tão várias quanto sua própria
atuação, mais do que tudo, Caetano Veloso pode ser considerado um “agitador
cultural”, à medida que transita com propriedade entre os mais diversos tempos,
espaços e estilos em termos de canção, comportamento e visão de mundo. A cultura
brasileira vem sendo enriquecida pelos aspectos estrangeiros que vem sido
somados a esta por um artista que insiste em ousar, mesmo com uma carreira que
beira as cinco décadas de duração, sem, portanto, precisar provar nada, e, no
entanto, fazendo questão de se reinventar, tendo sempre algo novo a acrescentar.
Palavras-chave: cultura, música popular brasileira, linguagem poética, artes
ABSTRACT
This thesis is presented as an investigation of the aspects that lead to Caetano
Veloso classification as a cultural activist, from the analysis of his career in the most
different sectors of art. In a reverence to what is beautiful and strong in the past
without any disregard for the future, but on the contrary, seeking from it to create
something new as interesting as this Bahian artist follows a trail of consistency
between criticism and praise, old and new, domestic and abroad, the shock and
appreciation, doing well to meet the guiding principles of art as a whole. Caetano
Veloso is a multifaceted artist who compose the Brazilian artistic firmament. Despite
being linked to the context of popular song, his performance beyond the limits of this
area, reaching many others. Whether through his songs, his interpretations, his
comments, his performance and persona as various as his own performance, more
than anything, Caetano Veloso can be considered a "cultural activist", as he moves
properly between the most diverse times, spaces and styles in terms of song,
behavior and world view. Brazilian culture has been enriched by foreign aspects that
have been added to this by an artist who insists dare, even with a career that border
the five long decades, without therefore need to prove anything, and yet, insisting to
reinvent himself.
Keywords: culture, brazilian popular music, poetic language, arts
Ter tido o rock’n’roll como algo relativamente
desprezível durante os anos decisivos da nossa
formação — e, em contrapartida, ter tido a Bossa Nova
como trilha sonora da nossa rebeldia — significa, para
nós, brasileiros da minha geração, o direito de
imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do
mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido
como um dever. (Caetano Veloso, Verdade Tropical)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: CAETANO VELOSO: O PERCURSO DE UM CAMALEÃO — “A
QUE SERÁ QUE SE DESTINA?”
11
1. BOSSA-NOVA EM CAETANO E DE CAETANO: UM IMPULSO QUE SEGUE
PULSANDO
34
2. TROPICÁLIA: UM DIVISOR DE ÁGUAS NA CULTURA BRASILEIRA
75
3. A CENA DO CAMALEÃO. LUZES, CÂMERA: CANÇÃO
118
4. UM CANTO POR TODOS OS CANTOS: A VOZ DO CAMALEÃO
153
CONCLUSÃO: COMPREENDER CAETANO VELOSO: O QUE QUER, O QUE
PODE ESTE CAMALEÃO? UMA PROPOSIÇÃO
197
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
203
!11
INTRODUÇÃO: CAETANO VELOSO: O PERCURSO DE UM CAMALEÃO — “A
QUE SERÁ QUE SE DESTINA?”
“Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica
[...]
Nenhuma força virá me fazer calar
Faço no tempo soar minha sílaba
Canto somente o que pede pra se cantar
Sou o que soa eu não douro a pílula
Tudo o que eu quero é um acorde perfeito
maior
Com todo o mundo podendo brilhar no cântico
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras sou muito romântico”
(Caetano Veloso, Muito Romântico)
Caetano Veloso é uma das figuras de grande relevância do cenário artístico
brasileiro, e referência obrigatória quando tratamos de nossa cultura entre a metade
final do século XX e esta década e meia do XXI.
Cancionista, músico, intérprete, compositor, ator, performer, pessoa pública
que se aproveita de sua visibilidade para expressar-se com toda liberdade acerca de
tudo o que ocorre. A despeito dos quase cinquenta anos de uma carreira tão frutífera
quanto longeva, Caetano Veloso foge aos rótulos e setorizações que poderiam se
colocar como limites para uma figura marcada por uma inquietação artística ímpar.
“Como um objeto não identificado”1, por meio da arte, este artista baiano tem
levado gerações a pensarem e repensarem sua posição como cidadãos e como
seres humanos, seja por meio da fruição de sua obra, seja pela simples percepção
da maneira como ele se expressa no geral — em palavras, atitudes e
comportamento.
Num país de dimensões continentais, tropical, subdesenvolvido, de terceiro
mundo, Caetano Veloso vem ousando dizer “não ao não”2, e assumido uma postura
de intrepidez, tanto quando traz a tona para o Brasil e para o mundo, num só tempo,
1
VELOSO, Caetano. Não Identificado (1969)
2
VELOSO, Caetano. É Proibido Proibir (1968)
!12
conforme suas palavras “o que eu herdei de minha gente e nunca posso perder”3,
quanto ao inserir-se no grupo “daqueles que zelam pela alegria do mundo” como um
todo. Assim, este baiano nunca se restringiu a um nacionalismo cerrado, uma
espécie de cabresto, como muitos, mas, pelo contrário, com uma carreira também
firmemente consolidada em outros países, de outras línguas e culturas, ele
introduziu na cultura brasileira elementos de outras povos, de modo a enriquecer e
pluralizar ainda mais a nossa.
A expressão “metamorfose ambulante”, oriunda da canção homônima
daquele que foi talvez o maior ícone do rock brasileiro, Raul Seixas, é totalmente
oportuna para designar alguém como Caetano Veloso. Sim, porque este artista
baiano em questão, que está prestes a completar cinco décadas de carreira, segue
literalmente na ativa, cantando, compondo e se expressando, e acima de tudo,
ousando.
Na verdade, numa espécie de concretização dos versos de sua canção O
Quereres (1984), quando o assunto é Caetano Veloso, via de regra, “onde queres”
em termos de expectativas um determinado comportamento ou atitude que seria
previsível, enfim, que se coloque como “isso”, este revela-se completamente o
avesso, impondo-se, como quem diria: “sou” aquilo.
No que tange a produção do gênero denominado “canção”, marcado pela
soma das materialidades verbal e musical — letra e música, respectivamente — o
trabalho desse cancionista baiano se insere de maneira exemplar no cenário musical
brasileiro, conforme ressalta Wisnik:
Sabemos bem que unir a palavra e a música de um modo
transparente é o segredo, nunca totalmente explicável, da canção.
Mas ela se faz dessa descoberta recíproca entre letra e melodia,
tensão flutuante surfando sobre as ondas das harmonias. Exemplos
desse trabalho, onde todo o artifício não deixa de visar a um estado
superior de naturalidade da palavra, se encontram todo o tempo nas
músicas de Caetano. (WISNIK, 1994, p. 8)
No entanto, por se tratar de uma obra de arte, a qual, portanto, poderá
suscitar as mais diversas reações e interpretações por parte do público que se
coloca como receptor ou consumidor deste produto, muito mais do que texto e
3
VELOSO, Caetano. Não Enche (1997)
!13
melodia, há também uma componente extra, o chamado “segredo [...] nunca
totalmente explicável” citado por Wisnik.
Este componente quase que mágico se faz presente nas artes como um todo,
mas, especificamente, tanto na literatura, quanto na música isoladamente, e, desse
modo, não poderia estar ausente na canção. Quem poderá explicar objetivamente
as reações causadas pela leitura de um bom texto, ou por escutar uma bela melodia,
ou mesmo por encontrar estas duas componentes fundidas na canção? A tentativa
de decifrar o que se coloca como indecifrável leva a explicações e teorizações.
Assim, por exemplo, pode-se ressaltar que as letras de Caetano Veloso são
marcadas por uma escrita poética e por todos os recursos característicos desta. A
linguagem empregada em sua canção é marcada por todas as nuances comuns à
poesia de grandes autores.
Nesse sentido, Lucchesi e Dieguez (1993) relacionam a poética cancional de
Caetano Veloso às obras de grandes nomes da literatura brasileira:
Desse modo, é possível alinhar a poética de Caetano com a poesia
satírica de Gregório de Matos, o registro escrito da oratória cortante
de Pe. Antonio Vieira, o olhar pulsante de Sousândrade, a astúcia de
Machado de Assis, a capacidade de desmascaramento de Lima
Barreto, a voracidade antropofágica de Oswald de Andrade, e, por
fim, a concepção planetária e galáctica dos irmãos Campos.
(LUCCHESI e DIEGUEZ, 1993, p.12)
De fato, ao empreendermos um olhar mais atento não só às canções, mas à
atitude e comportamento de Caetano Veloso, podemos encontrar todos estes
elementos referenciados por Lucchesi e Dieguez. Podemos nos deparar, por
exemplo, com um tom de crítica social bastante similar ao do poeta brasileiro que
ficou conhecido pela alcunha de “boca do inferno”, em canções como Fora da
Ordem (1991); a coerência lógico-argumentativa de um dos grandes nomes do
Barroco, na denúncia contida em Podres Poderes (1984); não apenas um olhar,
mas, também, um dizer pulsante que se propõe a testar os limites de nosso idioma,
conforme os versos de Língua (1984): “Flor do lácio Sambódromo / Lusamérica latim
em pó / O eu quer, o que pode essa língua?”; a “astúcia” de quem ousa driblar a
censura de uma ditadura militar com uma canção que se coloca literalmente como
uma Festa Imodesta (1974) em meio a este cenário caótico, contendo versos como:
Tudo aquilo que o malandro pronuncia E o otário silencia Toda festa que se dá ou não se dá !14
Passa pela fresta da cesta E resta a vida
Aliás, em se tratando de literatura, Caetano Veloso não só escreveu textos
com características e profundidade similares à de grandes textos, como também
adaptou para canção alguns textos poéticos, a partir da concepção de uma melodia
na qual eles foram encaixados como letra. Isto se deu, por exemplo, com Triste
Bahia (1972), de Gregório de Matos, Escapulário (1975), de Oswald de Andrade,
Circuladô de Fulô (1991), de Haroldo de Campos, e um excerto de O Navio Negreiro
(1997), de Castro Alves, numa recitação com uma batida ao fundo, estrutura muito
próxima à de um Rap.
E, como se não bastasse, gravou um disco cujo projeto foi baseado num
período passado e vergonhoso da história do Brasil. Mais especificamente, nas
palavras do diplomata, poeta e memorialista do contexto do Brasil-império Joaquim
Nabuco: “Noites do Norte” (2001). O disco em questão contém canções que tem por
tema o contexto da abolição da escravatura no Brasil, como 13 de Maio (2000), do
próprio Caetano Veloso, Zumbi (1974), de Jorge Benjor, e a canção que dá nome ao
álbum Noites do Norte (2000), que é na verdade um trecho de um texto de Nabuco
musicado por Caetano Veloso:
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica
nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma
grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a
natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como
se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas
legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas
tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem
concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia
seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas
noites do norte.
Se aspectos da história de épocas tão afastadas — e, ao mesmo tempo,
ainda tão presentes — de nossa atualidade ganham espaço na obra de Caetano
Veloso, nestas quase cinco décadas ele também vivenciou momentos decisivos da
história de nosso país e atuou nestes contextos de uma maneira bastante ativa.
Podemos citar, por exemplo, o contexto da Ditatura Militar, nos anos 60. Caetano
apresentou-se em festivais de música televisionados entoando canções de sua
autoria como Alegria, Alegria e É Proibido Proibir, que iam totalmente na contramão
das medidas tomadas pelos que estavam no poder naquele momento.
!15
Também na época das eleições que levaram ao poder Luis Inácio Lula da
Silva pela primeira vez, em 2002, Caetano defendeu que um homem do povo
assumisse o comando do país — embora, depois, como muitos, tenha também se
arrependido. Caetano Veloso apoiou candidatos como Marina Silva e Fernando
Gabeira, visando a uma renovação do quadro de candidatos e propostas que, via de
regra, quase sempre reduz-se a mais do mesmo.
Nesse sentido, o comportamento de Caetano Veloso vai ao encontro das
palavras da professora de antropologia do departamento de sociologia e política da
PUC-Rio e pesquisadora de música popular Santuza Cambraia Naves (2010)
introduziu o conceito de “canção crítica”. Trata-se, segundo a autora, da canção
surgida “no final dos anos 50 e ao longo dos anos 60”, e pode ser definida como:
[...] o lócus por excelência dos debates estéticos e culturais,
suplantando o teatro, o cinema e as artes plásticas, que constituíam,
até então, o foro privilegiado dessas discussões. (NAVES, 2010, p.
19)
Os grandes temas e as discussões que influíam na vida do homem do
contexto histórico ressaltado por Naves, cuja expressão até então era
caracteristicamente contida em peças de teatro, como por exemplo, as obras de
José Celso Martinez; em filmes de diretores como Glauber Rocha; e em telas e
estatuárias de nomes como Tarsila do Amaral, passaram a ganhar enfoque nas
letras e melodias das canções.
Especialmente num contexto marcado por um governo militar atrelado a um
regime ditatorial, o qual pouco a pouco por meio de atos institucionais vinha tolhendo
as liberdades e direitos dos cidadãos — inclusive os que eram garantidos na
constituição —, as canções produzidas por jovens compositores, muitas vezes
estreantes, traziam em si a expressão de descontentamento e até de protesto em
relação a este cenário caótico da história do Brasil. E a veiculação destas se dava
por meio dos grandes festivais de música produzidos por canais de TV como a
Excelsior, a Globo e a Record, os quais se tornaram um celeiro que revelou alguns
dos maiores nomes da canção popular brasileira de todos os tempos.
Acerca destes festivais, Mello (2003), comenta:
A partir do I Festival da Excelsior, programa musical na televisão
brasileira seria outra coisa. Uma coisa única no mundo. E ainda
mais: pela primeira vez na história da televisão brasileira, quem
estava em casa tinha um contato direto com o que acabava de sair
!16
do forno, a nova usina de produção de música popular, a privilegiada
geração dos anos 60. Esse público tinha liberdade de avaliar de
imediato a nova canção, influenciado ou não pelas plateias.
Liberdade de avaliar era um direito de cada cidadão, num país em
que a liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco havia
quase um ano. (MELLO, 2003, p. 74)
Confirme as palavras de Mello, a canção popular passou a trazer em seu bojo
a possibilidade de expressão, de dizer tudo aquilo que a grande maioria da
população, intimidada, gostaria, mas, no entanto, não tinha a possibilidade de dizer.
Desse modo, o cancionista ligado a essa modalidade de canção, concebida
por Naves, acabou por extrapolar seu contexto de atuação, não se restringindo
apenas à área da música, como compositor ou intérprete, mas assemelhando-se
aos “modernistas” no que diz respeito a um grupo de pensadores de seu tempo:
Os compositores populares, de maneira semelhante aos músicos
modernistas, como é o caso de Heitor Villa Lobos, passaram a
comentar todos os aspectos da vida, do político ao cultural, tornandose “formadores de opinião”. Este novo estatuto alcançado pela
canção contribuiu para que o compositor assumisse a identidade de
intelectual um sentido mais amplo do termo. (NAVES, 2010, p. 19-20)
Nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda,
Geraldo Vandré e tantos outros entraram para a história não apenas pelo valor
estético de suas obras no contexto da canção popular do fim dos anos 50, início dos
anos 60, mas, sobretudo pela efervescência e os debates gerados por meio de suas
composições em meio a um cenário em que a liberdade de expressão era bastante
reduzida.
Esta assunção de uma posição de “intelectual”, contida nas palavras de
Naves, também é perfeita quando pensamos numa figura como Caetano Veloso.
Apesar de cancionista, Caetano já se estabeleceu como uma das vozes de
relevância do cenário nacional, que opina e manifesta-se em relação a praticamente
todos os assuntos, das mais diversas áreas. Isso se dá de uma maneira tal que, ao
longo destas últimas décadas, há muitos humoristas que imitam Caetano Veloso,
num discurso analítico, marcado por palavras um tanto quanto difíceis ou eruditas
demais, muitas vezes incomuns na fala informal e cotidiana e, logicamente, por um
sotaque baiano agigantado que demarca o tom caricatural.
!17
A este respeito, o próprio Caetano comentou, durante um programa de
televisão, quando o apresentador Serginho Groisman lhe apresentara um jovem da
plateia que sabia imitá-lo, e iria fazê-lo, com as seguintes palavras:
Ó, eu vou dizer, fazer uma censura prévia, em homenagem às
lembranças da ditadura militar: não pode dizer “ou não”. Porque eu
nunca falei isso. Isso foi tirado de uma música do Walter Franco, que
é injustiçado pela ignorância dos meus imitadores, que, embora
sejam pessoas queridas, mas são jovens que não sabem, não se
lembram de tudo que aconteceu antes. Esse negócio de “ou não” era
a música Cabeça, do Walter Franco, que ficou mais ou menos
esquecido, injustamente esquecido. Então pegaram esse “ou não” e
botaram em mim. Ainda bem que eu sou aquele cara que realmente,
quando falo numa coisa, observo aspectos diferentes da mesma
coisa. Não demais. Não sou nenhum Gilberto Gil, mas... [risos] Mas
dou uma sacada aqui e ali, entendeu?
Grande parte dos imitadores de Caetano Veloso utiliza a expressão “ou não”,
atribuindo-a como costumeira do discurso dele, a qual na verdade é mais uma
síntese desta sua visão de diferentes pontos de vista acerca de um mesmo assunto,
mas, sobretudo, da sua visão pessoal acerca destes. Um exemplo é o humorista
João Cláudio Moreno, que encarnava o personagem “Caretano” — uma caricatura
que escrachava esta possível caretice de Caetano Veloso — num programa de
humor de Chico Anysio, no qual este dava vida a “Zelberto Zel”, uma caricatura de
Gil.
No geral, a fala de Caetano, por sua vez, se dá de uma maneira muito clara,
via de regra sempre alicerçada em argumentos sólidos, frutos de uma visão de
mundo aliada a uma percepção e capacidade de leitura bastante aguçadas.
Por outro lado, toda esta clareza acaba também por gerar polêmicas, já que
suas palavras, por vezes são destacadas fora de seu contexto original. Por exemplo,
quando questionada sua opinião sobre a então candidata a presidente Marina Silva,
Caetano Veloso, para elogiá-la estabeleceu uma comparação desta com o
presidente americano Obama e também com o ex-presidente do Brasil, Luís Inácio
Lula da Silva:
Não posso deixar de votar nela. É por demais forte, simbolicamente,
para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo.
Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é
analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando,
grosseiro. Ela fala bem. (VELOSO, 2009)4
Disponível em: [http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/caetano-veloso-e-o-analfabetismo-ecafonice-de-lula-agora-em-carta/]. Acesso em 10/11/205, às 19:30.
4
!18
As palavras de Caetano Veloso, tomadas como agressivas, apontam para o
fato biográfico, da vida pessoal do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o qual já
declarou inúmeras vezes o fato de não ter tido uma vida escolar regular durante sua
infância e adolescência — devido às dificuldades de sobrevivência, sobretudo —. No
entanto, foi este fato que contribuiu sobremaneira para compor a narrativa heroica
de um homem do povo, o qual nunca se envergonhara, mas, pelo contrário, se
vangloriara pelo fato de, apesar de sua origem pobre e como iletrado, ter conseguido
chegar ao comando da nação brasileira, conforme o texto contido na página do
“Instituto Lula”, que tem por título “Origem”5:
O sertanejo é antes de tudo um forte. Cunhada pelo escritor Euclides
da Cunha, a frase parece se ajustar à personalidade de Lula desde
seu nascimento. Nordestino, pobre, sétimo filho de um casal de
lavradores analfabetos, Luiz Inácio Lula da Silva nasceu em 1945
numa casa de dois cômodos e chão de terra batida no Semiárido
pernambucano. [...] Conclui o ginásio e, empregado numa
metalúrgica aos 14 anos, é admitido no curso técnico de torneiro
mecânico do Senai.
Apesar disso, o modo como este fato foi levantado por Caetano traz consigo
um quê elistista — tendo em vista o grande número de reais analfabetos que
compõem a população brasileira — e, sendo desviado do contexto de comparação
entre a história dos dois presidentes em questão, foi publicado como manchete,
tomado como não apenas como uma crítica, mas como um literal ataque do
cancionista baiano ao ex-presidente brasileiro. Por isso, causou diversas reações
entre o povo, na mídia e entre os políticos, dentre os quais, do próprio ex-presidente
Lula, que declarara, numa réplica: “Tem gente que acha que a inteligência está
ligada à quantidade de anos de escolaridade que você tem. Não tem nada mais
burro do que isso”. Certamente, a inteligência não depende apenas da escolaridade, mas, não
era a isso que Caetano se referia, mas ao caráter errôneo e equivocado da fala de
Lula — não apenas no que diz respeito à gramática —, evidenciado quando ele se
pronuncia publicamente. Trata-se, mais marcadamente, da menção de um fato de
maneira hiperbólica, a fim de evidenciar um aspecto negativo do presidente
brasileiro em relação ao americano.
Com toda a repercussão de sua declaração vertida em manchete, Caetano
5
Disponível em: [http://www.institutolula.org/biografia]. Acesso em 23 de fevereiro de 2016, às 19:18h.
!19
Veloso enviou uma carta à redação do jornal, que foi publicada no mesmo, dias
depois, contendo trechos como:
O que mais me impressiona é as pessoas reagirem diante da
manchete do jornal, tal como ela foi armada para criar briga, sem
sequer parecerem ter lido o trecho da entrevista de onde ela foi
tirada. É um país de analfabetos? A intenção sensacionalista da
edição tem êxito inconteste com os leitores. Pobres de nós.
Sonia Racy sabe que eu ressaltei essa diferença entre Lula e Marina
para explicar porque eu dizia que ela é também um fenômeno tipo
Obama (coisa que Racy e Nelson Motta não entenderam). Marina é
Lula (a biografia) e é Obama (a cor escura e o modo elegante e
correto de falar — e escrever). Li aqui que Lula disse que é burrice
minha dizer isso. É. Serve para Berzoini contar alegremente votos
migrando de Serra ou Aécio para Marina, não de Dilma.
Ainda mais que toca nesse ponto óbvio (que para mim tem todas as
vantagens e desvantagens, não sendo um aspecto meramente
negativo) da fala pouco instruída e frequentemente grosseira e
cafona de Lula. Todos sabem disso. Ele próprio se vangloria. Os
linguistas aplaudem. E todos têm razão: ele é forte inclusive por isso.
Fala “bem”: atinge a maioria dos ouvintes. 6
O caráter parcial do jornal em questão, que tira de contexto a declaração de
Caetano Veloso e a veicula de forma distorcida, em letras garrafais — visando à
polêmica e, obviamente, a uma grande vendagem — e o de toda uma multidão de
pessoas que analisaram a declaração fora de contexto, tomando partido, leva
Caetano Veloso a explicar novamente o raciocínio em que se inseriam suas
palavras. Se o elogio a Marina Silva, definida como uma fusão de elementos
positivos presentes em grandes líderes como Lula e Obama, leva também a uma
distinção entre estas duas figuras — por aspectos que se opõem entre os dois —,
não deveria ser dado como algo chocante, principalmente por jornais que, em sua
maioria, sempre criticaram este mesmo aspecto do ex-presidente brasileiro em
questão. Aliás, Caetano em sua carta levanta um outro aspecto de sua fala dada
como ofensiva: esta maneira tão singular de se comunicar do ex-presidente Lula
acaba se revelando positiva, sendo mais eficaz num país que possui uma enorme
parcela de sua população classificada não como analfabeta, mas como “analfabeta
funcional“, apenas por conseguir grafar — ou desenhar — seu próprio nome, mas
sem conseguir ler e interpretar um texto devidamente.
Mas, nem só de Brasil se ocupa este caráter crítico/comentarista de Caetano
Veloso. Assuntos relativos à política de outros países também passam pelo filtro
Disponível em: [http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/caetano-veloso-e-o-analfabetismo-ecafonice-de-lula-agora-em-carta/]. Acesso em 10/11/205, às 19:30.
6
!20
deste cancionista baiano, em suas canções e comentários. O disco “Uns” (1983)
contém a canção Quero Ir A Cuba (1983), canção com um ritmo latino marcada por
um tom quase que irônico ao ser constituída por versos como os que abrem a
canção: “Mamãe eu quero ir a Cuba / Quero ver a vida por lá”, expressão de uma
curiosidade positiva, mas também pelos que a encerram: “Mamãe eu quero ir a
Cuba / E quero voltar”, tendo em vista o regime político deste país. O disco “Zii e Zie”
(2009), contém a canção Diferentemente (2009), que é encerrada pelos versos:
“Diferentemente de Osama e Condoleezza / eu não acredito em Deus”, os quais se
colocam como uma crítica a posturas políticas fundamentalistas justificadas por
crenças religiosas.
Outro exemplo deste aspecto dos “formadores de opinião” ressaltado por
Naves, que justifica a inclusão de Caetano Veloso entre estes, está contida numa
canção de sua autoria. Trata-se de A Base de Guantánamo (2009), cuja letra,
bastante clara e sucinta, reproduzimos abaixo:
O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em
solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me
abalar
a base de Guantánamo
a base da Baía de Guantánamo
a base de Guantánamo
Guantánamo
Apesar de se tratar da nação dominante do século XX e até agora no XXI,
marcada por uma postura violentamente imperialista e dominante, o desrespeito aos
“direitos humanos” e às liberdades individuais que deveriam ser inerentes a qualquer
ser humano de qualquer lugar no mundo, agride as concepções e visões de mundo
de alguém que sempre lutou pela liberdade, como Caetano Veloso, colocando-se,
apesar da ausência de violência física, como algo muito “forte simbolicamente”,
como uma literal bomba no campo das ideias, em plena atualidade.
A canção O Estrangeiro (1989), é outra das que podem ser citadas por conter,
conforme as palavras supracitadas do comentário do próprio Caetano Veloso,
“aspectos diferentes da mesma coisa”.
O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela
E eu, menos a conhecera, mais a amara?
!21
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Diferentes opiniões atreladas ao gosto estético de um cenário
caracteristicamente brasileiro levam a uma reflexão do que seria “uma coisa bela”?
Ora, a citação de grandes nomes da arte, de estilos completamente diferentes entre
si, autores de obras que se constituem como o “belo” para tantas pessoas ao redor
do mundo demonstra a variação deste conceito, e levam o ouvinte a uma reflexão:
Afinal de contas o que é que eu aprecio e considero belo? Por quê? Mas, acima de
tudo reforça o caráter subjetivo da beleza atrelada à arte.
Em relação a este comentário de “todos os aspectos da vida”, o cineasta
brasileiro Cacá Diegues, num programa de entrevistas, dirigiu a Caetano Veloso
uma pergunta que contém uma ponderação que vai ao encontro destas palavras de
Naves:
A nossa geração sempre se sentiu muito responsável pelo Brasil.
Mas tem algumas pessoas na nossa geração, como o Glauber
[Rocha] e como você, mais do que isso, parece que estão em
permanente estado de vigília em relação a tudo que acontece no
Brasil. Quer dizer... Você é uma pessoa que... Desde que esse
programa começou nós já lhe perguntamos sobre o futuro do Brasil,
casamento de homossexuais, a vida das crianças, o livro que você
‘tá escrevendo — que é um livro de pensamento —, as suas
polêmicas com a imprensa... E você, profissionalmente, é um
compositor, é um músico! Esse estado de vigília permanente, que no
fundo é a sua vocação, mas também é muito provocado pelas
pessoas que lhe admiram, ou até que querem brigar com você, isso
é uma coisa que você faz com naturalidade ou lhe cansa de vez em
quando? (DIEGUES, 1996) 7
Cacá Diegues parece custar a acreditar que esta atenção veemente de
Caetano Veloso em relação a tudo que ocorre seja algo natural — uma “vocação” —
e até postula que possa ser apenas fruto ou resultado de estímulos externos.
Entretanto, trata-se mesmo de uma vocação expressa numa prática que não se dá
devido a cobranças, mas, naturalmente, por meio de uma sensibilidade e
inquietação artísticas que transcendem o grau convencional.
7
Programa de entrevistas “Roda Viva”
!22
De fato, podemos ressaltar que este olhar atento de Caetano Veloso é
expresso pelos temas trabalhados em suas canções. Estes são os mais diversos
possíveis, e vêm a promover uma articulação entre o particular e o universal, o
individual e o coletivo, o privado e o público, com um tratamento que abrange desde
questões íntimas, inerentes a qualquer ser humano, até as mais gerais, relativas a
diferentes grupos, que refletem uma pluralidade ideológica, conforme afirma Wisnik:
As canções de Caetano falam de praticamente tudo: é difícil lembrar
um tema que elas não tenham aflorado de alguma forma; é difícil
lembrar um gênero ou um setor da música popular que elas não
tenham revisitado com suas interpretações. A aplicação de Caetano
Veloso ao campo da canção, com intervenções deslocantes, pontes
inesperadas, e sua homenagem à força radiosa do que é belo e forte,
faz da sua obra um comentário muito amplo do mundo através das
inumeráveis refrações da palavra cantada. (WISNIK, 1988, p.8)
Este tratamento de “praticamente tudo” citado por Wisnik, dado por meio da
canção em Caetano Veloso pode ser explicado, acima de tudo, pelo fato de se tratar
de um artista que se permite sempre ousar, experimentar as formas de expressão e
de manifestação que sejam mais adequadas em relação ao que há para ser dito.
Devido a isso, Caetano se permite testar as mais “inúmeras refrações” no que diz
respeito à expressividade da canção, testando e ousando extrapolar seus possíveis
limites, seja por meio da forma,, seja por meio da própria linguagem nela
empregada.
Não bastasse a pluralidade do compositor/intérprete, Caetano Veloso também
construiu uma persona artisticamente falando que também é marcada por este
mesmo aspecto vário.
As quase cinco décadas de carreira deste cancionista baiano propiciam toda
uma alteração de sua imagem, e, por isso, a possibilidade de contemplação de
muitos e diversos Caetanos. Isto se daria naturalmente por condicionantes da
passagem do tempo, mas, além disso, Caetano Veloso, por meio de diferentes
estilos de vestimentas e de sua própria imagem como um todo (corte de cabelo,
penteado e etc.) traz à tona mais uma vez seu aspecto camaleônico, visualmente
falando.
Em termos de identidade, o teórico Stuart Hall (2003) propõe algumas
classificações, dentre as quais a de “sujeito pós-moderno”. Esta denominação está
atrelada à ausência de uma identidade una, fixa, essencial ou permanente que
!23
estaria ligada a componentes biológicos, mas sim ao caráter de múltiplas e
diferentes identidades que se configuram historicamente, de acordo com as
circunstâncias específicas dos mais variados cenários e épocas. Acerca do “sujeito pós-moderno”, é o próprio Hall quem explica se tratar de
um
[...] sujeito [que] assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor do “eu”
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando
em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas (...). A identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida em que os sistemas de significação e representação
cultural multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertantes e cambiantes de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos
temporariamente (HALL, 2003, p. 13).
Ao analisarmos o comportamento tão singular adotado por Caetano,
percebemos que este vai de encontro a esta categorização proposta por Hall, de
modo a ser expresso por múltiplas e diferentes identidades assumidas nas mais
diversas situações, e que também se desvelam de um modo bastante diversificado,
por sua postura e comportamento, pelo que ele diz,
as nuanças de sua
performance, mas sobretudo, por suas canções.
Apesar de brasileiro, Caetano Veloso consegue assumir com coerência o
papel do outro, como o de quem goza de uma liberdade propiciada pelo
distanciamento para olhar, analisar e criticar as incoerências de sua própria terra
natal sem ser tomado pelo contaminamento de sua própria origem — fator que
poderia tornar parcial todo e qualquer posicionamento tomado por ele.
Dessa maneira, Caetano Veloso consegue empreender uma visão do Brasil e
dos brasileiros a partir de um olhar estrangeiro, de alguém que, participante de uma
determinada coletividade se coloca na posição do “outro”. Acerca desta figura,
Kristeva (1994) pontua:
Se voltarmos no tempo e nas estruturas sociais, o estrangeiro é o
outro da família, do clã, da tribo. Inicialmente, ele se confunde com o
inimigo. Exterior à minha religião também, ele pode ser o infiel,
herético. Não tendo prestado fidelidade a meu senhor, ele é o nativo
de uma outra terra, estranho ao reino e ao império. (KRISTEVA,
1994, p.100)
!24
Em relação às palavras de Kristeva, Caetano Veloso já fora confundido com o
“inimigo” ao assimilar em sua canção aspectos de culturas estrangeiras em meio ao
nacionalismo de cabresto da segunda metade dos anos 60; fora chamado de “infiel”
à ocasião de sua prisão e condenação ao exílio também no fim dos anos 60, sob a
acusação de ter queimado a bandeira brasileira numa de suas apresentações — fato
nunca provado, aliás, possivelmente forjado apenas para propiciar a extradição de
um artista tão perigoso para o regime militar brasileiro—; “nativo de uma outra terra”
ao voltar-se ferozmente em críticas às incoerências do Brasil, durante toda sua
carreira; “estranho” em relação a um possível “reino” traduzido por um país que,
conforme seu hino, conforma-se em estar “deitado eternamente em berço
esplêndido” sendo, na realidade, arrasado por “ridículos tiranos” que assumem o
poder político visando a um bem próprio, particular, e não da nação como um todo.
Versos como os de Fora da Ordem (1991) podem ser citados como um
exemplo disso, e falam por si só:
Aqui tudo parece que é ainda construção e já [é ruína Tudo é menino e menina no olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua Nada continua E o cano da pistola que as crianças mordem Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais
bonita e muito mais intensa do que um cartão postal Assim, nesta tese propomo-nos e analisar e investigar o artista Caetano
Veloso e sua obra, de modo a propor a classificação deste como um agitador
cultural, devido à interssecção entre os mais diversos setores da arte, e também
devido à maneira como o assunto cultura granha enfoque em sua atuação.
Quando pensamos em cultura, lidamos com um conceito trabalhado sob os
mais diversos pontos de vista. Neste estudo, tomamos por base a acepção de
Bauman (2012), mais especificamente, o que é denominado por ele “conceito
genérico”, no qual ganha enfoque a linguagem e sua decorrente produção de
sentidos, dados como a essência da práxis humana. A este respeito, Bauman
explica:
O conceito genérico tem a ver com os atributos que unem a espécie
humana ao distingui-la de tudo o mais. Em outras palavras, o
conceito genérico de cultura tem a ver com as fronteiras do homem e
do humano. [...] Em sua forma mais simples, o conceito genérico de
cultura consiste em atribuir à própria cultura a qualidade de
!25
característica universal de todos os homens, e apenas destes
(BAUMAN, 2012, 131-133)
Bauman, em seu comentário, nos permite chegar a uma perspectiva na qual a
cultura não é dada apenas como um aspecto localizado (marcado territorialmente),
mas sim, por um conjunto de características que perpassam nossas vivências e
práticas sociais.
Partindo deste âmbito, Caetano Veloso poderia ser chamado nacionalista ao
tratar e abordar os mais variados aspectos da cultura nacional, dando-lhes uma
visibilidade internacional — tanto de seus apectos positivos, em louvor, quanto na
crítica de suas injustiças e mazelas. Ele também poderia ser chamado cosmopolita
por transitar por outras culturas — estilos, costumes e idiomas —, com uma
naturalidade tamanha que quase permitiria confundi-lo como algum nativo
pertencente a estas. Além disso, seu movimento entre o nacional e o estrangeiro o
centra como uma personalidade de relevância da cultura brasileira, num constante
diálogo com outras que se traduz não numa negação ou substuituição desta, mas,
sobretudo num enriquecimento da mesma, numa literal antropofagia cultural em que
o devorar o que é diferente, o adaptar num processo de digestão e, então utilizá-lo,
numa peça inédita, mas miscigenada, como seu é uma prática corrente.
E, para além de questões dessa ordem, a agitação cultural promovida por
Caetano Veloso também passa por outras esferas, como o particular e o público, a
questão dos gêneros (masculino e feminino), o tradicional e o popular, mas
sobretudo por um ousar, uma inquietação artística singular.
O diálogo com culturas estrangeiras — tanto de língua inglesa, espanhola,
italiana, francesa... —, o qual inicialmente, nos anos 60, foi erroneamente
confundido como uma negação ou diminuição da cultura brasileira, pelo contrário, é
marcado pela soma, pela incorporação, de modo a enriquecer ainda mais a cultura
brasileira, tornando o que lhe é estranho mais do que familiar ou próximo, mas
próprio.
São literalmente quase cinquenta anos de assunção desta postura
camaleônica, que ora se mistura, ora se destaca trazendo algo novo a partir desta
aproximação, de maneira a surpreender seu público, seja agradando por algo que é
considerado belo por este, seja chocando, com o que é considerado grotesco ou
inaceitável, inicialmente, mas, que depois vem a se tornar o comum e apreciado.
!26
Tudo passa pelo filtro bossa-novista-tropicalista deste artista baiano e é
vertido em algo novo, completamente diferente do texto base.
Exemplos não faltam, desde o início de sua carreira: a incorporação da
guitarra elétrica em “Alegria, Alegria”; a letra marcada por uma concepção
cinematográfica; o diálogo com o Concretismo; a assunção e aplicação de
elementos de gêneros mais populares como o Rap e o Funk Carioca; a quebra de
paradigmas em relação ao vocabulário empregado nas letras; a tomada de
elementos de uma cultura hippie norte-americana durante os anos 70 adaptando os
paradigmas do “paz e amor” à realidade brasileira então vigente; enfim, toda uma
gama de princípios introduzidos os quais inspiraram outros artistas — tanto de seu
contexto quanto das gerações posteriores —, tendo se tornado traços distintivos da
canção popular da atualidade.
Ney Matogrosso, uma das figuras mais reverenciadas da canção popular
brasileira por sua vertente de intérprete, numa entrevista, faz um balanço das
influências que o levaram a adotar a postura singular do artista reverenciado que se
tornou.
Diferentemente de um grande numero de artistas de sua geração, Ney
Matogrosso confessa que o ponto de impacto fundamental que lhe servira de
impulso não foi a Bossa-Nova, mas a Tropicália, e, mais especificamente, Caetano
Veloso. E não pelos aspectos de inovação que visavam a uma modernização da
canção brasileira, mas, muito pelo contrário:
[...] A voz do João me chamou muito a atenção. Mas da bossa nova
propriamente dita eu não gostei logo. Ela tinha uma coisa ideológica
que vetava o passado, sabe? Tanto que os artistas da geração
anterior foram ignorados rapidamente. Ninguém mais cantava em
televisão porque viraram uma página da história da música brasileira.
E isso me deixava contrariado. Até que veio a tropicália e Caetano
Veloso cantou uma música de Vicente Celestino. Aí, sim, ele estava
mais próximo da minha turma, mais próximo do meu ideal musical
(MATOGROSSO, 2013)8
Mais do que a mera proximidade de um “ideal musical”, Caetano Veloso
revelou-se um estímulo muito eficaz para Matogrosso justamente por ser mais do
que um mero cantor ou intérprete, mas por assumir uma mesma postura dentro e
8
Entrevista na Revista Rolling Stone
!27
fora dos palcos, um comportamento diferente e singular, conforme o próprio
Matogrosso pontua:
[Caetano Veloso] me instigava. Desde o começo eu ficava assim,
esperava os discos dos Mutantes, de Caetano, de Gal, do Gil e do
Chico Buarque. Ficava ansioso. Aquilo alimentava uma coisa estética
dentro de mim que eu não tinha exatamente como definir. [...] Ele foi
o único. O primeiro que vi ousando em todos os sentidos. E em
termos comportamentais. Porque ninguém ousava em termos
comportamentais. Roberto Carlos não ousava. Todos eram muito
bonitinhos, hein? Gal gostosa, Bethânia deliciosa, todo mundo
gostoso, bonito. Foi quando o sexo aflorou na música brasileira sem
sofrimento. Porque antes era dor de cotovelo. Caetano era o
representante disso. (MAROGROSSO, 2013)9
De fato, Caetano Veloso, valendo-se de sua visibilidade de artista, ousou
trazer à tona uma forma de se comportar e de agir completamente irreverente em
relação ao padrão dos artistas e das pessoas de sua época. E, conforme afirmou
Matogrosso, Caetano ousou trazer à superfície, libertando da subjacência toda uma
esfera atrelada à sexualidade, seja por seu comportamento, sua personalidade
artística, seja pelo tratamento deste assunto em inúmeras canções, sem instaurar
qualquer clima de tabu, que restringisse o assunto meramente à esfera particular e
até certo ponto, proibida.
Nesse sentido, Faour (2011) afirma mais categoricamente que “só a partir dos
anos 70 a mulher e o gay passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos
letristas.” (FAOUR, 2011, p. 16) E, deste grupo mencionado por Faour, Caetano
Veloso é um de seus principais representantes.
E, ao tratarmos de um conceito tão amplo quanto a cultura, a sexualidade se
coloca como uma de suas expressões. Cecatti (1998) define o termo sexualidade
como:
O conjunto das emoções, sentimentos, fantasias, desejos e
interpretações que o ser humano vivencia ao longo de sua vida, em
busca do prazer, incluindo aí o desejo, a excitação e o conforto físico
(CECATTI, 1998, p. 271)
Sexo é uma prática inerente à condição humana e, assim como tantas outras
atividades básicas, como as ligadas à higiene ou à alimentação, é algo a ser
aprendido para ser desenvolvido. A prática sexual é também
fruto da cultura, à
medida que as pessoas de cada comunidade são orientadas de acordo com
9
Idem
!28
itinerários, regulamentos e comportamentos dados como aceitáveis ou não em cada
um destes contextos.
Segundo Foucault (1988), a atmosfera da sexualidade é uma das
componentes do ser humano moderno ocidental, fundamental na
construção de
uma identidade para o sujeito e condicionada por influências sociais e históricas.
Estas são as que designam determinadas práticas sexuais como adequadas ou
inadequadas, morais ou imorais, saudáveis ou nocivas, de acordo com seus próprios
valores fundamentais.
Em Caetano Veloso esta é uma temática desenvolvida com a mesma
naturalidade que tantas outras atreladas à existência do ser humano, e também com
a mesma pluralidade das demais.
Em suas canções, temos exemplos das mais variadas formas de amor (e
portanto, também de sexualidade). Temos a expressão de uma relação
heterossexual convencional, atrelada aos estereótipos do homem, macho
dominador, e da mulher, fêmea dominada e subjugada, em Esse Cara (1972). Temos
a mesma modalidade de relação, mas com o domínio por parte da mulher que, por
seus atributos físicos e psíquicos, subjuga o homem, em Tigresa (1977) e Queixa
(1982). Apresenta-se a realidade de um casal heterossexual em Você é Minha
(1997) e Eclipse Oculto (1983), marcada inclusive por aspectos com a fidelidade,
como também a liberdade de uma relação que não é marcada por estes limites em
termos de monogamia em Nosso Estranho Amor (1980). Constam também na obra
de Caetano peças que tem por tema a homossexualidade, seja de forma discreta,
como em Menino do Rio (1979), ou mesmo de maneira mais explícita, sem qualquer
alarde: Ele Me Deu Um Beijo Na Boca (1982), Eu Sou Neguinha (1988) e Amor Mais
Que Discreto (2007).
Além das canções em si, vale lembrar que Caetano Veloso, ao lado de Jorge
Mautner, foi um dos primeiros andróginos da canção popular brasileira, ao adotar um
visual, a construção de uma imagem marcada por elementos comuns à esfera da
aparência feminina, como brincos grandes em ambas as orelhas, batom, ruge e
outras modalidades cosméticas atreladas à maquiagem de uma mulher como
também algumas peças de vestimentas deste estilo.
!29
No documentário “Olho Nu” (2012), Ney Matogrosso reitera esse comentário
da importância do Tropicalismo em sua trajetória e até relata um fato bastante eficaz
quando tratamos deste comportamento ou atitude tão particular de Caetano Veloso
tanto dentro quanto fora dos palcos:
Eu não era nem artista nessa época. A influência que o Tropicalismo
provocou na minha cabeça resultou nisso. Eu não sou uma cria. Eu
sou uma consequência do Tropicalismo. Porque a Bossa-Nova
renegava o passado, renegava o cafona, renegava a dor de cotovelo.
Mas a música brasileira não é a Bossa-Nova, é a Bossa-Nova
também. Uma vez, em Brasília, na única sorveteria que tinha, que era em
frente ao hotel Nacional, eu fui lá tomar um sorvete e Caetano estava
na cidade, com Gilberto Gil, Rita Lee. Caetano Veloso estava de rosa
do pescoço até o pé. Rosa era uma roupa que homem jamais
escolhia. Ele estava inteiro de cor de rosa, com aquele cabelo lindo,
enorme, cacheado... Eu não tive coragem. Ele era assim o meu
ídolo, né? Eu não tive coragem de chegar pra falar com ele. Eu fiquei
de longe, assim, extasiado, olhando pra ele. E eu percebia que ele ia
além dessa coisa de música e de política que queriam colocar em
cima dele. Eu sentia que era uma coisa muito mais profunda. Ao
homem era vetado expor a libido, embora Caetano expusesse a dele
moderadamente. Eu vim descaradamente com a libido exposta.
(MATOGROSSO, 2012, 56:43 — 58:01)
Matogrosso ressalta sua compreensão acerca de que Caetano, além de
passar por, ia muito além das esferas da “música” e da “política” simplesmente, mas,
de uma maneira mais intensa, de fato vivia o que expressava em sua arte, de
maneira a confundir os limites entre realidade e ficção, entre as esferas do público e
do privado, mas, fazendo de sua arte uma expressão do que ele realmente era.
Em termos ainda de “libido”, além de tudo que já comentamos a pouco,
podemos citar outro exemplo: a capa do disco “Araçá Azul” (1979) — historicamente,
um dos discos mais devolvidos às lojas pelo público consumidor, devido à proposta
de Caetano Veloso neste trabalho. O disco em questão tem por capa uma foto deste
artista baiano, de um ângulo que parte de baixo para cima, trajando apenas uma
tanga vermelha e tendo os olhos encobertos por seu cabelo grande — uma espécie
de juba —, deixando à mostra, inclusive, seus pelos pubianos — algo no mínimo
pouco convencional, digamos.
!30
Devido todos estes fatos, Caetano Veloso assume a figura de um artista, o
qual, segundo o jornalista Marco Augusto Gonçalves10, num artigo do caderno Mais
do jornal Folha de São Paulo, ultrapassa os limites de um mero gosto musical:
Gostar ou não gostar do autor de ‘Tropicália’ — mesmo para minha
geração, que entrou na universidade no início dos anos 70 — não se
resumia a uma simples manifestação de gosto musical: a decisão
implicava uma opção política, cultural, existencial. (GONÇALVES,
1997, p. 4)
Apesar de a arte estar ligada à produção de obras/peças e a atingir um
determinado público — o qual apreciará ou não o trabalho do artista em questão —,
Gonçalves exprime o fato de Caetano Veloso ser uma figura cuja relevância
extrapola o gosto. Não se trata de gostar ou não, mas de aceitar sua pertinência em
áreas que vão muito além à da canção popular.
Em Caetano Veloso é traço característico o louvor, a homenagem a seus
colegas cancionistas, cujos nomes constam em referências em letras de muitas de
suas canções. Poderíamos citar as menções a: Djavan em Eclipse Oculto (1983), no
verso “[...] e desperdiçamos os blues do Djavan”; Chico Buarque em Língua (1984),
no verso: “E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate / E — xeque-mate”; Tim
Maia e Jorge Bem em Podres Poderes (1984), no verso: “Indo mais fundo / Tins e
bens e tais”. No entanto, Caetano também consta como referência em letras de
canções de seus colegas. A canção Sina (1981), de Djavan — que a gravou em
dueto com Caetano — contém o verso “Como querer Caetanear o que há de bom”;
Mano Caetano (2001), de Lobão, é toda dedicada ao cancionista baiano, contendo
versos como: “Amado Caetano, chega de verdade / Viva alguns enganos”, e
Felicidade (2015), de Seu Jorge, que contém o trecho:
Felicidade, é poder jogar um pano
Colar no show do Caetano
Cantar 'Odara' até o dia raiar
São todos exemplos da importância dada por Caetano à cultura musical
brasileira, e a relevância dele neste contexto.
Uma canção bastante singular quando tentamos classificar Caetano Veloso
como um agitador cultural é Beleza Pura (1979), a qual contém os versos: “Não me
amarra dinheiro não / Mas a cultura”. Este poderia ser interpretado como a
GONÇALVES, Marco Augusto. O Tropicalismo no Poder. Publicado no caderno Mais da Folha de S.
Paulo em 02/11/97.
10
!31
expressão da predileção de alguém em relação a uma outra pessoa, não por
aspectos socioeconômicos, mas por traços de sua identidade, daquilo que a forma
pelo local onde ela nasceu, os valores com que foi educada e a visão de mundo que
possui. Os mesmos versos também poderiam ser lidos como uma possível empáfia
de alguém que negaria interesses econômicos, tentando expressar um caráter de
pureza e honestidade atrelados a uma relevância apenas da “cultura”. No entanto,
em Caetano Veloso este verso é bastante expressivo não por nenhuma das duas
leituras anteriormente comentadas, mas sim porque, de fato, em sua obra é
facilmente notada uma especial preocupação ou atenção com elementos que estão
atrelados à cultura e não às questões monetárias que implicam na classificação de
países desenvolvidos e subdesenvolvidos, de primeiro e de terceiro mundo. E isto se
dá tanto em relação aos brasileiros quanto a questões de outros povos.
O movimento deste cancionista baiano tem sido justamente o de trazer à tona
os elementos da cultura nacional que, por vezes, são esquecidos ou deixados de
lado — até mesmo por supostos nacionalistas e ufanistas — e somar a estes —
entenda-se bem: somar e não substituir ou desvalorizar — elementos de outras
culturas estrangeiras, de modo a domesticar o que até então era o estranho, e com
isso enriquecer a gama de possibilidades de uma cultura já tão plural como a
brasileira. E a escolha destes elementos exóticos se dá com a mesma intensidade
tanto de países e culturas desenvolvidas e de primeiro mundo, quanto de outras pelo
contrário, periféricas e subdesenvolvidas, buscando e primando o valor artístico e
expressivo, sobretudo.
Em “Bossa-Nova em Caetano e de Caetano: Um impulso que segue
pulsando” buscamos investigar a relação de Caetano Veloso com este gênero
musical brasileiro tipo exportação tão aclamado nacional e internacionalmente. Do
despertamento com o boom de João Gilberto e Chega de Saudade em 1959,
passando por sua reiterada paixão tanto pelo gênero musical quanto pela figura
central deste, em questão, temos neste percurso um exemplo claro da relação de
Caetano Veloso com a cultura como um todo.
Já em “Tropicália: Um divisor de águas na cultura brasileira”, a investigação
está centrada no movimento criado por Caetano Veloso em parceria com Gilberto
Gil, o qual literalmente se colocou como uma quebra de paradigmas e marcou a
história da canção e das artes como um todo no Brasil. Qual foi a proposta, como foi
!32
desenvolvida e, nos anos subsequentes ao movimento propriamente dito, o que e
quanto destes preceitos foram mantidos ou alterados por Caetano Veloso em seu
movimento artístico são alguns dos temas desenvolvidos neste capítulo.
Por sua vez, “A Cena do Camaleão. Luzes, Câmera: Canção” contém a
investigação das relações de Caetano Veloso com a sétima arte. Amante confesso
da cinematografia, apesar de ter se aventurado pelo setor da música e da canção,
mais especificamente, o diálogo com as obras fílmicas permeia a obra deste
cancionista baiano. Entre a crítica cinematográfica, o tratamento deste assunto em
inúmeras canções, a suas participações em obras fílmicas e até a realização de um
sonho de infância com a realização de uma obra fílmica assinada por ele mesmo,
Caetano Veloso promove uma literal intersecção entre estes setores da arte, e, com
isso, trabalha também com elementos da cultura brasileira e estrangeira.
Por fim, “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão” se coloca
como um estudo da face de intérprete de Caetano Veloso, a qual, por seu aspecto
vário e multifacetado, diz muito em termos de cultura, por meio dos diálogos
estabelecidos por este artista brasileiro, entre as mais diversas épocas, estilos e
espaços, fator que ajuda a entender a dificuldade de classificação ou rotulação de
Caetano Veloso a um único setor específico em termos de arte musical.
Os aspectos levantados em cada um dos capítulos acabam por construir a
figura de alguém que transita entre as mais diversas culturas e seus aspectos mais
específicos com propriedade e coerência, desestabilizando a noção de identidade —
seja em termos de nacionalidade, tempo, estilo, cultura, forma — por vezes, e, ao
mesmo tempo contribuem para a concepção de uma outra identidade, sólida e una,
mas também instável e cambiante, sem com isso perder sua essência ou nexo.
Sim, desde que o público viu pela primeira vez aquele jovem baiano num
festival de música em 1967, até os dias atuais, em que, conforme o verso de sua
canção, é possível notar “os muitos cabelos brancos na fronte do artista”11, um fato
salta aos olhos: “o tempo não para / e no entanto ele nunca envelhece”12. E isto,
porque, apesar das alterações atreladas à inexorável ação do tempo, Caetano
Veloso se mantém como um artista marcado por um espírito inquieto, curioso que
11
VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978)
12
Idem
!33
segue se propondo a experimentar, agradando e chocando, mas, acima de tudo,
correndo riscos apesar de já ter se estabelecido como um nome de relevância —
sendo, portanto, neste quesito, um jovem — na cena cultural brasileira. Cabe a nós,
estudiosos, tentar decifrar esta “força estranha” cujos efeitos ainda nos atingem com
singular intensidade, a partir de uma figura que faz jus ao seu verso, afirmando em
palavras, mas sobretudo em atitudes: “eu vou / por que não?”13.
13
VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria (1967)
!34
1. BOSSA-NOVA EM CAETANO E DE CAETANO: UM IMPULSO QUE SEGUE
PULSANDO
“Um tom pra cantar
Um tom pra falar
Um tom pra viver
Um tom para a cor
Um tom para o som
Um tom para o ser
[...]
Um tom pra gritar
Um tom pra calar
Um tom pra dizer
Um tom para a voz
Um tom para mim
Um tom pra você
Um Tom para todos nós”
(Caetano Veloso, Um Tom)
Ao empreendermos um olhar mais criterioso sobre a obra de Caetano Veloso,
em meio ao aspecto múltiplo e vário que se revela inerente tanto à sua obra, quanto
ao seu posicionamento como compositor e intérprete, acabamos também por nos
deparar com algumas exceções, elementos que permanecem, fixos, nestas quase
cinco décadas. Um dos mais significativos é justamente a Bossa-Nova. O
comportamento e atitude de Caetano em relação àquele que é o gênero musical
brasileiro tipo exportação por excelência ajudam a explicar e compreender melhor a
trajetória de um artista avesso aos rótulos e classificações convencionais.
Apesar da obra e da atuação múltipla de Caetano Veloso no campo da
música popular, a Bossa-Nova se desvela como uma constante neste processo.
Tudo começa pela clássica gravação de Chega de Saudade, marcada pela
arrebatadora interpretação de João Gilberto em 1958 (lançada inicialmente como
single que seria incorporado ao primeiro álbum homônimo do intérprete, que seria
lançado um ano mais tarde) o qual, tal qual uma imensa “onda que se ergueu no
mar”, mudou para sempre o rumo das águas da canção popular. O impacto do
caráter inovador introduzido pelo banquinho, o violão e a singular forma de
interpretação de João Gilberto aponta a direção para o primeiro disco oficial da
carreira de Caetano Veloso — em parceria com Gal Costa —, “Domingo”, em 1967,
e, acaba por se tornar uma espécie de parâmetro que permeia as quase cinco
décadas de uma carreira que, de certo modo, acaba por se constituir como uma
!35
ressaca destas águas musicais, após a rebentação no final dos anos 50. Se o primeiro disco de Caetano se coloca como uma homenagem, um tributo
à Bossa-Nova — e, já revela, ainda que timidamente, um pouco do que se poderia
esperar deste cancionista estreante —, exatos quarenta e cinco anos depois, num
de seus mais recentes álbuns, Caetano dedica uma faixa — a canção que abre o
disco — inédita, de sua autoria que, se por um lado, musicalmente, destoa
completamente da estrutura melódica característica da Bossa, por outro, na letra,
retoma o tom laudatório ao estilo musical brasileiro tipo exportação desde o seu
título.
Assim, no período compreendido entre “Domingo” e “Abraçaço”, buscaremos
investigar a relação estabelecida entre Caetano Veloso e a Bossa-Nova, revelada
em suas interpretações, composições e posicionamentos como um raro tom
constante na aquarela deste camaleão.
Em “Verdade Tropical”, livro de memórias do Tropicalismo escrito por Caetano
Veloso — que não deixa de ser também um livro de memórias do autor — Caetano
narra a ocasião em que teve o primeiro contato com a Bossa-Nova. Este ponto
específico se deu num estágio que pode ser interpretado como totalmente propício,
tendo em vista que, segundo Caetano, foi justamente quando ele e seus
“companheiros de geração” estavam “começando a aprender a pensar e a sentir”:
Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João
Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio
quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por
isso mesmo, ele julgara que me interessaria: “Caetano, você que
gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que
canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai
pro outro”. (VELOSO, 1997, p. 35)
Segundo o relato, o colega em questão apenas mostrou o disco deste
estranho “sujeito que canta totalmente desafinado” a Caetano pelo fato de este já
ser, àquela época, um declarado apreciador “de coisas loucas”.
A interpretação tão singular empreendida por João Gilberto, que soou como
uma coisa louca aos ouvidos dos apreciadores da música brasileira —
caracteristicamente ligada a uma tradição em termos de interpretação — pode ser
explicada, em primeiro lugar, pela própria voz do intérprete. Diferentemente dos
grandes cantores do rádio, ligados ao samba-canção, João Gilberto não tinha uma
grande voz e, portanto, não permeou sua emissão com os inúmeros vibratos
!36
característicos dos intérpretes que queriam demonstrar sua extensão vocal
privilegiada. Antes, João literalmente cantou baixinho, de uma forma excessivamente
contida, que se opunha frontalmente ao padrão estabelecido até a época, ligado às
grandes vozes de cantores como Nelson Gonçalves e Elizeth Cardoso, e, talvez,
justamente por isso, fosse percebida como uma desafinação.
Esta visão preconceituosa que é natural no homem em relação ao que é novo
é literalmente resumida por Caetano num verso de uma de suas canções14: “é que
Narciso acha feio o que não é espelho”. Apesar do estranhamento inicial em relação
à nova forma de interpretação inaugurada por João Gilberto, esta se tornou um
clássico não só apreciado nacional e internacionalmente como também reproduzido
por diversos artistas nas décadas seguintes — e até a atualidade —, como uma
receita de sucesso.
Acerca deste peculiar modo de interpretação introduzido por João Gilberto,
que se tornou padrão da Bossa-Nova, Tatit (2004) pontua:
A bossa-nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas
do samba-canção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito
das formas temáticas, mais percussivas, de condução melódica.
Neutralizou a potência de voz até então exibida pelos intérpretes, já
que sua estética dispensava a intensidade e tudo que pudesse
significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada
que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte
das canções dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do
tempo forte na batida do violão. Desfez a relação direta entre o ritmo
instrumental e a dança que caracterizava as rodas de samba.
Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes percussivos
estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem
dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada
elaboração sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante
de que música artística só existe no campo erudito (TATIT, 2004, p.
49-50).
A partir da neutralização dos excessos vocais, do tom passional exagerado e
da própria batucada característicos do samba-canção, João Gilberto chegou a uma
modalidade de canção mais leve (em termos de ritmo e conteúdo das letras). Mas,
sobretudo, as canções da Bossa-Nova se colocam como peças mais elaboradas do
ponto de vista técnico, com arranjos mas requintados, quase que alcançando o nível
de complexidade da música clássica, rompendo um paradigma neste sentido, haja
vista o trabalho realizado por grandes maestros, como Tom Jobim.
14
VELOSO, Caetano. Sampa (1975)
!37
Deste modo, que não fora aceito inicialmente, e até classificado como
desafinação por grande parte do público, desde o início
foi tomado por Caetano como “uma sucessão de delícias”, conforme ele mesmo
afirma:
A bossa-nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma
sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento
de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos
levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e — o que é mais
importante — as nossas possibilidades. (VELOSO, 1997, p. 35)
Mais do que um gênero que criou um novo gosto musical, Caetano Veloso
ressalta o fato de a Bossa-Nova ter promovido uma elevação do “estágio cultural”
dos brasileiros, já que, um estilo mais apurado só pode ser devidamente apreciado
por um público suficientemente sofisticado. E, esta sofisticação resultou justamente
de um processo de revisão do acervo musical brasileiro, pelo próprio público que,
não só refinou o seu gosto como também passou a estar mais receptivo, permitindo
que os artistas trabalhassem numa perspectiva mais ampla e não mais fadados a
apenas seguirem fórmulas prontas para agradar a coletividade.
João Gilberto e sua Bossa-Nova inovadora apresentada no disco “Chega de
Saudade” tornaram-se o marco-zero de toda uma geração de grandes nomes da
música popular — “arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”15 —, cuja obra se
constitui como um eco ou resultado desta revolução no campo da música popular,
conforme afirma Chico Buarque:
Para todas as pessoas da minha geração, "Chega de Saudade", o
tema que iniciou a bossa-nova, composto por Vinicius e Jobim e
cantada por João Gilberto, foi uma epifania, uma grande revelação.
Posso lembrar perfeitamente o momento em que a escutei pela
primeira vez, aos 15 anos, mas afirmo que todos os músicos de
idade parecida com a minha poderiam lhe contar onde, como e em
que momento a descobriram. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu
Lobo... Ela mudou nossas vidas. [...] Considerávamos que era o que
se devia fazer, o poder daquela música era tão forte que marcou
nossos caminhos (BUARQUE, 2005).
Especialmente no que diz respeito a Caetano Veloso, não só a Bossa-Nova,
mas também João Gilberto, de uma maneira singular, podem ser identificados como
prelúdios de toda a atuação artística exercida profissionalmente por Caetano Veloso.
Isso ajuda a explicar o louvor e a admiração constantemente expressos por Caetano
em prosa e verso em relação ao gênero, e, particularmente ao artista em questão.
15
JOBIM, Antonio Carlos, "Texto de contracapa" do LP Chega de Saudade (1959).
!38
Mesmo tendo traçado uma rota bastante variada, optando por viajar pelos estilos e
não se emoldurar como um cancionista bossanovista, a Bossa parece se colocar
para Caetano como o lugar de conforto ao qual ele sempre retorna, musicalmente, e
João Gilberto, a “primeira referência” que vem norteando toda a sua produção e,
confessadamente, sua “fruição”, conforme o próprio Caetano:
João era a informação principal, a primeira referência — além de ser
a fonte central de fruição estética. De fato, quando chegou para mim
a hora de Guimarães Rosa ou de Proust, a hora de Godard, a hora
de Eisenstein, de Stendhal, de Lorca ou de Joyce e de Webern e
Bach e Mondrian e Velásquez e Lygia Clark — mas também a hora
de Warhol e da revisão de Hitchcock, a hora de Dylan, de Lennon e
de Jagger —, foi sempre aos valores estéticos que extraí de minha
paixão por João Gilberto que me reportei para construir uma
perspectiva. (VELOSO, 1997, p. 69-70)
A declarada “paixão” por João Gilberto e toda uma crítica estética concebida a
partir dela tornou-se, para Caetano, uma espécie de lente, a partir da qual perpassa
o olhar, a fruição e o juízo de valor acerca de qualquer obra de arte. Assim, seja a
literatura brasileira (Guimarães Rosa), ou estrangeira, como a francesa (Stendhal e
Marcel Proust), espanhola (Garcia Lorca), irlandesa (James Joyce); a ciência (Albert
Eisenstein), as artes plásticas (Velásquez, Lygia Clark e Warhol), o cinema (Godard,
Warhol e Hitchcock) e a própria música, tanto em sua vertente clássica (Bach e
Webern), como também a estrangeira contemporânea (de compositores como Bob
Dylan, John Lennon e Mick Jagger, ligados ao contexto do rock), tudo passou (e,
talvez, o que é novo ainda hoje passe) pelo filtro joãogilbertiano para Caetano
chegar à literal construção de uma “perspectiva”, tendo encontrado uma forma
particular de se colocar e expressar musicalmente.
Esta maneira tão singular que caracteriza o trabalho artístico de Caetano
Veloso, se por um lado escapa às definições convencionais no que diz respeito aos
mais diferentes estilos por ele visitados, as mais variadas temáticas e assuntos por
ele abordados, das mais inúmeras formas, acaba, por outro lado, revelando um
artista que é um genuíno fruto da Bossa-Nova, tendo chegado a interpretar alguns
de seus maiores clássicos e até a compor canções tomando como modelo este
estilo musical em termos de letras e arranjos, mas, sobretudo, reverenciando-o em
suas letras, em inúmeras referências ao gênero musical em si, mas também ao seu
mentor João Gilberto, sem, no entanto, restringir-se a ponto de ser classificado
meramente com um dos nomes da Bossa.
!39
Em 1997, Caetano lançou em seu álbum “Livro” — simultaneamente ao seu
literal livro “Verdade Tropical” —, a canção Pra Ninguém, a qual, desde o seu título,
mantém uma intertextualidade com a canção Paratodos (1993)16, de Chico Buarque.
Esta se coloca como um tributo do cancionista carioca literalmente quase que “para
todos” seus colegas de profissão, de diferentes tempos e espaços, que são
nominalmente citados, como: Dorival Caymmi, Jackson do Pandeiro, Ary Barroso,
Vinicius de Moraes, João Gilberto, Gilberto Gil e o próprio Caetano17. Mas, tem
especial destaque aquele é denominado seu “maestro soberano”, um dos ícones da
Bossa-Nova, Antonio Carlos Jobim:
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro
Vale lembrar que Tom Jobim foi mais do que uma referência primordial para
Chico Buarque, que, além de seu discípulo, veio a tornar-se seu amigo e parceiro na
autoria de diversas canções que entraram para a história, configurando-se com
clássicos do cancioneiro popular brasileiro, como: Sabiá (1968), Lígia (1972),
Retrato em Branco e Preto (1968), Anos Dourados (1986) e Eu Te Amo (1980).
Em Pra Ninguém, Caetano também cita não apenas diversos cantores e
intérpretes brasileiros, como também os títulos de algumas das mais famosas
canções que foram sucesso na voz destes. Deste modo, a estrutura básica da
maioria dos versos da canção se resume ao nome do cantor ou intérprete, seguido
do verbo “cantando” (algumas vezes ocorre a elipse desta forma verbal) e o nome
da canção, especificamente.
Nana cantando "nesse mesmo lugar"
Tim maia cantando "arrastão"
Bethânia cantando "a primeira manhã"
Djavan cantando "drão"
Chico cantando "exaltação à mangueira"
Paulinho, "sonho de um carnaval"
Gal cantando "candeias"
E Elis, "como nossos pais"
16
BUARQUE, Chico. Paratodos (1993)
“Para um coração mesquinho / Contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é
inconteste / Tome Noel, Cartola, Orestes / Caetano e João Gilberto” (grifo nosso).
17
!40
A canção se inicia com referências a artistas contemporâneos de Caetano,
que se revelaram nos festivais da segunda metade dos anos 60, como: Nana
Caymmi, Chico Buarque, Paulinho da Viola. Gal Costa e Elis Regina, e a canções
deste mesmo contexto, como Arrastão (1965) e Candeias (1966), de Edu Lobo e
Como Nossos Pais (1976), de Belchior. No entanto, na continuação, passam a ser
citados também representantes da geração anterior a Caetano e seus
contemporâneos:
Sílvio cantando "mulher"
E Elisete cantando "chega de mágoa"
Carmen cantando "adeus batucada"
Gilberto cantando "sobre todas as coisas"
Cauby cantando "camarim"
Orlando cantando "faixa de cetim"
Milton, "o que será?"
Roberto, "a madrasta"
Bosco, "rio de janeiro"
E Dalva, "poeira do chão":
Menções a cantores como Silvio Caldas, Elisete Cardoso, Cauby Peixoto,
Orlando Silva, Dalva de Oliveira e até Carmen Miranda18 vêm a seguir, seguidas de
standards como: Mulher (1940), sucesso de Silvio Caldas de autoria de Custódio
Mesquita e Sady Cabra, Adeus Batucada (1935), de Synval Silva e Poeira do Chão
(1952), de Klecius Caldas & Armando Cavalcanti. Os grandes nomes desta geração
são permeados ainda por mais contemporâneos de Caetano como Gilberto Gil,
Milton Nascimento e João Bosco.
Se em Paratodos Chico deu o destaque para Tom Jobim, em Pra Ninguém
Caetano o remete para João Gilberto, declaradamente seu mestre soberano, que
inaugurou o estilo Bossa-Nova de interpretação, com os versos: “Melhor do que isso
só mesmo o silêncio / E melhor do que o silêncio só João”, dando conta de que
apenas o silêncio poderia superar toda a maravilhosa profusão de intérpretes e
canções da música brasileira citada anteriormente na letra. Mas, haveria ainda
alguém para superar o silêncio: João Gilberto, colocado num patamar ainda mais
alto, praticamente inalcançável.
Um outro aspecto que poderia ser ressaltado na distinção entre estas duas
canções é o fato de Paratodos, de Chico Buarque ser uma canção que
18
Que nem sequer era brasileira de fato, mas que sem dúvida fez grande sucesso no Brasil.
!41
homenageia,em sua esmagadora maioria, figuras masculinas do contexto musical
brasileiro — na letra inteira, as únicas artistas mencionadas são: “Nara [Leão], Gal
[Costa], [Maia] Bethania, Rita [Lee], Clara [Nunes] —, enquanto que Pra Ninguém há
um equilíbrio maior no que diz respeito a referências de homens e mulheres.
Outra canção que se constitui como um tributo à Bossa-Nova, e alguns de
seus maiores nomes, dentre os quais, logicamente, João Gilberto, é Saudosismo
(1986), cujo arranjo também está ligado ao estilo Bossa-Nova.
Segundo Guilherme Wisnik (2005), trata-se da “composição de Caetano que
mais sintetiza a sua relação com a bossa nova”, sendo, acima de tudo, “uma
declaração de amor e humor a ela”. (WISNIK, 2005, p.54)
Eu, você, nós dois Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor
E outras mumunhas mais
A letra e a melodia em estilo Bossa-Nova — marcada pela execução à voz e
violão —, unidas compõem uma canção que literalmente se coloca como uma real
expressão de saudade do estilo musical brasileiro por excelência. Acerca do arranjo
de Saudosismo, Wisnik (2005) ainda pontua:
Construída aparentemente em compasso ternário, a canção
desenvolve-se, na verdade, numa sutil contraposição de tempos —
quatro contra três, a chamada hemiólia —, o que parece, no caso,
introduzir uma inesperada marcha dentro do ambiente harmônico da
bossa nova, acelerando o seu andamento. (WISNIK, 2005, p. 54)
Esta espécie de Bossa-Nova marcada por um andamento acelerado, segundo
Wisnik, tornou-se característica do “estilo de compor” de Caetano, a ponto de ter
ganhado o apelido de “marcha caetaneada” (p. 54), e marca um aspecto de
novidade em relação ao clássico gênero musical brasileiro.
O verso que abre a canção já estabelece uma intertextualidade com a canção
Fotografia (1977), de Tom Jobim, que é iniciada também por “Eu, você, nós dois” por
meio da intertextualidade.
O termo intertextualidade aponta para o conceito que foi introduzido por Julia
Kristeva no âmbito da literatura. Trata-se de uma relação de diálogo estabelecida
entre diferentes textos e discursos, seja por um trecho em comum, seja por
!42
características temáticas e estruturais em comum. A este respeito, é a própria
Kristeva (1979) quem pontua se tratar de uma característica a todo e qualquer texto:
“[...] Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 2012, p. 68).
Aliás, este é um processo bastante corrente tanto nas letras – o texto -,
quanto nas melodias das canções de Caetano Veloso. Acerca dele, é Barthes (2004)
quem comenta:
O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos
caminhos dessa descontrução-reconstrução é permutar textos,
retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto
considerado e finalmente nele: todo texto é um intertexto; outros
textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou
menos reconhecíveis. [...] A intertextualidade, condição de todo texto,
seja ele qual for, não se reduz, evidentemente, a um problema de
fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas
anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações
inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES, 2004,
p. 275)
Neste caso específico, a canção de Jobim está contida na de Caetano
conforme as palavras de Barthes, “sem aspas“, incorporada ao texto, dada a
temática comum, sendo identificada apenas por quem porventura a conheça.
Saudosismo tem por tema um casal que passa a rememorar todo um
“passado” em que estiveram juntos, o qual foi marcado pela Bossa-Nova — talvez
como trilha sonora de momentos importantes da vida do casal em questão. Este,
preserva como lembranças desta vida a dois “um violão guardado”, “aquela flor” e
outras “mumunhas” — artimanhas, planos19 — ligados ao contexto da conquista
amorosa, e provavelmente, ao início da união entre os dois.
O “violão”, o “amor”, e a “flor” são elementos comuns às letras de grande
parte das canções da Bossa-Nova, marcadas por uma temática romântica, e se
colocam como referências a estas. Poderíamos citar como exemplo a letra de
Corcovado (1960), outra canção de Tom Jobim, que também fez muito sucesso
interpretada por João Gilberto — com a participação de Stan Getz — cuja letra
acaba por se constituir como um intertexto de Saudosismo:
Um cantinho e um violão
Este amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
19
Disponível em: [http://www.priberam.pt/dlpo/mumunhas]. Acesso em 1 de dezembro de 2014.
!43
A letra de Corcovado é iniciada pela expressão de um eu lírico que,
apaixonado, coloca-se em “um cantinho”, com “um violão” e, inspirado pelo “amor”
que sente, passa a escrever “uma canção” dedicada ao seu amor. Esta situação
inicial desta canção de Jobim, parece remontar o referido “passado” da canção de
Caetano, quase como se o eu lírico fosse o mesmo, ou então, como se o eu lírico de
Saudosismo tivesse feito o mesmo, e dedicado canções — de sua autoria ou mesmo
clássicos da Bossa — à sua amada.
Eu, você, João, Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar
A continuação da canção de Caetano se dá quase que pela repetição do
verso que iniciou a canção, com a diferença de que, após o “eu e o “você”, o “nós
dois” fica implícito, e é citado, então, “João” — Gilberto, no caso —, intérprete dessa
trilha sonora que marcou a história do casal em questão. A presença de João
Gilberto é dada, metonimicamente, por meio de um disco “girando na vitrola sem
parar”, repetidamente ouvido, a ponto de o caráter musicalmente “dissonante” tanto
da voz quanto dos arranjos característicos das canções interpretadas por João —
característico da Bossa — passar a constituir todo um “mundo” que este casal se
propôs a “inventar”. Este universo particular, por sua vez, vem a ser a síntese de
toda a história de um amor que, como todos, conforme já disse o poeta: “é fogo que
arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente”20, não se constitui apenas de
momentos felizes, mas, como “um contentamento descontente”21, também é
marcado pelo aspecto “dissonante” em alguns momentos, via de regra.
A felicidade, a felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
A sequência do movimento poético se dá pelo verso constituído
repetidamente da expressão “a felicidade”, que se coloca tanto como uma expressão
deste “mundo” inventado pelo casal, mutuamente, como também uma referência a
20
Camões
21
Idem
!44
outra canção de Tom Jobim, em parceria com Vinicius de Moraes, cujo título é
constituído por esta mesma expressão, datada de 1959. Aliás, um dos versos desta
canção de Jobim é justamente a afirmação de que “Tristeza não tem fim / Felicidade
sim”, o qual é bastante expressivo em relação à continuidade da letra da canção de
Caetano.
Vem à tona então o que aconteceu “depois” desta fase romântica, marcada
pela sonoridade da Bossa-Nova. Como ao fim do carnaval, chegou a “quarta-feira de
cinzas”, encerrando toda uma fase de alegria e prazer. No entanto, a expressão que
dá conta do fim de uma série de festejos é ligada a um contexto político específico
do que ocorrera “no país” — a saber, o Brasil —: a ditadura militar.
A mesma expressão faz ainda referência a uma canção de Vinicius de Moraes
e Carlos Lyra, intitulada Marcha da Quarta-Feira de Cinzas (1964). Esta canção
retrata o Brasil imerso numa tristeza que até então não lhe era característica, fruto
das proibições e cerceamentos promovidos pelos militares que assumiram o poder:
Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou
A letra de Saudosismo segue, trazendo a afirmação de que, neste período,
“as notas dissonantes” características da Bossa-Nova foram incorporadas ao
chamado “som dos imbecis” — que pode estar relacionado tanto aos que eram
favoráveis ao regime ditatorial, quanto àqueles do âmbito da música popular que se
opunham às ideias veiculadas por Caetano e Gil no Tropicalismo, encarando-as
como algo que se opunha ao nacionalismo das canções de protesto pela
incorporação de elementos de outras culturas.
Sim, você, nós dois
Já temos um passado meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo, lobo, bobo
Após reiterar a presença de todo um “passado” muito presente na história do
casal, tanto uma fase boa quanto uma outra ruim, o eu lírico o sintetiza com os
termos: “a bossa”, trilha sonora desta caminhada a dois, “a fossa”, síntese dos
!45
momentos difíceis enfrentados pelo casal — reiterado pela expressão “a nossa
grande dor”. Uma parceria mantida há tanto tempo permite configurar o casal “como
dois quadradões”, que já passaram por diferentes épocas e altos e baixos de
tendências, gostos, posicionamentos e etc.
O verso que encerra a estrofe se constitui como uma referência à canção
Lobo Bobo (1959), de Carlos Lyra, cuja letra poderia ser resumida como uma
paródia do clássico conto de fadas europeu “Chapeuzinho Vermelho”. Na canção,
contrariamente ao conto, a protagonista, “Chapeuzinho Vermelho” — sensualizada
como uma moça “de maiô — não foi devorada pelo Lobo-Mau, mas, encantou-o e
acabou até por domesticá-lo, conforme consta nos versos:
Lobo canta, pede
Promete tudo até amor
E diz que fraco de lobo
É ver um chapeuzinho de maiô
Chapeuzinho percebeu
Que o lobo mal se derreteu
Pra ver você que lobo
Também faz papel de bobo
Só posso lhe dizer
Chapeuzinho agora traz
Um lobo na coleira
Que não janta nunca mais
A referência à canção em questão, um sucesso da Bossa-Nova, pode levar a
entender que o eu lírico de Saudosismo, tal qual o Lobo Bobo, passou do
estereótipo de machão dominador a dominado, submisso. E tamanha mudança
ocorreu devido ao encantamento por sua mulher — ressaltando uma força inerente à
mulher que não é revelada por uma estrutura física avantajada ou mesmo uma
maneira violenta de agir, como um lutador de boxe, mas sim sutil, doce e igualmente
perigosa, como o doce canto de uma sereia.
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
Eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah, como era bom
Mas chega de saudade
A realidade é que aprendemos com João
Pra sempre a ser desafinados
Chega de saudade, chega de saudade
!46
Após toda esta volta ao passado, tendo como fundo musical “João girando na
vitrola sem parar”, o eu lírico afirma ficar “comovido” apenas por se “lembrar”
daquele “tempo”, daquele “som”, e, sintetiza toda a felicidade daquele tempo com a
exclamação: “Ah como era bom”. Esta expressão dá a ideia de um passado
inesquecível, talvez até mais feliz do que o próprio presente, deixando no ar a ideia
comum de que se era feliz sem saber, frente ao que se vive hoje.
No entanto, logo em seguida o eu lírico resolve parar de apenas pensar no
passado, e a expressão por ele utilizada nesse sentido não poderia ser mais plena
de significado: “chega de saudade”. Trata-se justamente do título da canção de
Jobim e Moraes com que João Gilberto se lançou no fim dos anos 50, abrindo para o
mundo oficialmente as portas da música genuinamente brasileira que se consolidou
mundialmente falando, a Bossa-Nova.
A plenitude de significado da expressão “chega de saudade” é explicada pela
relação direta que estabelece em relação à canção em questão, e é reforçada no
verso seguinte, que traz outro trecho da lera, justamente a continuação:” a realidade
é que”. Se na canção-base o fato era o de que “sem ela não há paz, não há beleza”,
ou seja, uma literal confissão de amor de um apaixonado que não vê sentido em
nada longe de seu amor, na canção de Caetano, permanece o mesmo tom, não em
sua esfera erótica (entre uma mulher e um homem), mas na esfera de um discípulo
em relação ao seu mestre, que afirma que não só ele, mas, dando voz a toda uma
coletividade de uma maneira quase majestática, que todos “aprendemos com João”
a trilhar o caminho da canção popular, de modo a “pra sempre”, como algo indelével,
“ser desafinados”, não no sentido literal da palavra, mas, fazendo jus à letra da
canção homônima de Jobim e ao modo até então inédito de interpretação
inaugurado por João Gilberto.
A canção é encerrada pela repetição da expressão que dá título à canção de
Jobim e Moraes, e dá conta de uma situação em que o eu lírico encerra o seu
momento de reflexões acerca do passado, e volta para o seu presente, a preocuparse com as questões que lhe afetam no aqui e agora.
Assim também como em relação à influência de Jobim e Gilberto, a ideia é a de
seguir em frente, dar continuidade a esta arte musical, partindo da inspiração e
chegando à transpiração no que diz respeito a criar algo novo.
!47
Acerca de Saudosismo, numa síntese, Wisnik ressalta o fato de se tratar de
uma:
Revisão que incorpora suas lições construtivas: a recusa do
saudosismo nostálgico (“chega de saudade”), e a atitude provocativa
de desafinar consensos como o modo de afirmar o próprio ser (“A
realidade é que aprendemos com João [...] “Saudosismo” é exemplar
como composição de um ex-aspirante a bossa-novista virado do
avesso, que presta homenagem ao seu legado eterno sem deixar de
enfatizar a impossibilidade de continuá-lo formalmente, alterando o
seu andamento por dentro, e truncando a sua natural fluência
harmônica com sequências de acordes paralelos que, num
isomorfismo, deixam a canção parada, aludindo à repetição
insistente de um disco riscado [...]. (WISNIK, 2005, p.55)
Ao tratarmos de um sentimento de nostalgia ligado ao contexto da BossaNova somado a uma tentativa de novidade a partir desta, isto nos remete ao início
da carreira de Caetano Veloso, no fim dos anos 60, mais especificamente, ao seu
primeiro disco.
“Domingo” (1967) é o álbum que se constitui como a pedra fundamental da
carreira de Caetano Veloso, e também de Gal Costa, — que entrou como parceira
de Caetano nesta obra —, e pode ser caracterizado à priori não só como uma
homenagem à Bossa-Nova e um dos ecos do impacto causado por esta na dupla de
artistas em questão, mas sobretudo, um disco “joãogilbertiano radical” por
excelência.
Na contracapa do disco, constavam três pequenos textos de Caetano Veloso,
que revelam muito de seu projeto artístico já naquele momento e acabam por ecoar
durante toda sua carreira. Estes são reproduzidos abaixo, para que os possamos
comentar:
I
Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes
cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto
contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a
espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. Por isso eu
considero necessária a sua presença nesse disco em que se registra
uma fase do meu trabalho em música popular, algumas das canções
que eu fiz até agora. Por isso, e também porque desde a Bahia que
nós cantamos juntos, desde lá ela faz com que meus sambas
existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a
composição e o canto: cada interpretação tem a mesma idade da
canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas
junto dela e um pouco por ela também. Ouso considera-la como
parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de
“GAL interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta
!48
músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as
minhas. GAL cantando o que quer que ela goste, isso já é minha
música, e quando eu canto ela está presente. O seu canto (como o
de Gil ou o de Bethânia) tem sido sempre meu parceiro.
O produtor musical responsável pelo disco, João Araújo, por questões
mercadológicas que culminavam na impossibilidade de lançar dois álbuns solo, um
para cada artista, acabou por selar a parceria entre Caetano e Gal — de dois amigos
de longa data, já naquela época — que atravessaria décadas, num entrelaçamento
que chega aos dias atuais com o mesmo vigor, tendo em vista que Caetano Veloso
consolidou-se não só como um dos mais reverenciados intérpretes, como também
compositores brasileiros, e Gal Costa como uma das mais aclamadas intérpretes do
cancioneiro popular brasileiro, e em especial, a maior da obra de Caetano Veloso.
Basta atentarmos para a carreira de Gal.
A primeira gravação oficial de Gal Costa é datada de 1965. Trata-se de um
compacto, com duas canções, sendo uma delas: Sim, Foi Você (1965), de Caetano
Veloso. O mais recente álbum lançado por Gal, “Recanto”, de 2011, é composto por
10 canções inéditas de autoria de Caetano Veloso e produzido por este e seu filho
Moreno Veloso. Nestes quarenta e seis anos de carreira que permeiam os dois
discos citados, Gal Costa já gravou mais de cinquenta canções de Caetano, muitas
das quais, tornaram-se grandes sucessos em sua voz, e são até hoje peças
fundamentais de seu repertório.
O repórter Danilo Casaletti escreveu o texto intitulado “Divino, Maravilhoso:
Gal canta Caetano” 22, que trata do álbum que a gravadora Universal lançará em
2015 para celebrar os sessenta anos de idade de Gal Costa. O disco no qual será
passada a limpo grande parte da carreira da cantora será composto de trinta e seis
canções de autoria de Caetano Veloso gravadas por Gal apenas entre os anos de
1967 e 1983, selecionadas pelo crítico musical e jornalista Rodrigo Faour.
Segundo Casaletti, “nenhuma cantora se identifica tanto com a obra de
Caetano Veloso como Gal Costa”, e o próprio Caetano, ao longo de sua carreira tem
pontuado este mesmo fato. Desde “Domingo”, que continha o texto no qual ele
afirmara que “desde a Bahia” ele e Gal vinham cantando “juntos” e, era justamente
por meio dela que seus “sambas existam de verdade”, Gal é dada por Caetano
Disponível em: [http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR71798-5856,00.html]. Acesso
em 18 de dezembro de 2012.
22
!49
como “parte integrante” do seu “processo de criação” já naqueles dias e, de certa
maneira, podemos afirmar que isto ocorre até hoje — haja vista o disco “Recanto”
—, a ponto de configurar Gal não só uma das melhores amigas de Caetano, mas,
sobretudo a dona do “canto” que literalmente “tem sido sempre” seu “parceiro”.
II
Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de
cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga,
o último samba de um amigo. Isso é tão bom de cantar: uma música
que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela
proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco, estou
enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz
transformadas em música por Dori, Menescal e Francis e procuro
amá-las despreocupadamente, tento aceita-las como prontas (não há
mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram,
não aquilo que eu lhes dei.
O fato de Caetano gostar de cantar vem sendo reiterado em sua carreira
como intérprete, e, na posição de compositor ele também já deixou isto bastante
claro em depoimentos e até em versos de suas canções, como: “Cantando eu
mando a tristeza embora”23; “Minha voz, minha vida [...] / Vida que não é menos
minha que da canção”24; “Por isso uma força me leva a cantar [...] / Por isso é que
eu canto / Não posso parar”25, e “Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar” 26.
O gosto de Caetano por “uma canção antiga” em meio à novidade de suas
composições também pode ser comprovado ao longo de sua carreira, já que em
seus discos está registrada a sua interpretação de clássicos tanto do repertório
brasileiro quanto do inglês e do espanhol, como: Coração Materno (1951), Chuvas
de Verão (1949), Cucurrucucu Paloma (1954), La Barca (1957), Nature Boy (1948) e
Smoke Gets in Your Eyes (1933).
“Domingo” se revelara como uma “experiência nova” para Caetano, tendo em
vista que ele recebia de volta “essas coisas” — as canções — que ele fez ou apenas
interpretou “transformadas em música” por Dori Caymmi, Roberto Menescal e
Francis Hime, como algo novo e um tanto quanto distinto de seu projeto inicial,
positivamente falando.
23
VELOSO, Caetano. Desde que o samba é samba (1993)
24
VELOSO, Caetano. Minha voz, minha vida (1997)
25
VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978)
26
VELOSO, Caetano. Como dois e dois (1971)
!50
III
Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha
inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos
que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (UM
DIA, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância
que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer
canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia
de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade
num projeto de futuro. Aqui está — acredito que gravei este disco na
hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante
do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma
nota. Quero apenas poder dizer tranquilamente que o risco de beleza
que esse disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo,
Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe,
a Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas
de Dona Mariana, a Dó, a Nossa Senhora da Purificação e a
Lambreta.
O terceiro e último texto da contracapa contextualiza o presente de Caetano à
ocasião do lançamento do disco. Sua “inspiração” já estava “tendendo para
caminhos muitos diferentes” dos que ele seguira até então, não mais no sentido de
uma nostalgia de tempos e lugares”, mas em relação à construção de todo um
“projeto de futuro”. Acerca deste projeto, Caetano já havia afirmado, num debate
promovido pela revista Civilização Brasileira, em 1966:
Ora, a música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida
que toda informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da
compreensão da realidade brasileira [...] Para isso nós da música
popular devemos partir, creio, da compreensão emotiva e racional do
que foi a música popular brasileira até agora; devemos criar uma
possibilidade seletiva como base na criação. Se temos uma tradição
e queremos fazer algo de novo dentro dela, não só temos que sentila mas conhecê-la. É este conhecimento que vai nos dar a
possibilidade de criar algo novo e coerente com ela. Só a retomada
da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e
ter um julgamento de criação (...) Aliás João Gilberto, para mim, é
exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da
modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um
passo à frente da música popular. (VELOSO, 1979, p. 23)
Caetano desmistifica qualquer possibilidade de perda de identidade atrelada
ao processo de modernização da canção — contrariamente ao que muitos à época
do lançamento do disco temiam, encarando como algo antinacionalista.
Contrariamente a isso, as palavras de Caetano se colocam quase que como uma
teorização no que diz respeito a “fazer algo de novo” no âmbito da “tradição” da
música popular brasileira. Para tanto, a primeira condição estabelecida liga-se a
“conhecê-la” profundamente, afim de que se produza algo “coerente com ela”.
!51
Augusto de Campos (1974), acerca das palavras de Caetano, afirma que “no
panorama ainda difuso e confuso da moderna música popular” que ao grande
público se dividia entre o nacionalismo ferrenho das canções de protesto, o aparente
silêncio de uma postura de alienação, e o Tropicalismo — que também fazia um
protesto, à sua maneira, mas era encarado como antinacionalista por ser uma
expressão brasileira da influência da cultura internacional — “alguns compositores,
dos melhores por sinal, da nova safra musical, parece que estão se apercebendo da
cilada que lhes armavam os xenófobos conservadores” (CAMPOS, 1974, p.62).
Campos atribui “extrema lucidez” à afirmativa de Caetano Veloso acerca da
“retomada da linha evolutiva”, e afirma:
Dificilmente se poderia fazer crítica e autocrítica mais esclarecida e
radical do que esta, do jovem compositor baiano. Não se trata de
nenhuma “volta a João Gilberto”, de nenhum “saudosismo”, mas da
tomada de consciência e da apropriação da autêntica antitradição
revolucionária da música popular brasileira, combatida e sabotada
desde o início pelos verdadeiros “saudosistas”, por aqueles que
pregam explícita ou implicitamente a interrupção da linha evolutiva da
música popular e o seu retorno a etapas anteriores à da bossa-nova,
na expectativa de uma vaga e ambígua “reconciliação com as formas
mais tradicionais da música brasileira”. (CAMPOS, 1974, p. 62)
Campos também ressalta o fato de que, apesar do fascínio de Caetano
Veloso por João Gilberto e seu estilo característico, o objetivo do jovem baiano não
se ligava a nenhuma “volta” às características e padrões do início da Bossa-Nova,
mas sim, pelo contrário, a tomá-los como ponto de partida no empreendimento de
uma continuação, da criação de algo novo a partir disso. O aspecto inovador
proposto ia literalmente de encontro aos “saudosistas”, não só no sentido de
interromper a evolução da música popular brasileira, mas sobretudo estacioná-la,
retomando aspectos “mais tradicionais da música brasileira”, anteriores inclusive à
própria Bossa-Nova, numa proposta literalmente passadista, voltando os olhos para
trás e tentando tornar o que viesse à frente uma mera repetição.
Assim, se para Caetano, João Gilberto representava já naquela época o
divisor de águas que marcara de maneira precursora o momento em que “a
informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um
passo à frente da música popular” (grifo nosso), para Augusto de Campos “é preciso
saudar Caetano Veloso e sua oportuna rebelião contra ‘a ordem do passo atrás’”,
por estar posicionando-se no mesmo sentido e visando à criação de um futuro a
!52
partir do passado — uma espécie de fruto ou resultado possível — e não meramente
repeti-lo. (CAMPOS, 1974, p. 64).
Nesse sentido, composto pelas doze canções: Coração Vagabundo; Onde eu
nasci passa um rio; Avarandado, Um Dia; Domingo; Nenhuma Dor; Candeias;
Remelexo; Minha Senhora; Quem me dera; Maria Joana e Zabelê; e tendo sido
produzido por Dori Caymmi, “Domingo” é marcado por uma sonoridade bastante
atrelada à Bossa-Nova, desde o que diz respeito aos arranjos, passando pelas
temáticas das letras, e principalmente no que tange as interpretações. Deste modo,
é possível, inclusive, identificar o emprego de alguns dos elementos mais
característicos deste gênero, introduzidos anteriormente por João Gilberto, conforme
afirma Tatit:
A bossa nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas
do samba-canção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito
de formas temáticas, mais percussivas, de condução melódica.
Neutralizou a potência da voz até então exibida pelos intérpretes, já
que sua estética dispensava a intensidade e tudo que pudesse
significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada
que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte
das canções dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do
tempo forte na batida do violão. Desfez a relação direta entre o ritmo
instrumental e a dança que caracterizava as rodas de samba.
Dissolveu as influências do cool jazz nos acordes percussivos
estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem
dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada
elaboração sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante
de que “música artística” só existe no campo erudito. Mesmo com
todas essas neutralizações, a canção apresentada pelo músico
baiano manteve-se intacta, tanto do ponto de vista técnico como
perante o ouvinte, que não teve dificuldade alguma em reconhecer e
prestigiar a versão totalmente despojada. (TATIT, 2004, p. 49-50)
A canção que abre o disco, Coração Vagabundo (1967), em termos de
interpretação e arranjo, pode ser utilizada para exemplificar as características
enumeradas por Tatit. O fato de ser marcada pela redução do “campo da inflexão
vocal” tanto de Caetano quanto de Gal no dueto por eles empreendido, praticamente
com a neutralização do vocal dos intérpretes — contido como o de João Gilberto —
e também da batida característica do samba, culminando numa levada mais leve ao
violão, mas que nem por isso deixa de ser uma peça marcada por uma “requintada
elaboração sonora” aliam a canção à esfera da Bossa-Nova joãogilbertiana.
Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
!53
Conforme conta no próprio título da canção, ganha enfoque o “coração” do eu
lírico. Este, personificado, é descrito nos versos que abrem a canção praticamente
como um ser autônomo, “que não se cansa” não da atividade dos batimentos,
característica do órgão em questão, mas “de ter esperança”, aspirar a “um dia” vir a
ser “tudo o que quer”. Tal aspiração se liga a uma espécie de maturidade
sentimental, de “ser o que quer” e não ser feito, moldado, ao bel prazer da pessoa
amada.
Justamente por ser ainda um “coração de criança”, imaturo, que não sabe se
colocar, este órgão vital que, figurativamente é atrelado ao centro das emoções em
que reside a afetividade, se resume, no presente a “um vulto feliz de mulher” — os
destroços de uma possível primeira paixão avassaladora mal sucedida. O foco desta
possível paixão apenas “passou” pela vida do eu lírico, sem ter permanecido a fim
de fazê-lo feliz para sempre, tal qual nos contos de fadas. E. com isso, instaurou
uma profunda tristeza, expressa pelo “chorar sem fim” dos “olhos” da voz poética.
Devido a esse fato, o “coração” em questão é negativamente caracterizado
como “vagabundo” — mais uma vez, assumindo uma posição pessoal até pela
caracterização a ele remetida — não pela ausência de um trabalho ou um emprego,
mas para acentuar seu caráter por demais inocente a ponto de ter por desejo
“guardar o mundo” em si, na interioridade do eu lírico, sendo isto, impossível.
Coração Vagabundo é a peça que se tornou o primeiro sucesso do disco, e
mais especificamente da carreira de Caetano e Gal comercialmente falando, dando
aos artistas, pela primeira vez, uma certa visibilidade no mercado fonográfico e no
firmamento artístico nacional da época.
Mas o valor de “Domingo” residia em muito mais do que apenas seu carrochefe, e, acerca do álbum como um todo, Augusto de Campos também afirma:
Nesse disco, que engloba as primeiras composições de Caetano ao
lado de Edu, Gil e Sidney Miller, aparece já bem nítida para quem
souber ouvir a grande personalidade musical do futuro autor de
Alegria, Alegria, sob o signo geral da “saudade da Bahia”. (CAMPOS,
2008, p. 144)
Das doze canções que constituem o disco, em termos de autoria, oito das
canções são assinadas por Caetano Veloso — sendo, destas, uma única parceria
com Torquato Neto: Nenhuma Dor. Há também uma canção de Sidney Miller (Maria
!54
Joana), uma de Edu Lobo (Candeias), e duas de Gilberto Gil: Minha Senhora e
Zabelê — ambas em parceria com Torquato Neto.
A “grande personalidade musical” revelada sob a atmosfera de “saudade da
Bahia” — tanto de Caetano quanto de Gal — se revela por meio de canções que são
marcadas por um tom memorialista, tanto em relação à Bossa-Nova, quanto em
relação ao contexto da terra natal, a Bahia, de onde ambos haviam partido muito
cedo ainda.
Onde Eu Nasci Passa Um Rio é uma canção cuja letra traz uma metáfora do
amadurecimento atrelada às águas de “um rio”. O movimento destas, segundo o eu
lírico, “passa no igual sem fim”, sem ter um início ou um fim bem definidos, mas,
num movimento contínuo, assim como o sentimento por seu lugar de origem, sua
terra, conforme suas palavras, “passava dentro de mim”. Deste modo, assim como
“o rio” cumpre seu objetivo e passa a assim ser chamado “quando chega no mar”, ou
eu lírico afirma, comparando, que “o rio” de sua terra “deságua” não no mar, mas em
seu “coração” — talvez, fazendo deste, assim como o “mar”, um ser completo e
realizado.
A letra de Um Dia (1967) tem como tema principal o hiato entre duas pessoas
que se amam, justificado pelo fato de uma delas ter de ir viver num outro lugar. O eu
lírico afirma à sua amada “vê se para de chorar”, tentando dar força a esta, quando,
na verdade, demonstra apenas depender também desta mesma força — “quero,
careço, preciso / de ver você se alegrar”, dada a sua própria tristeza. Na tentativa de
minimizar a dor desta separação, os versos que constituem o refrão da canção
expressam a tentativa de mudar a forma de enxergar a situação: “eu não estou indome embora / estou só preparando a hora de voltar”, mesmo antes de ter ido.
Se Um Dia tematiza a despedida e a ansiedade de uma possível volta,
Domingo é marcada pela expressão não só da possibilidade, mas da literal espera
de um retorno. A voz poética descreve uma “praça formosa” na qual há uma “rosa
pousada”. Esta “rosa”, no decorrer da letra, passa de flor a mulher, “Rosa” — o que
se coloca como uma expressão elogiosa em relação à mulher em questão. Mas, o
fato de esta estar “pousada”, “no meio da tarde” por todo o dia, sendo que “não há
madrugada” sequer, dá conta de seu estado praticamente permanente: “esperando
por mim”, segundo o eu lírico. Este, na tentativa de amenizar uma continuidade do
!55
sofrimento de Rosa, adverte em claro e bom tom: “Rosa, não espera por mim”,
quebrando qualquer expectativa relativa à possibilidade de volta deste.
Candeias (1966), de Edu Lobo, também é marcada por uma situação de
partida, mas desta vez, no sentido contrário, na perspectiva de um retorno — da
“terra nova” para “Candeias”. A canção se inicia com a promessa do eu lírico à sua
amada acerca do fato que de “Ainda hoje vou-me embora pra Candeias / Ainda hoje
meu amor eu vou voltar”, contrariamente à letra de Domingo.
Já Quem Me Dera (1967), é marcada por um tom mais melancólico de um eu
lírico que parte sabendo que jamais voltará — “Adeus, meu bem / Eu não vou mais
voltar”. Este carrega consigo a esperança — seja para consolar à sua amada, ou
quem sabe a si mesmo — de um dia poder levá-la para junto de si. No entanto, a
possibilidade em questão se revela ínfima, não estando ligada a qualquer plano
efetivo, mas apenas atrelada a “Se Deus quiser” — além meramente de sua vontade
ou capacidade.
A temática amorosa, que já permeia todas estas canções citadas
anteriormente, ganha maior destaque em canções como Avarandado (1967), de
Caetano Veloso. A letra desta canção traz uma descrição de uma “estrada” a qual é
permeada por diversas “palmeiras” — e, de certa maneira, do ponto de vista
geográfico, remete ao contexto litorâneo da Bahia. O eu lírico afirma que cada uma
delas tem “uma moça recostada” e destaca entre todas estas mulheres aquela que é
sua “namorada”. O foco se volta, então, para a relação amorosa do casal em
questão, e a “estrada” mencionada passa, metaforicamente, a expressar a trajetória
percorrida pelos dois juntos, em termos de tempo e espaço. O casal, unido pelo
amor que os enlaça, em seu dia-a-dia, vai “andando pela estrada”, figurativamente
traçando um caminho cujo ponto de chegada “vai dar no avarandado do
amanhecer”, um ponto iluminado, que se coloca como símbolo de uma possível
futura felicidade augurada.
Remelexo (1967), de Caetano Veloso, também tem por assunto o contexto
amoroso. Mas, desta vez, o foco se liga, ao mesmo tempo, a inquietação e a
hesitação de um eu lírico no que diz respeito a se aproximar de uma “menina”
desconhecida que lhe encantara ao dançar numa roda de samba: “Que menina é
aquela / que entrou na roda agora?”. Este rapaz afirma querer “falar com ela”, mas,
por sua timidez e por nada saber dela — nem sequer “onde ela mora” —, resta-lhe
!56
apenas seguir como os demais rapazes: encantado pelo seu “remelexo”, que
praticamente o hipnotiza, a ponto de ele concluir apenas afirmando: “que valha-me
Deus, Nossa Senhora”, pedindo forças a criaturas do âmbito espiritual, por seu
ânimo não lhe ser mais suficiente.
Maria Joana (1967), é uma canção de Sidney Miller, e inserida também no
âmbito amoroso, revela uma outra faceta deste, que se assemelha apenas àquela
até então abordada em Coração Vagabundo: a desilusão afetiva, mais
especificamente atrelada à suspeita de uma traição, neste caso.
Acerca do disco como um todo, mais do que um mero tributo passadista e
reforçando seu aspecto inovador, é o próprio Caetano quem revela uma intenção
mais atrelada à cultura musical como um todo, conforme ele mesmo ressalta:
Enquanto eu e Gal gravávamos esse disco, que veio a se
chamar Domingo, Rogério e eu projetávamos um repertório para Gal
que superasse tanto a oposição MPB/Jovem Guarda quanto aquela
outra oposição, mais profunda, que se dava entre bossa nova e
samba tradicional, ou ainda entre música sofisticada moderna (fosse
bossa nova, samba-jazz, canção neo-regional ou de protesto) e
música comercial vulgar de qualquer extração (versões de tangos
argentinos, boleros de prostíbulos, sambas-canções sentimentais
etc.). (VELOSO, 1997, p. 215-216)
Muito além da fachada de tributo, “Domingo” vinha como uma tentativa de
superação dos embates entre os gêneros musicais vigentes na época, fator que alia
à carga passadista do álbum um tom de novidade e quase que de protesto, ainda
que velado.
O tributo de Caetano à Bossa-Nova remonta o início de sua carreira, mas
prossegue ao longo das décadas, podendo ser claramente identificado a partir de
inúmeras referências nas letras, nos arranjos de muitas de suas canções e nos
constantemente reiterados comentários em seus depoimentos e entrevistas. Mas,
talvez uma das maiores expressões desta veneração pela Bossa-Nova de desvele
pelo fato de Caetano ter se tornado também um singular intérprete desse gênero,
tendo gravado um número significativo de canções de autores-chave desse
movimento musical ao longo de sua carreira e até adaptado interpretações de
canções de outros gêneros ao som do banquinho e o violão.
A começar pelos discos que registram apresentações ao vivo de Caetano
Veloso, em “Totalmente Demais” (1986), Caetano une num pot-pourri duas canções
!57
de autoria de João Gilberto: Oba-Lá-Lá/Bim-Bom (1959), presentes no
paradigmático álbum “Chega de Saudade” — mais precisamente, a primeira, quarta
faixa do lado B e a segunda, também quarta faixa, do lado A. Apesar de se tratar da
segunda faixa do disco de Caetano, pelos registros em vídeo e pelo comentário que
transcrevemos a seguir, tudo indica que foi a canção que abriu o show.
Após interpretar a canção — à voz e violão — Caetano saúda a plateia e faz
questão de comentar:
Boa noite e obrigado! Eu ontem quando comecei o show eu comecei
exatamente com este mesmo número e, fiquei sem conseguir tocar
direito, nervoso, porque não é fácil de tocar isso não. Não é a melhor
coisa você chegar logo e tocar um samba, entendeu? A não ser que
você seja o João Gilberto, e eu não sou o João Gilberto. Mas eu
disse assim, eu vou insistir do mesmo jeito, tocar a mesma coisa que
eu toquei ontem, a primeira, e enfrentar essa mesma dificuldade, e,
comecei com a mesma dificuldade...
Caetano Veloso inicia seu comentário ressaltando o caráter de superioridade
de João Gilberto, colocando-se como um seguidor — inferior, portanto — que, ao
tentar reproduzir um número de seu mestre fica “nervoso”, tendo em vista que a
inusitada forma de arranjo introduzida por João Gilberto ao violão, mesmo talvez
parecendo, não se trata de algo “fácil de tocar”. Mas, como a intenção de reverenciar
é maior que qualquer nervosismo ou possível incapacidade — que tenta ser
expressa —, Caetano resolve “enfrentar” de peito aberto seu receio e começar nesta
noite com o mesmo número da anterior, apesar de todos os possíveis pesares, num
perfeito tributo à Bossa e a João Gilberto. E, ao iniciar o show exatamente com este
número, de certa forma, Caetano recupera a inspiração inicial para seu ofício como
cancionista, e o início de sua carreira, e reitera o fato de ser um fruto — e também
um exímio apreciador e por que não seguidor? — disso.
Anos mais tarde, em “Circuladô — Ao Vivo” (1992), Caetano interpreta o
clássico que é praticamente o hino da Bossa-Nova: Chega de Saudade (1959). O
álbum — versão ao vivo de “Circuladô” (1991) —, e a turnê em si, eram também
uma celebração dos cinquenta anos de idade de Caetano.
Wisnik (2005), acerca do show “Circuladô” (1992), comenta e analisa de
maneira detalhada:
Situado entre o “desmascaro” revisionista de Estrangeiro (1989) e a
revisão mais programática de Tropicália 2 (1993, em parceria com
Gil), o show Circuladô (1992) realiza o resgate mais denso das
!58
circunstâncias históricas que permeiam a carreira musical de
Caetano, atualizando problematicamente suas questões. [...] Ali,
somadas ao repertório recente, que incluía “Fora da Ordem” e
“Circuladô de Fulô” (musicalização de um poema de Haroldo de
Campos), outras canções pontuavam momentos nodais de sua
trajetória artística, tais como “Alegria, Alegria”, “Baby”, “Os Mais
Doces Bárbaros” e “Um Índio”, de sua autoria, e “Chega de Saudade”
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Disseram Que Eu Voltei
Americanizada” (Vicente Paiva e Luiz Peixoto), “Debaixo dos
Caracóis do Seus Cabelos” (Roberto e Erasmo Carlos) e
“Jokerman” (Bob Dylan), além do medley “Black or White” (Michael
Jackson)/ ”Americanos” (Caetano Veloso). (WISNIK, 2005, p. 23-24)
Wisnik captara justamente o tom do show “Circuladô”: a soma sem
contradições entre “o resgate [...] das circunstâncias históricas” de todo um passado
que remonta o início da carreira de Caetano — tanto por canções de sua autoria
quanto um clássico da Bossa-Nova — e a atualização de “suas questões” por meio
do “repertório recente”, que incluía, além de suas canções mais atuais, desde hits de
intérpretes como Carmem Miranda, até composições de Bob Dylan e Michael
Jackson.
Somando-se a isso, Calado27 pontua o fato de que Caetano, “além de
selecionar o repertório e dirigir o show” também “participou ativamente da adaptação
dos arranjos para o palco” contando com “o talento do violoncelista Jacques
Morelenbaum”, músico que foi por dez anos parceiro de Tom Jobim e passou a
incorporar o grupo dos músicos de Caetano Veloso, tendo sido o responsável pelos
arranjos de onze dos álbuns do cancionista baiano.
Caetano, antes de interpretar a canção — para um público estrangeiro,
apenas à voz e violão —, afirma, em inglês: “I just like to thank, and sing one song
that is for me the core, the center of the whole meaning of Brazilian music atitude”28.
Partindo do comentário de Caetano, podemos afirmar que, em certa medida, Chega
de Saudade pode ser considerada como o centro e talvez a mais clara tradução não
apenas de toda música popular brasileira, mas, em especial, da obra de Caetano
Veloso. E, também, que Caetano, ao escolher esta canção para o repertório da turnê
de comemoração de seus cinquenta anos, interpreta-a num tom de agradecimento
27
No texto contido no encarte do álbum, adicionado a este numa edição comemorativa.
Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=RQxp0uJvcLs]. Acesso em 09 de janeiro de
2015, às 21:51h. “Eu gostaria de agradecer e cantar uma canção que é para mim o coração, o centro
do significado de toda atitude da música popular brasileira”. (tradução nossa)
28
!59
ainda ampliado, tendo em vista seu constante tributo à Bossa-Nova num ponto em
que sua carreira já estava devidamente estabelecida.
A mesma canção seria ainda interpretada no show “Un Caballero de Fina
Estampa” (1995), que deu origem ao álbum homônimo, registro de show da turnê do
disco de estúdio anterior “Fina Estampa” (1995), no qual Caetano interpretara
apenas clássicos do cancioneiro de língua espanhola. “Chega de Saudade” não
consta no CD, mas sim no DVD do show. Neste, Jacques Morelenbaum rege
orquestra que acompanha Caetano. A canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é
interpretada logo após Você Esteve Com Meu Bem? (1953), de João Gilberto, e é
antecedida pelo seguinte comentário de Caetano:
Esse samba foi composto pelo próprio João Gilberto, no início dos
anos 50. Só existe uma gravação dele, pela Marisa Gata Mansa.
Uma excelente gravação, mas, muito pouco conhecida. Por isso eu
quis cantá-lo aqui, porque eu acho que ele é um pedaço do elo
perdido entre o canto de Orlando Silva e a invenção de João
Gilberto. Mas essa invenção nada seria se não fosse a luz intensa
que se espalhou sobre ela. Uma luz de sol, cujo nome é Antonio
Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. 29
Mais do que meramente citar o “elo perdido” entre Orlando Silva e João
Gilberto, Caetano explica com seu comentário, e exemplifica, interpretando em
sequência as canções: Lábios que Beijei (1937), de J. Cascata, que fora sucesso na
voz de Orlando Silva, Você Esteve Com Meu Bem? (1953), de João Gilberto,
conforme disse Caetano, gravada por Marisa Gata Mansa, e Chega de Saudade
(1959), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, classicamente interpretada por Joao
Gilberto. Caetano Veloso utiliza seu show para demonstrar sua versatilidade como
intérprete — haja vista as canções de diferentes tempos e espaços do repertório
hispânico — e acaba, também, por contar um pouco da história da evolução da
música popular brasileira e até uma possível conexão entre estes dois cancioneiros,
haja vista a canção que abre o show, O Samba e o Tango (1937), de Amado Reis,
que contém os seguintes versos, bastante expressivos em relação à proposta de
Caetano para o disco de estúdio e o show em questão:
Chegou a hora, chegou chegou
Meu corpo treme e ginga qual pandeiro
A hora é boa e o samba começou
E fez convite ao tango pra parceiro
Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=AFtQfGp2YDQ — (59:08 — 59:49)]. Acesso em
09 de janeiro de 2015, às 22:37.
29
!60
Caetano ainda gravaria ao vivo Chega de Saudade mais uma vez, no álbum
“Omaggio a Federico e Giulietta” (1998). O show registrado no disco em questão
não traz o repertório específico de nenhum álbum anterior, mas tratou-se de uma
única apresentação feita sob convite de Maddalena Fellini, irmã do cineasta
Federico Fellini e cunhada da atriz Giulietta Masina. Caetano recebera uma carta de
Maddalena, dando conta de que sua cunhada ficara extremamente emocionada pelo
fato de Caetano, seu fã brasileiro, ter feito uma música em homenagem a ela, e
convidando-o para fazer um show em Rimini.
O repertório do show, registrado no disco, inclui algumas peças do
cancioneiro italiano, como Luna Rossa (1950) — gravada por Caetano no Brasil para
a trilha da novela “Terra Nostra” —, Gelsomina (1954) e Come Prima (1959).
Fizeram também parte da lista canções de autoria de Caetano como a própria
Giulietta Masina (1987), Cajuína (1979), Trilhos Urbanos (1979), e até duas canções
contidas no álbum “Tropicalia ou Panis et Circensis”: a versão em latim de AveMaria, e Coração Materno (1937). Como um resumo de diferentes fases da carreira
de Caetano, seja como intérprete, seja como compositor, não só não poderia, como
de fato não faltou Chega de Saudade (1959), síntese da gênese de todo este
processo.
Em “Prenda Minha” (1998), registro ao vivo da turnê do álbum “Livro” (1997),
Caetano interpreta Meditação (1961), de Tom Jobim e Newton Mendonça.
No que tange o disco em questão, vale a pena citar as palavras de Sandra
Almeida contidas no release do disco, datado de novembro de 1998:
Caetano abre o tabuleiro com a frase "Domínio público, Jorge Ben,
Fernanda Abreu, Racionais MCs, Marinheiro só, Miles Davis", para
em seguida puxar "Jorge da Capadócia" do swing man Benjor. Na
fala do artista, os nomes que gravaram a música e uma redenção:
"foi pra comentar e ao mesmo tempo perdoar o fato de Miles Davis
ter gravado 'Prenda minha' no início dos anos 60 com Gil Evans e têla registrado como sendo de sua autoria. É como se eu tivesse
tentando dar a bela versão de Davis/Evans de volta aos gaúchos. E é
por isso também que escolhi Prenda minha como título desse
trabalho." "Meditação", de Tom Jobim, precede "Terra", tão implorada
em todos os palcos onde Caetano se apresenta. A platéia explode
em aplausos e perde o fôlego com "Eclipse Oculto". Pausa para
respirar. Um outro texto, já escrito em Verdade Tropical, mas sempre
renovado a cada citação pela força da homenagem a Gilberto Gil e
Dona Canô, é a senha para "Bem devagar" e "Drão", do próprio Gil.
Notas mais antigas, mas nem por isso amareladas, revelam
"Saudosismo" e lembram Chico Buarque em "Carolina". Da voz de
!61
Caetano, surge "Sozinho", de Peninha, já gravada por Sandra de Sá
e Tim Maia. "Esse cara" e "Mel" nos lembram outras fases dessa
trajetória, nunca gravadas pelo autor. "Linha do Equador", em
parceria com Djavan, "Odara" e "A luz de Tieta" retomam o clima
eufórico e encaminham o álbum para "Atrás da Verde-e-Rosa só não
vai quem já morreu", manifesto mangueirense de amor aos baianos
que mudaram o rumo da MPB. "Vida Boa" é a última faixa.
Composição de Fausto Nilo e Armandinho, que encerra o disco numa
espécie de sinopse de todo esse enredo: "você que faz minha vida
variar, tá na luz que passa pelo ar, passa também pelo meu, seu...
'cantar'
O show, permeado pela leitura de trechos de seu livro recém-lançado, e
contendo alguns de seus grandes sucessos, como Terra (1968), Eclipse Oculto
(1983) e Odara (1977), e referências ao estilo musical cultuado por Caetano:
Saudosismo (1986), de sua autoria, e Meditação (1961) de Tom Jobim e Newton
Mendonça.
Há que se ressaltar, em primeiro lugar, a crítica à canção meramente de
consumo, sem conteúdo, expressa pela faixa Doideca (1997), de sua autoria — na
verdade, constituída mais como uma paródia, constituída por uma batida contínua
da percussão, e um arranjo um tanto quanto atrelado ao aspecto “doido”
referenciado no título, cujas notas e acordes apenas acompanhavam a profusão de
palavras sem qualquer conexão entre si, pela qual a letra é marcada, como o verso
“Gay Chicago Negro Alemão Bossa-Nova Gay”.
Além disso, cabe destacar a faixa Sozinho, de Peninha, interpretada por
Caetano ao violão, que tornou-se um grande sucesso, e por isso, feito do disco um
recorde de vendas na época, tem sido, inclusive, lançada como single, numa versão
dance — acrescida a sonoridade eletrônica do gênero à interpretação original de
Caetano. Esta, no show — e conforme consta no DVD — foi permeada por um longo
comentário de Caetano acerca de ter simpatizado com a canção ao ter ouvido a
gravação por outros intérpretes — Sandra de Sá e Tim Maia —, e ao ter descoberto
ser do compositor do qual já havia gravado anos antes a canção Sonhos (1977),
teve a certeza de querer também gravar esta.
Ao reafirmar seu gosto pelas canções de Peninha, Caetano também reafirma
seu gosto pelo que é classificado como “brega”, demonstrado desde “Tropicália ou
Panis et Circensis” pela gravação de Coração Materno (1937), uma canção
extremamente dramática e bem antiga já naquela época.
!62
No disco “Noites do Norte — Ao Vivo” (2001), que registra um dos shows da
turnê do álbum anterior “Noites do Norte” (2000), Caetano interpretou Caminhos
Cruzados (1958) de Tom Jobim e Newton Mendonça, Samba de Verão (1964), de
Marcos Valle, e Eu e a Brisa (1967), de Johnny Alf.
Acerca da sonoridade característica do álbum em questão, é Antonio Barbosa
quem afirma, na crítica do disco duplo30:
O segundo álbum funciona melhor, investindo num repertório mais
leve e suingado, com uma participação maior dos músicos. Caetano
já começa desarmando o ouvinte ao emendar o funk
Tapinha em Dom de Iludir, a sobriedade contrastando com a galhofa.
Essa surpresa não é a única da segunda metade do álbum.
Em Caminhos Cruzados, Caetano joga a bossa nova no Candeal,
com um arranjo que privilegia a percussão; novas aproximações com
a bossa, cheia de frescor, vêm em Samba de Verão e Eu e A Brisa.
De fato, em Caminhos Cruzados é a percussão que ganha destaque,
destoando significativamente da batida convencional da Bossa-Nova, passando a
ser marcada pela sonoridade característica dos tambores baianos. Este caráter de
novidade é que garante o “frescor” até mesmo para Samba de Verão, canção a qual,
apesar de ter sido gravada em estúdio por Caetano, é apresentada numa versão
completamente distinta, também devido à batida. quase que integralmente atrelada
à batida dos tambores.
Já Eu e a Brisa, contrariamente às duas outras canções, é marcada por um
tom mais intimista, com Caetano ao violão, Jacques Morelenbaum ao violoncelo e
uma batida significativamente mais leve, e mais atrelada ao convencional.
Em “Cê Ao Vivo” (2007), primeiro registro ao vivo das apresentações de
Caetano com a Banda Cê, na turnê do álbum anterior homônimo — numa proposta
mais Rock’n’Roll —, Caetano interpreta Amor Mais Que Discreto (2007), canção de
sua autoria, na qual há uma citação musical (admitida no título da faixa, inclusive) de
Ilusão à Toa (1963), de Johnny Alf.
A canção de Caetano tematiza um romance homossexual entre dois homens
com idades diferentes, fato que talvez ajude a explicar “o mais total interdito” a esta
relação, conforme costa no verso que abre a canção:
Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/2012/07/1998-prenda-minha-ao-vivo.html].
Acesso em 23 de janeiro de 2015, às 11:35.
30
!63
Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer Eu não cheguei a ser
No entanto, as características positivas deste jovem — suficientemente
“bonito”, “complexo” e “bom” — fazem com que o eu lírico, por mais experiente que
possa ser, ignore os preconceitos e venha a “tornar-se”, como num passe de
mágica, “o amante” que nunca chegara a ser “antes” de o “conhecer”, vivenciando,
portanto, algo também inédito. Assim, apesar do “interdito” que se coloca à priori,
trata-se de um amor que merece ser vivenciado, nem que seja “por um instante”.
Eu sou um velho
Mas somos dois meninos Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
O eu lírico, mais experiente, classifica a si mesmo como “um velho”, mas
confessa, em seguida, que, estando na presença deste rapaz que lhe encantara,
ambos se colocam como “dois meninos”, talvez ternamente movidos pela doçura de
um primeiro amor. Além disso os “destinos” de ambos, com a possibilidade de união,
se revelam “mutuamente interessantes”, seja por “um” ou alguns instantes” — para
pouco tempo ou a vida inteira —, já que, frente ao “grande espelho”, a “vida” de um
faria a do outro ter “mais sentido”. A do rapaz, certamente por provar da novidade e
encontrar um significado até então inédito para a sua existência, atrelado a amar e
ser correspondido. Já a voz poética ressalta o fato de que a “vida” de seu amado
faria “mais”, “talvez bem mais” diferença na sua, tendo em vista que provar de algo
completamente novo tendo já toda uma bagagem de experiências pode resultar num
“sentido” marcado por um brilho ainda maior, dada a surpresa pela falta de
expectativas de algo novo já na maturidade.
Em relação ao sentido expresso na letra de Caetano, a canção de Johnny Alf,
citada apenas na introdução estabelece um diálogo também no que diz respeito à
sua letra, conforme os versos a seguir:
!64
Eu acho engraçado
Quando um certo alguém
Se aproxima de mim
Trazendo exuberância
Que me extasia
Ilusão à Toa também tem como tema um amor, uma situação de
enamoramento por parte de seu eu lírico, o qual, extasiado pela aproximação da
pessoa amada, passa a sentir o que é convencional a quem ama: “meus olhos
sentem” e não apenas veem; “minhas mãos transpiram” expressando fisicamente a
ansiedade e a hesitação de estar com quem lhe desperta tanto o interesse.
Uma primeira diferença entre as canções de Caetano e Johnny Alf se liga ao
fato de que, em Amor Mais Que Discreto, a relação amorosa descrita se dar entre
dois homens, de idades diferentes e se atrelar a tabus em relação aos valores
retrógrados de uma sociedade brasileira — apesar de todos os movimentos e
manifestações que vão de encontro a estes mesmos valores. Já em Ilusão à Toa,
não há especificação acerca de se tratar de um homem ou mulher que declara seu
amor à outra pessoa — seja esta um homem ou uma mulher —, nem da idade de
nenhum dos dois.
Uma outra diferença a ser considerada se liga ao fato de que, em Ilusão à
Toa, o amor confessado e descrito pelo eu lírico é platônico — daí talvez ser
classificado no título da canção meramente como uma “ilusão” —, e, em Amor Mais
Que Discreto, não, dada a reciprocidade sugerida.
Mas embora agora eu te tenha perto
Eu acho graça do meu pensamento
A conduzir o nosso amor discreto
Sim, amor discreto pra uma só pessoa
Pois nem de leve sabes que eu te quero
E me apraz essa ilusão à toa
No entanto, esta sutil diferença que acaba por diferenciar as canções,
também ajuda a uni-las em relação ao diálogo que estabelecem entre si. Na canção
de Johnny Alf temos retratado um “amor discreto” devido ao fato de ser platônico,
não confessado, tendo em vista, como consta na própria letra, “pra uma só pessoa /
Pois nem de leve sabes que te quero”. Já em Caetano, há uma intertextualidade no
que diz respeito a esta mesma expressão, que, levemente modificada, vem a ser
título da canção: Amor mais que discreto, e, o fato de a discrição ser mais acentuada
!65
pode estar relacionado aos preconceitos da sociedade, seja pela diferença de
idades, seja pela igualdade dos sexos.
Assim, mais do que uma citação na introdução, e apesar das diferenças
mantidas entre si, Amor Mais Que Discreto e Ilusão à Toa estabelecem um diálogo
entre si, que passa pela esfera musical, e chega à temática, no tratamento de um
dos temas universais e atemporais por excelência.
No álbum “Multishow Ao Vivo: Caetano Veloso — Abraçaço” (2014), Caetano
canta uma de suas canções ligadas à atmosfera da Bossa-Nova, Lindeza (1991), do
álbum “Circuladô” (1991).
O álbum em questão, composto por dezenove faixas, registra um dos shows
da turnê do terceiro álbum lançado com a Banda Cê. Em termos de repertório, além
das canções de “Abraçaço” — como A Bossa-Nova É Foda, Funk Melódico e Estou
Triste —, Caetano regravou alguns dos grandes sucessos de sua carreira, como: De
Noite Na Cama (1974), Você Não Entende Nada (1972), A Luz de Tieta (1997),
Alguém Cantando (1977), Eclipse Oculto (1983) e até sua versão musicada do
poema de Gregório de Matos, Triste Bahia (1972).
O registro em DVD, que contém vinte e quatro faixas, contém a íntegra do
show, e traz os comentários de Caetano para a plateia, dentre os quais, a pergunta,
em tom retórico: “Cadê o Amarildo?”, antes da canção Você Não Entende Nada,
ligada à repercussão do caso do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo
de Souza31. Segundo as investigações, ele foi morto por policiais militares do Rio de
Janeiro depois de ter sido levado para prestar esclarecimentos. O caso em questão
gerou uma série de protestos populares na região, que se desdobraram em outros
por todo o Brasil. Isto exemplifica o caráter de protesto de Caetano Veloso em relação aos fatos
cotidianos que afetam a vida dos brasileiros.
Lindeza é uma canção marcada por um arranjo e também por uma temática
desenvolvida em sua letra bastante comuns às canções da Bossa-Nova.
Coisa linda
É mais que uma ideia louca
Ver-te ao alcance da boca
Eu nem posso acreditar
Disponível em: [hhttp://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-amarildo/
caso-amarildo-investigacoes.htm]. Acesso em 27 de janeiro de 2015, às 22:45.
31
!66
Coisa linda
Minha humanidade cresce
Quando o mundo te oferece
E enfim, te dás, tens lugar
Desde o título, é construída na letra uma expressão do encantamento do eu
lírico em relação à pessoa amada. Esta, é caracterizada como uma “lindeza”, “coisa
linda”, tendo sua beleza ressaltada, bem como o fato de sua existência — dada
como uma espécie de milagre ou “coisa louca” — dar sentido à do eu lírico,
completamente apaixonado.
Em certa medida, podemos estabelecer uma relação entre esta canção de
Caetano Veloso e Coisa Mais Linda (1965), de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes,
outro dos hits da Bossa-Nova, que também foi gravado por Caetano Veloso em
1983.
Coisa mais bonita
É você, assim
Justinho você, eu juro
Eu não sei porque você
Você é mais bonita que a flor
Quem dera,
A primavera da flor tivesse
Todo esse aroma de beleza Que é o amor
Perfumando a natureza
Numa forma de mulher
A canção de Lyra e Moraes pode ser tomada como exemplo em relação a
uma das temáticas mais frequentes da Bossa-Nova: a exaltação da mulher. Coisa
Mais Linda desde seu título exalta a beleza extrema de uma mulher, a qual, supera,
inclusive a da “flor” durante a “primavera” — seu apogeu.
No que tange esta temática tão característica da Bossa-Nova, é o próprio
Carlos Lyra quem comenta:
Na minha cabeça, eu faço uma viagem assim, que a Bossa-Nova se
assemelha muito àquela arte provençal, no sul da França, no século
XII, né? Ali a gente encontrava os poetas, trovadores, menestréis,
com seus alaúdes, com seus instrumentos. E eles estavam
preocupados em cantar um tipo de música que falasse ao ouvido das
mulheres. Havia um grande culto da mulher na escola provençal, e a
Bossa-Nova não é outra coisa senão o grande culto da mulher.
Quem não acreditar, que leia Vinicius... (LYRA, 2005)32
32
In: “Coisa Mais Linda” (2005)
!67
Os compositores da Bossa-Nova podem, de fato, ser comparados aos
“trovadores” e “menestréis” ligados ao contexto europeu “provençal” no que diz
respeito a esta literal adoração à mulher expressa em seus textos. Caetano Veloso,
em Lindeza, bebe desta mesma fonte, valendo-se inclusive de uma expressão
bastante similar à de Coisa Mais Linda: ao invés de “coisa mais bonita”, é
empregada a expressão “coisa linda”, sinônima, e que, no mesmo sentido, tem por
objetivo chegar “ao ouvido das mulheres”, conforme Lyra ressaltou em relação à
Bossa.
Lyra ainda sugere, de forma irônica, a quem quer que não acredite na ligação
do discurso da Bossa-Nova com o “culto da mulher”, “que leia Vinicius”, ou seja, que
entre em contato com a obra do poeta e letrista notará uma constante no que diz
respeito a esta “paixão pela mulher”, conforme afirmam Homem e De la Rosa (2013):
Vinicius é mais conhecido por sua poesia ou sua canção? Não
importa. O distanciamento proporcionado pelo tempo mostra que a
vida torna-se maior que o autor. Ela escancara a máxima de sua
vida: a paixão pela mulher, seja em poesia, seja em letra de música.
(Homem e De la Rosa, 2013, p. XX)
No entanto, quem atentar para a obra de Caetano também encontrará
diversas canções cuja temática vai nesta mesma direção. Além de Lindeza,
podemos destacar: Você É Linda (1983), A Tua Presença Morena (1975), Tigresa
(1977), Branquinha (1989), Neide Candolina (1991), Você É Minha (1997), dentre
outras.
Afora estes registros em seus álbuns ao vivo, Caetano também gravou em
estúdio alguns dos maiores títulos da Bossa-Nova, a ponto de ter sido lançada em
2000 uma coletânea intitulada “A Bossa de Caetano”. O disco é constituído por
alguns clássicos da Bossa-Nova e também por canções de autoria de Caetano,
compostas nos moldes do estilo musical reverenciado por ele, gravados ao longo de
sua carreira.
Uma das canções de autoria de Caetano Veloso contidas no disco é Desde
Que O Samba É Samba (1993). Lançada originalmente no álbum que comemorava
os trinta anos da Tropicália — “Tropicália 2” —, a canção é marcada por um arranjo
totalmente nos moldes da Bossa-Nova — reforçado, inclusive, pelo
acompanhamento apenas ao violão em relação ao canto bastante contido.
!68
A letra, por sua vez, se coloca como uma exaltação à música como um todo,
e mais especificamente, ao samba — e à “tristeza” que lhe é inerente. Acerca do
sentimento em questão, é ressaltado o fato de se tratar de uma palavra feminina, e,
a partir disso, afirma-se que “a tristeza é”, por definição poética, não apenas
perfeitamente representada pela figura de uma mulher, não no sentido de a mulher
ser triste, mas, no de ser a maior causadora do desalento — seja no homem, ou em
quem quer que seja que ame —, a ponto de ser chamada de “senhora”, termo que
dá conta não só de uma mulher casada ou vivenciando sua maturidade, mas,
sobretudo, de quem assume uma posição de superioridade ou domínio de
determinada situação, cabendo perfeitamente ao contexto amoroso.
E este suposto poder delegado à mulher não se trata de algo contemporâneo,
mas remonta o passado, referenciado pela expressão “desde que o samba é samba”
— que dá título à canção — como um fato inegável, cuja vigência, desde que o
mundo é mundo, desde que o homem é homem, simplesmente, “é assim”.
Ao estabelecer a ligação entre “o samba” e “a tristeza”, Caetano Veloso
recupera a temática de Samba da Bênção (1967), de Vinicius de Moraes we Baden
Powell, cuja letra, que também tematiza o samba, dentre outras coisas, contém a
afirmação de que “[...] Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de
tristeza [...] / Senão, não se faz um samba não”, tomando este sentimento como
ingrediente que não pode faltar na receita de qualquer samba. E, além disso,
também se afirma, mais do que isso, numa definição poética, que “[...] O samba é a
tristeza que balança”, por excelência.
A partir desta afirmação, passa a se figurativizar a origem do samba, por
referências: inicialmente no verso: “a lágrima clara” — que cai “sobre a pele escura”
— de um negro que representa toda a coletividade do povo que introduziu o gênero
no Brasil. O verso seguinte, expressando o mesmo, quase que numa comparação,
dá conta “da chuva que cai lá fora” durante “a noite”.
Nesse sentido, a canção de Vinicius de Moraes também contém os versos:
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
!69
Se Caetano sugere uma origem negra do samba, poeticamente, Vinicius de
Moraes afirma categoricamente se tratar de um gênero musical que “nasceu lá na
Bahia”, e, se com o passar dos anos a melodia veio a se incorporar também às
letras de cancionistas representantes do “branco”, sua essência, seu “coração”
permanece “negro demais”.
Mas, voltando à sequência do movimento poético, em meio a todo este
contexto de desolação, no qual até o choro se faz presente, vem à tona “alguma
coisa” que simplesmente “acontece”, como que do nada, no momento em que o eu
lírico se põe a cantar “assim”. Trata-se justamente da alegria, como consolo e forma
do esquecimento em relação à “tristeza” em questão, tendo em vista que o eu lírico
afirma: “cantando eu mando a tristeza embora”.
Nesse sentido, os versos que encerram a canção dão conta de “o samba” ser,
ao mesmo tempo “pai do prazer”, pela alegria que origina, transmite e dispersa, e
também “filho da dor”, por ter sido criado pelos negros, num contexto histórico de
escravidão, como fruto dos ais de um povo cativo. Justamente, por isso, mais do que
um gênero musical, trata-se literalmente d’ “o grande poder transformador” por
excelência.
Este contexto de transfiguração remete também à alteração do samba, em
termos de batida — em toda a sua pluralidade de manifestações —, com a influência
do jazz, ao que veio a se tornar a Bossa-Nova, um balanço ou gingado novo em
relação ao original (do samba).
Mas, Caetano também é marcado por um caráter ou um quê “transformador”
musicalmente falando, principalmente em sua vertente de intérprete.
Justamente a este propósito, vale lembrar das palavras de Wisnik (2005), que
ressalta que:
É conhecida a habilidade única de Caetano em construir discursos
desconcertantes através da costura de canções que se comentam
mutuamente — suas e de outros compositores —, gerando sentidos
em segundos e terceiros graus, em teias complexas de relações
cruzadas. (WISNIK, 2005, p. 24)
O mesmo disco “A Bossa de Caetano” contém um claro exemplo de um
destes “discursos desconcertantes” construído por meio da “costura de canções que
se comentam mutuamente”, citado por Wisnik. Trata-se do pot-pourri: Nega Maluca/
Billie Jean/ Eleanor Rigby, formado por três canções de épocas, territórios e estilos
!70
completamente diferentes entre si, mas unidas por Caetano, como mostra de sua
versatilidade e engenhosidade, num arranjo Bossa-Nova.
O samba Nega Maluca (1950), de autoria de Evaldo Luis e Fernando Lobo, foi
um grande sucesso do carnaval brasileiro de 1950, interpretado não só por “cantoras
do rádio” ligadas ao contexto da época, como, por exemplo Linda Batista e Lana
Bittencourt, mas, posteriormente, até mesmo por Amália Rodrigues, cantora
portuguesa que veio a ser chamada de “A Rainha do Fado”. Este mesmo samba
também serviu de inspiração para a criação de uma fantasia homônima, que veio a
se tornar das fantasias características do carnaval brasileiro.
Tava jogando sinuca
Uma nega maluca me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
que o filho era meu Toma que o filho é seu
Não senhor ....
Guarda o que Deus lhe deu
Não senhor ......
A letra do samba é marcada por um tom de relato, por parte de um homem —
que assume a posição de eu lírico — o qual estava passando tempo numa atividade
ligada ao lazer — “jogando sinuca” — quando, de repente, foi interrompido por uma
mulher que chegou subitamente, trazendo uma criança no colo e o acusando
publicamente de ser o pai desta criança — “Toma que o filho é teu”. Isto que faz com
que a mulher em questão seja caracterizada pelo eu lírico como uma “nega maluca”,
ao que o homem responde: “Guarda o que Deus lhe deu”, recusando-se tanto a
aceitar a posição de pai da criança quanto a recebê-la para possivelmente levar
consigo e responsabilizar-se por sua criação a partir de então, respondendo
repetidamente: “Não senhor”.
Billie Jean (1983), canção pop originalmente escrita e interpretada por
Michael Jackson, acabou se tornando um dos maiores hits da carreira do artista, é
marcada não só por uma distância temporal, como também física, tendo em vista
que foi escrita não por um artista brasileiro, mas norte-americano, e portanto em
outro idioma, o inglês. No entanto, apesar de tudo que a possa afastar do samba
“Nega Maluca”, ambas têm em comum a temática que se desenvolve na letra, ligada
a uma acusação de uma mulher em relação a um homem quanto à paternidade de
uma criança, marcada pela negativa deste:
!71
Billie Jean is not my lover She's just a girl who claims that I am the one But the kid is not my son She says I am the one, but the kid is not my son
Os versos que constituem o refrão da canção, numa tradução nossa, trazem
a negação do eu lírico em relação a Billie Jean ser sua amante, e também a
explicação de se tratar apenas de uma garota que diz que ele é “o tal” — o pai da
criança —, ao que o rapaz em questão apenas rebate afirmando: “mas o garoto não
é meu filho”.
Eleanor Rigby (1966), é uma canção dos Beatles — cuja autoria é atribuída a
Paul McCartney apesar de constar na clássica parceria Lennon/McCartney, contida
no álbum “Revolver”. A canção tem como título justamente o nome da mulher cuja
história é contada na letra. O verso que inicia a canção vem justamente fechar o
medley de Caetano Veloso, chamando atenção, pedindo para que se olhe para as
“pessoas solitárias”: “Ah, look at all the lonely people”.
A união das três canções numa única peça acaba afastando-as de seus
contextos originais e promovendo a construção não só de uma outra obra, como
também de um outro sentido, em que a “nega maluca” que surge com um filho no
colo, acusando o homem de ser pai deste acaba tendo não só a história desse fato
mais detalhada, como também suas características melhor explicitadas, inclusive no
que diz respeito à sua real identificação, pela letra de “Billie Jean”, que vem, no
mesmo sentido, narrando a história de uma mulher que deseja tratar da paternidade
de seu filho, mas dando mais detalhes inclusive da forma como o casal se
conheceu, a situação em que estavam, o que motivou a relação entre eles e até as
possíveis razões do rompimento.
Deste modo, o verso de “Eleanor Rigby” encerra a canção numa espécie de
conclusão, chamando a atenção para as pessoas solitárias, afinal de contas,
atentando para as três canções individualmente, temos, nas duas primeiras o relato
acerca da vida de mulheres que solitárias, que não só passaram por
relacionamentos amorosos mal sucedidos, mas trazem consigo o fruto destas
relações mal sucedidas: um filho, ainda não assumido pelo suposto pai da criança, e
portanto, sendo de total responsabilidade e vivendo na completa dependência
destas. A canção final, “Eleanor Rigby”, coloca-se como uma síntese dessas vidas
!72
infelizes, que, devido às suas similaridades, são vertidas por Caetano numa só peça
de Bossa-Nova.
Este pot-pourri, em especial, também se coloca como um exemplo que vai ao
encontro das palavras de José Miguel Wisnik (1993):
A aplicação de Caetano Veloso ao campo da canção, com
intervenções deslocantes, pontes inesperadas, e sua homenagem
permanente à força radiosa do que é belo e forte, faz da sua obra um
comentário muito amplo do mundo através das inumeráveis
refrações da palavra cantada. (WISNIK, 1993, p.8)
Ora, se a colagem de um samba clássico a um hit pop dos mais significativos
e com um clássico de uma das mais reverenciadas bandas de rock de todos os
tempos não puder fazer jus ao que Wisnik chamou de “intervenções deslocantes” —
por tamanhas as diferenças entre as três canções unificadas na peça de Caetano —
e também de “pontes inesperadas” — afinal, quem no âmbito da tradição musical
brasileira ousou cometer tamanha heresia? —, que acabam por culminar numa
literal “homenagem” — que em Caetano, de fato, é “permanente” — “à força do que
é belo e forte”, por uma amostra deste “comentário muito amplo do mundo” por meio
destas “refrações da palavra cantada”, o que o fará?
Em 2004 Caetano lançou o álbum intitulado “A Foreign Sound” — numa
tradução nossa: um som estrangeiro —, contendo apenas standards do cancioneiro
em língua inglesa, desde Cole Porter até Kurt Cobain. Caetano fez questão de
imprimir um tom exótico às interpretações das vinte e três canções contidas no
álbum.
Diana (1957), de Paul Anka, talvez seja a mais significativa no âmbito da
Bossa-Nova. A canção, que ganhou versões nos mais diversos estilos e idiomas
com o passar dos anos, enfim ganhou uma roupagem e interpretação genuinamente
bossanovistas.
Em 2012, Caetano lançou o álbum “Abraçaço”, terceiro trabalho com a banda
Cê, numa sonoridade mais atrelada ao rock’n’roll. A qualquer um que desconheça
Caetano talvez soe estranho o fato de a canção que abre o álbum ser justamente A
Bossa-Nova É Foda (2012), mas, trata-se apenas da manutenção de uma coerência
que norteia toda sua carreira — literalmente desde o seu início.
!73
Desde o título, esta canção de Caetano se coloca como uma homenagem à
Bossa-Nova um tanto quanto diferente de todas as anteriores por estar atrelada a
uma pesada atualização ao contexto pós-moderno, haja vista a expressão
empregada para elogiar, a qual, inicialmente dada como uma expressão de baixo
calão, popularizou-se entre a juventude como sinônimo de “muito bom”,
“excepcional”.
No decorrer da letra, podemos encontrar, numa linguagem cifrada, referências
a alguns dos grandes nomes da Bossa-Nova, tais como João Gilberto (“O bruxo do
juazeiro numa caverna do louro francês”), Carlos Lyra (“O magno instrumento grego
antigo diz que quando chegares aqui / Que é um dom que muito homem não tem,
que é influência do jazz”), Tom Jobim (“O tom de tudo comanda as ondas do mar /
Ondas sonoras com que colore no espacial”), e também ao cantor e compositor
norte-americano Bob Dylan (“E tanto faz se o bardo judeu romântico de Minessota”).
Além destes jogos de palavras que constituem referências a grandes nomes
da música nacional e internacional, são também nominalmente citados alguns
lutadores brasileiros de MMA (Mixed Martial Arts — Artes Marciais Mistas):
“Minotauros”, “Junior Cigano”, José Aldo”, “Lyoto Machida”, “Victor Belfort” e
“Anderson Silva”, fator que reforça a contextualização atual, totalmente atrelada aos
nossos dias — até pelas referências a uma modalidade de artes marciais tão
popular neste contexto — do culto de Caetano.
Assim, aquilo que poderia soar controverso: o fato de um artista surgir como
fruto da Bossa-Nova e criar toda uma carreira praticamente na contramão desta via
de regra, optando por viajar pelos mais diferentes estilos e épocas, acaba por
constituir a coerência da atuação deste artista baiano.
Apesar da devoção por João Gilberto, Caetano valeu-se da inspiração para
construir uma persona que vai de encontro à de seu mestre, afastando-se do caráter
singular, uno, e multiplicando-se em muitos, conforme ressalta Tatit (2002):
Fascinado por João Gilberto, talvez por isso mesmo, Caetano
transformou-se em seu antípoda. Enquanto João Gilberto filtra os
diversos momentos da canção popular numa dicção única, a sua
própria, Caetano, ao compor e ao interpretar, prefere viajar pelas
dicções dos outros cancionistas, encarnando seus dons. (TATIT,
2002, p. 263)
!74
Tatit ressalta o caráter diverso de Caetano no que diz à sua dicção. No
entanto, este se manifesta também em outros aspectos que compõem este
personagem, que poderia estar restrito à cultura musical brasileira, e à Bossa-Nova,
mas acaba por extrapolar estes limites.
Se, por um lado, Caetano se revela como um artista brasileiro que insiste em
dispersar, segundo um verso de uma de suas canções, “o que eu herdei de minha
gente e nunca posso perder”33, por outro lado também pode ser tomado “como um
objeto não identificado”, ao fazer brotar os mais diversos frutos a partir desta
semente comum, miscigenada por elementos de diversas outros tempos, povos e
culturas.
A Bossa-Nova, em Caetano, coloca-se como embrião do artista e, norteando
evolução deste, incorpora-se em seu DNA, desvelando-se em toda a sua atuação.
Seja no rock, no pop, no forró, no bolero, na marcha, seja falando de amor, ódio,
protesto, defesa, a constante reside no fato de se revelar em Caetano um “coração”
no qual, atemporalmente, “batuca um samba de tamborim”34.
33
VELOSO, Caetano. Não Enche (1997)
34
VELOSO, Caetano. Tropicália (1968)
!75
2. TROPICÁLIA: UM DIVISOR DE ÁGUAS NA CULTURA BRASILEIRA
“Com amor no coração Preparamos a invasão Cheios de felicidade Entramos na cidade amada
[...]
Alto astral, altas transas, lindas canções Afoxés, astronaves, aves, cordões Avançando através dos grossos portões Nossos planos são muito bons”
(Os Mais Doces Bárbaros, Caetano Veloso)
Falar sobre o Tropicalismo é falar sobre uma das fases mais interessantes de
toda a carreira de Caetano Veloso, e também de um divisor de águas não apenas na
música, mas na cultura brasileira como um todo.
Neste capítulo, buscaremos investigar um pouco dos antecedentes, que
resultaram na revolução liderada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, os princípios
norteadores desta, durante a plena atividade dos artistas, e até mesmo algumas de
suas consequências, que se mantêm até a atualidade, após o fim da Tropicália.
Para tratarmos da fase anterior à eclosão do Tropicalismo, precisamos nos
situar no final da segunda metade dos anos 60. Mais especificamente, 1967.
Este ano foi marcado por acontecimentos relevantes na história da música popular
brasileira, e especificamente, marcou a entrada oficial de Caetano Veloso para o
cenário da canção popular brasileira, com a gravação de “Domingo”.
No que tange o cenário da cultura musical brasileira, vale lembrar do evento
que se sucedeu em 17 de julho deste ano, a chamada: “Passeata da MPB”. Esta,
que tinha como slogan: “defender o que é nosso”, ficou mais popularmente
conhecida como a “Passeata contra a Guitarra Elétrica”. Ocorrida na cidade de São
Paulo, a passeata saiu do Largo São Francisco e teve como ponto final o Teatro da
Paramount, na Av. Brigadeiro Luis Antonio, em que seria realizado o programa:
“Frente Ampla da MPB”.
Contando com a presença de nomes como: Elis Regina, Jair Rodrigues,
Wilson Simonal, Zé Keti, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4 e outros famosos que já
figuravam como grandes nomes da MPB da época, o evento poderia ser resumido a
!76
uma medida protecionista que visava a impedir a incorporação de um elemento da
cultura estrangeira no cenário da música brasileira.
Caetano, que não participou da passeata, comenta:
[...] Na noite do primeiro, creio que a cargo de Simonal, preparou-se
uma passeata, em mais uma macaqueação da militância política. Era
a Frente Ampla da MPB contra o Iê-Iê-Iê, com faixas e cartazes pelas
ruas de São Paulo. Eu conversara com Gil sobre a reunião. (...) Ficou
claro entre nós que todo aquele folclore nacionalista era um misto de
solução conciliatória para o problema de Elis dentro da emissora e
saída comercial para os seus donos. Que Gil aproveitasse a
oportunidade para lançar as bases da grande virada que
tramávamos. Mas nunca considerei aceitável que ele participasse, ao
lado de Elis, Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e outros
(dizem que Chico chegaria a se aproximar por alguns minutos) dessa
ridícula e perigosa jogada de marketing. Nara e eu assistimos,
assombrados, de uma janela do Hotel Danúbio, a passagem da
sinistra procissão. Lembro que ela comentou: `Isso mete até medo.
Parece uma passeata do Partido Integralista (a versão brasileira do
nazi-fascismo, um movimento católico-patriótico-nacionalista de
extrema direita nos anos 30, do qual alguns antigos expoentes
inclusive apoiavam o governo militar)’. (VELOSO, 1997, p.161)
O fato de Caetano Veloso não ter se engajado neste movimento,
negativamente caracterizado por ele como “mais uma macaqueação política”,
“folclore nacionalista” e “ridícula e perigosa jogada de marketing”, foi no mínimo
óbvia, tendo em vista que Caetano, na posição de artista, desde o início assumiu
uma postura ligada à assimilação tranquila e pacífica de elementos de outras
culturas, sem qualquer temor de que isso se colocasse como algo que viesse a
ameaçar o seu trabalho, ou toda a cultura musical brasileira.
Tratava-se de uma negativa à incorporação da guitarra elétrica na música
brasileira — ou seja, um embate do velho em relação ao novo —, num tempo em
que a Jovem Guarda já fazia sucesso com canções que eram fruto da inspiração na
efervescência da cultura do Rock’n’Roll britânico, ligado aos Beatles. Apesar de se
tratar de uma arte que, em certa medida, era completamente desvinculada da
realidade brasileira, inclusive politicamente falando, Caetano não só era
simpatizante do Iê-Iê-Iê, como também conseguiu perceber antecipadamente que
todo este purismo em defesa da cultura nacional era literalmente, conforme a
expressão popular, pro inglês ver.
!77
Na total contramão desta xenofobia, Caetano, que havia gravado um disco
marcado por um caráter passadista, o qual se colocava como um tributo à BossaNova, já “estava em outra”, conforme ele mesmo afirma:
Quando "Domingo” foi lançado eu já estava em outra, com a cabeça
no meu disco individual, que saiu em 1967. Comecei a andar com o
Rogério Duarte e a gente só falava em música comercial, sambascanções bregas e Roberto Carlos — sobretudo porque Bethânia nos
chamou a atenção para o Roberto. Eu já andava interessado em sair
daquele cerco, daquele mundo da MPB dita de boa qualidade. Até
hoje, na verdade, vivo esperneando pra sair desse negócio, mas é
difícil. Essas definições que o mercado preestabelece são terríveis. O
tropicalismo queria fazer misturas. Queríamos, sim, ouvir e curtir
Roberto Carlos. (...) Às vezes tinha um iê-iê-iê de Roberto Carlos,
que estava estourando entre as empregadas domésticas, mas nossa
turma de música popular não conseguia ver se aquilo tinha ou não
força poética. E, às vezes, tinha muita força poética. Por outro lado,
como cantor o Roberto Carlos era muito bom; mas isto não podia
nem ser dito naquela época. Era um tabu. (VELOSO, 2002)
Neste contexto inicial, Caetano já se mostrava avesso aos rótulos e
classificações. Marcado por um dos aspectos que norteariam toda a sua carreira, ele
se interessava pelas “misturas”: não apenas “MPB”, nem “sambas-canções bregas”
ou mesmo “iê-iê-iê de Roberto Carlos” isoladamente, mas tudo isso misturado e
filtrado, contrariando inclusive as tendências “que o mercado preestabelece”. Na
verdade, Caetano expressava uma personalidade artística tão forte, bem ao modo
do que é expresso no verso: “onde queres um canto, [sou] o mundo inteiro”35.
Há que se ressaltar também que, no mesmo ano de 1967, foi lançado o
paradigmático álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Heart’s Club Band”. Este, que foi o oitavo
disco de estúdio dos Beatles, segundo a revista “Rolling Stone”36, é:
[...] the most important rock & roll album ever made, an unsurpassed
adventure in concept, sound, songwriting, cover art and studio
technology by the greatest rock & roll group of all time.
Considerado um álbum revolucionário, pelo fato de ter convertido o rock’n’roll
em arte — não apenas pelas letras e arranjos, mas, sobretudo pela arte gráfica do
álbum —, “Sgt Pepper’s” foi também um disco pioneiro em diversos aspectos. Foi o
35
VELOSO, Caetano. O Quereres (1984)
O mais importante álbum de rock & roll de todos os tempos, uma aventura inigualável em termos
de conceito, som, composição, arte da capa e tecnologia de estúdio da melhor banda de rock & roll
de todos os tempos (versão nossa). Disponível em: [http://www.rollingstone.com/music/lists/500greatest-albums-of-all-time-20120531/the-beatles-sgt-peppers-lonely-hearts-club-band-20120531].
Acesso em 12 de fevereiro de 2015, às 22:09h.
36
!78
primeiro disco concebido para ser ouvido de uma forma contínua, sem qualquer
intervalo entre as faixas. Foi também o primeiro a conter as letras das canções
impressas, capa dupla e até brindes como um cartão, um button de papel, uma
insígnia e um bigode de papelão similar ao dos componentes da banda.
Além disso, marcando o início daquela que é chamada de “fase madura” do
quarteto de Liverpool, as canções que compõem o álbum são marcadas por uma
sonoridade completamente inédita até então nos discos do gênero, seja pela
orquestra de quarenta músicos em A Day in The Life, ou pelo caráter psicodélido de
Lucy in The Sky With Diamonds — ambas inicialmente censuras nas rádios, devido
a uma suposta apologia ao uso de drogas.
O disco do Sargento Pimenta e sua banda Clube de Corações Partidos (numa
tradução nossa) marcou o início da era dos álbuns conceituais, influenciou e segue
influenciando gerações de artistas, dentre os quais podemos destacar Caetano
Veloso e seus demais companheiros no Tropicalismo.
E foi justamente no mesmo ano de 1967 que Caetano Veloso e Gilberto Gil
participaram do III Festival Internacional da Canção, promovido pela Record em 21
de outubro de 1967, defendendo, respectivamente, as canções: Alegria, Alegria e
Domingo no Parque, as quais iam totalmente na contramão da música popular
apreciada na época, ligada ao banquinho e violão da Bossa-Nova, e com letras de
cunho esquerdista, expressando protesto em relação ao regime ditatorial brasileiro
vigente.
Caetano e Gil tiveram coragem de literalmente remar contra a maré, e trazer a
público as duas primeiras composições que, num futuro bem próximo, acabariam por
deflagrar o Tropicalismo. Nesse sentido, Favaretto (1995) afirma:
Em outubro de 1967, quando Alegria, Alegria e Domingo no parque
foram lançadas no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV
Record de São Paulo, não se apresentavam como porta-vozes de
qualquer movimento. Contudo, destoavam das outras canções por
não se enquadrarem nos limites do que se chamava MMPB
(Moderna Música Popular Brasileira). Ao público consumidor desse
tipo de música — formado preponderantemente por universitários —
tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou
certo lirismo, que davam tônica à maior parte das canções da época.
(FAVARETTO, 1995, p. 19/20)
Segundo o ponto de vista defendido por Favaretto, as canções defendidas por
Caetano e Gil no III Festival da Música Popular Brasileira ainda não se colocavam
!79
como “porta-vozes” do movimento liderado por estes artistas, prestes a surgir. Mas,
historicamente falando, acabaram por se constituir como marco-zero da proposta
tropicalista. De qualquer modo, estas canções já destoavam completamente do
padrão de canção que agradava o público que apreciava a chamada “MMPB”, por
apresentar uma outra forma de “postura política” — diferente das canções de
protesto —, e até mesmo de “lirismo”, em comparação ao das letras de canções da
época.
O grande público, apesar de ter notado o caráter de “novo” instaurado por
Alegria, Alegria e Domingo no Parque, certamente não conseguiu apreciá-lo em sua
totalidade — “é que Narciso acha feio o que não é espelho” —, mas foi por ele
confundido, embora se tratasse de algo bastante elementar, conforme Favaretto
afirma:
A novidade — o moderno de letra e arranjo —, mesmo que muito
simples, foi suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo
público sancionados por festivais e crítica. Segundos tais critérios,
que associavam a “brasilidade” das músicas dos festivais à carga de
sua participação político-social, as músicas de Caetano e Gil eram
ambíguas, gerando entusiasmos e desconfianças. Acima de tudo,
esta ambiguidade traduzia uma exigência diferente: pela primeira
vez, apresentar uma canção tornava-se insuficiente para avaliá-la,
exigindo-se explicações para compreender sua complexidade.
Impunha-se, para crítica e público, a reformulação da sensibilidade,
deslocando-se, assim, a própria posição da música popular que, de
gênero inferior, passaria a revestir-se de dignidade — fato só mais
tarde evidenciado. (FAVARETTO, 1995, p.20)
Favaretto deixa bem claro que as simples mudanças ligadas à letra e o
arranjo das canções serviram não só para “confundir” o público e o júri, tendo em
vista seus critérios pré-estabelecidos, mas, sobretudo, para elevar “a posição da
música popular”, tirando dela quaisquer resquícios de um suposto “gênero inferior”,
mas, colocando-a como algo suficientemente complexo, a ponto de mobilizar os
artistas no que diz respeito a elucidações acerca da interpretação dos sentidos nelas
construídos. Este fator acaba também por se ligar à exigência de um público mais
sensível, crítico e culto, capaz de apreciar peças com um nível maior de elaboração,
marcadas por uma profundidade tal que não permite a concepção de um juízo de
valor após ser ouvida pela primeira vez, seja pelos críticos, seja pelo público.
Alegria, Alegria (1967) foi lançada inicialmente como single, num compacto
que tinha no seu lado B a canção Remelexo (1967), e depois foi incorporada ao
álbum intitulado “Caetano Veloso”, lançado no mesmo ano.
!80
Ao esboçarmos uma interpretação da letra, temos de atentar aos diferentes
níveis de significação e às relações que subjazem à superfície das palavras. Em
primeiro lugar, o fato de a canção se iniciar pelo verso “Caminhando contra o vento”
— expressão de liberdade e talvez até mesmo de transgressão — já a coloca como
uma inspiração para a canção que seria escrita posteriormente Pra Não Dizer Que
Não Falei Das Flores (1968), de Geraldo Vandré, que ficaria em segundo lugar no
Festival Internacional da canção de 1968. Esta tornou-se um hino de resistência dos
movimentos civil e estudantil que se contrapunham à ditadura militar brasileira, e por
isso mesmo, foi censurada por muitos anos.
Apesar de não ser marcada exatamente pelo mesmo tom contestador da
canção de Vandré, Alegria, Alegria se inicia descrevendo alguém que está
“caminhando contra o vento”, expressão que equivaleria a outras como “remando
contra a maré”, ligada à contrariedade em relação a algo muito mais forte.
O “vento” em questão pode, figurativamente, ser a síntese ou representação
de muitos elementos ligados ao contexto da época. Desde a postura contrária à de
muitos cancionistas e intérpretes ligados à canção de protesto em relação à ditadura
militar, como também a visão antiquada das pessoas em relação à manutenção de
uma tradição no âmbito da canção popular e até mesmo o próprio governo militar em
plena vigência.
Além do posicionamento antagônico em questão, a voz poética afirma
também estar “sem lenço” e “sem documento”. Este fato, especificamente, vai de
encontro a uma das imposições do regime militar aos cidadãos, tendo em vista que,
qualquer pessoa que fosse abordada na rua por uma autoridade sem estar portando
seus documentos, poderia ser reprimida por um dos muitos militares, ao ser
classificada como “vadia”.
Nesse sentido de oposição ao regime militar, a voz poética da canção de
Caetano não só caminha “contra o vento”, “sem lenço sem documento”, como
expressa uma coragem ou ousadia extremada e pouco recomendável na época, ao
afirmar apenas: “eu vou”, como que contra tudo e todos, sem temer quaisquer limites
ou imposições, mas, completamente livre.
Outro aspecto inovador que, inicialmente chocou a todos foi citar a marca de
refrigerantes “Coca-cola”, personalidades internacionais como as atrizes Claudia
!81
“Cardinale” e “Brigitte Bardot” e termos atrelados às revoluções estudantis que
ocorriam — tanto no Brasil quanto no exterior — “guerrilhas”, “bomba” e “fuzil”, fato
até então inédito na canção popular brasileira.
Apesar destes elementos incomuns incorporados à letra, por outro lado
podemos identificar um certo lirismo que permeia a letra da canção, à medida que
este mesmo jovem, se por um lado pode ser classificado como contestador, rebelde,
por outro revela características e aspirações comuns a qualquer representante de
sua geração, “no coração do Brasil”. Desde o fato de ter “os olhos cheios de cores” e
“o peito cheio de amores vãos”, como expressões da força e energia inerentes à
juventude, passando pelos planos de quem “pensa em casamento” ao amar pela
primeira vez, ou tem o desejo de “cantar na televisão”, até a aspiração por paz, “sem
livros e sem fuzil”, sem mais a necessidade de manifestações estudantis para que
os jovens tenham seus direitos assegurados e possam apenas “seguir vivendo”.
Nesse sentido, a locução que já foi comentada anteriormente, ganha outro
significado: “eu vou”, se torna a expressão de uma aspiração para um futuro
promissor, como cidadão. E isto sem qualquer receio ou temor — mesmo em meio à
vigência de uma ditadura militar —, mas, ao contrário, com a valentia e tenacidade
suficientes não só para afirmar isto, como também questionar — a si mesmo e aos
seus semelhantes -: “por que não?”
Não bastasse o conteúdo expresso na letra, a estrutura da mesma também
se apresentava como algo que era até então, não somente inédito, mas,
principalmente, “inconcebível”, conforme comenta Tatit:
Se você pega “Alegria, Alegria”, que foi uma das músicas que
detonaram, né, o Tropicalismo naquele momento, você tem versos
assim: “Eu tomo uma coca-cola / Ela pensa em casamento / E uma
canção me consola”. Isso era inconcebível dois anos atrás. Dois
anos atrás o que se tinha era “A Banda”, do Chico Buarque, em que
você tem uma narrativa muito clara de uma banda passando pela
cidade e maravilhando todo mundo, né? Esse tipo de verso do
Caetano, já dois anos depois, isso que eu estou chamando de
“justaposição”. Você tem, parece que assuntos diferentes de verso
pra verso. Isso era inconcebível. Hoje você vê uma letra do Djavan,
é, as letras são todas assim. Parece... você nem entende qual é o
assunto que ele tá falando, às vezes. Você sabe, às vezes, que é
amoroso, e tal, mas você não entende a conexão de um verso pro
outro, né? Isso vem do Tropicalismo, que já usou um pouco de
influência literária, aí, não tem dúvida de que houve uma influência
literária, mas, sobretudo, uma liberdade de se fazer letra. (TATIT,
2008)
!82
De fato, qualquer um que tente comparar Alegria, Alegria e A Banda acabará
por se deparar por peças que são completamente opostas entre si, praticamente
água e vinho, especialmente no que diz respeito ao conteúdo.
A intenção de Caetano Veloso era justamente ir na contramão da “narrativa
muito clara” que marcava as letras das canções até então. Rompendo com isso,
Caetano constrói uma letra completamente atrelada ao que era contemporâneo na
época, seja pelo que é tratado nos versos, mas, sobretudo pela forma de estruturálos. Alegria, Alegria revela uma letra concebida por uma perspectiva cinematográfica
— conforme Décio Pignatari classifica, uma “letra câmera na mão” — num pleno
diálogo com o “Cinema Novo”, de modo que, a “conexão de um verso pro outro” se
dá da mesma maneira que os mais diferentes elementos são focalizados por uma
câmera, constituindo uma única cena, sem por isso perder a unidade ou coerência.
Os próprios versos citados por Tatit como algo “inconcebível” frente à tradição
musical brasileira até então exemplificam a construção de uma cena, com a
focalização dos diferentes elementos que a constituem. Primeiro, a voz poética,
tomando seu refrigerante. A seguir, a câmera se desloca para sua amada, a mulher
que está a pensar “em casamento”, fazendo planos, e, ao fundo, uma canção —
trilha sonora ao fundo ou rádio ou vitrola sendo focalizado — que “consola” o homem
em questão, fazendo-o, ao ser levado pela melodia, fugir do contexto caótico em que
está inserido — seja mental ou fisicamente.
Por outro lado, embora se trate de uma canção inovadora, em termos de
arranjo, Alegria, Alegria é marcada por uma melodia totalmente ligada à estrutura
simples da “marcha”, consagrada por Chico Buarque em “A Banda” — que obteve
primeiro lugar no mesmo festival em 1966 — fator que, neste âmbito, aproxima as
duas canções.
É o próprio Caetano Veloso quem chama a atenção para um “critério de
composição” presente em Alegria, Alegria, o qual, embora empregado
aparentemente “sem cuidado e sem seriedade”, sutilmente, acaba por revelar as
“intenções e as possibilidades do momento tropicalista”, conforme o próprio Caetano
ressalta:
Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossanova, que consistia em criar peças redondas em que as vozes
internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência,
aqui opta-se pela justaposição de acordes perfeitos maiores em
!83
relação insólita. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os
Beatles. (VELOSO: 1997, p.169).
O emprego da “justaposição” não se dá apenas na ordenação dos versos,
ressaltada por Tatit, mas também pela repetição de uma estrutura musical
característica do Rock’n’Roll, em que os acordes maiores não são colocados
convencionalmente, apenas em oposição aos seus relativos, mas ordenados
justapostos, numa “relação insólita”. Alegria, Alegria, portanto, está bem mais para
Beatles que para João Gilberto. E isto se dá de tal forma, a ponto de Caetano
revelar uma intertextualidade musical presente em sua canção em relação a um dos
hits contidos no álbum “Sgt. Peppers”, lançado naquele mesmo ano pela banda
inglesa:
Contudo, ouvindo a gravação hoje, embora o andamento da versão
de estúdio seja deprimentemente lento e meu canto
demasiadamente tímido, comovo-me com a forma da introdução,
com a citação velada de “Fixing a Hole”, com o acorde final saltando
para fora do ambiente harmônico já de si cheio de mudanças
bruscas, enfim, de tudo o que Marcelo Maurício, Toyo, Tony e Willie
possibilitaram que acontecesse nessa experiência tateante e
fundadora. (VELOSO, 1997, p.169)
Exatos trinta anos após a apresentação no festival, em meio a uma autocrítica
— processo bastante corrente em Caetano Veloso —, o cancionista baiano confessa
a inspiração da introdução de Alegria, Alegria com Fixing a Hole, e reafirma o caráter
contemporâneo não apenas em relação ao que se passava no Brasil, mas no
mundo, de sua canção. Além de dividir os créditos com os componentes da banda
que lhe acompanhara, Caetano emprega dois termos bastante felizes para sintetizar
toda esta “experiência”. Trata-se de algo “tateante”, sem a menor dúvida, já que
Caetano ousou experimentar, provar do uso de elementos inéditos e de culturas
internacionais para compor a sua peça. E, a partir disso, podemos nos referir a este
momento como uma prática “fundadora” no sentido mais amplo da palavra.
Conforme Tatit pontuou em seu comentário anteriormente citado, todos os
aspectos inicialmente dados como incabíveis no contexto da canção popular
brasileira daquela época, após serem introduzidos por Caetano permaneceram e
foram tão empregados a ponto de se tornarem característicos da nossa
contemporaneidade musical, do trabalho de artistas com Djavan, Lenine, RoupaNova e tantos outros representantes dos nossos dias.
!84
Na noite do festival, Caetano foi praticamente sabatinado por repórteres,
todos, representantes da tradição, muito curiosos acerca das características
inovadoras, ligadas ao pop, impressas na canção que seria por ele defendida.
Reali Jr., um repórter da época, perguntou37 a Caetano nos bastidores do
Festival: “[...] Define aqui pros ouvintes da rádio Record, da Jovem Pan, e pros
telespectadores do canal 7, em palavras bem simples... Assim, porque eu li no jornal
uma porção de coisas que não entendi bem. Música pop. Define.”
A pergunta em questão deixa claro não só o completo desconhecimento, mas,
sobretudo a não aceitação da adoção de tendências ligadas ao pop numa canção a
ser apresentada no festival em questão. O repórter, talvez, pudesse ter intimidado
Caetano Veloso, com uma pergunta até certo ponto complexa, de definição de uma
tendência musical internacional que nem sequer ele tinha compreendido ainda, mas
não conseguiu. Talvez esperasse uma declaração que fosse de encontro aos ânimos
nacionalistas exacerbados de alguns dos cancionistas participantes e de grande
parte do público.
Caetano, muito tranquilamente, em resposta, apenas afirmou:
Ah, isso é meio difícil de definir, porque é uma... Pop é uma... Nem
sei se o que a gente tá fazendo é pop, tá entendendo? Isso é um
negócio que eu admito como termo, porque, de alguma forma, a
gente tá tendendo pra um tipo de cultura pop, quer dizer, de assumir
todas as formas da cultura massificada e tudo mais, entende? Por
exemplo, revista em quadrinhos é uma coisa pop, entende? É!
O fato de Caetano não se propor a definir formalmente, como uma espécie de
dicionário, mas, contrariamente a isso, até hesitar e expressar dúvida acerca do
enquadramento de sua canção como pop e sintetizar sua resposta com o verbo “é”,
parece ter irritado o repórter que fez a pergunta. Este, parecendo não acreditar no
que ouvira, replicou em seguida com outro questionamento: “Pop é aquilo que é? É
apenas é o que é, e o que acontece? Ao que Caetano, mais uma vez, com muita
calma, respondeu, agora de uma maneira mais completa:
“Pop” é do “popular” inglês, parece, esse negócio de arte de massa,
quer dizer, um negócio feito utilizando aquilo que tem sucesso de
massa, todos os elementos das coisas que tem comunicação direta
com a massa. Tem a pintura pop...
37
Uma Noite em 67.
!85
De uma maneira quase didática, Caetano tenta explicar o significado do
termo, originário de um outro idioma, até citando exemplos, mas o repórter,
provavelmente sem ter entendido, encerra de maneira irônica, afirmando: “É o
Veloso pop? Porque maior comunicação com a massa que Caetano Veloso eu tô pra
ver ainda nesses tempos...”, de certa maneira zombando da proposta de Caetano,
tomando-a como algo que estaria muito além de uma concreta possibilidade não só
realização, mas, principalmente de obtenção de êxito.
Num outro momento do festival, Caetano é abordado por um casal de
repórteres que lhe pergunta como ele se sente com a classificação de sua canção.
Caetano responde:
‘Tô contente com a classificação, porque, ah, não sei... Tô contente
por qualquer coisa! Porque foi tão bacana, cantei duas vezes, o
público tava super cantando a minha música, gostando! Muito
bacana! E com as outras classificações, tô contente também.
Ponteio, Domingo no Parque e Roda-Viva eu acho geniais! Acho
mesmo!
Em sua resposta, Caetano expressa sua felicidade. Logicamente pela
classificação de sua canção, mas, sobretudo pela monumental aceitação da mesma,
fator que faz com que este sentimento lhe seja bastante amplificado. Ele ainda, com
humildade, num tributo aos seus colegas de profissão, chegou a comentar a alegria
pelo fato de as canções de Edu Lobo, Gilberto Gil e Chico Buarque terem também
sido classificadas para a final do festival, reconhecendo o valor das obras de seus
colegas, e, no contexto do festival, oponentes.
Após este comentário de Caetano, vem então a pergunta que muita gente
gostaria de fazer ao autor de Alegria, Alegria: “Veloso, o que o levou a você fazer
uma música bem moderna, pegando “coca-cola”, “guerrilha”, “Brigitte Bardot”? Como
você teve essa ideia, quando teve a ideia e quando começou a executar a sua
música?”
A reposta dada por Caetano soou no mínimo desconcertante ao repórter: “O
que me levou a falar em Coca-Cola e Brigitte Bardot, Cardinale, foi a Coca-Cola,
Brigitte Bardot, Cardinale, bomba, guerrilha, as coisas que tão aí...”, sem demais
justificativas, apenas pela própria existência destes elementos na realidade mundial.
No entanto, não satisfeito e insistindo em arrancar de Caetano algo que
justificasse a estranheza causada em tantas pessoas, o repórter prossegue: “Mas,
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quando você disse que ia fazer uma música assim, não teve gente que falou assim:
mas, logo, misturar Cardinale e Coca-Cola, alguém não estranhou?”
Caetano quebra totalmente as expectativas de quem fez a pergunta, e
esperava que ele dissesse que chocou a muitos, ao responder afirmando apenas:
“Não, porque eu não disse nada pra ninguém.”
Então, a repórter que estava junto do homem que fizera as perguntas, afirma:
“Escreveu, né? Pronto e acabou”, como se o caráter insólito atribuído à canção
pudesse ser justificado por um descuidado ou despreparo no processo de
composição. Mas, Caetano, então, replicou, afirmando:
Depois de pronta, eu mostrei a alguns amigos meus que acharam
genial, bacana o negócio, entendeu? Principalmente o pessoal da
Bahia. Eu fui a Salvador, antes do festival, mostrei aos meus amigos
lá, e eles acharam bacana, inclusive, fazer com o conjunto de
guitarras. Eu fiquei contente pra burro porque lá no Rio, escreveram
assim: “Caetano vai usar guitarras, e quando chegar na Bahia, vai
tomar uma surra de berimbau”. Quer dizer, eles não sabiam que os
baianos estão além...
A resposta de Caetano foi totalmente de encontro às expectativas do
entrevistador. Ao afirmar que “o pessoal da Bahia” gostou da canção, e da execução
com guitarras no arranjo, sem quaisquer preconceitos, contrariamente às opiniões
jocosamente veiculadas no jornal Rio de Janeiro, Caetano acaba por evidenciar uma
visão superficial e preconceituosa, da qual Caetano e seus conterrâneos baianos
mostraram estar “além”, acima. Afinal, será que a Bahia poderia ser resumida ao
som de berimbaus e batuques? E o Rio de Janeiro, como polo cultural, mais
moderno e civilizado, talvez — na visão destes repórteres não teria os créditos da
primazia desta influência internacional? A partir de um ponto de vista cruelmente
preconceituoso, esta seria a lógica, a mesma que fora desmontada por Caetano.
A repórter, que havia questionado Caetano anteriormente, após a afirmação
do cancionista baiano, acerca de os baianos estarem “além”, rapidamente encerra a
entrevista, ironicamente dizendo: “Além da imaginação, né?”. Ou seja, ela deixa
claro o fato de o arranjo original da canção ser algo além do concebível. E, sem
permitir qualquer réplica de Caetano, apenas o agradece: “Muito obrigada, Caetano”.
Quebrando quaisquer possíveis tabus em relação ao caráter de
“inconcebível”, Favaretto, acerca de Alegria, Alegria, explica:
!87
A marchinha pop Alegria, Alegria denotava uma sensibilidade
moderna, à flor da pele, fruto da vivência urbana de jovens imersos
no mundo fragmentário de notícias, espetáculos, televisão e
propaganda. Tratava, numa linguagem caleidoscópica, de uma vida
aberta, leve, aparentemente não empenhada. Tais problemas,
enunciados de forma gritante em grande número de canções da
época, articulavam-se à maneira de fatos virados notícias. Através de
procedimento narrativo, as descrições de problemas sociais e
políticos, nacionais ou internacionais, misturavam-se a índices da
cotidianidade vivida por jovens de classe média, perdendo, assim, o
caráter trágico e agressivo. A tranquilidade do acompanhamento dos
Beat Boys e da interpretação de Caetano reforçava tal neutralização,
surpreendendo um público habituado a vibrar com declarações de
posição frente à miséria e à violência. Ambígua, a música de
Caetano, intrigava; em sua aparente neutralidade, as conotações
políticas e sociais não tinham relevância maior que Brigitte Bardot ou
a Coca-Cola, saltando estranhamente da multiplicidade de fatos
narrados. Através da operação que realizava, a linguagem
transparente de Alegria, Alegria fazia que a audição do ouvinte
deslizasse da distração ao estranhamento. (FAVARETTO, 1995, p.
20/21)
Alegria, Alegria, por sua “linguagem caleidoscópica”, colocava-se como um
registro fiel da juventude da época, por um lado imersa em meio aos “problemas
sociais e políticos” e, por outro ligada a “índices da cotidianeidade” específica e
comum à vida de jovens de uma mesma faixa etária. O fato de isso tudo vir à tona
numa literal “tranquilidade” tanto da voz de Caetano quanto do acompanhamento
dos Beat Boys acabou por surpreender um público já acostumado com canções
marcadas por uma temática de protesto, produzidas e veiculadas à exaustão num
contexto de regime militar no Brasil. Em certa medida, Alegria, Alegria revelou-se
mais expressiva no que diz respeito à realidade urbana e contemporânea destes
jovens que, mesmo com todos os possíveis e imagináveis problemas e conflitos
decorrentes da ditadura, apesar destes, seguiam suas vidas, bem como é expresso
nos versos da canção de Caetano: “eu vou / por que não?”.
A participação de Caetano Veloso no Festival de Música Popular Brasileira da
TV Record, em 21 de outubro de 1967, além do talento e do intuito inovador, é
reveladora também de alguns aspectos performáticos e da personalidade do artista
em questão.
A começar pela primeira apresentação, antes da classificação. Assim que foi
anunciado, Caetano, ao estar entrando com os componentes da banda Beat Boys,
que o acompanhariam, foi recepcionado de uma maneira bastante calorosa, não sob
os aplausos, mas sob as vaias de uma esmagadora maioria da plateia. Nelson
!88
Motta, autor de uma das canções que também concorriam, e que presenciou o
acontecimento, comenta38:
Olha que situação! Tô lá assistindo o festival, numa tripla condição:
como jornalista, como amigo do Caetano Veloso, e como
concorrente, que a minha música tava ali, na final! Quando entrou o
Caetano, e aqueles argentinos dos Beat Boys, né? Rock’n’roll. Foi
uma vaia monumental! Pra vocês verem como o ser humano não
vale nada... Eu pensei assim, falei: “Meu Deus! Menos uma!” Eu não
vaiei, né? Mas, não me incomodei que estivessem vaiando ali. Aí, a
música foi andando, o Caetano Veloso paradinho ali no palco,
sorrindo, com esse carisma dele, foi dobrando o público, as vaias
foram baixando, foram começando uns aplausos aqui, e ali e mais
aplausos, mais, mais aplausos, ele virou o público. Quando eu olhei,
provando que o ser humano vale alguma coisa, até eu tava
aplaudindo, ovacionando o meu concorrente, ali no festival, porque
foi uma das maiores emoções que eu tive no show business, de ver
um artista num palco, ali, virar completamente uma multidão feroz,
sem dizer uma palavra só, cantando... Foi lindo isso! (MOTTA, 2010)
Apesar da acolhida, que passou muito longe de ser afetuosa, Caetano Veloso
permaneceu no palco, e começou a entoar a canção mesmo sob as vaias do
público, permanecendo “paradinho” no palco, e até “sorrindo”, expressando todo o
seu “carisma”, numa dispersão de simpatia que o fez, praticamente sozinho,
equiparar-se, numa posição de igualdade, em relação à intensidade da multidão
furiosa que o vaiava. Este choque — justamente por Caetano não reagir, por
exemplo, como Sérgio Ricardo e colocar-se a discutir com a plateia inflamada e até
quebrar o violão — fez com que, em pouco tempo, o som das vaias se convertesse
em aplausos, de um grande coral que, junto a ele, passou a entoar a canção. Esta,
ao seu término, foi aplaudidíssima, e Caetano, que, inicialmente fora vaiado, acabou
literalmente ovacionado, numa completa mudança de postura por parte do grande
público, que, provavelmente, se identificou com os aspectos dados como
inconcebíveis pelos representantes da tradição.
Pode-se afirmar que isso só aconteceu, grande parte devido à postura
assumida por Caetano, conforme ele mesmo afirma:
O fato é que, enquanto meu currículo era enunciado pelos
apresentadores do programa, os Beat Boys, como estava estipulado
que todos os grupos acompanhantes de cantores fizessem,
apareceram no palco para ligar seus instrumentos e tomar posição,
surpreendendo a platéia com seus cabelos longos, suas roupas corde-rosa e suas guitarras elétricas de madeira maciça. Iniciou-se uma
vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa
antes que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores,
38
Depoimento de Nelson Motta. In: Uma noite em 67.
!89
diretores, produtores e público. Esse susto foi tanto maior quanto a
constatação de que a não-observância da tradição de usar smoking
na gala desses festivais não se restringia aos meninos da banda:
minha entrada intempestiva era ainda mais chocante por eu estar
usando, diferentemente de todos os outros cantores, dos músicos e
dos apresentadores, um terno xadrez marrom e uma camisa de gola
rulê laranja-vivo. (VELOSO,1997, p.173).
Caetano, na verdade, munido de uma irreverência não desrespeitosa, nem
sequer esperou que seu “currículo” fosse anunciado pelos apresentadores do
festival, mas simplesmente entrou no palco, com uma expressão amedrontadora no
rosto, em resposta às vaias do público dirigidas aos Beat Boys, apenas pelos seus
“cabelos longos”, “roupas cor-de-rosa” e “guitarras elétricas”, sem que eles tivessem
sequer terminado de ligar os instrumentos e a suas aparelhagens específicas.
Em oposição à grande maioria dos outros participantes, Caetano ousou
contestar as regras, e todo um comportamento de formalidade, até pela maneira
como estava vestido: não de smoking, como quem vai a uma cerimônia de gala,
mas, apenas com um terno e uma camisa “de gola rulê”, de uma cor viva e chocante
para o ambiente formal das pessoas “na sala de jantar”39.
Isso tudo era apenas o início de todo um choque arquitetado em parceria com
Gilberto Gil, que, a saber, se daria através do movimento nomeado Tropicalismo.
O primeiro álbum individual de Caetano Veloso, intitulado apenas com o seu
próprio nome, foi lançado em 1968, e continha as canções: Tropicália; Clarice; No
dia em que eu vim-me embora; Alegria, alegria; Onde Andarás; Anunciação;
Superbacana; Paisagem útil; Clara; Soy loco por ti América; Ave-Maria e Eles.
Em termos de inovação, engana-se quem pensar que este caráter residia
apenas nas letras e arranjos das canções. O álbum, como um todo, era uma
expressão da proposta articulada por Caetano e Gilberto Gil.
O design gráfico do disco foi assinado por um artista que abriga em si o
talento expresso nas diversas funções de artista gráfico, músico, compositor, poeta,
tradutor e professor: Rogério Duarte.
Este soube — como talvez ninguém conseguisse, naquela época —
expressar por meio dos elementos gráficos do disco — capas, ilustrações e fotos —
o tom de ruptura e de modernidade proposto por Caetano, não só em suas canções,
39
VELOSO, Caetano. Panis et Circensis (1968)
!90
mas, em todo seu comportamento como artista, revelado inclusive em sua
performance.
Duarte, que era já naquela época um profundo conhecedor das artes gráficas,
tinha seus trabalhos reconhecidos devido a um caráter de ruptura, marcado pelo
exercício contínuo de transgredir, tendo por objetivo não permitir que a tradição no
âmbito do design gráfico internacionalmente falando — advinda da Suíça,
especificamente — viesse a ditar regras no Brasil, tornando-se um dogma, tendo em
vista que, segundo ele próprio, “quando vira dogma perde a vida”.
Antes, Duarte foi sempre um artista movido por um desejo de mudança e de
renovação. Isto era manifesto, naquele contexto, em relação a um
“pseudonacionalismo” ao qual também se opunham Caetano e seus demais
companheiros tropicalistas. Nesse sentido, Duarte 40 pontua:
Naquele tempo havia uma visão elitista que abraçava um
pseudonacionalismo purista, preso à noção de “nossos bons negros,
nosso autêntico samba”, como se todas as coisas estivessem
estagnadas e não sujeitas à transformação. O movimento
internacional durante a época da Tropicália estava basicamente
informado por uma visão terceiro mundista que era receptiva às
perspectivas negras e africanas. No plano estético, o etnocentrismo
branco oficial começava a perder o seu poder. (Duarte apud Dunn,
2001, p.155)
Apoiando-se muito mais nas tendências de todo um “movimento
internacional” que se dava “durante a época da Tropicália”, ligada ao contexto hippie
e também ao Rock’n’Roll, a capa do disco de Caetano Veloso se coloca como uma
expressão completamente contemporânea, opondo-se frontalmente ao que era
padrão para os discos do Brasil, misturando foto com desenho, em meio a cores
quentes, gritantemente chamativas, e contornos nas imagens, característicos das
HQ’s. Melo (2000) descreve com minúcias a capa em questão:
Duarte se apropriou de uma ilustração anônima composta por uma
moça seminua com longos cabelos segurando um dragão, e, entre
eles, um ovo, além de uma serpente, folhagens e bananas. Sobre o
ovo, Duarte estampou uma foto de Caetano. [...] Reproduzindo a
estética das ilustrações das histórias em quadrinhos, o designer
enfatizou os contornos das figuras, fazendo com que elas se
destacassem do fundo. As retículas super ampliadas são aplicadas
em alguns pontos de sombra, como na serpente e nas bananas,
contrastando com a luz no cabelo e no corpo da moça. (MELO, 2006,
p. 200)
40
Depoimento de Rogério Duarte para o autor. Salvador, 2000.
!91
A foto de Caetano, na capa, está inserida numa ilustração, mais
especificamente na de um “ovo”, o qual está entre uma “moça seminua” e um
“dragão”, bastante similar às figuras das histórias em quadrinhos, um elemento
cultural ligado também às massas, que fora utilizado por Caetano como exemplo
quando convidado a definir o que era pop, para um repórter no Festival.
Melo ainda ressalta a contraposição do “arcaico” em relação ao “moderno” —
o embate entre o velho e o novo — outro aspecto comum também à proposta
tropicalista, expressa na capa, em que:
[...] a composição é convencional — foto do artista no meio, nome
em cima, centralizado — mas, por outro lado, os elementos estéticoformais (tipografia, os fundos cromáticos, elementos pictóricos) são
fortes, agressivos, exuberantes. A moça pode ser Iracema ou Brigitte
Bardot, já que as duas convivem no universo tropicalista. A serpente
pode representar o sexo; as bananas, o nosso subdesenvolvimento.
(MELO, 2000, p. 201)
Apesar das ilustrações e tudo mais, o padrão das capas é mantido, com a
foto centralizada, o nome do artista acima, e etc. Numa tentativa de interpretação da
ilustração utilizada, à luz das letras das canções, Melo afirma que a moça pode ser
“Iracema”, protagonista do romance nacionalista homônimo de José de Alencar, que
remonta, ficcionalmente, as origens da América — caracterizada como “a virgem dos
lábios de mel” —, ou “Brigitte Bardot”, atriz francesa citada na letra de Alegria,
Alegria. Mas, por se tratar de uma mulher, poderia ser também uma representação
de Clara, ou mesmo de Clarice — as duas únicas canções do álbum, cujos títulos
são constituídos por nomes próprios femininos.
No que diz respeito ainda à modernidade e inovação, não bastassem a capa
e as canções, Caetano escreveu um texto41 para a contracapa do disco —
classificado por ele como “prafrentex”. Foi o próprio Caetano que, anos depois, o
explicou para um jornal da época: “O Pasquim”42:
Quando eu estava preparando meu segundo LP (aquele para o qual
Rogério Duarte fez uma capa com mulher e dragão e retrato oval),
escrevi um texto prafrentex para a contracapa. Durante o período de
gravações, recebi em São Paulo a visita de Fernando Lôbo (autor de
‘Chuvas de Verão’, música que vim a gravar algum tempo depois na
cidade de Salvador, onde gozei grilado quatro meses de
41
Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/monta_encarte.php?id_disco=67]. Acesso em 08
de março de 2014.
Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/search/label/1967] Acesso em 25 de
fevereiro de 2014.
42
!92
confinamento). Era uma visita profissional; ele vinha buscar o texto
da contracapa e marcou, pelo telefone, um encontro no Patachou
pedindo que eu o levasse. Eu disse OK mas não achei o texto na
hora de sair nem nunca mais. À mesa do restaurante, eu informei
Fernando da perda e ele me informou da necessidade de voltar na
manhã seguinte para o Rio com tudo pronto para imprimir a
contracapa: caso contrário o disco atrasaria um mês. Como eu
preferia que o disco saísse péssimo do que atrasado, concordei em
aceitar o papel e a caneta que ele me oferecia enquanto me
ameaçava com a terrível informação. Reescrevi ali mesmo o babado
todo que eu pensava ter esquecido. Enquanto eu trabalhava, as
pessoas conversavam. Inclusive comigo. "Eu gostaria de fazer", eu ia
tentando lembrar, "uma canção de protestos de estima e
consideração, mas esta língua portuguesa me deixa louco" eu
escrevi e imediatamente percebi que não tinha escrito "rouco" como
da primeira versão. Cortei "louco" e escrevi "rouco" em seguida. Não
sei se foi isso que deu a Fernando a idéia de reproduzir meu
manuscrito na contracapa do disco ou se ele já havia falado nisso
antes. Só sei que concordei com essa idéia para não dificultar as
coisas: na época eu teria preferido que o texto saísse datilografado;
algum tempo depois eu preferiria impresso mesmo; hoje, não sei. De
qualquer forma, eu gostava da piada. Não tanto da que resultou do
erro, mas da piada original. Por nada: apenas porque dizer que a
língua portuguesa me deixa rouco era verdade, enquanto que dizer
que a mesma me deixa louco dava a impressão de que eu tinha em
mente ressaltar mais uma vez o fato de nós falarmos e escrevermos
numa língua não exportável. Quando, na verdade, eu não estava,
sentindo nada disso. Pelo contrário: estava alegríssimo, compondo
desbragadamente, sem sonhar com exportação.
O texto em questão, de fato, destoa completamente de uma forma de escrita
convencional em prosa, pelo fato de, praticamente, ocorrer uma mudança de
assunto de um período para outro, sem quaisquer elementos empregados para a
coesão do texto. Desse modo, a compreensão do mesmo fica bastante prejudicada
do ponto de vista de uma análise formal.
No entanto, o último período deste texto é bastante revelador de um caráter
proposital no que diz respeito tanto à forma como o texto foi escrito, quanto à
dificuldade de compreensão causada por esta: “porque eu não quero, porque eu não
devo explicar absolutamente nada.”
Iniciado pela citação de um comentário de Miles Davis, acerca do fato de ser
um “maravilhoso país, o nosso”, pelo fato de se poder contratar quarenta músicos,
mas não para executarem uma determinada peça como uma orquestra — com todas
as divisões de timbres e tipos de instrumentos —, mas, “um uníssono”, o texto se
inicia com a referência a um “país”, o qual não pode ser exatamente determinado, se
o Brasil, ou o Estados Unidos, terra-natal do trompetista, compositor e bandleader
de jazz a quem a fala é atribuída.
!93
A seguir, já se muda de assunto, e o foco passa para o passado da música
brasileira — já naquela época. Ressalta-se um “antes”, em que “havia” aquele que
foi chamado “o cantor das multidões”, uma das principais vozes da canção brasileira
da primeira metade do século XX, “Orlando Silva”, e também um dos instrumentos
mais característicos dos arranjos das canções interpretadas por Silva e outros de
seus contemporâneos, as “flautas”.
O fato de ter sido produzida uma primeira versão do texto, a qual não fora
encontrada “na hora de sair nem nunca mais”, e uma segunda, às pressas, em que
Caetano conseguiu se lembrar e escrever novamente “o babado” que ele “pensava
ter esquecido”, deixa clara a intencionalidade do autor em relação ao caráter
ambíguo do texto, que foge completamente às regras de composição e estruturação
— quando se tem por objetivo informar algo —, mas, bem aos moldes de um dos
clássicos bordões do apresentador de TV Chacrinha: “Eu vim para confundir, e não
para explicar”.
O álbum “Caetano Veloso” é iniciado justamente pela canção-manifesto do
Tropicalismo: Tropicália (1968). Esta, diferentemente de muitas das canções de
protesto lançadas desde o ano anterior, e que davam conta de realidades
específicas do Brasil, é uma canção marcada por um grau elevado de complexidade,
até por ser um fruto de manifestações culturais da época.
O título da canção foi inspirado numa instalação homônima do artista plástico
e performático Hélio Oiticica montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
em 1967.
Acerca da obra em questão, é o próprio Oiticica quem explica:
Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos
para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços que
o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai
avançando, os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos
tipos de som) se revelam como tendo sua origem num receptor de
televisão que está colocado ali perto. É extraordinário a percepção
das imagens que se tem: quando você se senta numa banqueta, as
imagens de televisão chegam como se estivessem sentadas à sua
volta. Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em
todas as suas formas: as estruturas geométricas fixas (se parece
com uma casa japonesa-mondrianesca), as imagens táteis, a
sensação de caminhada em terreno difícil (no chão ha três tipos de
coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura,
numa sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva. [...] Eu
criei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O
problema da imagem é colocado aqui objetivamente, mas desde que
!94
é um problema universal, eu também propus este problema num
contexto que é tipicamente nacional, tropical e brasileiro. Eu quis
acentuar a nova linguagem com elementos brasileiros, numa
tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem que
poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos
colocar contra uma imagética internacional da pop e pop art, na qual
uma boa parte dos nossos artistas tem sucumbido. (OITICICA, 1969)
O artista Hélio Oiticica, reconhecido por suas aspirações anarquistas, assim
como toda a vanguarda artística brasileira da época foi afetado pelas mudanças de
ordem política e social pelas quais o país passava, e produziu obras de caráter
experimental.
Movido pelas palavras contidas na obra “Assim Falou Zarathustra”, de
Nietzsche — de quem Oiticica era leitor inveterado — e também pelos conceitos que
norteavam a produção de uma arte transgressora, Oiticica se propôs à criação de
obras que expressassem as múltiplas e variadas conformidades totalmente
contraditórias entre si, mas que, somadas, compunham o Brasil.
É de sua autoria a obra “Bólide Caixa 18” que continha a bandeira com a
máxima: “Seja marginal, seja herói”, que se tornou um dos slogans da juventude
brasileira do final dos anos 60. Esta, se colocava como homenagem a vítimas da
opressão social e policial — dados como heróis —, como expressões máximas da
revolta individual inerente à sociedade, a qual passa a ser ocultada e reprimida por
meio do processo civilizatório.
Outro dos grãos culturais dos quais o Tropicalismo e a canção Tropicália são
fruto é justamente o Cinema-Novo. Mais especificamente, o filme “Terra em
Transe” (1967), de Glauber Rocha. A obra fílmica em questão se coloca como uma
espécie de parábola relativa à história do Brasil entre os anos de 1960 e 1966, à
medida que metaforiza as diferentes tendências políticas ligadas a este contexto em
personagens, numa crítica a todo o sistema.
Ainda que marcada por uma visão mais atemporal, mas, nesta mesma
direção, Tropicália se inicia com uma narração do seguinte trecho:
Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras
eram férteis, escreveu uma carta ao rei: Tudo que nela se planta,
tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou....
Apesar de poder ser confundido com um trecho da Carta de Pero Vaz de
Caminha ao Rei de Portugal, à ocasião da chegada das caravelas de Cabral ao
!95
litoral baiano brasileiro, o trecho em questão nada mais é que o fruto de um teste de
som realizado no microfone do estúdio onde Caetano gravava seu disco — aliás, o
“Gauss” citado no trecho era justamente o técnico de gravação, Rogério Gauss. A
narração em questão adianta o tom paródico da interpretação tropicalista do Brasil
— do passado até seu presente.
A letra da canção é marcada por uma linguagem simbólica, na qual, por
detrás das muitas metáforas se desvela um retrato do Brasil daquela época.
A voz poética revela uma posição intermediária, entre “os aviões” que passam
“sobre a cabeça” e “os caminhões” que se locomovem “sob” seus “pés”. Esta
disposição sugere o avanço científico e tecnológico atrelado à modernidade no alto,
representado pelos “aviões”, o caráter arcaico, ultrapassado, na posição mais
inferior, “sob os […] pés”, pelos “caminhões”. Ao centro, o “nariz” apontando em
oposição aos “chapadões” — uma síntese das diversas e diferentes realidades
rurais do Brasil — revela uma posição contrária, que pode ser lida como urbana,
mais desenvolvida e mais civilizada, até certo ponto.
Justamente a partir deste ponto estratégico, vem a voz de um “eu”, o qual,
imperativamente, afirma ser o responsável por organizar “o movimento” — termo que
pode exprimir tanto as ações de toda uma coletividade de pessoas coabitando um
determinado lugar, quanto um grupo específico arquitetando uma ação contra os
desmandos de um governo ditatorial. Este mesmo “eu” também é o responsável por
orientar “o carnaval”, designação até certo ponto antitética, tendo em vista que a
festa em questão é caracterizada justamente pela folia, alvoroço e desordem.
Este mesmo “eu” se coloca como o responsável pela inauguração do
“monumento no planalto central do país”. Esta expressão remete diretamente à
cidade de Brasília, escolhida como capital federal do Brasil e sede do distrito federal,
a qual, ao ser dada como um “monumento”, vai completamente na contramão dos
poderes nela fixados, dando uma ideia de beleza e imponência — até pelo seu
caráter projetado e arquitetado —, porém, completa estagnação.
Num outro verso consta o fato de que “o monumento é de papel crepom e prata”, ou
seja, construído, ao mesmo tempo, com a beleza e resistência de um metal — o
qual também é utilizado na cunhagem de moedas — dando conta de seu caráter
imponente, e a extrema fragilidade de uma das variedades de papel mais frágeis,
!96
que sugere o aspecto rúptil não da capital em questão, mas dos poderes, da política
nela centralizada.
Além disso, afirma-se acerca do “monumento” em questão, que este “é bem
moderno”, e que “não tem porta”, dado como um local praticamente inacessível, cuja
“entrada”, segundo os versos a seguir, é situada em “uma rua antiga estreita e torta”
completamente díspar em relação à modernidade do “monumento”. E, como se não
bastasse, neste caminho tortuoso que dá acesso ao mesmo, encontra-se “uma
criança”, mas não como símbolo de uma esperança de tempos melhores em
desenvolvimento, mas “no joelho” — prostrada —, por um lado “sorridente”, mas por
outro, “feia e morta” numa posição de quem clama por ajuda ou misericórdia —
“estende a mão”, dando conta de que, se esta esperança de um futuro melhor já
existiu, no presente está extinguida, em meio ao caótico contexto político brasileiro.
Os cinco refrões presentes na letra são semelhantes entre si apenas em
termos de estrutura. Todos eles são marcados por uma exclamação de aplauso,
exaltação — “viva” —, em relação a dois elementos, por vezes, completamente
antagônicos.
No primeiro, temos os termos “bossa” e “palhoça”. O primeiro deles se coloca
como uma expressão de toda alegria e balanço característicos do povo brasileiro,
mas, pode também se referir à Bossa-Nova, estilo musical brasileiro apreciado pelo
mundo afora, cujas canções tinham como tema mais comum a beleza da mulher e
da natureza de um contexto litorâneo como Ipanema. Em oposição a isso, vem a
“palhoça”, termo que se refere a uma construção extremamente rústica que serve de
moradia às pessoas pobres.
O refrão seguinte contém os termos “mata” e “mulata”, o primeiro abrange
toda a natureza exuberante do território brasileiro em termos de fauna e flora, e o
segundo, exprime a miscigenação, o caráter plural característico do nosso povo,
fruto da literal mistura de praticamente todas as raças, por excelência.
O quarto refrão tem seu “viva” direcionado a “Maria” e Bahia”, dois
substantivos próprios, sendo, o primeiro, o prenome mais comum dado às mulheres
e, portanto, coloca-se como um tributo a todas as mulheres brasileiras. Já o
segundo, é justamente o nome do estado brasileiro situado na região nordeste do
país, em cujo litoral aportaram as caravelas de Cabral em 22 de abril de 1500. Além
!97
disso, é também o estado de origem de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e
muitos outros representantes do Tropicalismo.
O refrão que encerra a canção se coloca como um tributo às expressões: “a
banda” e “Carmem Miranda”, a canção de Chico Buarque que vencera o Festival de
Música Popular Brasileira de 1966 e a cantora e atriz luso-brasileira que fez grande
sucesso no Brasil e nos Estados Unidos entre os anos de 1930 e 1950.
Tropicália, acima de tudo, registra a convivência dos mais diferentes aspectos
positivos e negativos que, somados, resultavam no Brasil de então, e, revela muito
da proposta Tropicalista; a qual não se reduzia apenas a um progresso ou a um
retrocesso, mas a uma síntese da convivência entre todos e quaisquer aspectos, por
vários que sejam, entre si — portanto, uma visão realista.
Vale ressaltar que o álbum de Caetano Veloso, além do manifesto do
movimento, trazia também canções inéditas, dentre as quais uma espécie de
resposta à Inútil Paisagem (1964), de Tom Jobim, em Paisagem Útil (1968); uma
exaltação ao guerrilheiro Che Guevara em Soy Loco Por Ti América (1968), e até
uma versão de Ave Maria (1968), de autoria de Caetano Veloso. Com este disco,
Caetano já conseguiu mostrar a que veio. E ainda havia mais por vir…
No mesmo ano de 1968, foi lançado o disco “Tropicália ou Panis et Circensis”.
Contendo as canções: Miserere Nobis; Coração Materno; Panis et Circensis;
Lindonéia; Parque Industrial; Geleia Geral; Baby; Três Caravelas; Enquanto Seu
Lobo Não Vem; Mamãe Coragem; Bat Macumba e Hino do Senhor do Bonfim, tratase do disco-manifesto da Tropicália, e é marcado pela reunião dos artistas ligados
ao movimento: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Gal Costa, Tom Zé, Os
Mutantes — banda brasileira de rock psicodélico composta por Arnaldo Baptista,
Sérgio Dias e Rita Lee Jones — e até Nara Leão. Sob os arranjos e regência de
Rogério Duprat, e com a produção musical assinada por Manuel Barenbein, o álbum
foi gravado em maio de 1968, nos estúdios da RGE, em São Paulo.
A capa do disco já se coloca como uma representação alegórica do Brasil, em
que um grande retrato contempla todos os artistas que participaram do disco — os
presentes, posicionados de uma maneira patriarcal, e os ausentes em retratos nas
mãos de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Como moldura para este retrato temos
faixas com as cores nacionais, posicionadas de uma maneira que dá um efeito de
!98
profundidade. As expressões que constituem o título estão posicionadas de ambos
os lados dessa moldura, com as letras também coloridas com as cores nacionais e
com o mesmo efeito de profundidade desta.
A contracapa contém a mesma foto da capa, mas em tamanho menor, em
preto e branco e centralizada logo abaixo do título “Tropicália”, e acima dos títulos
das canções que compõem o disco.
Todos os elementos da capa fazem referências ao movimento tropicalista,
conforme pontua Rodrigues:
Os signos que aparecem na capa jogam cos os signos do conteúdo
do disco. E assim, vê-se o nordestino na figura de Tom Zé; o casal
recatado é Gal e Torquato; a irreverência do movimento dadaísta
está presente pelo urinol, que Rogério Duprat segura como se fosse
uma xícara; Gil, o negro, à frente de todos segura a foto de Capinam
enquanto Caetano mostra a foto de Nara, musa da Bossa Nova,
agora tropicalista, e atrás de todos, Os Mutantes trazendo as
guitarras elétricas, o pop, o moderno. (RODRIGUES, 2007, p. 58)
A foto que se constitui como capa do disco, se coloca como o avesso da
tradição: apesar da mesma estrutura, não é um retrato de família, como das famílias
nobres, pendurado na parede da sala de jantar, mas com o grupo de artistas
representando os muitos e diferentes Brasis que constituem a maior nação da
América do Sul, propondo abrir as portas para a novidade, para o moderno, em
termos não só de música, mas de artes em geral e, sobretudo, em termos de
posicionamento, como jovens.
A contracapa também contém um texto, o qual é marcado por uma estrutura
comum ao gênero dramático, e assemelha-se à um roteiro, seja de uma peça de
teatro, seja de um filme, pelo fato de ser separado em falas atribuídas a
personagens (colocadas ao lado do respectivo nome de cada um).
Estas, por sua vez, são justamente os artistas ligados ao álbum, desde
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam — compositores e
intérpretes das canções —, Os Mutantes, Nara Leão — intérpretes das canções
escritas pelos cancionistas mencionados —, Rogério Duprat — arranjador que se
tornou o George Martin do Tropicalismo, e até mesmo João Gilberto, influência
primeira dos cancionistas baianos, e que não poderia faltar em seu manifesto.
A fala que abre o texto é remetida a Duprat, e dá conta justamente da
mudança de perspectiva que marcou sua atuação. O arranjador e maestro iniciou
!99
sua carreira fazendo jus à sua formação erudita e participando da Orquestra de
Câmara de São Paulo. Como uma síntese deste processo, a ele é atribuído o
comentário inconformista acerca do fato de que “A música não existe mais”, e,
portanto “é necessário criar algo novo”.
Este “algo novo” é justamente o Tropicalismo — “Já não me interessa o
municipal, nem a queda do municipal, nem a destruição do municipal”, em que
Duprat pode mesclar os conhecimentos de sua formação erudita com a criação de
jovens cancionistas populares.
Ironicamente, ele remete uma questão aos “baianos”, acerca de terem “a
coragem de fuçar o chão do real” e tentar uma mudança de perspectiva e de gosto
de todo um público. Apesar de suas boas intenções, será que se atentaram ao fato
de que “o disco é feito para vender”, e, portanto, se coloca como mais um bem de
consumo do capitalismo? Em seu projeto inusitado que, se vislumbrava um futuro
para a música popular, também valorizava todo um passado, como lidariam com “um
jovem paulista nascido na época de Celly Campelo” — um dos ícones da JovemGuarda, que gravou sucessos como “Banho de Lua” e “Estúpido Cupido” — e que
nem sequer conhecia “Aracy [de Almeida], [Dorival] Caymmi e Cia.?”, grandes
nomes de toda uma tradição musical que se colocava como uma fonte da qual os
baianos beberam, e a partir disso foram movidos pelo impulso criador que originou
suas obras. Mas, mais do que lidar com este possível “jovem”, será que os “baianos”
teriam a “coragem para reconhecer que este jovem tem muito para lhes ensinar... —
posicionamento que ia na contramão de todos os apreciadores que tinham seu gosto
atrelado apenas à tradição da música brasileira ligada à Bossa-Nova.
As respostas dos cancionistas baianos são também carregadas de ironia.
Caetano ousa afirmar que “este gênero está caindo de moda”; Gilberto Gil se vale de
um dos slogans relativos ao regime militar ao afirma que “O Brasil é o país do futuro”
— numa perspectiva diferente de seu contexto original —, e Torquato Neto vai até
mais longe e cita a possibilidade de o historiador e antropólogo “Câmara Cascudo”
não compreender a proposta Tropicalista e achar que se tratava de “dizer que o
bumba-meu-boi e ‘iê-iê-iê’ são a mesma coisa”.
Ao que estas dúvidas todas permeiam e poderiam até intimidar os jovens
baianos, vem uma fala atribuída a João Gilberto — “Em NY conversando com A.
Campos” — tranquilizando-os: “Diga que eu estou aqui, olhando pra eles”, como
!100
uma espécie de divindade, que, estando num plano superior, o mero fato de olhar,
prestar atenção — demonstrando interesse e respeito, diferentemente de grande
parte do público, defensor de uma tradição, contrariamente a um dos principais
representantes desta — se coloca como uma espécie de bênção, em termos não só
de aprovação, mas de proteção em meio ao cenário caótico no qual se inseria o
Tropicalismo.
O fato disso tudo ser expresso num texto marcado pela estrutura dramática
pode sugerir a assunção de papéis dos artistas baianos — e até da intérprete
carioca tida como um dos ícones da Bossa-Nova, Nara Leão — no cenário musical e
cultural brasileiro.
Rogério Duprat, que anteriormente vivenciara toda uma experiência no
contexto erudito, alerta e questiona Caetano Gil e seus companheiros Tropicalistas
como num teste. Será que eles realmente sabiam o que estavam fazendo? Tinham
mesmo noção do grau de ousadia de seu projeto? E, por isso mesmo, será que
estavam preparados para uma possível incompreensão por parte do público? Ao que
as respostas vêm carregadas de refrões e posicionamentos desta mesma pretensa
coletividade preconceituosa em relação ao novo.
O disco-manifesto do Tropicalismo já é iniciado por um pedido de
misericórdia, a canção Miserere Nobis, de Gilberto Gil e Capinam. O título desta é
composto pela expressão em latim, cuja tradução para o português equivaleria a
“tende misericórdia de nós”, expressão bastante significativa de todo o povo
brasileiro sob as garras de um regime ditatorial que, às custas de um milagre
econômico, dia após dia ia tolhendo a liberdade e os direitos de todos.
Historicamente, vale lembrar que nesta época o regime ditatorial no Brasil
chegava à sua fase mais drástica, justamente por meio do Ato Institucional nº5,
datado de 13 de dezembro de 1968, que dava ao então presidente da república o
poder de decretar o recesso de órgãos como o Congresso Nacional, as Assembleias
Legislativas e as Câmaras de Vereadores de todo o país, os quais só voltariam à
atividade mediante uma convocação do próprio presidente.
Coração Materno (1937) era uma canção antiga já naquela época, de autoria
de Vicente Celestino, que foi também um dos cantores brasileiros de maior
relevância do início do século XX.
!101
A interpretação original da canção, datada de 1937, e realizada pelo seu
próprio compositor, é marcada por uma dramaticidade exacerbada, e pelos excessos
do cantor que, com seu timbre de tenor, consegue fazer jus ao tom sombrio do tema
desenvolvido na letra.
Associando-se mais propriamente a um poema narrativo, os versos — ainda
que mais atrelados à poesia que a prosa, até pela sua forma —, mais do que
expressar questões subjetivas de um eu lírico, acabam por construir um enredo,
contando uma história, a qual é sintetizada por Caetano Veloso:
“Coração Materno” conta a história de um jovem camponês que se
vê obrigado a entregar à sua amada, como prova de amor, o coração
da própria mãe. O matricídio se dá enquanto a velhinha está
ajoelhada diante de um oratório. O jovem, depois de rasgar-lhe o
peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada levando-o nas
mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração
da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta:
“Magoou-se, pobre filho meu?”, e, num último e extremo golpe
comovedor, exorta: “Vem buscar-me que ainda sou teu”. (VELOSO,
1997, p.293)
O dramalhão que é revelado a partir do enredo constituído na letra da canção
é literalmente um prato cheio para cantores como Orlando Silva, Francisco Alves e
Vicente Celestino, que, na posição de cantores, interpretavam a dramaticidade do
conteúdo da letra por meio das nuances criadas com sua voz, comprovando sua
privilegiada extensão vocal, num timbre quase que operístico, o qual Caetano, em
sua gravação, tentará imitar, de uma forma que beira a caricatura.
Não só a inserção, como também a interpretação de Caetano Veloso de uma
canção que remonta o passado musical brasileiro, se colocam como atitudes
totalmente carregadas de significado em relação à proposta da Tropicália, conforme
Severiano e Mello afirmam:
[...] Em 1968, “Coração Materno” foi utilizado com grande
repercussão por Caetano Veloso, no disco Tropicália, simbolizando o
culto ao cafona. Em flagrante contraponto à versão patética de
Vicente Celestino, Caetano deu-lhe uma interpretação linear e fria,
acompanhado por uma orquestração de Rogério Duprat, numa
generosa e propositada caricatura kitsch original [...] (SEVERIANO e
MELLO, 1997, p. 156)
Apesar da tentativa de reproduzir o canto quase lírico dos cantores do
passado — que poderia ser lido como uma paródia —, Caetano o faz com
reverência, mostrando que a novidade, a renovação, não culminam
!102
necessariamente na negação de todo um passado, mas pelo contrário, se colocam
como o mais genuíno fruto deste. Em sua interpretação “linear e fria”, que destoa
completamente das acaloradas interpretações de alto cunho dramático de cantores
como Vicente Celestino, Caetano demonstra a possibilidade de convivência entre o
antigo e o novo, a tradição e a novidade, sem necessariamente quaisquer negações
ou deturpações.
Panis et Circensis (1968) é uma canção de autoria de Caetano Veloso e
Gilberto Gil, que foi originalmente gravada pelo grupo Os Mutantes.
Rita Lee, que estava presente, junto de Caetano e Gil à ocasião da
composição da canção, relata43 a experiência de presenciar um fato como este,
inédito, inclusive, para ela e seus colegas de grupo na época, prestes a gravar um
disco:
‘Tava no apartamento do Caetano na Avenida São Luis, e Os
Mutantes iam fazer, iam gravar o primeiro disco, e a gente não
compunha. Então, eu me lembro que tinha uma mesa, uma mesa de
bilhar na sala — o apartamento era muito louco! —, e tinha uma
outra mesinha do lado. O Gil tava com o violão, e o Caetano com um
papel, e começaram os dois a fazer o ping-pong, um interferia na
coisa do outro, e eu lá assistindo, ali, na boca da coisa. O Serginho
‘tava com o outro violão, bicando o Gil, Arnaldo já meio que
ensaiando um baixo pra aquilo ali... ‘Tava-se ali! E eu ‘tava bicando.
E eles começaram: “Eu quis cantar uma canção iluminada de sol /
Soltei os panos sobre os mastros no ar / Soltei os tigres... Boa!
Legal!” Aí, “mas as pessoas na sala de jantar... Boa! Legal!” “Mas as
pessoas...” Sabe? Os dois e aquele ping-pong delicioso. De repente,
“o solar”. Quê que é o solar? Por que solar? Ah, o solar da bossa,
solar da fossa, no Rio. “‘Cê não conhece?” Não. “‘Cê nunca foi pro
Rio? Então, tem o solar da fossa, viva todo mundo lá”, não sei o quê,
contaram toda a história do solar, então... coisas que eu não entendia
direito eu perguntava, e eles iam... De repente, ‘tava a música ali
inteira” Que coisa louca essa música!
O comentário de Rita Lee deixa clara a razão de ela atribuir a Caetano e Gil o
mérito por ela ter tido coragem de entrar para o ramo da música, vindo, futuramente,
a ganhar notoriedade e se configurar como uma das mais notórias artistas
brasileiras femininas — cantora e compositora — ligadas ao rock.
O título da canção por si só já é bastante revelador da crítica veiculada pelos
tropicalistas. “Panis et Circensis” é uma expressão latina que, traduzida para o
português, pode ser entendida como “Pão e Circo”, locução que nos remete à
política do Império Romano.
43
LEE, Rita. Ovelha Negra. (2007)
!103
Com a expansão do império, e do contingente populacional, passaram
também a aumentar os problemas de cunho social. Grande parte destes problemas
surgiram devido às medidas arbitrárias de um governo corrupto, que priorizava o seu
interesse, privado, em detrimento dos interesses da população como um todo.
Desse modo, é possível estabelecer uma comparação entre o contexto
descrito em Roma, e o regime militar no Brasil, época marcada por uma repressão
política inigualável, que deixou o povo num estado de medo e pânico constantes, por
questões péssimas que, infelizmente, só tendiam a piorar, conforme afirma
Rezende:
13 de dezembro — o ministro Gama e Silva, da justiça, anuncia o
AI-5 — Ato Institucional nº5 —, que reforça a repressão, acaba com o
habeas corpus e permite, entre outras coisas, a prisão sem ordem
judicial, a invasão de domicílios por forças policiais e a aposentadoria
compulsória de professores considerados subversivos. Era
presidente na época o general Arthur da Costa e Silva, que substituiu
Castello Branco em 1967. (Rezende, 2000, p. 226)
Na letra da canção, temos toda a expressão de desejos, intenções do sujeito
lírico — “eu quis” —, como “cantar minha canção iluminada de sol” — com total
liberdade de expressão. E, além disso, movido pela inspiração e pela liberdade que
estão sempre atreladas à arte, este mesmo relata: “soltei os panos, sobre os
mastros no ar / soltei os tigres e os leões, nos quintais”, versos que carregam uma
noção de liberdade no que diz respeito a soltar o que estava agarrado ou
aprisionado. No entanto, apesar de “os panos”, “os tigres” e “os leões” terem sido
soltos, isto não ocorreu de uma forma que lhes permitisse cumprir sua função e, de
certa maneira, seu destino, com a devida independência. Não havia mastros para
amparar “os panos” — possíveis bandeiras. Não havia toda uma mata virgem a ser
desbravada e dominada pelos “tigres” e “leões”, mas sim “quintais”.
E, enquanto tudo isso acontecia, “as pessoas na sala de jantar” — ligadas à
tradição, ou uma classe social favorecida — não se importavam, estando apenas
“ocupadas em nascer e morrer”.
A canção Lindonéia (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi composta
sob encomenda para Nara Leão — aliás, é aúnica do álbum a ser intperpretada por
Nara. Inspirada na obra “Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio”, uma tela do artista
plástico Rubens Gerchman, e contendo o subtítulo: “Um amor impossível. A bela
Lindonéia de 18 anos morreu instantaneamente”, a obra se coloca como uma
!104
expressão de protesto, de denúncia da criminalidade presente na cidade do Rio de
Janeiro da época, conforme comenta Caetano Veloso:
Por sua vez, Nara Leão, cujas conversas conosco revelavam sua
total independência em relação aos preconceitos anti-Tropicália
exibidos por seus ex-companheiros de bossa-protesto e pela plateia
de Pra Ver a Banda Passar (programa que ela comandava ao lado
de Chico Buarque na TV Record), encomendou-nos, a mim e a Gil,
uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do
pintor Rubens Gerchman, o qual representava, em traços distorcidos
com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato
três-por-quatro de uma moça pobre que — dizia o texto-título — fora
dada como perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de
sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração
floral. Gil fez a música — um bolero entrecortado de iê-iê-iê — e eu
fiz a letra da canção, que manteve o nome “Lindonéia” e a história da
suburbana desaparecida. O quadro de Gerchman, por ser uma
espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop
e metalinguístico, tinha parentesco direto com o tropicalismo musical,
e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética.
(VELOSO, 1997, p. 274)
Nara Leão, apesar de ser uma figura ligada a movimentos como a BossaNova — integrada à literal origem do movimento, com o encontro de alguns de seus
maiores artistas na casa de Nara — e teatro de arena — como a peça “Opinião”,
ligada à tradição musical brasileira —, se mostrava independente, liberta dos
possíveis rótulos que a pudessem pender, deixando-a estática, como porta-voz de
uma única causa e movimento e, sobretudo, olhando com desdém ou preconceito as
propostas da Tropicália.
Parque Industrial é uma canção de autoria de Tom Zé. Apenas o título em si,
que constitui-se como uma referência direta ao livro homônimo de Patrícia Rehder
Galvão, mais conhecida pela alcunha de Pagú — figura de destaque no movimento
modernista, iniciado na paradigmática Semana de Arte Moderna, em 1922 —, que
foi a primeira mulher a ir para a prisão no Brasil por motivos políticos, já antecipa
sobremaneira o tom da canção.
A mera referência ao movimento modernista é plena de significado em
relação à proposta de Caetano Veloso e Gilberto Gil — talvez podendo ser lida como
a atualização das intenções dos autores do chamado “Romance de 30”.
Geleia Geral (1967) é uma canção de autoria de Gilberto Gil e Torquato Neto,
cujo título foi inspirado numa expressão do poeta Décio Pignatari, que surgiu44 num
Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/blog_post.php?post_id=1245]. Acesso em 18 de
abril de 2014.
44
!105
texto da revista “Invenção”, bem na abertura — como um trocadilho à expressão
“geleia real”45. O significado, no contexto, revelava um sentido crítico. A mesma
expressão foi também título da coluna escrita por Torquato Neto no Jornal “Última
Hora”, entre os anos de 71 e 72.
Os tropicalistas, por meio de um humor quase que tragicômico, em sua
intervenção na cultura brasileira, acabaram por construir uma espécie de panorama
da história do Brasil, conforme Favaretto afirma: “[...] o Brasil emerge da montagem
sincrônica de fatos, eventos, citações, jargões, resíduos, fragmentos”, vindo a se
configurar como uma “imagem mítica” (FAVARETTO, 1996, p.56).
Geleia Geral (1967), cuja letra foi escrita por Torquato Neto, e musicada por
Gilberto Gil, se coloca justamente como uma expressão desta “imagem mítica”
mencionada por Favaretto, como um agrupamento de diferentes elementos relativos
à cultura nacional, passado pelo filtro do ideal de revolução — em seu âmbito
cultural —, defendida pelos tropicalistas, pela menção de elementos como: o “Jornal
do Brasil”, a casa de espetáculos “Canecão”, as escolas de samba “Mangueira” e
“Portela”, o verso de Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove”, a dança
típica do folclore brasileiro “bumba-meu-boi”, a designação anterior à chegada de
Cabral, ligada às regiões que, num futuro próximo, formariam o Brasil, “Pindorama”.
Andrade (2002) classifica Geleia Geral como “uma das letras-síntese da
imagem tropicalista do Brasil”, conforme ele mesmo pontua:
O poeta-letrista sintetiza, como poucos, os “princípios filosóficos” do
tropicalismo, reinterpretando os mitos primitivos da cultura urbana
industrial, ao misturar elementos diversos da cultura nacional. A letramanifesto, ao desnudar as contradições de um Brasil arcaico/
moderno, explora as ambiguidades implícitas do processo de
modernização do terceiro mundo. A polifonia de vozes (o poeta
conservador, o bumba-meu-boi, a comunicação de massa, o jornal, a
bandeira, o mundo dos trópicos, a cultura pop) ilumina o pensamento
tropicalista, que evita qualquer tentativa de conciliação ou unificação
das diferenças, adotando as contradições e as ambiguidades como
elementos essenciais da própria construção da estética do grupo.
(ANDRADE, 2002, p. 53)
Torquato Neto, em sua “letra-manifesto”, satiriza as contradições de um país
colonizado, “de terceiro mundo”, que, já naquela época, buscava a modernização
desconsiderando suas raízes, e, voltando para si mesmo um olhar europeu ou norteA sentença que continha a expressão era: "Alguém tem de ser medula e osso na Geléia Geral
brasileira"
45
!106
americano, elitizado. De fato, estes elementos foram essenciais para os tropicalistas,
no que diz respeito à construção de sua estética, com uma visão emergente não dos
polos culturais brasileiros como Rio de Janeiro e São Paulo, no sudeste, mas das
entranhas de um Brasil-profundo, desconhecido por muitos até os dias atuais, ligado
ao contexto do norte e nordeste.
Baby (1967), de Caetano Veloso, é uma canção que se coloca como uma
declaração de amor numa linguagem jovem e moderna para a época, a começar
pela expressão em inglês que dá título.
Inspirada no hit de Paul Anka Diana (1956), esta canção de Caetano Veloso
contém uma intertextualidade musical em termos de arranjo. Quem ouvir com
atenção, logo perceberá que os acordes que embalam o refrão de Baby — “Baby,
baby, eu sei que é assim” — são literalmente uma citação do refrão: “Oh, please stay
by me, Diana”.
Acerca da letra de Baby, Favaretto ressalta um “lirismo” e afirma:
O lirismo de Baby não deixa de tematizar a dominação, misturando o
dado econômico (essencial) da gasolina com os do consumo
(supérfluo): margarina, sorvete, lanchonete, aprender inglês, Carolina
e Roberto Carlos. Estes dados são homogeneizados na construção
da letra, feita de simples enumeração de fatos, nomes, mitos [...]
(FAVARETTO, 2000, p. 97)
Desse modo, “por entre fotos e nomes”46 que à primeira vista se ligam apenas
a uma declaração de amor, subjaz a expressão da “dominação” da cultura norteamericana em relação à brasileira, e a familiaridade como os mais diversos
elementos — até mesmo em termos de vocabulário — já se colocavam como algo
comum, característico do dia-a-dia dos jovens brasileiros.
Acerca de Baby, é Augusto de Campos quem identifica a sugestão imperativa
acerca da devoração, do consumo, dos elementos identitários de um padrão jovem,
não a partir da assunção de uma postura submissa, mas, como sujeitos,
conscientes, a partir da proposição de uma “[...] transculturação; melhor ainda, uma
transvaloração: uma visão crítica da história [...] capaz tanto de uma apropriação
como de desapropriação, desierarquização e desconstrução” (CAMPOS, 1992, p.
234).
46
VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria (1967)
!107
Três Caravelas (1968) é o título da versão de João de Barro da canção Las
Tres Carabelas, de A. Algueró Jr., G. Moreu.
A letra da canção, originalmente em espanhol, tematiza a descoberta da
América por Colombo, conforme consta nos versos:
Un navegante atrevido
Salió de Palos um día
Iba com três carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
No entanto, o pretenso relato é feito justamente por um cubano: “[...] algunos
años después / Em esta tierra cubana / Yo encontré a mi querer” que comemora o
descobrimento da América justamente por ser este o território onde ele encontrara
seu amor.
João de Barro traduz a letra para o português fazendo algumas alterações e
até mesmo acréscimos. Nos trechos em português, não consta a referência a Cuba,
mas sim uma espécie de contextualização, que insere também o descobrimento do
Brasil:
Muita coisa sucedeu
Daquele tempo pra cá
O Brasil aconteceu
É o maior
Que que há?!
Assim, na canção, cuja letra mescla o espanhol e o português, a exaltação
que era destinada a Cuba — “que viva la pátria mía” — é redirecionada ao Brasil.
Tendo sido gravada anteriormente por ícones do rádio brasileiro — as chamadas
”cantoras do rádio” —, dentre os quais a cantora Emilinha Borba, ao ser interpretada
por Caetano Veloso e Gilberto Gil ganha outro tom, que vai ao encontro da proposta
tropicalista de revisitar o passado — no caso, a origem de nosso país.
Mais uma vez, citando e apropriando-se do que poderia ser já naquela época
ser negativamente classificado como brega, Três Caravelas evidencia o caráter de
redescobrimento de um Brasil talvez esquecido, e, sobretudo, numa postura como a
de Cabral, demarca um território no campo da música e cultura popular,
estabelecendo um diálogo com as culturas dos demais países sul-americanos,
falantes do espanhol.
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Enquanto Seu Lobo Não Vem (1967), de Caetano Veloso, apesar das
referências às fábulas, que, à primeira vista, poderiam apontar para uma temática
mais infantil, se constitui uma das canções de cunho mais politizado escritas por
Caetano no contexto da Tropicália.
Partindo da postura amedrontada da Chapeuzinho Vermelho em relação à
presença de um Lobo-Mau, Caetano Veloso metaforiza a postura de toda uma
nação brasileira assombrada por toda a repressão de um governo militar.
O movimento poético é permeado por um convite — do eu lírico àquela que é
designada como “meu amor” — inicialmente ligada ao conto infantil, acerca de
“passear na floresta escondida”, o qual desliza para um contexto urbano
contemporâneo brasileiro, acerca de andar, com liberdade, “na avenida”, “nas
veredas”, “no alto” — dando conta do direito de ir e vir, um dos que foram
desrespeitados pelos militares.
A canção também traz referências a “uma cordilheira sobre o asfalto”. O termo
“cordilheira” se trata de uma alusão à cordilheira denominada Sierra Maestra, local
onde se formou o grupo guerrilheiro que tomou o poder na Revolução Cubana, em
1959. O fato de a situar “sobre o asfalto” constrói uma referência aos brasileiros que,
tal como os guerrilheiros cubanos, tentavam resistir à opressão — ou mesmo uma
possível sugestão, comparando o posicionamento ideal do provo brasileiro ao do
povo cubano.
Favaretto pontua o fato desta canção aludir não apenas ao caráter de
repressão, ligado ao governo militar, mas também ao “populismo”, atribuído ao
presidente Getúlio Vargas, cujo nome é citado na canção, junto de termos negativos,
como “lama”, a ele atribuídos. (2000, p.102).
A canção contém também intertextualidades no âmbito musical, ligadas ao
arranjo. Jeszensky e Zan (2000) ressaltam a presença de instrumentos de sopro
como trompas, trompetes, flautas e flautim, cuja sonoridade remete justamente aos
toques militares de clarins (p.24), bem como a citação musical do segmento inicial
do “Hino da Internacional Comunista”, executada pelo trompete exatamente após o
verso “vamos passear escondidos”, reforçando o sentido sugestionado, acerca de
militarismo, e, junto dos versos “debaixo das bombas / das bandeiras / debaixo das
!109
botas”, trompete e trompa, em uníssono, executam um trecho do “Hino à Bandeira”,
reforçando o sentido sugerido, de parada militar.
Mamãe Coragem (1968) é fruto da parceria entre Caetano Veloso e Torquato
Neto, e se trata de uma canção marcada pelo pedido de “coragem” de um filho à sua
“mamãe”, após este ter crescido e saído de casa.
Sobre Torquato Neto, seus manifestos e letras em parceria com Caetano e
Gilberto Gil — dentre as quais, Mamãe Coragem —, Andrade (2002), ressalta:
No período da explosão do tropicalismo (1967/1968), Torquato Neto
é um dos principais articuladores do movimento e, em termos
“teóricos”, um dos mais empolgados. Tomando a frente das
discussões sobre a revisão da cultura nacional dos anos 60, como
fica visível na radicalidade e irreverência dos manifestos “Torquatália
III”, “Tropicalismo para iniciantes” e “Vida, paixão e banana”, bem
como nas letras de músicas “Geléia Geral”, “Mamãe Coragem”,
“Marginália II”, Torquato e seu grupo demonstram como absorviam,
de modo crítico, informações culturais, advindas de diversas origens,
da cultura pop americana, da comunicação de massa, da música
erudita, a fim de empreender uma discussão sobre a ideologia
nacionalista, e, ao mesmo tempo, enfatizar o caráter de dependência
do Brasil e o seu lado arcaico, terceiro-mundista. (ANDRADE, 2002,
p. 23)
A canção de Veloso e Neto se coloca justamente como um fruto desta
absorção crítica de “informações culturais” de várias e diferentes origens, da “cultura
pop americana”, da “comunicação de massa” e da “música erudita”, apontada por
Andrade, tendo em vista o caráter moderno ligado à juventude brasileira — e
também à americanas e inglesa —, no que diz respeito a comportamento, atitudes e,
dentre estas, a própria emancipação.
Bat Macumba (1968) é uma canção escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil,
seguindo à risca os moldes da poesia concreta.
Batmakumbayêyêbatmakumbaobá
Batmakumbayêyêbatmakumbao
Batmakumbayêyêbatmakumba
Batmakumbayêyêbatmakum
Batmakumbayêyêbatman
Batmakumbayêyêbat
Batmakumbayêyêba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
!110
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyêba
Batmakumbayêyêbat
Batmakumbayêyêbatman
Batmakumbayêyêbatmakum
Batmakumbayêyêbatmakumbao
Batmakumbayêyêbatmakumbaobá
Segundo Favaretto (2000, p. 111-112), Bat Macumba é “única música que,
nos três discos tropicalistas, realiza a proposta concreto-antropofágica de modo
intencional”.
A letra de Bat Macumba é composta apenas por um único verso: “Bat
macumba iê iê, bat macumba obá”, o qual, consta inteiro apenas no primeiro e
último versos da canção, e, desde o início vai perdendo uma sílaba por vez, até se
tornar apenas o monossílabo “Bat”, e, depois, ir voltando a constituir o verso
completo, com o acréscimo das sílabas, uma a cada vez que passa a ser repetido
novamente — expressando na letra, literalmente, a tensão entre o devorar e o
expelir antropofágicos.
Guimarães (2004) pontua o fato de a canção Bat Macumba não ser
constituída por uma letra, meramente, mas por um poema-visual completamente
atrelado à estética concretista — conforme consta no relato dos próprios autores da
canção, e é plenamente reconhecido pelos poetas ligados a este movimento artístico
— que se constitui como uma inovadora proposta relativa a “romper a leitura
horizontal, com um novo tempo de leitura, que não se prenda à linearidade da
sequência verbal, mas esteja atento à simultaneidade que a produção poética
suscita”. (GUIMARÃES, 2004, p.2).
Bat Macumba, como “poema-visual” — que vem a formar um “K” pela
disposição de seus versos — de fato rompe com o caráter linear de leitura ocidental,
atrelado a um aspecto “horizontal” marcado por uma “linearidade da sequência
verbal”, e instaurando uma leitura que deve ser pautada pelo aspecto fonético
inicialmente, tendo em vista a criação de “ilhas sonoras”, conforme afirma
Guimarães:
!111
No texto Bat Macumba, a sílaba Ba funciona como barreira fônica,
sendo um som também presente no início do vocábulo Batman e no
final de macumba. Esta bilabial (b) seguida de vogal aberta (a) efetua
um contraponto ao som vocálico iêiê, visualmente destacado no
poema, configurando verdadeiras “ilhas” sonoras. [...] A repetição dos
sons é também uma iconização fônica das “batidas” dos tambores
nos rituais de terreiro. Bat (inglês = morcego) sonoramente remete a
“bate” (port. Verbo bater). (GUIMARÃES, 2004, p. 7)
O termo “bat” pode apontar tanto para o som da batida dos tambores de um
ritual ligado a religiões afro-brasileiras como o candomblé e a macumba, quanto
para sua tradução do inglês — “morcego”, mas, é curioso perceber que, tanto no
processo de montagem como no de desmontagem do verso, vão se originando —
sonoramente — outros termos, como, por exemplo, o “iê iê” que pode estar atrelado
ao “iêiêiê” característico do gênero musical atrelado ao rock britânico, e totalmente
associado à Jovem Guarda, na época. O termo “Bat” e a primeira sílaba de
“macumba” — “Batman” — quase forma o nome de um herói das revistas em
quadrinhos da Marvel Comics, “Batman” — designado como “o homem-morcego”, e
essa pluralidade de referências que se desvela a partir do único verso que constitui
a letra da canção, vai diretamente ao encontro da proposta tropicalista e do próprio
“antropofagismo oswaldiano”, recuperado no movimento em questão.
A canção que encerra o disco é justamente Hino do Senhor do Bonfim (1923),
de João Antônio Wanderley e Arthur de Salles. Trata-se de uma canção de cunho
religioso e cívico, dedicada ao santo que dá nome à Igreja, a qual se constitui como
um patrimônio arquitetônico e religioso brasileiro, localizado na cidade de Salvador,
Bahia — terra natal de Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros ícones tropicalistas.
Os baianos não só trouxeram consigo a proposta para renovações no âmbito
cultural brasileiro, mas também fazem questão de hastear sua bandeira, com todos
os aspectos ligados à sua formação, inclusive em termos de crença, haja vista a
inclusão do Hino do Senhor do Bonfim, encerrando o disco-manifesto, num ato que
se assemelha ao de pedir a bênção, como expressão de devoção ao santo
padroeiro, em relação ao movimento, agora plenamente estabelecido e devidamente
levado a público.
A Tropicália — tanto no que diz respeito ao disco que se impôs como obra
coletiva quanto ao movimento em si — deu uma visibilidade maior a Caetano Veloso
também com compositor, tendo em vista que ele escreveu canções que, já naquela
!112
época, se tornaram grandes sucessos nas vozes de outros intérpretes, sem jamais
ter sido gravadas por ele.
Um exemplo específico, que pode ser citado como um caso especial é Divino
Maravilhoso (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, genialmente interpretada por
Gal Costa em 14 de novembro de 1968, no IV Festival de Música Popular Brasileira
da TV Record, numa performance por meio da qual se desvelou uma intérprete
completamente diferente da evidenciada em “Domingo”.
Acerca da canção, Caetano a comenta e ressalta o fato de que esta:
[...] trazia sugestões do clima de rebeldia estudantil contra a ditadura
e quase prefigurava, em suas imagens violentas, a luta armada. A
melodia era, deliberadamente, o pop mais doce e pegadiço. Mas as
palavras chamavam uma “menina” (quantos anos você tem?”) para
participar de algo não dito mas que requeria a “atenção para as
janelas no alto / Atenção, ao pisar o asfalto, o mangue / Atenção para
o sangue sobre o chão”, tudo convergindo para o refrão (que se
anunciava explicitamente: “Atenção, tudo é perigoso / Tudo é divino,
maravilhoso / Atenção para o refrão”): “É preciso estar atento e
forte” / Não temos medo de temer a morte”. (VELOSO, 1997, p. 330)
Fica clara a sugestão no que diz respeito à rebeldia dos jovens, tendo em
vista que é ressaltada sua coragem e intrepidez, como pessoas que devem agir e
não perder tempo vendo a vida passar e apenas reduzir seu poder de mobilização e
atuação a uma atitude completamente passiva, de massa de manobra que é
controlada e não controla coisa alguma, dedicando seu tempo apenas a “temer a
morte”, sem nada fazer.
Zuza Homem de Melo comenta a performance de Gal Costa no IV Festival da
MPB, realizado pela TV Record em 1968:
[...] entrou depois do início da música e, andando sem parar,
ultrapassou o poço e foi cantar na passarela atrás dos jurados e
perto do público, que imediatamente aderiu ao contagiante refrão: “É
preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”.
Aquela baianinha meiga e tímida, apelidada “João Gilberto de saias”,
havia se transformado numa figura espantosa, com uma cabeleira
blackpower, roupas berrantes e atitudes agressivas: parecia um
bicho quando gritava “UaaauI” antes do refrão. (MELLO, 2003, p.318)
Para quem já conhecia Gal Costa e seu repertório ligado à Bossa-Nova, a
ponto de ter lhe conferido a alcunha de “João Gilberto de saias”, e viu a que se
apresentou no festival da Record em 1968, defendendo Divino Maravilhoso,
certamente pensou se tratar de uma outra cantora, e de uma outra mulher, pela
!113
atitude e a ruptura com as expectativas de seu público, inclusive, numa performance
avassaladora mais comumente atribuída a um astro do rock — Janis Joplin, talvez?
— que a um ícone da música popular.
Em 15 de novembro do mesmo ano, Caetano Veloso participou do III Festival
Internacional da Canção, promovido pela Rede Globo, interpretando a canção É
Proibido Proibir (1968), de sua própria autoria. Esta, segundo o próprio Caetano,
acabou por se colocar como uma “peça de grande poder de escândalo”, e contribuiu
para que a noite em questão fosse bastante acalorada.
É Proibido Proibir, desde seu título, deixa clara a ousadia de Caetano Veloso
por, num contexto marcado pelo regime militar e pelos atos institucionais repletos de
proibições e cerceamento de direitos garantidos na constituição ao povo brasileiro,
participar de um festival da visibilidade e repercussão que tinha o festival promovido
pela TV Record, com uma canção de autoria própria cujo título e refrão se colocam
como um brado de liberdade acerca da proibição de quaisquer proibições possíveis
— e tão presentes naquele contexto. Foi uma ação bastante corajosa, e,
obviamente, gerou as mais variadas e exaltadas reações, desde o que tange público
até as autoridades brasileiras da época.
Se Caetano Veloso já tinha chocado muita gente, sem querer, por conta de
seu caráter displicente no festival de 1967, em que interpretou Alegria, Alegria, com
o arranjo contendo a guitarra elétrica, o grupo de rock argentino acompanhando-o,
mas, também no que diz respeito à sua figura, principalmente pela forma como
estava vestido — não usando smoking, como a maioria dos seus colegas —, no
festival de 68 ele real e intencionalmente se propôs a provocar — e chocar — a
plateia da MPB, conforme ele mesmo relata:
Meu cabelo estava muito grande e, entregue à sua própria crespidão
rebelde, mais parecia uma mistura do de Hendrix com os de seus
acompanhantes ingleses do Experience. Eu estava vestido com uma
roupa de plástico verde e preta, o peito coberto de fios elétricos com
tomadas nas pontas, correntes grossas e dentes de animais grandes.
(VELOSO, 1997, p. 299)
O caráter de protesto não estava contido apenas na letra da canção
defendida por Caetano, mas em toda sua atitude como artista, desde o que diz
respeito à sua forma de se vestir, e, ainda mais pelos recursos por ele empregados
na interpretação, uma performance que culminou num verdadeiro happening.
!114
Depois da longa introdução — que já arrancava vaias por seu
atonalismo e sua total indefinição rítmica — eu começava a cantar os
tolos versos (“A mãe da virgem diz que não/E o anúncio da
televisão /E estava escrito no portão”) acompanhando-os de uma
dança que consistia quase exclusivamente em mover os quadris para
a frente e para trás, porém não tanto à maneira brusca e algo
mecânica de Elvis, antes ao modo relaxadamente sexual das
baianas, das sambistas de morro, dos homens e mulheres cubanos.
(VELOSO, 1997, p. 300)
Letra, roupas, dança, interpretação. Caetano Veloso levou às últimas
consequências sua posição de artista, empregando todos os recursos que lhe eram
possíveis, e se empenhou na tentativa de abrir os olhos de toda uma massa que
batia palmas para um possível milagre econômico ao qual subjazia uma ditadura
feroz que beirava a desumanidade, e a perda de todos os direitos garantidos e
conquistados pela população brasileira.
Acerca do happening, Glusberg pontua o fato de que a manifestação artística
em questão:
[...] articula sonhos e atitudes coletivas. Não é abstrato ou figurativo,
não é trágico nem cômico. Renova-se em cada ocasião. Toda pessoa
presente a um happening participa dele. É o fim da noção de atores e
público. Num happening pode-se mudar de “estado” à vontade. Cada
um no seu tempo e ritmo. Não existe mais só “uma direção” como
teatro ou no museu, nem mais feras atrás das grades, como no
zoológico.” (GLUSBERG, 1987, p. 34)
A apresentação de Caetano Veloso vai ao encontro da definição de Glusberg,
já que, envolveu a “toda pessoa presente”, desde o próprio Caetano, mas o público,
os jurados, e, de certa maneira, conjuntura política da época. Além disso, Caetano
literalmente propôs-se a “mudar de ‘estado”, passando de um cancionista que
defenderia uma canção no festival, tal qual todos os demais participantes, e cantou,
dançou, planejava recitar, mas acabou por fazer de improviso um acalorado discurso
em meio às vaias.
Desse modo, não se tratou de apenas um espetáculo com princípio meio e
fim, mas uma chamada à reflexão justamente pelo choque, cujos significados e
sentidos passaram a ser decifrados também posteriormente, e, de certa maneira,
também atualizados no que diz respeito à proibição de uma proibição.
Delleuze e Guattari (1992), acerca do happening, ainda ressaltam que:
O happening não é de maneira nenhuma o estado das coisas, ele se
atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem
!115
uma parte sombria e secreta que não para de subtrair ou de se
acrescentar à sua atualização. (DELEUZE, 1992, p. 202)
A repercussão disso realmente se atualizou num “estado de coisas”, não se
restringiu ao juízo de valor da canção em si, mas trouxe à tona depois de um bom
tempo a liberdade tão esquecida. Além disso, partindo de todo um “vivido” do povo
brasileiro em meio aos atos institucionais do governo militar, instaurou uma outra
possibilidade de vivência, de liberdade de expressão, de ir e vir. Sua “parte sombria
e secreta” ecoou em termos de ressignificação e reatualização em todo um cenário
artístico que se descortinou posteriormente.
Como parte de seu happening, Caetano Veloso planejava também recitar o
poema de Fernando Pessoa que reproduzimos abaixo:
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
No entanto, assumindo a postura positiva do “louco” da poema de Pessoa,
em meio às vais de uma plateia que se virou de costas para o palco, ao que
Caetano, em reação, apenas virou também de costas para a plateia e começou a
proferir um inflamadíssimo discurso acerca do qual discorreremos a seguir a,
criticando toda uma “juventude” que agia de uma forma ambígua, no mínimo,
querendo, por um lado, “tomar o poder”, e, por outro, preconceituosamente fechando
os olhos para o novo — quase que da agindo de forma semelhante à das
autoridades que tanto criticavam — uma “música” que eles “não teriam coragem de
aplaudir no ano passado”, conforme o discurso47 que Caetano literalmente vocifera
ao público:
Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que
juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão
ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a
quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem?
Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não
Disponível em: [http://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano].
Acesso em 15 de março de 2014, às 21:35.
47
!116
diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar
nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! [...] Nós, eu e ele,
tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E
vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em
estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto
com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito
simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem
melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de
Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É
assim que eu quero ver. Chega!
Caetano Veloso compara o público enfurecido que o está vaiando aos
militares que espancaram os atores que faziam uma peça marcada por um tom de
protesto. A juventude que protestava contra o regime militar, talvez, sem perceber,
acabava por se posicionar tal e qual a este. Antes de poder ser hostilizado por todo o
júri do festival, Caetano pede sua desclassificação e questiona os critérios destes
profissionais que avaliavam as canções.
Performance, interpretação musical, ousadia política
Passados mais de quarenta anos, Caetano Veloso, que já se tornara “o
homem velho” que tematizou numa de suas canções 48, nos anos 80, segue marcado
pela mesma intrepidez, parecendo agora questionar: mas é isso que fez a juventude
que tanto queria tomar o poder?
Em plena atividade, e num diálogo muito aberto com os jovens, Caetano é
criticado por não assumir nos dias de hoje a postura e posicionamento que lhe foram
característicos no final da década de 60.
Se em sua juventude ele tivera a coragem de assumir um papel tão adulto, em sua
maturidade, Caetano se revela um caráter quase pueril, trazendo à baila a dor e a
delícia que permeiam a vida dos brasileiros atualmente, sem no entanto tomar à
frente dos possíveis protestos, apenas apontando o caminho, como que dizendo:
agora é a vez de vocês.
No entanto, ao observarmos cautelosamente, poderemos identificar uma
coerência quase que total em relação aos princípios e ideais defendidos nos dias
cinzentos daqueles anos de chumbo. Suas canções seguem marcadas por um traço
político nas décadas subsequentes, e chegam à atualidade fugindo de quaisquer
padrões e rompendo expectativas.
48
VELOSO, Caetano. O Homem Velho (1984)
!117
Por quê? Perguntam-se muitos. E a resposta pode estar contida na própria
letra citada a pouco: porque “já tem coragem de saber que é imortal”.
!118
3. A CENA DO CAMALEÃO. LUZES, CÂMERA: CANÇÃO “I’m alive and vivo muito vivo, vivo, vivo
In the Eletric Cinema or on the telly, telly, telly
Nine out of ten movie stars make me cry
I’m alive”
(Caetano Veloso, Nine Out Of Ten)
Apesar de ter optado pelo âmbito da canção, Caetano Veloso sempre
manteve um diálogo com outros setores da arte, dentre os quais a literatura, o
teatro, mas, sobretudo, o cinema.
Nestas quase cinco décadas de carreira, é possível identificar uma ligação
um tanto quanto constante do cancionista baiano com a sétima arte. Caetano já
atuou, dirigiu um filme próprio, produziu trilhas sonoras e expressou sua opinião
acerca de obras fílmicas em geral em prosa e verso. O presente capítulo se coloca
justamente como uma uma investigação da relação de Caetano Veloso com o
cinema.
Na verdade, o cinema representa uma das grandes paixões e remonta as
intenções de Caetano Veloso no que diz respeito à entrada no cenário artístico.
Entre os anos de 1960 e 1962, tendo completado dezoito anos de idade, Caetano
tornou-se o responsável pela produção textos de crítica cinematográfica para dois
jornais: “O Archote”, de Santo Amaro da Purificação, e “Diário de Notícias de
Salvador”.
Acerca desta crítica cinematográfica, Ramos (1997), comenta:
Suas atividades como crítico são marcadas pelo gosto pessoal de
imagens em movimento narrando histórias. Ainda quando morava em
Santo Amaro, que tinha na época três cinemas, revezava-os de
modo a poder ver filme todos os dias. A distribuição norte-americana
não dominava completamente o mercado exibidor e o jovem cinéfilo
pôde ter acesso a clássicos do cinema italiano, francês e alguma
produção mexicana. (RAMOS, 1997, p 559)
Logicamente que a essa altura, Caetano não tinha qualquer formação
específica que lhe permitisse, de fato, assumir a posição de crítico, a não ser,
conforme mencionou Ramos, não apenas um “gosto”, mas uma literal paixão
“pessoal”.
!119
Em “Verdade Tropical”, Caetano narra com minúcias suas idas ao cinema
ainda durante a infância, em Santo Amaro, e o efeito de tudo isso no homem e no
artista que se tornou. É o próprio Caetano quem conta o seguinte episódio:
Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação
pessoal foi a exibição de La Strada de Fellini num domingo de manhã
no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era
o melhor — o único que chegou a ter cinemascope — dos três
cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui
almoçar — e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta
Masina. (VELOSO, 1997, p. 31)
Fica clara nas palavras de Caetano a sensibilidade exacerbada no que tange
a sétima arte.
Em 3 de abril de 1994, Caetano publicou no jornal “Folha de São Paulo”, mais
especificamente no caderno intitulado “Mais”, um texto sobre Giulietta Masina, dias
após o falecimento da mesma.
Intitulado “A Voz da Lua”, este já se inicia com um juízo de valor pessoal —
atrelado ao “gosto” ressaltado por Ramos —, citando o “melhor” e o “pior”, mas
sobretudo exaltando o trabalho de Fellini, e atribuindo muito de seu êxito à atriz
italiana em questão:
O melhor filme de Fellini (Noites de Cabíria) e o seu pior (Julieta dos
Espíritos) são com Giulietta Masina. Isso, a meu ver, demonstra quão
inexoravelmente o desenho dessa figura e o espírito dessa mulher
atravessam a totalidade desse artista tão genuíno quanto se pode
admitir que um cineasta o seja. (VELOSO, 1994)
Entre o primeiro filme citado, datado de 1957, e o segundo, datado de 1965, e
no que tange muito mais que este espaço temporal entre estas duas obras, mas, os
quarenta anos de produção (literalmente de 1950 a 1990), Caetano ressalta o
caráter genuíno” de um diretor responsável por obras que, marcadas por um caráter
poético, mesmo quando expressavam duras críticas à sociedade como um todo,
nunca perderam o tom inexplicável de magia atrelado à sétima arte. E grande parte
disso, afora o incontestável talento de Fellini, se deve justamente ao trabalho de sua
esposa, Giulietta Masina, que atingiu o ápice de sua carreira com esta parceria, que
marcou a história do cinema.
Caetano chegou a escrever uma canção homenageando a atriz em questão,
cujo título é constituído pelo nome da mesma: Giulietta Masina (1987).
!120
Pálpebras de neblina
Pele d’alma
Lágrima negra tinta
Lua lua lua lua
Giulietta Masina
Fazendo jus à poeticidade dos filmes de Fellini protagonizados pela musa em
questão, Caetano faz uma descrição poética, praticamente abstrata da atriz italiana,
não tendo por objetivo descrevê-la fielmente como num retrato, mas, com elementos
que se ligam à atmosfera dos filmes e das personagens por ela encarnados.
Desse modo, suas “pálpebras” tem a coloração ou aspecto de uma névoa
densa, indefinida, que, figurativamente, pode estar atrelada a uma escuridão
intensa. Esta pode ocultar todas as reações e intenções de uma mulher cuja
personalidade e existência se multiplicam, personagem após personagem, situação
após situação. Já sua “pele” transmite a quem quer que a olhe, sua “alma”. Esta
expressão dá conta de toda uma expressividade, o talento de transmite uma
determinada ideia sem sequer verbalizar, apenas sendo observada. E sua “lágrima”,
na tela branco-e-preto, cai como uma “negra tinta”, exprimindo toda a profundidade
de uma tristeza, sob a atmosfera da escuridão, dissipada apenas pelo brilho da “lua”.
A canção da qual tratamos a pouco foi lançada no álbum “Caetano” (1987), e
regravada no registro ao vivo “Omaggio A Federico E Giulietta” (1999), título em
italiano que, numa tradução nossa, corresponde a “Homenagem a Federico e
Giulietta”.
O encarte do disco em questão contém o relato de Caetano Veloso acerca
dos elementos que culminaram na realização do show em Rimini, na Itália:
Eu estava em Nova Iorque mixando “Circuladô” quando recebi a
carta de Maddalena Fellini me sugerindo, em nome da Fondazione
Fellini, que eu fizesse uma apresentação em Rimini em homenagem
a Federico e Giulietta. A irmã de Federico me contava que Giulietta
chegara a conhecer a canção que eu escrevera sobre ela e que
ficara tocada. Maddalena deplorava (quase tanto como eu) que o
casal tivesse morrido sem que um encontro pessoal nos tivesse sido
concedido pelo acaso, o destino, Deus, os deuses. Ela tinha lido
minhas declarações à imprensa italiana de amor à poesia do cinema
de Masina/Fellini. Amor que se destacava como especial dentro da
minha admiração pelo cinema italiano dos anos 40, 50 e 60. O fato
disso encontrar resposta no misterioso amor de alguns italianos
famosos e anônimos pela minha música, levou-a a considerar a
oportunidade de um tal concerto. A carta me arrebatou.
!121
Caetano, que registrara em prosa — e depois em verso — sua literal paixão
pelo cinema italiano, e sobretudo pelo trabalho do diretor Fellini, e também de sua
esposa, a atriz Giulietta Masina, numa recíproca verdadeira, despertara o interesse
de seus admiradores italianos por sua música. No entanto, esta via de mão dupla
não foi o suficiente para que fosse promovido a tempo o tão desejado encontro entre
Caetano e o casal em questão — tendo em vista que Fellini faleceu em 1993, e
Masina em 1994.
Apesar disso, Maddalena — irmã de Fellini — confirmou o fato não só de
Giulietta ter tomado conhecimento da canção de Caetano, como também ter se
sentido “tocada” por tal homenagem — de alguém não só de outro país, mas de
outro continente, marcado por toda uma cultura ligada a outro idioma, mas que ainda
assim era grande apreciador de seu trabalho. O convite para o concerto em questão
é fruto da admiração de Caetano, e também de sua relevância como artista na
cultura italiana, logicamente.
No dia em que finalmente cheguei a Rimini para cantar, minha voz
apresentou um tipo de problema que eu até então desconhecia: bem
no fundo da laringe, algo quase me impedia de emitir qualquer som,
embora os sons que, com um incômodo sem dor, eu conseguia
produzir, saíssem consideravelmente límpidos. De modo que o
controle da afinação e sobretudo das intensidades se limitava
exasperantemente. Estava frio e úmido em Rimini, mas havia
também uma emoção grande demais em mim. Essa emoção
envolvia tristeza, orgulho exaltado e vagos medos ligados ao sentido
de minha vida.
O clima frio somado a toda uma emoção quase impedira Caetano de cantar.
Mas, algo mais forte, atrelado inclusive ao “sentido” da vida do cancionista baiano foi
mais forte, culminando numa espécie de dedicação a elementos totalmente díspares
entre si, mas completamente coerentes do ponto de vista da formação pessoal de
Caetano:
“Dama das Camélias” para Pina Bausch, “Patricia” para Anita Ekberg,
“Que Não Se Vê” para Marcello Mastroianni, “coração Materno” para
Tonino Guerra, tudo para Fellini e Giulietta, minha Daia, Nossa
Senhora da Purificação e Lambretta.
As canções citadas se colocam como homenagens, respectivamente, para a
coreógrafa e dançarina de balé alemã Bausch, reconhecida por romper com as
formas tradicionais da chamada “dança-teatro”; a atriz sueca Anita Ekberg, que se
tornara um ícone após dar vida à personagem Sylvia em “A Doce Vida” (1960), de
!122
Fellini; o renomado ator italiano Marcello Mastroianni, que estrelara tanto “A Doce
Vida” quanto “8½” (1963), também de Fellini, e, logicamente, a totalidade para o
casal Fellini e Masina — foco da homenagem inicial.
No entanto, vêm à tona também referências não do contexto das artes, mas,
aquela que fora apelidada de “minha Daia” por Caetano, sua tia, e a santa padroeira
de sua cidade natal e até o veículo marcado por um baixo custo de produção,
manutenção e com um maior grau de proteção que a motocicleta — veículo do qual
a “Lambretta” era uma espécie de versão.
Vale ressaltar que, dentre estas reverências, as duas últimas — à “Nossa
Senhora da Purificação” e à “Lambretta” — são repetições das citadas em relação
ao “risco de beleza que este disco” — o primeiro da carreira de Caetano,
“Domingo” (1967) — “possa correr”, conforme estava no texto contido na contracapa
do disco. Este fator reforça e deixa ainda mais claro a coerência e o caráter de
“sentido da [...] vida” mencionado por Caetano, ao retomar suas origens, e, mais
especificamente, o trabalho que o lançara na vida artística como cancionista e
intérprete, exatos trinta e dois anos depois, numa proposta completamente diferente.
Contudo, apesar do comentário revelador de Maddalena Fellini acerca da
reação de Giulietta Masina em relação á canção de Caetano — seja ele verdade ou
mentira —, a questão é que a impressão de Caetano tinha sido exatamente o oposto
até então.
Nesse sentido, justamente num “P.S.” de 1994, Caetano, após uma breve
retomada, confessara:
P.S.: quando eu era adolescente, sonhava com frequência que
encontrava Giulietta Masina e Federico Fellini, e conversávamos.
Não sei o conteúdo dessas conversas, mas lembro a intensidade da
emoção. Assim, defendendo meus próprios fantasmas benfazejos
contra a fúria esnobe da crítica, que, por vezes, precisou tentar
empurrá-los para baixo na escalada do alpinismo intelectual, fiz uma
canção com o nome dela e gravei num disco. Algum tempo depois,
eu estava em Bari, no Sul da Itália, dormindo num hotel, e minha
mulher atendeu uma chamada telefônica de Roma, “da parte da
senhora Giulietta Masina”, que queria saber de mim e da canção. Só
fui informado quando acordei, algumas horas depois. Não tinha
tempo de parar em Roma na minha viagem de volta para o Brasil.
Pablo Scharnecchia, um amigo italiano que é um grande conhecedor
de música e tinha acesso aos Fellini, ofereceu-se para entregar o
disco a ela. E o fez. Voltei à Itália por duas vezes depois disso, e
dessas vezes ficando em Roma. Ela não me procurou mais. Concluí,
sem nenhuma surpresa, que ela não gostou da música. (VELOSO,
1994)
!123
O interesse inicial, o desencontro e o aparente desdém posterior da atriz
italiana fizeram Caetano chegar à conclusão de que Giulietta “não gostou da
música”. No entanto, tomando a canção como obra de arte, no fim das contas, o
suposto apreço ou desapreço da musa canção em relação a esta não era o que
mais importava. Como cancionista, Caetano Veloso apenas expressou em letra e
música — em arte — sua paixão, assim como qualquer artista. Quem poderá
mensurar o verdadeiro impacto causado em Giulietta Masina, ou mesmo em todo um
público — geração após geração — que aprecia o trabalho de Caetano?
Mas os exercícios de crítica cinematográfica de Caetano começaram décadas
antes disso.
Num texto, datado de 30 de outubro de 1960, publicado em “O Archote”, e
intitulado: “Cinema e Público — Entretenimento e Arte”, Caetano traz uma crítica em
relação ao público que teoricamente aprecia a sétima arte.
Caetano abre seu texto ressaltando o fato de que o público, apesar de
apreciador do cinema, acaba por se importar apenas com fatos quase que
irrelevantes acerca dos filmes:
Vamos constantemente ao cinema. Lemos todos os números das
“revistas especializadas”. Sabemos os nomes e temos decoradas as
caras (e os gestos) de Rocks Hudsons, Tonys Curtis, Elizabeths
Taylors e nos consideramos a par das coisas de cinema quando
sabemos dos novos casamentos dos atores, quando estamos em dia
com os últimos divórcios, quando conhecemos os últimos boatos e
mexericos. Mas não conhecemos um só nome de diretor. Não
procuramos ver quais as mensagens dos seus filmes. Nem supomos
que é ele o importante numa película, e não o ator. Temos notícia do
que vestiu Marilyn Monroe na noite da avant-première, mas não
tentamos compreender o que pensou Fellini ao realizar La strada ou
o que sentiu De Sica ao criar Ladrões de bicicletas. Para nós o
importante é Brigitte Bardot, e não Jean Renoir, é Sophia Loren e
não Rossellini. (VELOSO, 1960)
Reside no texto de Caetano uma crítica feroz aos ditos apreciadores de arte
— no caso, o cinema — que, no entanto, não passam da mais rasa superfície da
obra de arte em termos de leitura e compreensão, mas apenas repetem comentários
chavões, e tão somente preocupam-se com os aspectos menos importantes do
ponto de vista da análise: frivolidades acerca da vida pessoal dos atores, daqueles
dos quais possivelmente se saiba o nome — por estar constantemente na mídia.
!124
Caetano retoma a mesma temática em outro texto seu, de 4 de dezembro de
1960, publicado em “O Archote”: “Cinema, Ator e Diretor”, para explicar melhor sua
tese acerca da importância de ator e diretor num filme:
Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o “ator”
e sim o “diretor”, o importante num filme. O cinema é uma estética,
uma arte. E o diretor está para a obra de arte fílmica assim como o
pintor está para o quadro. Os materiais de que dispõe um realizador
cinematográfico são a câmera, o celuloide, os cenários, as coisas, os
atores etc.; como são materiais à disposição d’um pintor a tela, os
pincéis, as tintas. Pus propositadamente os atores entre os
“materiais” para frisar que dentre os estudiosos de cinema eles são
considerados como simples objeto na mão do realizador. O que é
mais um exagero usado como antídoto do “estrelismo” do que a
realidade mesma. (VELOSO, 1960)
Ao estabelecer a comparação entre filme e quadro, pintor e diretor, Caetano
exemplifica melhor a sua tese acerca da importância do diretor, que vai totalmente
na contramão do “estrelismo” que valoriza apenas o que seria mais superficial do
ponto de vista técnico na sétima arte: “o estrelismo” atrelado aos protagonistas.
Ao valorizar o realizador por trás de toda uma estética contida nos filmes, uma
vez mais Caetano apela a um nível mais profundo em termos do apreço de obras
fílmicas, e exige de seu possível público leitor o mesmo nível de sofisticação.
Outro destes textos de Caetano Veloso, que foi publicado no jornal “O
Archote”, em 12 de maio de 1962, é intitulado: “Os Grandes do Momento”. Nele,
Caetano se propõe a comentar cinco daquelas que, na sua opinião, são grandes
“obras do grande cinema moderno” e que “já foram exibidas no Brasil e algumas na
Bahia”.
São elas, respectivamente: “A Doce Vida” (1960), de Federico Fellini;
“Hiroshima, meu amor” (1959), de Alain Resnais; “A Aventura” (1960), de
Michelangelo Antonioni; “De Crápula a Herói” (1959), de Roberto Rossellini, e
“Rocco e seus irmãos” (1960), de Luchino Visconti.
Caetano inicia seu texto contextualizando, a seu ver, uma fase atual e mais
frutífera do cinema:
Depois de um período pouco profícuo, o cinema mundial volta à
velha moda de obra-prima, com o surgimento de novos realizadores
geniais (como Alain Resnais e François Truffaut) e com o retorno, em
grande forma, de “velhos” imensos (como Visconti e Rossellini).
(VELOSO, 1962)
!125
Além do entendimento do artista baiano por filmes, o trecho acima revela todo
um conhecimento — fruto da paixão — pelo cinema, a ponto de analisar períodos de
maior ou menor proveito em termos de produção cinematográfica de qualidade. O
crivo de Caetano se propõe até à avaliação de “novos realizadores geniais” — os
dois franceses: o então estreante e o já reconhecido fundador do movimento
cinematográfico Nouvelle Vague —, como também ao elogio do já consagrado
diretor de teatro, ópera e cinema, e também do grande nome do neorrealismo
italiano.
Perpassam pela crítica de Caetano definições primorosas das cinco obras. “A
Doce Vida” é dada como “uma obra forte, terrivelmente pessimista, que traz a visão
felliniana do mundo com maior largueza e profundidade que nunca”. “Hiroshima,
meu amor” é apontado como “uma revolução estética no cinema” que “traz para o
filme as experiências antes feitas em literatura”. “A Aventura”, é definido como “um
pequeno drama entre personagens do nosso tempo, cujas reações, cujos
comportamentos, são a marca do homem atual”. “De Crápula a Herói”, por sua vez,
é apontado como “um belíssimo drama humano, partindo do estudo da
transformação dos sentimentos pela guerra.” E, “Rocco e seus irmãos” é
simplesmente “o maior dos grandes filmes modernos” por estudar “decadência do
homem premido pela sociedade burguesa”. Estas conceituações denotam uma
profunda leitura, interpretação e compreensão em termos de enredo, atuações,
ambientações e trilha sonora no que tange aparato teórico, e também pela
contextualização, da ficção para a vida real, por parte de Caetano — literalmente,
aquilo que “o filme quis dizer”49.
Caetano também se propôs a fazer uma lista dos melhores filmes exibidos em
Santo Amaro no ano de 1961, no texto “Os Melhores do Ano”, literalmente, conforme
ele mesmo afirmara “teimosamente”, tendo em vista que “não foram os filmes que
mais agradaram ao grande público” e, mais do que isso, compunham a lista títulos
“que a maioria não conhece”.
No entanto, engana-se quem achar que Caetano ficou atrelado apenas ao
cinema de arte — ou seja, europeu —, deixando de lado toda uma produção
americana efervescente já naquela época.
49
VELOSO, Caetano; GIL, Gilberto. Cinema Novo (1993)
!126
Em “Filme e Juventude”50, Caetano comenta “Juventude Transviada” (1955),
que fora exibido em Santo Amaro apenas “depois de tanto tempo de seu
lançamento” — exatos seis anos. Muito além dos gestos dos atores em geral e
especialmente de meros elogios a James Dean, Caetano se aprofunda numa análise
do que subjaz ao filme: “a denúncia contra uma sociedade burguesa decadente que
causa, com sua falsidade moral e religiosa, todo o desespero ético e metafísico da
geração nova” (1961).
Além disso, Caetano também escreveu textos acerca de filmes brasileiros.
Iniciando-se pela produção ainda nos anos 60, do ainda estreante diretor Glauber
Rocha: “Um Filme de Montagem”, acerca de “Barravento” (1962).
Caetano abre seu texto afirmando se tratar de “um filme cheio de intenções”,
e, ao tratar destas, acaba por sintetizar os propósitos do Cinema Novo como um
todo:
Como todos os filmes que têm surgido do movimento Cinema Novo,
ele não é uma obra gratuita: é uma tentativa de cinema vinculado
com a verdade e a cultura do Brasil. Um cinema que supere a nossa
pré-história (chanchada) e redima os erros dos que tentaram iniciar
uma arte brasileira do filme, mas que correram para o preciosismo
alienado ou que não saíram da intenção de fazer cinema caboclo
(Vera Cruz; produtores independentes). (VELOSO, 2005, p. 233)
A fim de demarcar o caráter literalmente “novo” do cinema de Glauber Rocha,
Caetano se propõe a estabelecer a distinção em relação à “chanchada” — filmes
brasileiros carnavalescos, comuns entre os anos de 1930 e 1960 no Brasil,
produzidos pela “Atlântida” — e o “preciosismo alienado” ou “cinema caboclo”
característico da cia. “Vera Cruz”. A proposta de Glauber se ligava justamente a
vincular a ficção fílmica diretamente a questões da realidade e da brasileiras, a fim
de produzir filmes genuinamente nossos, que retratassem o Brasil e seu povo de
uma maneira fiel.
Caetano ressalta o fato de que, literalmente, “desde o início” é possível notar
as características que permitem associar o filme ao movimento do Cinema Novo. No
entanto, se por um lado, positivamente, “as intenções surgem claras”, por outro,
infelizmente, “os resultados não têm a sua força”.
50
“O Archote”, nº11. Santo Amaro, Bahia, 20 de setembro de 1961.
!127
Para pautar sua análise do filme de Glauber Rocha, Caetano estabelece uma
comparação com o drama “A Grande Feira” (1961), de Roberto Pires, filme que
integra o chamado “Ciclo Baiano de Cinema” ao lado de “Redenção” (1959) e
“Tocaia no Asfalto” (1962), todos do mesmo diretor.
É ressaltado um fator que aproxima estes dois filmes: a intenção de “lançar a
mensagem social sem rodeios, diretamente”. E esta intenção é de fato cumprida nos
dois filmes. No entanto, ao mesmo tempo em que este fato aproxima as duas obras
fílmicas, ele também permite estabelecer uma cisão entre elas:
[...] se no filme de Roberto esses discursos surgem motivados por
situações e, desse modo, são prolongamentos da ação dramática,
Glauber levou isso às últimas consequências: a relação dramática
entre o discurso e a ação é anulada pela montagem e a mensagem
surge acintosamente pura e seca. (VELOSO, 2005, p. 233)
Em “Barravento”, a mensagem que deveria vir subjacente a todo um enredo,
por meio das ações das personagens acaba por se reduzir a mais um discurso, e
justamente por isso não cumpre seu objetivo estético.
No entanto, ao final do texto, Caetano afirma se tratar de “um filme chocante
para o gosto do povo”, o qual por isso mesmo, possivelmente “agradará mais ao
pequeno-burguês semiletrado do que ao povo mesmo”.
Apesar dessa crítica à gênese do movimento, uma das maiores inspirações
que influenciaram Caetano na concepção da Tropicália foi justamente o “Cinema
Novo”. Partindo da ideia da valorização das raízes de um verdadeiro Brasil profundo,
frente a influências internacionais, passamos pelo caráter cinematográfico de letras
como a de Alegria, Alegria. Nesse sentido, é o próprio Caetano que, numa
entrevista51, ao responder à pergunta: “Qual a importância da narrativa em sua
obra? Você, quando cria, deseja contar uma história?”, afirma:
Quase nunca desejo contar uma história. Mas o cinema foi e é
modelo consciente ou inconsciente de minhas canções. Alegria,
alegria é toda feita de montagem. Na verdade, as canções
tropicalistas têm muito de montagem de cinema. Enquanto seu lobo
não vem, Superbacana, Tropicália, todas as canções dessa época
têm a ver com cinema, sobretudo o cinema de Godard. Mas não só
as minhas: Domingo no parque, de Gil, é muito cinematográfica.
Disponível em: [http://www3.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2013/05/entrevista-com-caetano-veloso/].
Acesso em 17 de março de 2015, às 00:02h.
51
!128
A resposta de Caetano é muito reveladora da importância ou relevância da
sétima arte em seu trabalho como cancionista. Apesar de ter se ligado às canções, e
não aos filmes, o “cinema” e suas peculiaridades se revelam como um plano de
fundo que permeia todo seu processo de composição.
Caetano chega a citar canções Tropicalistas como Enquanto Seu Lobo Não
Vem, cuja letra, além do intertexto dos contos infantis, revela também uma dimensão
cinematográfica, como uma possível história a ser contada por meio de um filme.
Ocorre o mesmo como o super-herói antiamericano e anti-imperialista Superbacana,
e até com a canção-manifesto Tropicália. Marcadas por um traço descritivo, que
permitem ao ouvinte visualizar as personagens, cenários e situações cantados na
narrativa-poética da letra, todas estas, e mais muitas das canções de Caetano
Veloso apresentam um diálogo muito forte com o cinema e as artes visuais. E não só
as relativas ao âmbito nacional, como o Cinema Novo de Glauber Rocha, ou o
Cinema Marginal de diretores como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, João
Silvério Trevisan, mas, também o vanguardista-político de Godard e o neorrealismo
italiano de Fellini.
A partir da efervescência cultural ocorrida na Europa, um dos maiores reflexos
no Brasil dos anos 60 se deu justamente no cinema. Partindo de influências de
movimentos culturais consagrados internacionalmente, como o Neorrealismo italiano
e a Nouvelle Vague francesa, cineastas brasileiros começaram a articular uma
proposta de inovação da linguagem cinematográfica como um todo, visando torná-la
mais fiel ao contexto específico em que eram produzidas as obras audiovisuais,
como bem pontua Avellar:
O que se discutia não era a criação de uma gramática normativa.
Não era a unificação da linguagem. Tratávamos, isso sim, de
desenvolver uma expressão tal como a língua viva se faz e se
transforma continuamente como diálogo entre as diferentes
linguagens sociais, entre as várias palavras, dialetos, gírias
profissionais, e expressões poéticas nascidas de distintas práticas e
concepções de mundo. Singularidade plural. Tratávamos de pensar o
cinema latino-americano como um diálogo entre as naturalmente
diversas experiências de cada país. Pensar cada filme como imagem
completa mas inacabada. Como língua, mas como dialeto. Como
expressão independente mas dependente do diálogo de diferentes
formas de expressão. Pensar o cinema como vontade de conversar
através de filmes. (AVELLAR, 1995, p.95)
Ao tratarmos de uma arte cinematográfica marcada pelo desejo de, de fato,
se colocar como “diálogo” estabelecido, ao mesmo tempo “entre as diferentes
!129
linguagens sociais” e “entre as naturalmente diversas experiências de cada país”, a
maior expressão encontrada no cenário brasileiro se deu por meio da ação de
cineastas como Glauber Rocha, Carlos Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Paulo
Emílio Salles, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e outros que, juntos,
integravam o grupo do chamado “Cinema Novo”.
O movimento cinematográfico brasileiro em questão caracterizou-se pela
tentativa de inserção das questões políticas e sociais do âmbito nacional no cinema,
a partir de uma inovadora estética realista, marcada por uma perspectiva crítica que
ia de encontro à produção cinematográfica brasileira até então, totalmente atrelada à
estética de uma cultura fílmica pautada por interesses industriais — guardadas as
devidas proporções, pode-se afirmar que praticamente o mesmo ocorreu no âmbito
da canção, com o Tropicalismo.
Assim, fazendo jus ao título, o “Cinema Novo” ambicionava a produção de
filmes que se constituiriam como novidade para o público brasileiro, a começar por
não serem produzidos por uma “entidade privilegiada do Brasil”, como os grandes
estúdios da época: Vera Cruz e Atlântida, mas, assumidamente, por um “fenômeno
dos povos colonizados”, que se colocava à margem da indústria e, talvez por isso
mesmo, fosse dotado de um certo caráter heroico, conforme afirma o próprio
Glauber Rocha:
O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto
permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente
latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um
fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do
Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a
enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá
um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto
a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o
tecnicismo, aí haverá um germe de Cinema Novo. Onde houver um
cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr
seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu
tempo, aí haverá um germe de Cinema Novo. A definição é esta e
por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque
o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a
exploração. (ROCHA, 2008)
Rocha deixa claro ao seu público que o “Cinema Novo” é um movimento
cinematográfico “marginal”, tanto em termos econômicos e culturais, por estar à
margem da produção latino-americana, como um fruto dos “povos colonizados”,
quanto por se opor à “mentira” e “exploração” características da indústria
!130
cinematográfica, não comprometida com a qualidade e originalidade, mas, apenas
com o lucro.
À data da comemoração de trinta anos do Tropicalismo, Caetano, em parceria
com Gil, gravou um disco intitulado “Tropicália 2”, colocando-se justamente como um
segundo volume do consagrado disco-manifesto lançado em 1968, contendo
algumas regravações e também canções inéditas, compostas especialmente para a
ocasião.
Uma das canções inéditas contidas neste álbum é Cinema Novo (1993), que,
trinta anos depois, se coloca praticamente como um hino de louvor a uma das
principais influências que motivaram a concepção do Tropicalismo.
Os versos que abrem a canção dão conta do sentido, do que “o filme quis
dizer”. E a resposta a este questionamento implícito é justamente: “Eu sou o samba”.
O fato de um filme — síntese de toda uma coletividade atrelada à produção
cinematográfica brasileira — poder ser definido definir como “samba” já seria
bastante nacionalista, tendo em vista a importância deste ritmo na cultura brasileira.
Mas, o que acentua este caráter é justamente o fato de se tratar exatamente do
verso que abre a canção A Voz do Morro (1955), de Zé Keti.
Este samba tornou-se um grande sucesso no ano de seu lançamento, ao
compor a trilha do filme “Rio 40 Graus”, de Nelson Pereira dos Santos. Afora esta
conexão com a sétima arte, A Voz do Morro se constitui com uma expressão
nacionalista genuinamente popular, exaltando o estilo musical que leva “a alegria
para milhões de coações brasileiros”, com uma unanimidade tamanho, a ponto de se
configurar “a voz do povo do país”.
Desse modo, com o movimento do Cinema Novo, a proposta é a de que este
papel passe a ser desempenhado também pelos filmes, como a imagem do povo do
país.
A partir deste novo significado atrelado às obras fílmicas, consta no próprio
verso da canção de Caetano Veloso a afirmação de que “começaram a se configurar
/ visões das coisas grandes e pequenas / que nos formaram e estão a nos formar”,
ou seja: todo um chamado “jeitinho brasileiro” passa a ser protagonista de uma
produção nacional efervescente.
!131
Caetano Veloso, ao trigésimo aniversário do movimento por ele inaugurado
em parceria com Gilberto Gil, passa a citar as referências — títulos de filmes — que
estavam por trás de toda esta alegorização do Brasil, conforme já afirmou Roberto
Schwarz. Podemos mencionar alguns dos citados, como “Deus e o diabo [na terra
do sol]” (1964); “Os Fuzis” (1963); “Os Cafajestes” (1962); “O Padre e a
Moça” (1966); “A Grande Feira” (1961); “O Desafio” (1965), e, logicamente “Terra em
Transe” (1967), filme especialmente citado por Caetano como um dos maiores
impulsionadores em relação à concepção do Tropicalismo.
Cinema Novo ainda narra, em seus versos, o contexto em que surge o
movimento homônimo. Afirma-se que “a bossa-nova passou na prova” e “nos salvou
na dimensão da eternidade”, dando conta de todo o sucesso deste estilo musical
brasileiro, nacional e internacionalmente falando. No entanto, mesmo com o
surgimento da Bossa, “aqui em baixo” — abaixo da eternidade conquistada pelo
estilo musical em questão —, numa citação de um verso de Fernando Pessoa, de
sua obra, “Mensagem”, é sintetizada a existência dos brasileiros: “a vida” não
passava de “mera metade de nada”, ou seja, seguia sem sentido ou significado,
como num impasse — “nem morria nem enfrentava o problema”. Deste modo, de
uma maneira quase que salvadora, “foi por isso que as imagens do país desse
cinema / entraram nas palavras das canções”. Haja vista o movimento Tropicalista e
a confessada influência cinematográfica em letras de canções como Alegria, Alegria
(1967) e Domingo no Parque (1967), que literalmente chocaram júri e público no
contexto dos festivais — por destoarem da produção cancional padrão até então —,
mas, sobretudo, revolucionaram a cultura, e em especial o processo de produção
musical a nível nacional.
Há uma referência particular à obra “Terra em Transe”, de Glauber Rocha,
com a afirmação de que, a partir deste filme — dado como um divisor de águas na
cultura nacional —, toda “a terra entrou em transe” com o significado, a mensagem
transmitida pelo filme. Isto se deu de uma forma e com uma intensidade tamanhas a
ponto de “as vozes do poema” — a literatura — terem precisado “transformar-se
tanto” que, numa recíproca verdadeira ao verso que abriu a canção de Caetano
Veloso, agora “o samba quis dizer: eu sou cinema”, e até mais do que isso: “eu
quero ser poema” — a forma literária mais requintada.
!132
Com menções a “Atlântida” e “Vera Cruz” — as duas principais produtoras
cinematográficas brasileiras, respectivamente dos anos 40 e 50 —, e também a
personagens como “Xica [da Silva]”, “Índia”, “Macabéia”, “Stelinha” e “Inocência” —
originalmente advindas de obras literárias e que foram adaptadas para filmes —, a
canção é encerrada pelo verso: “eu sou o samba viva o cinema”, que dá conta da
intersecção dos mais diferentes setores da arte num propósito nacionalista de fato.
Ainda acerca do “Cinema Novo” de Glauber Rocha, é o próprio Caetano
quem explica:
O movimento do Cinema Novo, na primeira metade dos anos 60,
opôs-se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera
Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. A vitória de prestígio do
movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem
dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção — quase
hostilidade — a produções como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O
homem do Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente
injustas. Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do
Cinema Novo. Seu livro “Revisão crítica do cinema brasileiro”
argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da
miséria brasileira como o neo-realismo nascera da indigência das
cidades italianas no imediato pós-guerra. (VELOSO, 1997, p. 100)
Apesar de seu apreço pelo movimento cinematográfico liderado por Glauber
Rocha, Caetano Veloso ressalta o caráter injusto da “hostilidade” em relação a
produções significativas da companhia “Vera Cruz”. De fato, o filme “O
Cangaceiro” (1953), com direção e roteiro assinados por Lima Barreto, e os diálogos
elaborados por Rachel de Queiroz, tem grande importância, em primeiro lugar,
histórica, pelo fato de ter sido o primeiro filme brasileiro a ser levado para as telas do
mundo afora, e também, por sua qualidade — tendo permanecido em cartaz por
cinco anos apenas na França..
Contando a história de Lampião, o filme foi premiado no Festival Internacional
de Cannes, tendo recebido os prêmios de melhor filme de aventura e de melhor
trilha sonora.
Caetano, inclusive, cita o comentário do próprio Glauber Rocha ligado à
comparação do Cinema Novo ao Neorrealismo Italiano, movimento cultural que teve
sua maior expressão no cinema, com os filmes de diretores como Roberto Rosselini,
Vittorio de Sica e Luchino Visconti, todos marcados pela incorporação de elementos
da realidade em suas obras de ficção, de modo a registrar a literal realidade
socioeconômica italiana a partir da segunda metade da década de 40.
!133
Acerca dos trabalhos de Caetano Veloso como ator, Ramos (2000), comenta
Caetano Veloso costuma dar declarações bastante críticas com
relação às suas atuações como ator. Diz não se sentir à vontade em
frente da câmera como se sente à vontade diante de refletores que
têm a plateia de um show por detrás. É nos filmes de Júlio Bressane
que Caetano encontra um espaço maior para tentar elaborar
personagens e enfrentar o desafio de ser ator. (RAMOS, 1997, p.
560)
Apesar de uma sensação maior de conforto estar naturalmente atrelada ao
palco, Caetano Veloso participou de um número considerável de filmes na posição
de ator. Particularmente, Caetano atuou em três filmes do cineasta brasileiro Júlio
Bressane.
“Tabu” (1982) foi o primeiro dos filmes de Bressane estrelados por Caetano,
no qual ele interpretou o papel de Lamartine Babo, um dos mais significativos
compositores da canção popular brasileira dos anos 30 e 40.
O filme, num resumo, narra o encontro fictício entre o compositor brasileiro
Lamartine Babo e o poeta modernista Oswald de Andrade, propiciado por João do
Rio, conforme consta na sinopse da Cinemateca Brasileira:
Não há história textual, há uma história audiovisual de um encontro
imaginário entre Lamartine Babo e Oswald de Andrade promovido
pelo cronista João do Rio. De quebra, a presença de Isadora
Duncan, Jacob do Bandolim, Manuel Bandeira, Chico Alves, Mário
Reis. Na pauta, os encontros da poesia (Não faço poesia quando
quero e sim quando ela quer), João do Rio, o carnaval (o que o
brasileiro faz melhor, Oswald), as charadas, Rancheira, a rã que
cheira a noite inteira. Mas o filme refere-se não só ao encontro que
não houve, às conversas, músicas e passeio pelo Rio, como intercala
cenas do TABU original, a obra-prima de Murnau de 1930, e ainda
cenas de antigos filmes pornográficos. Como princípio narrativo,
TABU, o de Bressane, parte da junção de três elementos — imagem,
fala e música — unidos, por uma montagem ideogrâmica, que
consiste na relação entre uma imagem e outra sem surgir uma
terceira, mas sim uma relação de conflito entre as duas.
Para além do roteiro que tematiza o encontro de Lamartine Babo e Oswald de
Andrade, em “Tabu” temos literalmente um “passeio” pela cultura do “Rio”. No que
diz respeito ao carnaval, além de Lamartine, temos personagens como Francisco
Alves e Mário Reis, intérpretes também ligados a esta fase áurea do rádio brasileiro. Ao dar vida ao personagem Lamartine Babo, Caetano interpreta alguns dos
maiores sucessos deste compositor brasileiro, dentre os quais podemos destacar O
Teu Cabelo Não Nega (1932), Linda Morena (1933), e também uma canção de sua
!134
autoria ligada ao contexto do carnaval: A Filha da Chiquita Bacana (1977), contida
no álbum “Muitos Carnavais” (1977).
Eu sou a filha da Chiquita bacana Nunca entro em cana porque sou família demais Puxei à mamãe, não caio em armadilha E distribuo banana com os animais Na minha ilha, iê, iê, iê que maravilha, iê, iê, iê Eu transo todas sem perder o tom E a quadrilha toda grita iê, iê, iê Viva a filha da Chiquita iê, iê, iê Entrei pra "Women\'s Liberation Front"
A letra desta canção de Caetano Veloso tematiza uma mulher de
personalidade forte e traços como o de esperteza — “nunca entro em cana” —, e
tudo isso é justificado pelo fato contido na própria afirmação desta: “Puxei à
mamãe”.
Esta relação filial não reside apenas na ficção da letra da canção, mas na
intertextualidade estabelecida com a marchinha Chiquita Bacana (1949), de Alberto
Ribeiro e João de Barro.
Desse modo, se “A Filha da Chiquita Bacana”, com esta personalidade tão
forte, afirma ter entrado para a “Women’s Liberation Front”, a mãe fora caracterizada
como “existencialista com toda razão”. Assim, de fato, numa comparação entre as
letras das canções de Veloso e Ribeiro/Barro, justifica-se esta possível herança
genética, tendo em vista que a marchinha de 1949, que caracteriza a “Chiquita
Bacana” tem versos como:
Chiquita bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica
Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração
A comparação entre as letras das canções permite a identificação de
elementos comuns não só em relação às personagens, mas no contexto. “Chiquita
Bacana” se vestia “com uma casca de banana nanica, já “A filha” afirma distribuir
“banana com os animais”. A personalidade forte, decidida e o contexto carnavalesco
em que se inserem ambas as canções reforça a aproximação entre elas.
No filme de Júlio Bressane, a partir das semelhanças entre o autor das
marchinhas de carnaval e hinos de clubes e o autor de toda uma obra marcada por
!135
um tom de protesto que beira o satírico, valorizando o português falado no Brasil, e
que introduziu na literatura brasileira os conceitos de poema-piada e poema-minuto,
ocorre uma identificação entre as personagens. Isso se dá de um tal modo, a ponto
de Oswald, num determinado momento do filme, afirmar a Lamartine:
Lamartine, você é minha espinha dorsal! Eu vou te levar pra Paris.
Aqui os chateaus-boys não vão te sacar nunca. O mundo se chama
mundo porque é imundo. Lamartine, você não é utopia, você é
atopia. Lamartine, você é eu!
A empatia entre Lamartine e Oswald de Andrade constitui praticamente um
jogo de espelhos, entre artistas ligados à palavra (letra de canção e texto literário
propriamente dito) e entre si. Movidos por mais do que a manifestação popular
expressa seja por marchinhas de carnaval e hinos de times de futebol — totalmente
atrelado ao gosto de grandes massas, em oposição à chamada MPB —, seja por
uma poesia que destoa dos parâmetros ditados pelos europeus em termos de estilo
e linguagem — indo literalmente na contramão disso, empregando a linguagem
informal e cotidiana, sem a preocupação com os elementos clássicos da poética —,
Lamartine e Oswald promoveram rupturas em termos de arte, e justamente por isso,
foram um tanto quanto incompreendidos por seus companheiros de geração.
Conforme consta no diálogo entre as personagens, Oswald se enxerga em
Lamartine devido à incompreensão dos outros, e não somente por uma espécie de
utopia traduzida na arte de cada um, mas, literalmente por uma “atopia” 52. Deste
modo, a presença de aspectos tão singulares em Lamartine se justificaria por uma
possível — e, assim como o encontro entre os dois no filme, imaginária — vocação
de caráter hereditário.
E, ainda neste suposto reflexo, Geraldo Carneiro identifica este mesmo
elemento no que diz respeito à relação entre personagem e intérprete, mais
especificamente, Lamartine e Caetano:
O Lamartine [...] sempre foi político, maravilhosamente incorreto, do
ponto de vista político, e é uma figura, enfim, ligada ao carnaval até
por razões profissionais. Agora, o Caetano que o encarna é uma das
figuras também mais carnavalescas e mais antropofágicas da cultura
brasileira. Você tem aí um jogo de espelhos que o Júlio faz com
perfeição. (24:10 — 24:30)
Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o significado do termo aponta para:
“Predisposição hereditária para determinadas reações alérgicas”. Disponível em:[http://
www.priberam.pt/dlpo/atopia]. Acesso em 08/04/2015, às 19:13h.
52
!136
Político, carnavalesco e antropofágico. Esta descrição é perfeita tanto para
Oswald de Andrade quanto para Caetano Veloso, e faz uma referência à possível
ligação entre estas duas figuras: o Tropicalismo.
Ora, se no âmbito da literatura — e das artes em geral, à época — o
Modernismo representou a tentativa mais bem-sucedida até então de produção de
uma arte literalmente brasileira, rompendo com os modelos e padrões europeus, e
buscando uma real aproximação com o cotidiano de nosso povo, o Tropicalismo,
exatos quarenta e cinco anos depois, foi um movimento marcado por uma premissa
bastante próxima.
Num contexto de ditadura militar, em que as vozes da canção de dividiam
entre a alienação e o protesto — sendo que este era marcado também por
preconceitos em relação ao estrangeiro, ao diferente, enfim... o novo — Caetano
Veloso, junto de Gilberto Gil, provam que é possível adotar elementos e
procedimentos de culturas estrangeiras sem com isso fazer com que a cultura
nacional seja diminuída ou venha a perder sua identidade.
Apresentando uma retomada da Antropofagia proposta por Oswald de
Andrade no contexto do Modernismo, Caetano Veloso demonstra ser possível
devorar o diferente, digerir, em termos de absorção e interpretação, e expelir, no que
diz respeito à produção de uma obra nova e inédita, marcada pela influência, pela
incorporação do que até então era totalmente diferente e ameaçadoramente oposto.
Se o Tropicalismo retoma a Antropofagia Oswaldiana quase meio século
depois, Júlio Bressane resgata mais uma vez este aspecto — sessenta anos após
Oswald, e quinze após Caetano —, adaptando esta fonte comum a partir da
filtragem tropicalista, e inserindo-a no âmbito da sétima arte.
Em “Tabu”, Bressane, desde o início, deixa claro a quem assiste o tom
experimental que permeia todo o filme, o qual, dentre outros elementos, é revelado
por uma espécie de colagem, por meio da qual o diretor insere cenas de filmes
europeus e até de filmes pornográficos.
Geraldo Carneiro interpreta este procedimento do autor como uma prática da
antropofagia em termos culturais e artísticos, e comenta:
O grande momento antropófago do filme talvez seja aquela
sequência em que ele usa o filme do Murnau, as nativas dançando lá
nos mares do sul, e ele sonoriza com um samba, com o carnaval
!137
carioca. Então, é realmente uma fusão extraordinária. Duvido que o
Murnau se atrevesse a sonorizar aquilo de uma outra maneira. E
ficou tão interessante aquela fusão. (CARNEIRO, 2013)
Júlio Bressane em seu filme, “Tabu” praticamente faz uma colagem de cenas
de um filme ligado ainda ao contexto do cinema mudo, homônimo, de 1931, do
cineasta alemão Friedrich Wilhelm Murnau. O ato de Bressane não deixa de se
constituir como uma devoração cultural, ao colocar a cena com uma trilha sonora tão
caracteristicamente brasileira.
Assim, a obra fílmica em questão, longe dos enredos marcados por narrativas
lineares caracteristicamente hollywoodianos, se comparada à pintura, estaria longe
de um retrato fiel de determinada imagem — como forma anterior à fotografia — mas
poderia ser definida como uma representação altamente abstrata.
A título de exemplificação, Estevão Garcia descreve53 o início do filme:
Um índio anuncia com uma trombeta mágica (no Tabu de Murnau) o
caos que tomará conta da Terra, ou da tela. Árvores balançam
solenemente ao som de canários. Sentimos a união do movimento
com o cantar dos pássaros até que da banda sonora surge a música
de Lamartine Babo simultaneamente com o aumento da velocidade
das imagens. A imagem torna-se irreconhecível, as árvores se
fundiram em uma coisa só, o começo do começo foi implantado
através da vertigem do mundo. O mundo está confuso e desconexo,
percebemos o ritmo da tontura e do desequilíbrio. Tudo está torto e
prestes a cair. Um céu abstrato rodopia entre copas de árvores e
depois se dirige ao caule e à um emaranhado de pontos assanhados,
uma imagem que lembra os mitos de origem, a origem de tudo, o
começo dos tempos e assim se inicia Tabu. (GARCIA, 2006)
Garcia ressalta o fato de não só a cena da dança das nativas ter sido
assimilada no filme de Bressane, mas também a primeira, que continha um índio —
fator que, somado ao título comum dos filmes, reforça o diálogo entre estes.
A obra fílmica em questão de Bressane é iniciada por um tom que se
assemelha à Cosmogonia mitológica, ou ao Gênesis bíblico: a origem de tudo, com
a diferença apenas de se tratar, ao mesmo tempo, de um anúncio acerca de um
“caos”, que é reforçado inclusive pelo aumento da intensidade do som, a velocidade
e o teor das imagens, culminando num contexto “confuso e desconexo”.
In: “Tabu, um disco de vinil visual”. Disponível em: [http://www.contracampo.com.br/45/
tabuvinil.htm]. Acesso em 12 de março de 2015, às 22:39h.
53
!138
Em “Contraplano — Um Cinema Antropofágico”, Celso Favaretto e Geraldo
Carneiro discutem a antropofagia contida neste filme de Bressane, e é Favaretto
quem assinala a influência tropicalista em que se insere “Tabu”:
Esse uso que ele fez [...] daquelas cenas do Murnau e as cenas de
carnaval, essa justaposição, isso repercute fundamente um outro
ponto do Manifesto Antropófago, que é “a conversão permanente do
tabu em totem”. E daí que chama o filme “Tabu”. [...] Esse filme do
Bressane, aliás, como outros filmes do Bressane é exatamente
centrado no tabu. Quer dizer, de como o tabu é dissolvido: no filme
dele é criticado, a sexualidade, a floresta, a música, tudo isso junto
produz um descongelamento da norma e daquilo que estaria
estabelecido como moralmente a norma, a convenção. [...] A
passagem entre os espaços abertos, sempre do Rio de Janeiro e da
floresta. Os espaços fechados, do prostíbulo, do botequim, etc. Esse
jogo de aberto e fechado é uma corrosão dos dois polos, e uma
interconversão numa outra coisa que, alegoricamente, alude sempre
a este outro Brasil, ou, o outro do Brasil, que é alegorização. [...] O
Júlio leva aos extremos a alegorização tropicalista. (FAVARETTO,
2000)
Assim como o Tropicalismo, o filme de Bressane traz à tona uma alegoria de
Brasil. Se em “Tabu” são utilizadas cenas de outros filmes, com uma trilha sonora
praticamente insólita tendo em vista o contexto original das cenas assimiladas ao
filme, da mesma maneira ocorreu na Tropicália. Basta nos atentarmos ao discomanifesto do movimento — “Tropicália ou Panis et Circensis” (1968) e mesmo para
as apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil nos festivais da época. A
novidade proposta pelos tropicalistas era também composta pela revisão do antigo.
Caetano Veloso interpreta Coração Materno, de Vicente Celestino, mas também
incorpora a uma canção inédita, de sua autoria, a guitarra elétrica — advinda do
rock’n’roll inglês. São apenas fatos levantados a fim de se confirmar que o
procedimento adotado por Bressane é essencialmente o mesmo.
Além de “Tabu”, como ator, Caetano Veloso participou de um número razoável
de filmes.
“Onda Nova” (1983) é um filme cujo elenco é composto por nomes como:
Carla Camurati, Vera Zimmermann, Tânia Alves, Regina Casé, e até o próprio
Caetano Veloso. O roteiro e a direção são creditados a José Antônio Garcia e Ícaro
Martins. Uma das temáticas abordadas no filme diz respeito justamente à
diversidade sexual, e está ligada ao dia-a-dia de garotas que fundaram um time de
futebol feminino, chamado “Gayvotas Futebol Clube” que vem a ser patrocinado por
!139
um clube profissional. A preocupação dos pais em relação a uma possível
“masculinização” das garotas, em decorrência da proximidade delas com o futebol, e
a relação destas com seus namorados dá o tom de comédia ao filme. O próprio José
Antônio Garcia faz um comentário sobre o filme:
Onda Nova é uma crônica bem-humorada e juvenil de um time de
jogadoras de futebol, o Gayvotas Futebol Clube (que, aliás, é o
subtítulo do filme). É um grupo de garotas dispostas a vencer
preconceitos, compartilhar amizades, enfrentar desafios, concretizar
sonhos e, sobretudo, se divertir. É um filme leve, descompromissado,
mas também muito experimental, lúdico e anárquico. O plano de
tomar a Boca e fazer um cinema que mostrasse a nossa cara,
iniciado em O Olho Mágico do Amor, aqui é levado às últimas
conseqüências. [...] Por causa do bom retorno de O Olho Mágico do
Amor, o pessoal da Boca estava animado com nosso novo projeto.
Tivemos uma verba um pouco maior, mas nada que evitasse o aperto
com o qual já havíamos nos acostumado. [...] Novamente, a gente
contou com o zeitgeist daquela nossa geração, a vontade de ajudar,
de fazer acontecer. Rolaram novas participações afetivas e até
mesmo de gente que já tinha pintado no O Olho Mágico do Amor (...)
O objetivo geral do filme era brincar com os papéis: os papéis que
homens e mulheres supostamente exercem na sociedade. Como
parte da nossa crítica se concentrava contra aqueles que impediam
as mulheres de se expressarem no esporte, espalhamos ao longo de
Onda Nova várias referências trocadas do que se acredita ser
masculino ou feminino. (NADALE, 2008, p. 47)
A troca de referências em relação aos estereótipos construídos acerca do
masculino e feminino, numa espécie de “brincadeira” com estes “papeis”
teoricamente exercidos num contexto social é a tônica do filme e se assemelha
bastante à temática de muitas canções de Caetano, e, sobretudo o comentário que
ele vem fazendo a este respeito, seja por meio de sua performance, a maneira de se
vestir, mas, sobretudo, por suas declarações, tomadas de postura em sua carreira,
frente aos mais diversos assuntos.
Caetano Veloso, numa das únicas cenas em que aparece — e que, nem por
isso deixa de ser marcante no filme—, entra num táxi acompanhado de uma fã, e
passa a se atracar com ela dentro do carro. Sentados no banco de trás, e aos beijos
e abraços, eles percorrem a cidade de São Paulo, passando por pontos como o
Trianon, o Minhocão e até o bairro da Liberdade. A sequência é quase cômica, pelo
fato de que, a cada parada, eles pedem ao motorista para que que ele continue
rodando, e cada uma dessas paradas é marcada também por uma alteração da
trilha sonora.
!140
Ao final, a cena já nada protocolar, confirma esse caráter e ganha até
comicidade, com Caetano, sem dinheiro para pagar a corrida, tentando justificar-se
para o taxista, afirmando: “é que não estou acostumado a andar com dinheiro, pois
todo mundo paga as coisas para mim”.
À parte do filme, duas das suas protagonistas tornaram-se musas de
Caetano: Vera Zimermann e Regina Casé. Caetano homenageou-as em canções de
sua autoria.
A canção feita para Vera Zimmermann é intitulada Vera Gata (1981), do
álbum “Outras Palavras”. A letra, pontuada por um cunho erótico, brinca, desde o
seu título, com as acepções da palavra ‘vera’, que pode ser um substantivo próprio,
nome de uma pessoa, ou então, um adjetivo, sinônimo de “verdadeira”.
Era uma gata exata
Uma vera gata
Das que não tem dúvida
dúvida
Éramos fogo puro
O amor total
Padrão futuro, éramos
éramos
Puro carinho e precisão
Eficiência, técnica e paixão
Os versos transcritos acima, que abrem a canção, constituem uma descrição.
Em primeiro lugar, de uma mulher, metaforicamente caracterizada como “gata”, num
elogio à sua beleza. Mas, este elogio é ainda intensificado pela expressão “vera”,
cujo significado ambíguo pode tanto referir-se a uma “verdadeira gata” ou a uma
mulher chamada “Vera, que é uma “gata”.
Esta tem atributos como “exata”, “que não tem dúvida” — ou seja, decidida,
segura — ressaltados. A seguir, a união do enunciador a esta mulher passa a ser
descrita. Inicialmente como “fogo puro”, fruto de uma paixão avassaladora e uma
atração ímpar, mas, ao mesmo tempo, “amor total”, um sentimento pleno e
verdadeiro permeando esta relação.
O amor entre os dois é dado como algo inédito, “padrão futuro”, definido, ao
mesmo tempo por “carinho” e “paixão”, demonstrações do afeto e da atração que os
unia, e também, “eficácia” e “técnica”, como o cumprimento de uma função
determinada, a prática esperada a partir de uma teoria, elementos que destoam do
!141
caráter imprevisível da “paixão”, da “atração” e outros estados atrelados à conquista
amorosa.
Já a homenagem feita para Regina Casé está contida em Rapte-me
Camaleoa (1981), canção que está contida no álbum “Outras Palavras” (1981).
Rapte-me camaleoa
Adapte-me a uma cama boa
Capte-me uma mensagem à-toa
De um quasar pulsando loa
Interestelar canoa
Esta canção é marcada por um apelo erótico, em que o amante pede à
mulher amada — caracterizada como “camaleoa” — para que o “rapte”, mas
provavelmente não no sentido literal da palavra, mas, que o tome, arrebate de uma
outra maneira. A partir disso, os planos atrelados a este pedido dizem respeito à
adaptação “a uma cama boa” — imagem que reforça o tom erótico que subjaz à letra
-; e, talvez, antes e mais do que isso, que “capte” o recado ou aviso que,
aparentemente, é realizado “à toa”, mas, que, na verdade, tem uma intenção, um
objetivo bastante claro.
Tanto é assim, que esse caráter “à toa” se assemelharia a um “quasar”, fonte
de energia bastante potente, o qual, está “pulsando” e emitindo elogios, expressões
laudatórias, mas com uma segunda intenção (“loa”). Este praticamente literal convite
ao deleite e ao prazer se constitui, poeticamente, numa viagem que o emissor
deseja fazer com a “camaleoa” em questão, e, para tanto, é necessário embarcar na
“canoa” que os poderá levar para bem perto, entre as estrelas — expressão figurada
que daria conta de um estado mutuamente muito bom, prazeroso, satisfatório.
A designação de “agitador cultural” atribuída a Caetano Veloso é bastante
propícia ao tratarmos daquela que foi sua primeira e, até então, única experiência
como diretor no contexto da sétima arte. Em 1986, foi lançado o filme “Cinema
Falado”, assinado pelo cancionista baiano.
Diferentemente do processo convencional de muitos cineastas que são
movidos por uma inspiração — somada, é claro, à uma capacidade e formação
inerentes — e que, com uma dedicação praticamente exclusiva, logo em seguida
passam a trabalhar na construção de um roteiro, escolha de elenco, trilha sonora e
etc., ainda que isto, por vezes, possa levar anos a fio, o filme de Caetano Veloso é
fruto de um desejo até certo ponto reprimido que remonta sua infância, passa pela
!142
sua juventude, suas escolhas ao adentrar o cenário artístico e permeia a produção
de seus quase vinte anos de carreira à data.
Confessadamente, a inspiração vem de uma canção — e todo o seu contexto
—, inserida num filme, e também uma obra literária. Assim, “Cinema Falado” é fruto
de uma filtragem a partir de uma mistura sinestésica de peças artísticas de
diferentes setores. Nesse sentido, Caetano Veloso explica:
Quando foi nessa altura, eu, depois de fazer vários projetos que não
levei adiante, me surgiu a ideia de fazer. Eu vi, no filme do Rogério
Sganzerla, a Aracy de Almeida cantando a música do Noel: Não tem
Tradução, em que ela fala: “o cinema falado é o grande culpado...”.
Quando eu ouvi essa frase, com as imagens, assim, eu logo pensei
na ideia de um filme que fosse assim, em que as pessoas falassem,
como no livro “Três Tristes Tigres”, de Cabrera Infante. Foi uma das
primeiras ideias que me vieram. Eu pensei, podia ser um filme assim.
(VELOSO, 2003)
Antes de tratarmos propriamente do filme em questão, esta múltipla
inspiração soa bastante reveladora acerca do comportamento de Caetano Veloso
em relação às artes como um todo, e, particularmente, no que tange seu modo de
lidar com a cultura — com receptor, intérprete e, a partir disso, autor.
Em primeiro lugar, o filme de Sganzerla mencionado por Caetano sem seu
comentário é o curta-metragem “Noel por Noel” (1981), de Rogério Sganzerla,
cineasta que figura entre os grandes nomes do “Cinema Marginal” brasileiro,
responsável também, dentro outras obras, por “O Bandido da Luz vermelha” (1968)
um dos mais marcantes filmes brasileiros de todos os tempos, o qual veio a ser
indicado pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.
O samba Não Tem Tradução (1933), de Noel Rosa, e interpretado por Aracy
de Almeida, é colocado pro Sganzerla justamente como trilha sonora do trecho final
da cinebiografia, permeado por imagens de objetos pessoais, cartas e fotos do
sambista carioca. Mas, a influência do samba em questão em relação ao “Cinema
Falado” de Caetano extrapola o contexto específico do filme de Sganzerla e remonta
a obra de Noel Rosa, e mais especificamente, o contexto de produção da canção em
questão.
Não Tem Tradução é um samba marcado por um teor praticamente de
protesto em relação à absorção de elementos de culturas estrangeiras — mais
especificamente, americanos — pela brasileira. Nesta esfera, o cinema americano
!143
do fim dos anos 20 — e, em especial “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland,
filme que marcou a introdução de falas em obras cinematográficas — é escolhido
por Rosa como uma espécie de bode expiatório, que sintetiza esta relação
intercultural tão mal vista por muitos na época.
Fazendo jus à alcunha de “cronista da vila”, Noel Rosa anuncia na letra de
seu samba ter encontrado “o grande culpado da transformação” de uma série de
elementos atrelados a uma tradição genuinamente brasileira.
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançando o Fox-Trote
[...]
Amor lá no morro é amor pra chuchu
A gíria do samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone...
Conforme é claramente expresso nos versos da canção, todo um vocabulário,
suas gírias e expressões específicas, desde uma simples saudação “alô boy” —
num literal aportuguesamento da expressão Hello, até a expressão de amor “I love
you” — passando pela predileção por um estilo de dança genuinamente americano
como o “Fox-trote” — em síntese, Noel Rosa legitima uma superioridade do nacional
em relação ao estrangeiro, dentre os vários argumentos — marcados pela fina ironia
característica de Noel —, pelo fato de que todo um jeitinho brasileiro tão nosso e
diferentemente de qualquer outro, literalmente, “não tem tradução”.
Somando-se a esta dose de ufanismo protecionista via canção e cinema, vem
a literatura: o romance “Três Tristes Tigres” (1964), do cubano Guillermo Cabrera
Infante, ninguém menos que o homem que foi considerado o mais tenaz opositor de
Fidel Castro.
Escrita durante o exílio londrino de Infante, a obra é marcada pela
experimentação estética. A começar pelo próprio título, que é composto por um
trava-línguas famoso em espanhol, já nos é adiantado o tom da narrativa: as vidas
até certo ponto entrelaçadas das diversas personagens ligadas ao famoso bairro de
Havana chamado La Rampa. Um conjunto de arrojados jovens intelectuais que
estabelecem uma convivência ao vagar entre as sortes e reveses da noite cubana
pré-castrista, como assíduos frequentadores dos cabarés, e estabelecendo longos
diálogos entre si.
!144
Trata-se, indiscutivelmente, de um romance fragmentário e polifônico em que
ganha destaque a oralidade, nos vários diálogos que tematizam assuntos como o
passado, a vida, a música, a mulher e Cuba. Constituído por pequenas narrativas
que se somam, o romance acaba também por se colocar como um mosaico da plural
realidade cubana num contexto anterior a Fidel Castro, salpicada de elementos de
outras culturas, portanto.
Nélida Piñon, escritora e membra da Academia Brasileira de Letras, assina a
orelha do livro de Infante, e comenta que a obra, representa para o autor “forçado a
abandonar a ilha na década de 1960” um meio pelo qual ele “retorna a ela através
da memória e da profunda melancolia”, e discorre:
[...] Três Tristes Tigres, na linha de frente da modernidade criativa do
nosso continente, é exemplo desta transfiguração estética. Sua
estrutura, densamente fragmentada, propicia mudanças abruptas,
metamorfoses, o jogo radical da palavra. A presença irradiadora do
seu bisturi paródico, do humor feroz com que golpeia a condição
humana. Nas suas páginas romanescas, Cabrera Infante multiplica e
mitifica Havana, a fim de suas peças se encaixarem, formando um
mosaico que, visto de longe, ou de perto, tem como sustentação
antropológica a fascinante superfície daquela urbe. De uma cidade
em que a fabulação do autor busca subsídios para fazer desembocar
sua fascinante urdidura inventiva. A exuberância descritiva de
Cabrera Infante é sutil e acumulativa. Não se pode perder uma única
palavra de uma formulação que em sua radicalidade descarna o
verbo para que seus personagens, arrogantes e desiludidos,
sangrem a qualquer hora do dia. Graças a uma peculiar estratégia
narrativa, rompe-se a insularidade caribenha. E logra o escritor situar
Cuba no epicentro nervoso do mundo. Enquanto a imaginação
insubordinada rastreia as vertentes culturas existentes e alia-se a
elas. Esse autor destaca-se no panteão das Américas. É, sem
dúvida, um narrador universal.
Marcado por sua elaboração “densamente fragmentada”, o romance de
Cabrera Infante se coloca como um fator que “multiplica e mitifica” a cidade de
Havana — terra-natal de Infante —, por meio de uma infinidade de personagens,
“arrogantes e desiludidos”, que convivem e se relacionam, deixando “sangrar”, ao
mesmo tempo, peculiaridades humanas por excelência, e, caracteristicamente
cubanas, de um contexto pré-castrista.
Música popular brasileira, ufanismo, “cinema marginal”, literatura cubana,
oposição a uma ditadura. Cultura em movimento. As influências marcam o tom de
“Cinema Falado” e já adiantam bastante de seu conteúdo. Aliás, nesse sentido, a
sinopse diz muito a este respeito:
!145
O experimental se mescla ao documental. Textos para serem ditos:
de prosa e de poesia, de filosofia, escritos pelo próprio cineasta ou
por seus escritores prediletos. Pessoas de quem ele gosta, atores
com quem convive. Exercícios de som e de fotografia, um pouco de
dança e de teatro. Lugares onde mora, na realidade ou na
lembrança. 54
Se há uma classificação totalmente pertinente que possa ser dada ao filme de
Caetano, é justamente “experimental”. Amante de cinema, e dotado de uma
personalidade reconhecidamente camaleônica, Caetano ousa trilhar a contramão do
estilo hollywoodiano convencional e opta voltar às suas origens, seus primeiros
contatos com a sétima arte, ainda em Santo Amaro, totalmente atreladas ao cinema
europeu classificado como “de arte”.
Assim, a ficção de “Cinema Falado” está mais relacionada a uma espécie de
confissão artística, a qual, de fato, é marcada por uma perspectiva “documental”. No
fim das contas, é o próprio Caetano — numa dimensão profundamente pessoal —
que se revela por meio dos “textos, “pessoas”, “exercícios”, “dança”, “teatro,
“lugares”, enfim, da obra fílmica constituída a partir da soma de todos estes
elementos.
Ramos (1997) comenta e analisa detidamente alguns dos principais aspectos
do filme em questão:
Realizado em ritmo de quem compõe uma canção, Cinema Falado
traz para a tela um universo pessoal: seu “velho e vasto estranho
reino”. Dentro desse universo, o filme caracteriza-se por ser uma
obra de textos e de falas que se sobrepõem. Caetano diz não ter
escrito um roteiro, mas sim textos para serem lidos. O filme foi
concebido a partir de programas de entrevistas, “assistindo ao TV
Mulher nas horas de insônia matinal” e com a idéia de que “assistir a
gente falando interessa sempre”. No horizonte, encontra-se a nítida
influência de Godard e a maneira através da qual este, segundo
Caetano, “mescla leituras e declarações às suas quase-histórias”. É
na proximidade com a linha de filmes em primeira pessoa, hoje uma
tendência forte no cinema documental (e também ficcional), que
Cinema Falado pode ser visto. Quando isolados entre si, trazem
manifestações de sensibilidade e do gosto estético do diretor, que
deixa de exprimir-se através da forma que mistura letra e música
para utilizar-se de recursos audiovisuais. Os planos e a fala fluem
como as longas canções dissertativas, que Caetano costuma colocar
(em geral não mais que uma) em cada disco. Um cinema de textos,
de citações, em que seus amigos Regina Casé, Antonio Cícero,
Paulo César Souza, Hamilton Vaz Pereira, Gilberto Gil, Dorival
Caymmi, Júlio Bressane, Rogério Duarte, Felipe Murray, seu filho
Moreno, sua então namorada Paula Lavigne, sua ex-mulher Dedé,
Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/filme_interna.php?id_filme=4]. Acesso em 22 de
fevereiro de 2014.
54
!146
sua mãe dona Canô e seu irmão Rodrigo Veloso recitam, cantam ou
devaneiam. Thomas Mann, Heidegger, Guimarães Rosa, Godard,
Fellini, Freud, Fidel Castro, Velásquez escorrem da boca dos amigos
e familiares em primeiro plano. (RAMOS, 1997, p.560)
De fato, a organização do filme é marcada pela poeticidade do ato de
composição de uma canção — letra e música. Praticamente todas as cenas que
constituem o filme parecem ter sido concebidas a partir da música que as envolve.
Há uma preocupação com a conexão entre o assunto da fala e o conteúdo da
canção — seja letra, melodia, estilo ou época. No entanto, esta pretensa conexão
não se dá exatamente pela similaridade, mas, na grande maioria das vezes, pelo
contraste, a oposição, que acaba por transformar a narratividade das cenas em
paradoxos. Isso, de certa forma, não permite uma concentração de quem assiste
apenas na imagem, tendo em vista que acaba a produção de um certo
estranhamento, mas uma apreciação múltipla — que, como todo paradoxo,
demanda análise e interpretação para ser decifrado —, que culmina numa
experiência sinestésica, planejada pelo diretor.
A este propósito, é o próprio Caetano quem explica:
Imagine-se o filme de um estreante anônimo que contivesse uma
longa discussão crítica sobre a fala no cinema (e sobre o cinema no
Brasil) encenada como um diálogo amoroso entre uma mulher e um
rapaz, sob música de Walter Smetak; um texto de Thomas Mann
sobre casamento e homossexualidade dito em alemão por um jovem
caboclo numa praia do Rio, sob música de Schoenberg […]; um
diálogo de Sansão e Dalila, de Cecil. B. DeMille, dito, em tradução
brasileira, pelo casal que fala de cinema […] enquanto se ouve a
versão brasileira da “Canção de Dalila”, cantada por Emilinha Borba.
(VELOSO, 2005: p. 206-207)
A partir destes paradoxos em termos de imagem, texto e trilha sonora,
desvela-se um comentário crítico acerca de um povo e de uma cultura em formação
— o brasileiro —, e marcado pela pluralidade.
As palavras de Mann — escritor alemão — recitadas ao som da música
erudita do compositor austríaco Schoenberg, mas não por um europeu, mas por um
caboclo, típico brasileiro, que estabelece a oposição em relação a toda esta
atmosfera inerente a todo o desenvolvimento do primeiro mundo, berço da
civilização e do conhecimento.
Da mesma forma, mas em oposição, também é recitado um diálogo do filme
épico “Sansão e Dalila” (1949), por um casal de brasileiros que discute assuntos
!147
relativos à sétima arte, tendo como trilha sonora a versão em português da canção
principal do filme, cantada por aquela que foi considerada a “rainha do rádio” e que
ganhara popularidade justamente ao interpretar marchinhas de carnaval.
Estes dois casos e tantos mais contidos no filme são expressões artísticas —
literatura, cinema, música — que dão conta da miscigenação do povo brasileiro e
sua respectiva cultura.
Não bastasse a mescla de setores da arte e comunicação até aqui citados, a
inspiração de Caetano veio por meio de um “programa de entrevistas”, a televisão
também permeia a concepção do filme.
De fato, “Cinema Falado” tem muito em comum com muitas das “longas
canções dissertativas” compostas por Caetano Veloso — as quais, ao mesmo
tempo, dão prova de sua erudição e de seu caráter crítico, político, em geral, mas
também, fazem com que Caetano seja alvo de críticas ou até mesmo se torne base
de piadas que o satirizam, tomando-o como um pretenso pseudo-intelectual
verborrágico55 em qualquer manifestação.
Independentemente disso, ao reunir amigos e familiares que leem ou recitam
textos de alguns de seus autores prediletos, ao som de canções também de seu
gosto, e construindo os paradoxos mencionados, Caetano Veloso revela muito de si
em “Cinema Falado”, e veicula por meio deste um comentário crítico acerca de arte
e cultura, em termos de oposição entre primeiro e terceiro mundos, produtor e
receptor, dominante e dominado e traz à tona novamente a discussão do contexto
da canção de Noel Rosa, mas num sentido de afirmação e não de crítica em relação
não só ao contato, mas ao apreço e à absorção de elementos de outras culturas.
Obviamente, sua intenção não fora mercadológica ao dirigir um filme, no
sentido de esperar salas de cinema lotadas, filme em cartaz na maioria dos grandes
cinemas do país, sucesso de bilheterias e um grande lucro para seu idealizador.
Mas, apenas um exercício, literalmente aventurar-se, partindo de sua paixão pelo
cinema, criando uma obra fílmica que expressasse seu ponto de vista, e levasse
A esse respeito, Caetano Veloso, ironicamente, apenas rebateu afirmando: “Não é tão mal assim
ser um pseudo-intelectual de miolo mole. Talvez não seja propriamente pior do que ser um verdadeiro
intelectual de miolo duro.” Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=CBjfFRIieSs — 0;09 —
0:18]. Acesso em 11 de abril de 2015, às 23:31h.
55
!148
(a)o público — grande ou pequeno — (a) uma reflexão, seja pela identificação, seja
pelo estranhamento — pelo agrado ou pela provocação.
E, para a compreensão do que é discutido no filme, exige-se também um
público com uma certa bagagem de cinema, de música, de literatura, enfim, de uma
opinião formada acerca de sua posição neste universo pós-moderno e multicultural.
Em certa medida, Caetano, em “Cinema Falado” retoma a prática
antropofágica empregada por Bressane em “Tabu” e, ao colocar um texto de um
escritor alemão lido por um “caboclo” de um sertão brasileiro, tendo como trilhasonora a adaptação de uma canção americana, interpretada por Emilinha Borba,
Caetano faz o mesmo que Bressane, ao colocar a cena das nativas dançando ao
som do carnaval carioca, expressando o fruto do devorar e do digerir o estrangeiro,
aclimatando-o à esfera nacional.
No entanto, apesar de já ter se revelado tanto na posição de ator e diretor no
âmbito do cinema, em 2009 o cineasta Fernando Grostein Andrade lançou “Coração
Vagabundo”, longa-metragem sintetizado na frase contida na capa do mesmo: “Uma
viagem com Caetano Veloso”.
Andrade acompanhara Caetano Veloso por dois anos durante a turnê do
álbum “A Foreign Sound” [2004] pelo Brasil, Estados Unidos e Japão de uma
maneira tão próxima a ponto de reunir material suficiente para produzir este
documentário tão revelador acerca do artista baiano, principalmente no que tange
sua esfera pessoal.
Acerca do filme, a sinopse, apesar de sintética como de praxe, é bastante
expressiva no que tange o conteúdo do mesmo:
Um Caetano Veloso na intimidade, despido em tudo (até
literalmente), contando piadas, falando sobre suas alegrias,
angústias e tristezas. É assim que o cantor e compositor baiano
poderá ser visto no documentário Coração Vagabundo, de Fernando
Grostein Andrade. O longa, além de boa música traz momentos
felizes do artista Caetano, intercalados com reflexões tristes do
homem Caetano. Todo o material foi captado pelo cineasta Fernando
Grostein Andrade em São Paulo, Nova York, Tóquio e Kyoto durante
a turnê´ A Foreing Sound. O filme tem participações especiais dos
cineastas Pedro Almodóvar e Michelangelo Antonioni, da modelo
Gisele Bündchen, e do músico David Byrne. 56
Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/filme_interna.php?id_filme=3]. Acesso em 13 de
abril de 2015, às 22:20h.
56
!149
No que diz respeito ao cinema, “Coração Vagabundo” contém a participação
de dois grandes nomes dessa área: o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, e o
italiano Michelangelo Antonioni.
Num dado momento do filme, Caetano fala com Andrade, num tom quase que
de brincadeira, pelo fato de que ele terá de ficar em silêncio a fim de descansar a
voz, após ter feito um show num horário pouco convencional, no meio da tarde. Em
meio a este pedido, Caetano comenta:
[...] Tenho que ficar calado agora. Você vai fazer agora um filme de
Bergman: “O Silêncio”. E outro de Antonioni comigo. Aquele cara
calado, câmera parada. Uma parede e uma cara de uma pessoa.
Antonioni. Eu acho que o Antonioni é divino. Ele tem... Pelo menos
dois filmes são obras-primas: “L’ avventura” e o “Passageiro
Profissão Repórter”. No “Passageiro Profissão Repórter” tem aquele
plano sequência-final que é... ‘Cê já viu esse filme? Porque tem um
plano-sequência que a câmera começa na cara do Jack Nicholson,
ele deitado na cama assim, dormindo, e a câmera então vai andando
pelo quarto, sai pela janela, vira assim, e sai pela janela mesmo.
Caetano compara sua situação de silêncio a filmes marcados por esta
temática — no que diz respeito à sua concepção e elaboração. A começar pelo filme
sueco do diretor Ingmar Bergman “O Silêncio” (1963), que conta a história de duas
irmãs hospedadas num hotel num país europeu não especificado, em meio a um
contexto de guerra. Ester é o nome da irmã mais velha, marcada por um caráter
culto, que é tradutora de livros e sofre de uma doença terminal. irmã mais jovem, a
bela Anna, é marcada por um aspecto carnal e lascivo até mesmo em decorrência
de sua juventude e beleza. Talvez, por isso mesmo, Anna negligencia
completamente seu filho, Johan, um garoto de aproximadamente doze anos de
idade, o qual convive predominantemente com o silêncio ao passar os dias vagando
sozinho pelo hotel praticamente vazio. Bergman, a partir das duas irmãs, constrói
uma clara oposição entre espírito (Ester) e corpo (Anna).
Ao falar de Michelangelo Antonioni, a quem Caetano caracteriza como
“divino”, são citados dois de seus filmes, considerados pelo cancionista baiano
“obras-primas”. O primeiro deles é “L’avventura” — em português, “A Aventura” —
(1960), drama que inicia a “trilogia da incomunicabilidade”, com os filmes “A
Noite” (1961) e “O Eclipse” (1962). Já o segundo, sobre o qual Caetano se detêm
mais, é “O Passageiro — Profissão Repórter” (1975), que tem como protagonista
David Locke — interpretado por Jack Nicholson —, um jornalista que, enfadado em
!150
relação à sua própria vida, ao cobrir uma guerrilha na África resolve assumir a
identidade de um colega seu, logo após a morte deste. Este fato fará com que David
se envolva numa perigosa trama.
Caetano comenta detalhadamente uma das cenas que melhor expressam
este vazio existencial do personagem David Locke, e, curiosamente, esta se coloca
como uma síntese do cinema de Antonioni, e também ecoa numa canção escrita por
Caetano justamente
em homenagem ao cineasta italiano. A canção é intitulada Michelangelo Antonioni
(2001)57 e está contida no álbum “Noites do Norte” (2001).
Visione del solenzio
Angolo vuoto
Pagina senza parole
Una lettera scritta sopra un viso
Di pietra e vapore
Amore
Inutile finestra
A canção de Caetano Veloso retrata a atmosfera característica da obra do
cineasta italiano em questão, trazendo à tona, inclusive, alguns dos principais
elementos que a compõem. Ganha enfoque, na letra, uma ideia de ausência,
construída a partir de imagens como o “silêncio”, o “vazio”, uma “página” em branco,
“sem palavras”, e até mesmo “um rosto” que não é constituído de carne, osso, pele e
os demais elementos comuns de sua configuração (olhos, boca, nariz, orelhas...),
mas, apenas “pedra” e “vapor”.
É como se as imagens refletissem, mimetizassem o vazio existencial tão
ressaltado por Antonioni em seus filmes, como fruto de sua leitura das relações
interpessoais. Aliás, fazendo jus a estas, somado ao caráter abstrato e sinestésico
das imagens, o “amor” — sentimento o qual por excelência constituiria a interrelação entre as pessoas — é definido poeticamente como uma “inútil janela”, a qual
provavelmente é assim caracterizada por propiciar uma visão do nada, algo sem
sentido e que não causaria qualquer reação a quem porventura olhasse através
dela.
Em certa medida, podemos relacionar estas imagens Pa cena de “O
Passageiro — Profissão Repórter” descrita por Caetano Veloso, desde o que tange o
Visão do silêncio / Canto vazio / Página sem palavras / Uma carta escrita acima de um rosto / De
pedra e vapor / Amor / Inútil janela (tradução nossa).
57
!151
personagem David Locke no geral, até mais especificamente o “plano sequência
final” revelado pela câmera que encerra o filme.
Em “Coração Vagabundo”, Antonioni aparece junto de sua esposa, frente ao
computador, emocionado, ouvindo a canção que Caetano lhe fizera.
O outro cineasta que participa de “Coração Vagabundo” é o espanhol Pedro
Almodóvar. Este, mais atrelado ao círculo de convivência dos amigos de Caetano,
em seu depoimento, define a proximidade que tem com artista baiano afirmando: “Yo
me siento mucho como um Hermano más de Caetano, como si fuera mi hermano
mayor”58.
Além disso, Almodóvar comenta a participação de Caetano em seu filme “Fale
com Ela” (2002). Neste, Caetano, numa cena, interpreta ao vivo a canção
Cucurrucucu Paloma (1954), de Tomás Mendes.
A canção, peça bastante famosa do cancioneiro em língua espanhola, tem
uma letra que se coloca como expressão do sofrimento de um homem separado de
sua mulher amada pela morte, conforme consta em versos como:
Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando
Esta atmosfera dramática, marcada por um tom de desconsolo é bastante
propícia considerando o enredo do filme. O personagem principal é Benigno Martín,
um enfermeiro que mora num apartamento situado exatamente na frente de uma
academia de balé comandada por Katerina Bilova. Martín acompanha atentamente,
de sua janela, os ensaios tendo sua atenção voltada especialmente para uma das
bailarinas: Alicia Roncero. Esta personagem, após sofrer um acidente de carro,
acaba internada no mesmo hospital em que Martín trabalha. Estando em coma,
Alicia é cuidada por Martín com uma atenção especial e que vai muito além do
convencional, em se tratando de um enfermeiro.
Eu me sinto muito como mais um irmão de Caetano, como se ele fosse meu irmão mais velho.
(32:01 — 32:05)
58
!152
Acerca da escolha, tanto da canção, quanto de Caetano para interpretá-la,
Almodóvar comenta:
Los momentos musicales, para yo estar seguro de que el público
entiende que este hombre llora, tenía que poner algo que a mí me
hubiera provocado a las lágrimas. Y el lo cual confiara yo también en
que podia provocarle a la APREZADOR esa emoción, una emoción
absoluta, uma emoción NÍTIDA. Pero, como yo recordaba, que
mientras escribía yo ya había llorado mucho mientras escribía Habla
com Ella oyendo Cucurrucucu Paloma, estava seguro que poniendo
a Caetano en vivo. Claro, a Caetano cantándolo, porque necesitaba
que fuera uma sensación muy directa, y uma sensación de corazón a
corazón, de piel a piel, de ser humano a ser humano, de que era algo
vivo. Y además también esa espécie de embellezo y de fascinación
com que todas las personas que están a la fiesta deliran. Eso, se tu
haces un play-back o pones un disco, la gente no mira dese modo.
Entonces, puse a Caetano como, como te decía yo, porque era lo
que más seguridad me dava en que iba a provocar uma emoción tan
grande que todos los personajes romperian en lágrimas.
O cineasta espanhol praticamente explicita a maneira como trabalha com
determinada cena, tendo como objetivo causar uma emoção específica em quem
assiste ao filme. Para que fique claramente expressa a tristeza do personagem que
chora, Almodóvar afirma que escolhe algo que lhe tenha comovido primeiro, que lhe
tenha causado pranto. No caso, com a clara intenção de expressar algo “de coração
a coração”, não poderia ser um “play-back” — talvez pela atmosfera artificial que se
impusesse —, mas a interpretação ao vivo é que conseguiria transmitir, expressar
este sentimento de uma forma mais eloquente — tendo em vista que na cena
específica, o personagem não diz uma só palavra, apenas expressões faciais.
Caetano, para Almodóvar, era quem mais lhe dava certeza no que diz respeito a
provocar uma emoção tão forte a ponto de fazer todos romperem em pranto, desde
os atores em cena, até possivelmente os espectadores que assistissem ao filme.
Em se tratando de uma canção em espanhol, que já foi gravada inúmeras
vezes, pelos mais variados interpretes, o fato de Caetano Veloso ser escolhido pelo
diretor revela o alcance de sua interpretação, independentemente do idioma.
Desse modo, podemos admitir que a relação de Caetano com o cinema —
seja o nacional, ou internacional — se dá pela mescla de autor, intérprete, ator,
diretor, enfim, fazendo jus à personalidade deste artista que tem se dedicado a “criar
confusões de prosódia / e uma profusão de paródias” literalmente como “um
camaleão” dentro do cenário artístico brasileiro.
!153
4. UM CANTO POR TODOS OS CANTOS: A VOZ DO CAMALEÃO
“Quando você me ouvir cantar
Venha não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo
Deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar”
(Caetano Veloso, Como Dois e Dois)
O apreço de Caetano Veloso pelo ato de cantar, entoar uma canção, já foi por
ele reiteradamente declarado ao longo dos anos literalmente em prosa e verso e
vem sendo demonstrado pelo próprio exercício de sua função.
Versos como “Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar”59, “Cantando eu
mando a tristeza embora”60, “Eu quis cantar / Minha canção iluminada de sol”, “Que
tenho a dar? / Só Tenho a voz / Cantar, cantar, cantar”61, “Me deixa cantar, me deixa
cantar, me deixa cantar” 62, “Por isso é que eu canto / Não posso parar”63, para muito
além da ficcionalidade inerente à letra da canção, são declarações acerca deste
deleite vertido em hábito.
E talvez justamente o gosto por cantar ajude a explicar por que Caetano
Veloso manifeste por meio de canções seu caráter plural, explorando ao máximo o
leque de opções desta forma de composição em termos de expressividade. Nesse
sentido, é Wisnik quem afirma:
As canções de Caetano falam de praticamente tudo: é difícil pensar
num tema que elas não tenham aflorado de alguma forma; é difícil
lembrar um gênero ou setor da música popular que elas não tenham
revisitado com suas interpretações. A aplicação de Caetano Veloso
ao campo da canção, com suas intervenções deslocantes, pontes
inesperadas, e sua homenagem permanente à força radiosa do que
é belo e forte, faz da sua obra um comentário muito amplo do mundo
através das inumeráveis refrações da palavra cantada. (WISNIK,
1994, p.8)
59
VELOSO, Caetano. Como Dois e Dois (1971)
60
VELOSO, Caetano. Desde que o Samba é Samba (1993)
61
VELOSO, Caetano Veloso. Sou Seu Sabiá (2000)
62
VELOSO, Caetano. Não Enche (1997)
63
VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978)
!154
Ao tratarmos das “canções de Caetano”, esta designação extrapola os limites
da obra autoral do cancionista baiano, e engloba também todas as canções de
outros autores por ele cantadas ao longo destas quase cinco décadas de carreira.
Assim, a partir do comentário de Wisnik desvela-se uma das faces mais
importantes de toda a atuação artística de Caetano Veloso: o caráter múltiplo, vário
de “suas interpretações”. Mais do que interpretar suas próprias composições — o
que por si só já seria louvável e de uma expressividade ímpar — Caetano também já
se consolidou como um dos grandes intérpretes não só da canção popular brasileira,
mas também de cancioneiros internacionais dos mais diferentes tempos, estilos e
espaços.
De fato, ao voltarmos nosso olhar não só para a obra, mas para a atuação de
Caetano no campo da canção, realmente encontramos uma grande dificuldade no
que diz respeito a “lembrar um gênero ou setor da música popular” que não tenha
sido visitado por ele na posição de intérprete. Trata-se de um movimento contínuo
que põe em xeque os limites entre o tradicional e o popular, o velho e o novo, o
aclamado e o brega.
E é justamente ao construir este “comentário muito amplo do mundo” por
meio de suas interpretações que a face de agitador cultural de Caetano Veloso vem
à tona com grande força e de maneira exemplar.
Quando tratamos de interpretação, no âmbito musical, referimo-nos à
transformação de signos gráficos de um texto ou partitura numa modalidade
específica de som: música. Assim, para poder interpretar, o músico-intérprete precisa
ter toda uma compreensão prévia da obra que vai executar, seja num instrumento
musical, seja por meio de sua própria voz, cantando.
Schönberg ressalta a importância deste ato:
A interpretação é necessária para preencher a lacuna entre a idéia
do autor e o ouvido contemporâneo, [e depende] da habilidade de
assimilação do ouvinte em seu tempo (SCHÖNBERG, 1984, p.328).
Segundo Schönberg, a interpretação é justamente o elo estabelecido entre
dois extremos: as intenções de quem produz uma determinada obra e a
possibilidade de apreciação do público. Logicamente que esta vai ser condicionada
pelas múltiplas — todavia não ilimitadas — nuances que se desvelam a partir de
uma obra de arte, em termos de percepção e leitura.
!155
Chartier (2001) pontua que o fator que estabelece os limites entre a liberdade
de criação por parte do autor e as possibilidades para um leitor que estabelece uma
relação com o texto está ligado a contingências sócio históricas, marcadamente
variáveis e diversas entre si. Justamente por isso, este ato prescinde a
transcendência de limites e o estabelecimento de um processo, uma linha tênue ou
corda bamba, entre a restrição e a transgressão.
Nesse sentido, Caetano Veloso tem empreendido um literal malabarismo, que
vai ao encontro das palavras de Tatit (1996) acerca do “cancionista”,
especificamente no que tange sua “gestualidade oral”, tão relevante ao tratarmos do
intérprete:
O cancionista mais parece um malabarista. [...] é um gesticulador
sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes metaforizada com a
figura do malandro, do apaixonado, do gozador, do oportunista, do
lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e
cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte. (TATIT, 1996, p. 9)
Ao empreendermos um olhar mais atento a todo o repertório interpretado por
Caetano Veloso durante sua carreira, acabamos por nos deparar com um exemplo
bastante singular da “perícia intuitiva” citada por Tatit, e com um processo
praticamente contínuo de metaforização de uma figura que, como um camaleão,
transita com propriedade por entre os mais variados cenários da canção popular,
tendo já se estabelecido e ganhado o devido crédito por parte de seus audientes.
Em Caetano Veloso, a interpretação até passa pela mera reprodução —
nunca sem ser fruto de toda uma leitura, dotado de uma intencionalidade específica
—, mas, grande parte das vezes, vai muito além. Assim, a tentativa de delimitação
da face deste camaleão vai ao encontro das palavras de Hegel, que apregoa o fato
de que um intérprete dotado de “virtuosismo” e “genialidade”:
[...] em vez de se limitar à simples execução, pode atingir um ponto
em que [...] começa a compor, a preencher lacunas, a aprofundar o
que lhe parece demasiado superficial [...], enfim, a dar a impressão
de um esforço independente e de um trabalho criador (HEGEL, 1993,
p.527).
Conforme Hegel, a interpretação em Caetano Veloso pode ser sintetizada
como um “trabalho criador”, ou talvez “[re]criador”, à medida que passa por todo um
processo de adaptação e transformação da obra tomada por base, de modo a
!156
culminar numa apropriação tão singular que chega a quase por em xeque a
estabilidade da canção e a própria noção de autoria.
Nesse sentido, Almeida é quem afirma:
A canção está sujeita a transmutar-se constantemente através de
intérpretes e arranjadores. Nestes, leitura e autoria se bifurcam>
intérpretes e arranjadores são leitores da canção, mas leitores
produtivos que se tornam renovados pontos de origem e referência.
[...] Caetano Veloso, como ninguém, mostra a infinita instabilidade
estrutural da canção [...] Caetano as recria com tal originalidade,
deixando-lhes marcas tão pessoais, que acaba por desestabilizar a
própria noção de autoria. (ALMEIDA, 2008, p. 320)
As palavras de Almeida vão ao encontro das de Hegel, e reforçam o talento
de Caetano Veloso no que diz respeito a esta transmutação “constante” da canção.
No âmbito da interpretação vocal, Luiz Tatit (1996) ressalta a importância da
dicção do intérprete. Esta, por sua vez, é definida pelo autor como a “maneira de
dizer o que diz, sua maneira de cantar, de musicar, de gravar” (p.11), ou seja, esta
maneira tão singular de reprodução que beira a apropriação, tendo em vista o
caráter de entrega e de auto revelação contidos neste ato.
E é justamente a partir da dicção, numa análise bastante criteriosa, que Tatit
elucida com maior propriedade este aspecto vário de Caetano:
Caetano Veloso compreendeu todas as dicções da canção popular
brasileira. [...] Caetano, ao compor e interpretar, prefere viajar pelas
dicções dos outros cancionistas, encarnando seus dons. Gosta de
ser Jorge Ben Jor, Roberto Carlos, Chico Buarque, Carmem Miranda,
Vicente Celestino, Peninha, João Gilberto, gosta de ser um pouco de
cada um. Quando volta a ser Caetano, sua obra está miscigenada e
fortalecida por muitas dicções. Isso sem contar a constante absorção
que faz da música popular internacional, dos Beatles a Michael
Jackson, de Mick Jagger a Prince, passando por Bob Dylan, Bola de
Nieve, Bob Marley, Steve Wonder. (TATIT, 1996, p. 263)
Tatit literalmente ressalta a pluralidade de vozes contida na dicção, e,
portanto, na figura de Caetano Veloso, a ponto de se permitir cometer um excesso.
Mas, qualquer um que se proponha a uma análise mais detida das quase cinco
décadas de carreira deste cancionista baiano perceberá que não é exagero ressaltar
a mais que evidente abrangência de “todas as dicções da canção popular brasileira”.
Além de gostar de “ser”, dando vida ao assumir uma dicção similar, Caetano
Veloso como intérprete visitou os repertórios e deu voz à canções de todas estas
figuras citadas por Tatit, e também de inúmeras outras.
!157
Grosso modo, os intérpretes citados por Tatit podem ser divididos em três
grandes categorias: os nacionais, os de língua espanhola e os de língua inglesa.
As referências de Tatit se iniciam por figuras nacionais, compositores e
intérpretes contemporâneos de Caetano ligados ao contexto da canção popular
brasileira.
A primeira canção de Jorge Ben Jor que consta na discografia de Caetano
Veloso é Olha o Menino (1967), contida no álbum “Bicho” (1977). Depois, Quem
Cochicha o Rabo Espicha (1972), no álbum “Muito (Dentro da Estrela
Azulada)” (1978), Jorge de Capadócia, em “Qualquer Coisa” (1975) e Charles Anjo
45 (1969), em “Caetano Canta” (1994).
Em “Prenda Minha — Ao Vivo” (1998), Caetano abre o show com esta
canção, declarando, durante a introdução da mesma, num tom laudativo: “Domínio
Público, Jorge Ben, Fernanda Abreu, Racionais MC’s, Marinheiro Só, Miles Davis”,
nomes de outros artistas que interpretaram a canção, desde seu compositor,
passando por grupos de rap, um dos grandes nomes do jazz norte-americano e,
chegando ao “domínio público“, não em seu sentido judicial, mas no popular, devido
a uma desestabilização da noção de autoria dada a grande popularidade da peça
em questão.
Caetano participara, num dueto, da gravação de uma canção de bastante
sucesso de Jorge Ben, Ivy Brussel, em 1980.
O lançamento desta canção e desta parceria se deu em 1980, no programa
televisivo “Fantástico”, da Rede Globo. Literalmente num estúdio de gravação, em
meio a uma plateia composta apenas por mulheres, espalhadas pelo estúdio, Jorge
Ben, Caetano Veloso e a banda que os acompanhava, todos sem exceções vestidos
com roupa branca. A TV Globo repetiu este encontro memorável anos depois no
programa “Som Brasil: Jorge Ben”, numa clara expressão do sentido dos versos de
Caetano: “Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / O tempo não para e, no
entanto, ele nunca envelhece”. Apesar de ambos já com seus cabelos brancos e
com a presença de outros elementos que evidenciam a inexorável ação do tempo,
as vozes, os timbres e os sorrisos permanecem praticamente intocáveis — inclusive,
por cantarem exatamente no mesmo tom —, assim como a atitude e o
!158
posicionamento como artistas com suas carreiras completamente solidificadas e
resistindo a todas as possíveis intempéries.
Com Roberto Carlos, Caetano mantém uma relação de amizade desde os
anos 60, época em que ambos estavam inseridos em correntes distintas em meio à
cultura musical nacional: Caetano no Tropicalismo, e Roberto Carlos como um dos
ícones da Jovem-Guarda. Caetano gravara um dos hits mais famosos de Roberto
Carlos do contexto da Jovem-Guarda para uma série de discos que comemorava os
trinta anos do movimento, O Calhambeque (1964) — versão de Erasmo Carlos da
canção Road Hog, de John Loudermilk e Gwen Loudermilk —, em 1995. Também
gravara Fera Ferida (1982), no disco “Caetano” (1987) e Só Vou Gostar de Quem
Gosta de Mim (1967) ao vivo no disco “Um Barzinho, Um Violão 2”, em 2009.
Mas, a amizade entre os dois rendeu duas canções em especial: Debaixo dos
Caracóis do Seus Cabelos (1971) e Força Estranha (1978). A primeira delas,
Roberto Carlos escrevera em homenagem a Caetano, durante os anos do exílio
deste. Na letra da canção, o autor vislumbra o cenário do retorno de seu amigo ao
Brasil, em especial, ao litoral de sua tão amada terra-natal, a Bahia:
Um dia a areia branca Seus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos A água azul do mar Janelas e portas vão se abrir Pra ver você chegar E ao se sentir em casa Sorrindo vai chorar
Conforme se pode depreender da letra, a cena narrada, de um retorno, pode
ser lida como uma alusão à volta de Caetano, e as referências a este se dão pela
ambientação, a situação e até mesmo por traços da aparência: os “caracóis” dos
“cabelos”, numa referência aos cachos característicos da imagem de Caetano nesta
época.
A segunda, por sua vez, Caetano escrevera em homenagem a Roberto
Carlos. A letra de Força Estranha, à moda dos sonetos de Camões acerca do amor,
se propõe a explicar o que é praticamente inexplicável objetivamente. No caso, tratase da motivação ou razão que “leva [alguém] a cantar” — caracterizada justamente
pela expressão que serve de título à canção.
!159
Em 2008, Caetano e Roberto Carlos fizeram um show em homenagem a Tom
Jobim, que fora registrado em CD e DVD: “Roberto Carlos e Caetano Veloso e a
música de Tom Jobim”. No disco, das dezesseis faixas, Caetano e Roberto
interpretam cinco canções solo, cada um, e seis duetos.
Em relação a esta divisão de repertório, Caetano fica com canções marcadas
por um tom dramático mais acentuado, as quais não são exatamente as mais
conhecidas ou as primeiras mencionadas quando pensamos no repertório de Tom
Jobim. São elas: Por Toda Minha Vida (1959) e O Que Tinha De Ser (1959). Além
destas, Caetano também canta Meditação (1960), Ela é Carioca (1964) e Inútil
Paisagem (1963) — canção também marcada por uma atmosfera dramática
bastante acentuada —, a qual, em especial servira de inspiração para Caetano na
composição de uma canção de sua autoria intitulada Paisagem Útil (1967), contida
no disco “Caetano Veloso” (1967). Já Roberto Carlos se encarrega das canções
mais populares do “maestro soberano”, tais como Eu Sei Que Vou Te Amar (1959),
Lígia (1972), Corcovado (1960) e Samba do Avião (1964). Em suma, trata-se de dois
dos maiores intérpretes da música popular brasileira reverenciando um dos
principais compositores desta.
Já em relação a Chico Buarque, Caetano Veloso, apesar de contemporâneo e
colega de profissão, mantém uma posição de reverência — talvez pelo fato de Chico
Buarque ser, além de cancionista, escritor, ficcionista. Na verdade, esta pretensa
rivalidade entre os dois surgira na época dos grandes festivais de música realizados
no fim dos anos 60, e passou também pela participação dos dois em programas de
TV como “Esta Noite Se Improvisa”.
Para muito além de um suposto antagonismo ou concorrência entre estas
duas figuras tão relevantes do âmbito da canção popular brasileira, o que de fato
permaneceu e se consolidou através dos anos foi uma grande amizade. Caetano
gravou algumas das canções de autoria de Buarque, compôs em parceria com ele, e
ambos já gravaram um disco juntos, registro de um show de 1972 realizado no
Teatro Castro Alves, em Salvador.
Especificamente neste álbum: “Chico e Caetano — Juntos e Ao Vivo” —
primeiro encontro “oficial” de Chico e Caetano registrado em disco —, Caetano dá
voz a algumas canções de Chico Buarque. São elas: Partido Alto (1972), Morena
dos Olhos d’Água (1966) e A Rita (1965).
!160
A versão de Caetano Veloso de Partido Alto (1972) é totalmente diferente da
original, de Chico Buarque. Para começar, esta canção, na voz de seu compositor, é
um samba, e com Caetano o ritmo é marcado por um andamento bastante
desacelerado, fazendo com que a canção perca a característica de samba, e, com a
ênfase na marcação do baixo, destaque o sentido de descrença ou desesperança.
Quando Caetano inicia seu canto, é possível notar um tom ou modulação de
sua voz — uma velocidade inferior à convencional, a ênfase nas vogais das palavras
de modo a prolongá-las —, as quais tornam sua emissão similar à de alguém que
está embriagado.
Esta característica é bastante propícia para esta canção, em termos de
interpretação, tendo em vista que a figura do “bêbado”, durante os anos da ditadura
militar, era utilizada como designação para pessoas com um comportamento
inapropriado ou inconveniente — na maioria das vezes, artistas, poetas e músicos
que ousavam vociferar contra os desmandos da sobriedade às avessas instaurada
do governo militar.
E, nesse sentido, a canção de Chico cai como uma luva: o tom de alguém
angustiado a ponto de estar descrente, possivelmente afogando suas mágoas na
bebida, e com isso, passando a falar o que provavelmente não devia ou poderia
enquanto sóbrio. O refrão motivador acerca do fato de que “Deus dará” é
literalmente colocado em xeque. Afinal de contas, as expectativas dos otimistas ou
dos que ainda têm fé se ligam a uma ação divina no sentido de resolução de seus
problemas. No entanto, a voz que entoa a canção, imersa num pessimismo ímpar,
se propõe a pensar não nesta sorte, mas no revés: “E esse Deus não dar?”
A partir desta conjuntura, o desabafo em questão se converte numa
interpelação que beira o conflito, não chegando a este apenas pelo fato de se tratar
de um monólogo. Neste, “Deus” é caracterizado como “um cara gozador”, e a “Jesus
Cristo” é reservada uma advertência em tom de ameaça: “inda me paga / um dia
ainda me explica” no que diz respeito à existência da voz poética. Esta, por sua vez,
se caracteriza, por um lado, como “cabreiro” e “batuqueiro”, nascido “na barriga da
miséria”, a saber, Rio de Janeiro, e como “um cara chato, desbocado e feio / pele e
osso simplesmente, quase sem recheio”, negativamente. Mas, apesar de todos
estes senões, também, por outro lado, não lhe falta força e ousadia, e ao ser
desafiado ou ter sua mãe ofendida, ao ser colocada “no meio” de qualquer
!161
discussão ou provocação, revela-se perigoso: “dou pernada a três por quatro / e
nem me despenteio”, conforme a confissão contida nos versos que seguem:
Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu pernas compridas e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia
Ou seja, se Deus lhe deu aspectos positivos, como “mão de veludo” e
“saudades” — atreladas a um contexto romântico — também lhe deu aspectos que
vão na contramão destes, atrelados a um caráter de malandragem, como: “malícia”,
aspecto da personalidade cuja aplicação é muito vária, o qual no entanto está
diretamente ligado a futebol e criminalidade. Aliás, é destes dois contextos díspares
que surge a possibilidade de se tornar “notícia” — seja como grande jogador ou
grande criminoso.
A interpretação de Caetano faz com que ele, intérprete, se transforme na voz
poética, assuma suas características e vocifere seu desabafo dentro do arranjo da
canção.
Ocorrem também duetos dos dois cancionistas, tanto em canções de Caetano
— Você Não Entende Nada (1972) —, quanto de Chico — Cotidiano (1971) e
Bárbara (1972).
As canções Você Não Entende Nada e Cotidiano são cantadas em
sequência, e a transição entre as canções ocorre sem qualquer interrupção, mas,
numa junção do verso final da canção de Caetano com o trecho do verso que abre a
canção de Chico, de modo a construir um novo verso: “E quero que você venha
comigo todo dia”.
Isto ficou tão marcado para os fãs de Caetano que no CD/DVD “Caetano
Veloso: Multishow Ao Vivo: Abraçaço” (2014), no qual Caetano interpreta a mesma
canção, é a plateia quem completa este verso criado junto a Chico. Caetano entoa o
fechamento de sua canção: “E quero que você venha comigo”, ao que, inicialmente
apenas a plateia, e depois também Caetano completa, num coro: “Todo dia”.
Além disso, os dois já chegaram a apresentar juntos um programa de TV, na
Rede Globo, chamado “Chico e Caetano”, no qual receberam muitas figuras do
cenário musical nacional e até internacional, com as quais fizeram duetos. Dentre
!162
estas, podemos destacar Tom Jobim (com quem Chico e Caetano cantaram Águas
de Março — ao que Tom, ao Piano, sozinho, entoara Coração Vagabundo), Paulinho
da Viola, RPM, Ney Matogrosso e até Mercedes Sosa.
Após estes, Tatit passa a citar figuras de outros estilos e épocas, os quais
Caetano revisitou com suas interpretações. A primeira delas é Carmem Miranda, a
intérprete que ficou conhecida pela alcunha de “Pequena Notável”, e que teve
alguns de seus maiores sucessos reinterpretados por Caetano.
Aliás, acerca desta figura notável — que já havia sido mencionada por
Caetano na letra de Tropicália — é o próprio Caetano quem comenta:
[...] Carmen Miranda surgia nestes discos como uma reinventora do
samba. Cheia de frescor e impressionantemente destra, ela, sem ser
sempre cuidadosa ou capaz na definição das notas, era um espanto
de clareza de intenções. A dicção rápida e a comicidade alegre no
trato com o ritmo faziam dela uma mestra, para além da própria
significação histórica. O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em
Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um
pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba
de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o
lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte
dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de
massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara)
quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto,
hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao
extremo) — aceitação que se dava por termos descoberto que tanto
a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser)
reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre
Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados.
(VELOSO, 1997, p. 268)
O comentário de Caetano Veloso acerca de Carmen Miranda engloba as
diferentes visões em diferentes momentos de sua vida. Parte de uma primeira visão
negativa, atrelada a uma certa reserva devido ao fato de esta se tratar de “figura
caricata”, mas chega à fase de reconhecimento de sua importância, tanto por suas
características específicas como intérprete, quanto pela ousadia de se lançar e
apresentar ao Brasil o contexto de “mass culture” americana que fora tão expressiva
no contexto do advento da Tropicália. Ora, o fato do sucesso em Hollywood que
inicialmente soava de uma maneira desagradável na verdade se revelara como uma
grande possibilidade em termos de enriquecimento e não negação da cultura
brasileira. Haja vista os elementos introduzidos por Caetano e Gil em suas canções
no festival de 1967, a vaias e em seguida a aclamação do público por elementos até
!163
então inéditos na canção popular brasileira, mas que ao serem introduzidos, com o
passar do tempo se consolidaram e são hoje característicos da mesma.
Além disso, Caetano em toda sua careira, tem mantido um diálogo muito
aberto e constante com a cultura de países de língua inglesa como os EUA e a
Inglaterra, interpretado canções neste idioma e até composto canções de sua
autoria também na referida língua. Ao fazer isto, Caetano está fazendo nada mais ou
menos que assumir a mesma postura que inicialmente criticava em Carmen
Miranda, e, com isso, provando o possível resultado positivo de uma mudança de
paradigmas, e que Narciso pode não achar feio o que não é espelho64, mas, pelo
contrário, pode encontrar belezas até mais vigorosas.
No show registrado em “Circuladô Vivo” (1992), Caetano interpreta a canção
Disseram Que Eu Voltei Americanizada (1940), de Vicente Paiva e Luiz Peixoto, que
foi sucesso na voz de Carmem Miranda.
O contexto em que a canção se insere originalmente se liga a uma fase de
grande sucesso da Pequena Notável em Hollywood, em musicais nos quais ela
falava e cantava em inglês. Após voltar ao Brasil, num de seus shows, quando
Carmen canta uma de suas canções em inglês, a reação do público é
unanimemente negativa: este passa a vaiar com uma veemência tal que faz com
que a intérprete deixe o palco, chorando.
Deste modo, Disseram Que Eu Voltei Americanizada se coloca como uma
resposta à altura da hostilidade sofrida por Carmen Miranda, e, apesar do título, num
discurso indireto, o que se deixa claro a entender, de modo direto é: “Eu Não Voltei
Americanizada”.
Aliás, nesse sentido, os versos desta canção de Paiva e Peixoto contém os
seguintes versos:
Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno
Eu posso lá ficar americanizada
Eu que nasci com o samba e vivo no sereno
Topando a noite inteira a velha batucada
Nas rodas de malandro minhas preferidas
Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you
Enquanto houver Brasil
Na hora da comida
Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu
Na contramão de seu verso “´É que Narciso acha feio o que não é espelho”, da canção Sampa,
ligada ao mito do personagem mitológico referido.
64
!164
Os autores da canção escreveram a letra na perspectiva de um possível
comentário de Carmen Miranda acerca do “veneno” e preconceito das pessoas que
julgavam que ela tivesse se americanizado apenas por ampliar sua carreira em
território estadunidense. O que, de certa maneira, traz à tona novamente o
preconceito em relação ao novo, ao estrangeiro, ao diferente, tão presentes na obra
e na atitude de Caetano Veloso.
Inclusive, Caetano citara a expressão contida no verso que fecha a canção de
uma forma praticamente paródica em Língua (1984), ironizando o sotaque de
Carmem Miranda na pronúncia em inglês de uma expressão tipicamente brasileira:
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
Ao incitar ao imperialismo característico dos EUA, Caetano põe em discussão
uma aspiração até certo ponto característica dos povos subdesenvolvidos e de
terceiro mundo — dentre os quais, o brasileiro — acerca de obter êxito tentando a
vida nos EUA, ou mesmo sofisticando seu vocabulário e modo de agir de acordo
com o “american way of life”, num jogo de aparências atrelado a uma suposta
posição de superioridade65.
No entanto, ao interpretar o hit que se consagrara na voz da Pequena
Notável, Caetano, numa execução a violão e voz, mantém exatamente o ritmo de
samba da gravação original, e transpõe o seu sentido do protesto de Carmen
Miranda para homenageá-la e também como uma espécie de justificativa ao seu
comportamento, sua atitude como cancionista.
Ora, Caetano também passara um tempo considerável num país de língua
inglesa, a Inglaterra. Logicamente, que não pelas mesmas razões que Carmen
Miranda. No caso de Caetano, foi uma imposição política, tendo ele sido exilado e
obrigado a partir para Londres. O fato é que seria terrivelmente empobrecedor não
considerar que as influências britânicas — que já tinham um peso considerável em
1967, com o lançamento de Alegria, Alegria — apenas aumentaram e vieram a
Aliás, nesse sentido, cabe citar outro hit de Carmen Miranda, intitulado “South American Way”,
ligado a esta temática.
65
!165
enriquecer ainda mais não só o trabalho de Caetano Veloso, como também sua
postura política de artista, o seu crivo crítico de formador de opinião.
Em relação a “Circuladô Vivo”, os dois álbuns anteriores de Caetano são,
respectivamente: “Estrangeiro” (1989) e “Circuladô” (1991). Ambos os discos contêm
canções de autoria de Caetano Veloso que trazem uma visão crítica muito realista,
quase que um protesto em relação a questões que permeavam Brasil da época.
Em “Estrangeiro”, a canção O Estrangeiro (1989) contém os seguintes versos:
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:
É um desmascaro
Singelo grito:
"O rei está nu"
Muito além da questão ficcional atrelada ao eu lírico do texto, temos a
confissão de quem se sente “estrangeiro” não pelo lugar — fator que permitiria esta
classificação com justiça, no âmbito da realidade —, mas pelo “momento”, pelo
contexto histórico, que faz com que um brasileiro não se reconheça como tal em seu
próprio território.
Já em “Circuladô”, a canção O Cu do Mundo (1991) traz uma triste definição
do Brasil — além do título — em versos como:
A mais triste nação
Na época mais podre
Compõe-se de possíveis
Grupos de linchadores
Um ponto que deve ser sempre considerado é que, Caetano, apesar de
cidadão do mundo por excelência, jamais abre mão de suas raízes e sua identidade
— sul-americano, brasileiro, baiano. E é justamente a partir deste aspecto identitário
tão fortemente presente em seu trabalho e, sobretudo, em sua postura, que Caetano
toma a liberdade de criticar com tanta veemência sua própria terra natal, sem que
isto se coloque como uma atitude antinacionalista, mas, pelo contrário, é
propriamente por um amor e respeito ao Brasil que estas análises e desaprovações
vêm à tona.
!166
Além da resposta em relação a uma suposta americanização, ou, mais
propriamente um ponto de vista que soa como exterior, Caetano interpretara outros
sucessos de Carmen Miranda, desde muito antes em sua carreira.
Num dueto com Gal Costa, Caetano interpretara No Tabuleiro da Baiana
(1936), de Ary Barroso, em 1980. Esta gravação consta no álbum “Aquarela do
Brasil” (1980), de Gal Costa. A intérprete em questão gravara este álbum inteiro
como uma homenagem ao centenário de Ary Barroso.
O casal de intérpretes baianos literalmente se delicia na menção dos mais
variados elementos atrelados especificamente à cultura regional baiana, desde a
culinária até o vocabulário específico, conforme os versos a seguir:
Vatapá, oi
Caruru
Mungunzá
Tem umbu
Pra ioiô
As palavras que constituem os versos acima transcritos desta canção de
Barroso estão ligadas a um vocabulário e são expressões de toda uma cultura
africana instaurada no Brasil, mais especificamente na Bahia. As menções iniciamse pela culinária, com a menção de pratos como “vatapá” e “caruru”, que tem por
base frutos do mar e o famoso óleo de dendê característico da culinária baiana.
Seguem com o “mungunzá” outro prato, agora doce, que tem como base a canjica, o
fruto “umbu” e a forma de tratamento característica dos escravos africanos para seus
senhores ou para as crianças do sexo masculino “ioiô”. Desse modo, a estrofe em
questão se coloca como um retrato fiel da cultura baiana, especialmente de seu falar
característico.
Em “Fina Estampa Ao Vivo” (1996), Caetano abre o show com O Samba e o
Tango (1937), canção lançada na voz de Carmen Miranda. A canção é classificada
como um samba-tango, por misturar características musicais e rítmicas destes dois
estilos tão peculiares. E a letra, por sua vez, tem por tema o encontro destes dois
gêneros, conforme o verso: “A hora é boa e o samba começou / E fez convite ao
tango pra parceiro”; A parceria em questão, que traduz a união ou mistura de
elementos tão característicos de culturas diferentes — a saber, a brasileira e a
!167
argentina — se dá na voz de um brasileiro, o qual se identifica, na letra, da seguinte
maneira:
Eu canto e danço sempre que possa
Um sambinha cheio de bossa
Sou do Rio de Janeiro
Ao interpretar esta canção, Caetano assume a posição da voz poética da letra
da canção, e esta identificação é plenamente justificável. Ora, Caetano, compositor
e intérprete brasileiro — atrelado, portanto, ao “samba” — fazia uma apresentação
de sua turnê do álbum “Fina Estampa”, no qual cantava grandes canções do
repertório em língua espanhola — sintetizado por um dos estilos mais característicos
deste cancioneiro: o “tango”.
O próximo artista mencionado por Tatit é ninguém menos que um dos maiores
ícones da música brasileira das décadas de 30 e 40, que também passou por este
filtro interpretativo de Caetano Veloso: Vicente Celestino.
Ora, consta já em “Tropicália ou Panis et Circensis” (1968), o disco-manifesto
do Tropicalismo e segundo da carreira de Caetano Veloso, a interpretação de
Coração Materno, canção de autoria de Vicente Celestino e que se tornou sucesso
na voz deste exatos trinta e um anos antes, em 1937.
É o próprio Caetano quem revela que este fato estava ligado a um “plano [...]
totalmente tropicalista”:
Na concepção do disco Tropicália ou Panis et Circensis havia um
plano, este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção
brasileira em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental
“Coração Materno”, um dos maiores sucessos de Vicente Celestino,
o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante
carreira remontava os anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de
sucesso, operetas e filmes, como o recordista de bilheteria “O ébrio”,
de 46. (VELOSO, 1997, p. 293)
A retomada de algo tão antigo já naquele contexto evidencia a característica
da proposta tropicalista que dizia respeito não a uma negação de todo o passado,
voltando os olhos para o futuro, mas também a recuperação de todo um valor ligado
às tradições do passado que já haviam caído no preconceito de serem encaradas
como ultrapassadas, passadistas ou mesmo bregas.
Caetano, em sua interpretação de Coração Materno, num tom que mescla o
caráter laudatório e o paródico, chega a tentar imitar os vibratos característicos da
!168
interpretação de Celestino. Mais do que uma mera tentativa de imitação, este fator,
por um lado reforça o caráter ultrapassado da canção, tendo em vista que, com o
advento da Bossa-Nova, o aspecto que passou a marcar a emissão dos cantores foi
justamente a contenção, que culminava em notas lisas e de intensidade bastante
baixa, quase num sussurro, e, por outro, exalta a beleza deste tipo de interpretação
— e das grandes vozes dos intérpretes — já não mais praticada naquele contexto.
No que tange as grandes vozes masculinas da canção brasileira, Caetano
revisitara outras figuras deste cenário. Pertencente ao mesmo contexto histórico, e
tendo sido sucesso na voz de outro grande intérprete brasileiro desta época,
Orlando Silva, Caetano Veloso também gravou a valsa Lábios Que Beijei (1937), de
Álvaro Nunes e Leonel Azevedo.
Esta característica atrelada a uma recuperação de um passado não se
apresenta apenas na sua fase tropicalista de Caetano, mas pode ser identificada em
vários outros momentos posteriores de sua carreira. Podemos citar como exemplo Peninha, outro dos nomes mencionados por Tatit em
seu comentário. Este é o autor de duas canções que se tornaram grande sucesso na
voz de Caetano: Sonhos (1977), no disco “Cores, Nomes” (1982) e Sozinho (1995),
no disco ao vivo “Prenda Minha” (1998), respectivamente, e que até trilhara uma
carreira como intérprete, sem grande sucesso ou prosseguimento.
Em meio à execução desta segunda canção, Caetano tece um longo
comentário que se coloca quase que como uma justificativa, uma explicação ao fato
de sua escolha por interpretá-la:
Tão bonitinha! Essa música é muito bonitinha. Eu ouvi a gravação da
Sandra de Sá, tocava no rádio sempre. Eu achava linda, e pensava
assim: próximo show que eu fizer, eu vou cantar essa música. Não
sabia nem de quem era a música. Aí, um dia eu ‘tava ouvindo uma
rádio dessas que dizem o os nomes dos autores da canção, aí o cara
falou assim, Sandra de Sá, Sozinho, de Peninha. Eu disse, porra, a
música é de Peninha? Aí é que eu vou cantar mesmo! Porque, olha,
veja bem, eu já ‘tava apaixonado pela música, a gravação de Sandra
era linda, já ‘tava decidido a cantar no próximo show que eu fizesse,
ainda fiquei sabendo que a música era de Peninha, aí, tinha tudo
mais a ver. Mas, um dia eu ‘tava no carro, com o rádio ligado, e ouvi
no rádio do carro a gravação dessa música com Tim Maia. Aí eu
desisti de cantar. E, no entanto, ‘tô aqui cantando ela. É porque eu
desisti mas eu não resisti. É que, bom, eu não ‘tô cantando ela, né?
Eu ‘tô apenas mencionando a canção. Porque a gravação de Sandra
é lindíssima, e a de Tim Maia, arrasadora. Mas, eu pensei assim:
bom, se eu cantar no meu show, as pessoas que veem ao meu show
!169
vão querer reouvir a gravação de Sandra e procurar a gravação de
Tim Maia.
O argumento explicitado por Caetano Veloso se resume ao gosto. Ele ouvira
a canção na voz de dois grandes intérpretes da canção popular brasileira, descobrira
ser de um compositor a quem Caetano admira e até já havia gravado anteriormente
uma canção. Soa inclusive interessante a forma blasé como Caetano se refere ao
trabalho de seus colegas Sandra de Sá e Tim Maia, afirmando não estar cantando,
mas apenas “citando” a canção, como se sua interpretação estivesse num nível
inferior à e seus colegas. No entanto, ao estar “cantando ela”, Caetano expressa o
fato e ter algo a acrescentar, um caráter pessoal e diferente que talvez ainda não
tivesse sido revelado nas interpretações “linda” e “arrasadora” dos outros intérpretes.
Prova disso é o sucesso que a pretensa mera citação de Caetano fez.
A gravação de Caetano Veloso de Sozinho tornou-se trilha de uma telenovela
de muito sucesso na época — “Suave Veneno”, da Rede Globo —, e fez um
sucesso estrondoso, tendo vendido mais de um milhão de cópias em pouquíssimo
tempo, e até ganhado uma versão Dance, remixada, passando também a ser
sucesso nas boates e baladas da época, sendo dançada pelos jovens na batida que
era sucesso, ainda na voz de Caetano.
A questão é que o estrondoso sucesso de Sozinho com Caetano Veloso
trouxe à baila um novo argumento à crítica que atacava o cancionista baiano: estaria
Caetano Veloso preocupado apenas em fazer sucesso com canções antigas já
lançadas por autores e intérpretes que não foram bem-sucedidos em suas carreiras,
tendo já caído no esquecimento? Haveria por parte de Veloso um interesse
puramente mercadológico na escolha das canções que ele interpretaria, visando ao
sucesso imediato, e, portanto, apenas ao lucro?
Ora, o próprio comentário de Caetano em seu show durante a execução de
Sozinho deixa claro que sua intenção não era promover um estouro de mercado,
mas apenas citar uma canção que lhe agradara, inclusive na voz de outros
intérpretes de bastante sucesso e relevância no contexto da canção popular
brasileira.
Em 2003 foi lançado o filme “Lisbela e o Prisioneiro” — adaptação fílmica da
peça teatral de Osman Lins —, com direção de Guel Arraes. Numa situação similar à
da canção de Peninha, Caetano Veloso interpretara a canção que serviu de tema
!170
para o par romântico que protagoniza o filme: Você Não Me Ensinou A Te Esquecer
(1979), de Fernando Mendes. Este é outro compositor e intérprete ligado a um
passado já naquela época, que fizera um sucesso considerável, mas, tendo entrado
para a categoria classificada como “brega”, tornou-se desconhecido para as
gerações posteriores — dentre as quais, a de jovens que apreciaram a interpretação
de Caetano Veloso a ponto de lhe atribuir também a autoria da canção.
Esta canção fez sucesso interpretada por seu compositor em 1979, e já havia
sido regravada por duplas sertanejas como Chrystian e Ralf, e Bruno e Marrone.
Mas, o sucesso que fizera vinte e cinco anos após o seu lançamento, na voz de
Caetano Veloso, foi algo até então sem precedentes em relação à canção. Inclusive,
esta versão foi indicada ao Grammy Latino como Melhor Canção Brasileira de 2003.
Se Caetano deu voz ao brega e passadista, gerando críticas, ele também as
recebeu por lançar compositores e estilos no âmbito da canção popular brasileira.
Ora, Caetano foi o primeiro cantor ligado a uma linha de tradição da música
brasileira a dar voz a uma canção do estilo axé, composição de Carlinhos Brown,
numa época em que este era ainda anônimo para o grande público e o estilo,
praticamente desconhecido fora do contexto da Bahia e adjacências. Trata-se de
Meia Lua Inteira (1989).
No arranjo podem ser identificados elementos característicos do estilo Axé: a
batida executada por instrumentos de percussão, a guitarra elétrica e o baixo
ditando o ritmo. Acerca deste estilo musical, em particular, Guerreiro (2000) comenta
de uma forma bastante detida:
Nos anos 80, o meio musical de Salvador estava tramando um novo
movimento. A música percussiva produzida pelos blocos afro – o
samba-reggae -, cujas letras celebravam o universo negro, saía das
periferias da cidade para ocupar um lugar de destaque na cena
musical baiana e não tardaria a aparecer nos cadernos de cultura do
país como um criativo pólo do mundo da música no Brasil.
A força da linguagem dos tambores influenciou diretamente a
musicalidade dos trios elétricos – uma das trilhas carnavalescas do
Brasil. As bandas de trio, atentas ao interesse que a percussão
despertava, rapidamente incorporaram o samba-reggae e não
demoraram a alcançar projeção nacional com um repertório
basicamente montado a partir das composições dos blocos afro mais
famosos da Bahia, como Ilê Aiyê, Olodum, Muzenza, Ara Ketu e Malê
Debalê. Imprimindo um aparato pop ao samba-reggae, as bandas de
trio eletrizaram as canções produzidas nos guetos de Salvador, sem
dispensar a percussão de tambor que as identifica.
A mídia batizou a nova música produzida em Salvador de axé-music.
Axé é um termo iorubá oriundo do candomblé, espaço sagrado de
!171
tambores e ritmos. [...] A partir desta mestiçagem estética, que fazia a
fusão entre a nova musicalidade percussiva e o frevo trioeletrizado, a
música que balançava as periferias de Salvador alcançou os
consumidores de classe média que, desde os anos 70, já corriam
atrás do trio elétrico. (GUERREIRO, 2000, p. 15-16)
Guerreiro, em seu comentário, cita a eletrização – com a guitarra elétrica – do
samba, e a partir desta mescla, gerando uma sonoridade mais pop, a origem do
estilo denominado Axé Music. Estas características deste estilo podem ser
conferidas perfeitamente em Meia Lua Inteira.
A letra, por sua vez, também traz elementos deste estilo: um canto quase que
percussivo de letras essencialmente onomatopaicas atreladas à percussão, de
maneira a servir de referência à dança e aos demais movimentos do corpo, solto ao
ar livre. Ora, Meia Lua Inteira tem sua letra marcada por elementos assim, conforme
os versos transcritos abaixo, do refrão da canção:
Poeira ra ra ra, Poeira ra ra ra
Terça-feira, capoeira ra ra ra, Tô no pé de onde dera rara ra
Verdadeiro ra ra ra, Derradeiro rara ra
Não me impede de cantar ra ra ra ra, Tô no pé de onde dera ra ra ra
Conforme é possível identificar no trecho acima transcrito da letra da canção
de Carlinhos Brown, esta é marcada não por uma narratividade, mas por versos cuja
conectividade se dá mais no âmbito da oralidade, da literal sonoridade, pela
repetição das sílaba “ra” que encerra as palavras da maioria dos versos — fator que
se aproximaria do tom onomatopaico característico citado há pouco.
Caetano também se aventurara no Forró, tendo interpretado um dos mais
famosos xotes deste estilo musical e de todo o cancioneiro brasileiro: Asa Branca
(1947), de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Esta gravação consta no álbum
intitulado apenas “Caetano Veloso”, de 1971, a saber, o primeiro gravado durante
seu exílio londrino. A canção é a única das sete que compõem o disco em questão
que não é de autoria de Caetano Veloso e cuja letra é em português.
A letra de Asa Branca descreve um contexto característico das regiões norte e
nordeste do Brasil, assolada pela seca que dizima plantações, criações e até mesmo
as vidas dos habitantes que, tentando fugir desta terrível regra, transformam-se em
verdadeiros nômades, chamados retirantes.
!172
O espaço marcado pela “terra ardendo qual fogueira de São João” devido à
falta de água e o calor extremado, do habitante deste território, que, num desespero
extremado chega a questionar “a Deus do céu” acerca do porquê de “tamanha
judiação”, em que até a ave chamada “asa branca” — que serve de título à canção
— característica da região, “bateu asas e voou” são empregados como uma
metáfora da condição real de Caetano Veloso. Este, imerso num Brasil que sofria as
consequências de um governo ditatorial — assemelhando-se à terra seca e
infrutífera do sertão em termos de liberdade artística e de expressão —, ao bradar
não a qualquer divindade, mas protestar em relação a seus compatriotas, em refrões
de canções como É Proibido Proibir, fora deportado, tendo sido obrigado a partir,
assim como a ave da canção de Gonzaga e Teixeira, para um outro território, em
busca de sobrevivência, não apenas como criatura, mas como ser pensante, artista
que sempre tem algo a dizer e expressar. Assim, a água está para a sobrevivência
da ave em questão da mesa maneira que a liberdade para um artista como Caetano.
Aliás, o tom, a melancolia expressa na voz de Caetano ao entoar este baião
marca esta atmosfera de saudosismo em relação ao seu lugar de origem, e de sua
profunda tristeza pela imposição acerca de partir, deixar este território.
O êxodo-rural, mais especificamente ligado ao contexto do Norte e Nordeste
assolados pelas secas, é uma temática constante e característica da canção popular
brasileira.
Outro estilo musical o qual Caetano visitou tanto na posição de intérprete
quanto na de compositor é o funk carioca. Em “Noites do Norte Ao Vivo” (2001), está
contida a faixa Dom de Iludir/Tapinha, pot-pourri composto, respectivamente, pela
canção do próprio Caetano Veloso, e pela canção de MC Naldinho e Dennis DJ, um
funk carioca.
Tapinha (2000) tem sua letra permeada pela repetição do verso “Um tapinha
não dói”, expressão que pode tanto estar ligada ao consumo de drogas — ação
popularmente exprimida pela expressão “dar um tapinha” — quanto à sua acepção
mais literal, no sentido de um ato de violência, no caso, de um homem em relação a
uma mulher. Neste âmbito, o ato de violência não seria assim encarado pela vítima,
mas estaria atrelado a um contexto de intimidade sexual, sendo, inclusive,
requisitado por esta.
!173
A maneira tão singular de se tratar a mulher — a qual, no âmbito do funk
carioca é comumente também caracterizada por termos que à primeira vista soariam
como ofensivos em outros contextos, tais como: cachorra — vai de encontro às
concepções tradicionais, ligadas ao respeito e zelo pela figura feminina, ainda mais
em se tratando de um homem.
O que possibilita a junção com a canção Dom de Iludir é justamente o fato de
a letra desta ter por tema precisamente “a malícia de toda mulher”, traço dado como
inerente a todo e qualquer ser humano do sexo feminino — um “dom” particular e
específico —, conforme consta nos versos:
Você diz a verdade
E a verdade é o seu dom de iludir
Como pode querer Que a mulher vá viver sem mentir
Desse modo, tendo em vista este caráter dissimulado e astucioso atrelado à
mulher, vem à tona uma discussão acerca da forma de tratamento desta figura, em
que, a violência, forma mais habitual e primitiva de correção e coerção do ponto de
vista de ação e reação, passa a ser tomada como uma expressão de carinho, fruto
da atração e da sensualidade características da mulher.
Na verdade, poucos anos depois da gravação de Caetano, a discussão
alcançara a esfera judicial. Exatos três anos após o lançamento do funk carioca em
questão, a ONG Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero moveu uma ação
no Ministério Público Federal contra a empresa que detém os direitos de Tapinha
alegando que esta canção “ banaliza a violência contra a mulher, transmite uma
visão preconceituosa contra a imagem da mesma, além de dividir as mulheres em
boas ou más conforme sua conduta sexual”66. Passados sete anos em meio a
tramitações, em 2010 o processo culminou na condenação da empresa Furacão
2000 Produções Ltda., com a determinação do pagamento de uma multa de R
$500.000. No entanto, três anos depois, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região
(Rio de Janeiro) absolveu a mesma empresa por meio da alegação do
desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior, que recorrera, ressaltando
Disponível em: [http://direitosfundamentais.net/2008/03/31/um-tapinha-que-doeu/]. Acesso em 28
de julho de 2015, às 20:21h.
66
!174
a possibilidade de “considerar que letras de funk como a desta música podem até
ser de mau gosto, mas não incitam a violência.”67
Soma-se aos sentidos construídos pelas canções individualmente e pela
junção das mesmas o fato de que Dom de Iludir (1986), de Caetano Veloso, é uma
canção inspirada num samba da velha guarda: Pra Que Mentir (1934), de Noel Rosa
e Vadico. Aliás, entre as canções se estabelece uma relação de intertextualidade, já
que a canção de Caetano desenvolve a mesma temática e até contém trechos da
canção de Noel68 :
Pra que mentir se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê?! Pra que mentir
Se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir, se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Este fato só vem a enriquecer o debate proposto por Caetano Veloso no
âmbito da cultura — não trazendo em si apenas uma crítica ou elogio, de maneira
fechada, mas, pelo contrário, completamente aberta às mais variadas conclusões —
especialmente no que diz respeito aos costumes. Ao aproximar três canções de
estilos e épocas tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, tão próximas em termos de
temática (não apenas por similaridade), pode-se construir um panorama acerca das
diferenças no tratamento dado à mulher em tempos, espaços e comunidades
totalmente diversas entre si. Partindo do tom desprestigiado de um funk carioca em
relação ao público em geral — e não apenas aos seus apreciadores — e chegando
à tradição e prestígio de um samba de Noel Rosa, tão reveladora de toda uma
herança, expressão de um legado da cultura e do povo brasileiro como um todo.
Caetano também chagara a gravar um funk carioca de sua autoria, intitulado
“Funk Melódico” (2012). O arranjo é similar ao característico dos funks cariocas:
ênfase numa batida constante da bateria, e quase que ausência de arranjo musical
propriamente dito. Há, inclusive um trecho que se iguala às peças deste estilo, em
que Caetano canta — na verdade, de uma forma quase atrelada meramente à fala,
conforme é regra no funk carioca — o longo trecho:
67
Disponível em: [http://oglobo.globo.com/cultura/funk-um-tapinha-nao-doi-nao-incita-violencia-dizjustica-8916481]. Acesso em 28 de julho de 2015, às 20:21h.
68
Grifos nossos.
!175
Num abraço, abraçaço, essa letra te juro
Esse papo de céu foi só pelo Noel
Nem com cheiro de flor bateria em você
Não sou bravo nem forte e nem mesmo do norte
Sem canto de morte no meu HD
O paralelepípedo é o jeito diverso
Que quer dizer raiva e mais raiva e mais raiva
Raiva e desprezo e terror, desamor
Vale ressaltar a referência a Noel Rosa, também o imperativo acerca da não
violência em relação à mulher — tão em discussão na contemporaneidade, e
principalmente nas letras de funk carioca —, e a menção ao estereótipo da violência
inerente ao “cabra-macho” do “Norte”, ligados ao sentimento de “raiva” expresso,
possivelmente de um homem a uma mulher.
Apesar de destoar da violência do possível “tapinha”, o funk de Caetano
Veloso de um retrato dos nossos dias, e traz à tona uma possível discussão acerca
do tratamento devido ou indevido dado à mulher — seria possível um funk carioca
cuja letra é dotada de lirismo?
A propósito, o samba é mais um dos territórios pelos quais Caetano Veloso
permitiu-se viajar na posição de intérprete, no âmbito da canção popular brasileira.
Caetano gravou suas versões de sambas-de-roda clássicos, atrelados
praticamente ao domínio público. É denominado “samba de roda” um estilo de
samba característico do Recôncavo Baiano, cuja origem está atrelada aos escravos
africanos que habitaram a região há séculos. Trata-se do primeiro estilo musical
brasileiro que foi reconhecido e registrado pela UNESCO como “patrimônio cultural
imaterial”. O autor Oliveira Pinto define o Samba de Roda como o elo estabelecido
entre os três principais elementos de tradição da cultura específica do Recôncavo
Baiano, a saber: o “candomblé” — religião de origem africana —, a “capoeira” — arte
marcial originada por crioulos brasileiros — e o “maculelê” — categoria de dança
folclórica brasileira, com origens na cultura afrodescendente (PINTO, 1991).
Constam na discografia de Caetano Veloso sambas de roda como Marinheiro
Só (1969), no disco “Caetano Veloso” (1969), Viola, Meu Bem (1973), no disco
“Araçá Azul” (1973), Cavaleiro (1965), samba gravado no primeiro compacto, datado
de 1965, mas também contido na coletânea “Cinema Olympia” (2006).
Sambas de Ary Barroso, como Isto Aqui O Que é? (1942), Na baixa do
Sapateiro (1938), Faixa de Cetim (1942) também fizeram sucesso na voz de
!176
Caetano. Trataremos com especial destaque a interpretação de Caetano Veloso do
samba-exaltação também de Barroso Aquarela do Brasil (1942), numa apresentação
ao vivo na TV Record, em 1970. Nesta ocasião, Caetano Veloso, que ainda estava
em seu exílio londrino, interpretou o samba de Barroso de uma maneira totalmente
introspectiva: a batida consideravelmente mais lenta — e a voz colocada de uma
maneira muito suave e também lenta, quase que idêntica à fala ou uma recitação.
Esta forma de interpretar, tão expressiva para a situação de Caetano Veloso naquela
época, consagrou-se na voz de João Gilberto em relação a todo o repertório da
Bossa-Nova.
O samba também foi o estilo musical escolhido por Caetano para a adaptação
de poemas em canção. É o caso de Escapulário (1975), do disco “Jóia” (1975) e que
fez parte do set list de “Multishow Ao Vivo: Abraçaço”, não constando no CD, mas
apenas no DVD.
A letra deste samba é, na verdade, um poema de Oswald de Andrade. Poeta
nacionalista da geração mais comprometida com a produção de uma arte
genuinamente nacional — e, literalmente, como no verso de Caetano, deixar “os
Portugais morrerem à míngua”69 — talvez não houvesse estilo musical mais propício
para servir de melodia a estes versos que o samba, em termos de brasilidade.
Uma das figuras-chave deste estilo musical que teve alguns de seus
sucessos e composições interpretados por Caetano foi nem mais nem menos que o
próprio Noel Rosa.
Caetano interpretara num dueto com Zeca Pagodinho o samba Com Que
Roupa?, no show registrado em disco e DVD “Casa de Samba II”.
Em meio à execução da canção, num trecho instrumental após a alternância
dos dois intérpretes nos diferentes trechos da letra, trava-se um diálogo entre Zeca
Pagodinho e Caetano Veloso:
- É, meu compadre, [...] pouca roupa tá bom, né?
- Qualquer roupa é boa! Isso assim cantado por Zeca Pagodinho, as
palavras e as notas de Noel Rosa na voz de Zeca Pagodinho, isso é
o Rio de Janeiro inteiro!
- Valeu!
69
VELOSO, Caetano. Língua (1984)
!177
Se há outro aspecto que pode ser considerado como característico de
Caetano Veloso em toda sua carreira, é justamente o tom laudatório com que
sempre se refere aos seus colegas de profissão. O comentário acima é apenas um
dos exemplos: Caetano enaltece a figura de Zeca Pagodinho associando-o à figura
de Noel Rosa pelo contexto e o estilo comuns a ambos, o Rio de Janeiro e o Samba
— estilo musical do qual o “pagode” é uma variação.
Em “Prenda Minha” (1998), Caetano interpreta o samba que foi enredo da
escola de samba que homenageou a Tropicália em 1994, Atrás Da Verde E Rosa Só
Não Vai Quem Já Morreu (1994).
Este samba, desde seu título e em toda sua letra, mantém uma
intertextualidade com o samba “Atrás do Trio Elétrico” (1969), do próprio Caetano,
que contém o verso: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”.
A letra do samba-enredo em questão contém referências às principais figuras
do Tropicalismo, Caetano, Gil, Gal, Bethânia, ao conjunto por eles formado nos anos
70 e até a algumas das canções mais distintivas deste movimento e de cada um
destes intérpretes:
Caetano e Gil, ô
Com a Tropicália no olhar
Doces Bárbaros ensinando
A brisa a bailar
A meiguice de uma voz
Uma canção
No teatro opinião
Bethânia explode coração
Domingo no parque, amor
Alegria, alegria, eu vou
A flor na festa do interior
Seu nome é Gal
No intuito de homenagear Caetano, Gil, Gal e Bethânia, as menções não se
restringiram ao contexto do Tropicalismo. Se de Caetano e Gil foram mencionados
verdadeiros hinos deste movimento — Alegria, Alegria e Domingo no Parque —, de
Gal não foi mencionada uma canção deste período, mas Festa no Interior (1981), de
Moraes Moreira e Abel Silva, e de Bethânia, que nem chegou a efetivamente
participar do Tropicalismo, apenas um de seus grandes sucessos: Explode Coração
(1977), de Gonzaga Jr.
Caetano Veloso também fez suas incursões pelo Rock nacional de artistas e
bandas brasileiras.
!178
Conta no disco “Caetano Canta” a interpretação de Caetano de Ouro de Tolo
(1973), de Raul Seixas. Na versão de Caetano, podemos ressaltar a falta da bateria ou de elementos
percussivos que marquem uma batida mais forte, mas apenas um tamborim em
meio ao som das cordas de violões. Isto atenua o tom de protesto e desconserto
pelo qual é marcada a canção em sua gravação original, na voz de Raul Seixas.
Além disso, Caetano canta de uma forma leve e suave — sem os quase gritos do
“aluco “Beleza” — dando um caráter mais lírico à atmosfera narrada nos versos da
letra.
Caetano também homenageara o rei do Rock brasileiro numa canção do
álbum “Noites do Norte” (2000) intitulada justamente Rock’n’Raul, numa inserção do
nome de Raul Seixas na sigla “rock’n’roll”, utilizada para nomear o estilo em
questão.
Caetano também participou do show que foi registrado em CD/DVD “oBaú do
Raul” (2004), cantando Maluco Beleza (1977), de Raul Seixas. Nesta apresentação,
Caetano dá mostras de sua extensão vocal de tenor e, mesmo permanecendo em
seu timbre costumeiro, chega a agudos — sem falsete — de modo a vociferar —
quase num grito — o refrão da canção, reforçando a ideia da letra, de um “maluco”,
avesso ao sistema e às convenções em geral que, por outro lado, é dado também
como “beleza”, calmo, tranquilo, pacífico.
Em “Totalmente Demais” (1986), Caetano Veloso interpretou Todo Amor Que
Houver Nesta Vida (1982), de Cazuza e Frejat Inclusive, Caetano foi um dos
primeiros artistas ligados já a uma espécie de tradição já estabelecida naquela
época, a dar voz ao rock dos jovens de bandas surgidas nos anos 80.
Em relação à gravação original desta canção, Caetano praticamente a
transforma. Diferentemente do ritmo acelerado e da presença da bateria, baixo e
guitarra elétrica ligados ao hit de rock lançado pela banda Barão Vermelho, a versão
de Caetano reduz a intensidade rítmica a um violão e voz, mas nem por isso diminui
a intensidade da dramaticidade da letra. Aliás, pelo contrário. Caetano canta num
tom mais agudo do que o seu convencional, de maneira a expressar pela batida ao
violão e as nuances em sua voz o desespero de quem implora, desejando “ser o seu
pão, a sua comida”, ou seja, algo essencial e substancial em relação à provável
pessoa amada.
!179
No âmbito da língua portuguesa, Caetano Veloso também chegou a
interpretar canções do repertório lusitano.
O álbum “Totalmente Demais” (1986) contém a interpretação do fado
Estranha Forma de Vida (1965), de Alfredo Marceneiro e Pedro Homem de Mello.
Caetano, apenas ao violão, canta este fado reproduzindo com perfeição o sotaque
lusitano característico dos intérpretes portugueses, apesar da execução num tom
que permite que seu timbre permaneça natural.
No entanto, Caetano voltara a interpretar este mesmo fado vinte um anos
depois, e o registro não está contido num disco, mas num filme: “Fados” (2007), de
Carlos Saura. Nesta interpretação, Caetano canta enquanto um casal dança, logo
após uma sequência de cenas que continham trechos de interpretações de Amália
Rodrigues, uma das mais aclamadas fadistas portuguesas. Talvez justamente por
esta referência, Caetano interpreta Estranha Forma de Vida, mais uma vez ao
violão, mas, desta vez cantando em falsete, num registro muito mais agudo que o
seu timbre natural, o qual se aproxima bastante do timbre de Amália Rodrigues.
Aliás, os únicos cantores brasileiros que participaram do filme de Saura foram
Caetano e Chico Buarque. A participação de um artista brasileiro como Caetano num
filme que tem por tema o estilo musical lusitano por excelência acaba por trazer à
tona sua relevância como intérprete, ainda mais em se tratando de uma peça de
tamanha relevância de um estilo musical totalmente distinto daquele no qual ele se
consagrou — o que só reforça sua versatilidade.
No show registrado no disco “Omaggio a Federico e Giulietta” (1998),
Caetano interpreta Coimbra (1947), de Raul Ferrão. Acompanhado por Jacques
Morelenbaum ao violoncelo, seu próprio violão e um piano, Caetano, canta em seu
próprio timbre de tenor, mas modula sua voz em meio aos vibratos e na pronúncia
das palavras de modo a reproduzir com excelência o estilo dos cantores lusitanos de
modo a fazer sua “língua roçar a língua de Luis de Camões” musicalmente com
propriedade.
O intérprete Caetano Veloso não se restringiu apenas ao repertório em língua
portuguesa, mas, pelo contrário, conforme afirmou Tatit, literalmente empreendeu
uma “constante absorção” de outros repertórios em línguas estrangeiras. E um dos
mais expressivos na obra deste intérprete é justamente o de língua inglesa.
!180
Tatit, em seu comentário, inicia a menção aos artistas de língua inglesa por
uma das maiores bandas britânicas de todos os tempos: os Beatles. E, em Caetano
Veloso, quando o assunto é Beatles, a referência primordial é o álbum “Qualquer
Coisa” (1978).
Neste, das doze faixas, três são canções assinadas pela famosíssima
parceria Lennon/McCartney: Eleanor Rigby (1966), For No One (1966) e Lady
Madonna (1968).
A primeira delas é marcada por uma roupagem completamente distinta da
versão original. Esta é marcada pela presença do quarteto duplo de cordas no
arranjo e o andamento similar às trilhas sonoras características de clímax de filmes
de suspense. Caetano transforma esta atmosfera
em algo mais ameno em sua execução apenas ao violão, e por sua dicção mais
cool.
Já For No One, na voz de Caetano Veloso, ganha uma leveza em relação à
atmosfera dramática da versão original dos quatro rapazes de Liverpool. A letra da
canção tem por tema justamente um hiato numa relação amorosa, e, em especial as
possíveis lágrimas sem significado, atreladas apenas a um fingimento — “por
ninguém”, conforme a expressão que dá título à canção.
A gravação original é marcada apenas por uma batida ao piano e a inserção
posterior de uma orquestra, inclusive pelo solo de instrumentos de sopro. Já
Caetano constrói uma versão marcada pelo violão e a guitarra elétrica, além de uma
leve batida de percussão, iniciada pelo assovio da melodia, conferindo à canção
uma versão mais atrelada à Bossa-Nova ou mesmo um Samba vestindo-a numa
outra roupagem, tropical, brasileira.
No que tange a interpretação vocal, o ritmo mais leve e despojado permite a
Caetano uma emissão, ao mesmo tempo, mais leve, marcada por recursos da
oralidade, e também mais presa ao que seria o clássico pelo emprego dos vibratos
característicos do intérprete baiano. Estes, no entanto, fogem completamente à
concepção operística deste efeito, executado por grandes vozes deste contexto,
mas se caracteriza apenas por uma leve trepidação vocal em sons vocálicos — fator
presente em todas as imitações de teor humorístico de Caetano Veloso, até pelo
movimento do queixo que tremula.
!181
Lady Madonna, por sua vez, originalmente também tem a base de sua
melodia ligada ao som do piano, numa batida quase semelhante às trilhas de filmes
faroeste ou mesmo dos filmes mudos que tinham a execução ao piano realizada ao
vivo durante a exibição dos mesmos.
Se nas duas canções anteriores a versão de Caetano foi marcada por uma
mudança ascendente em termos de ritmo, com Lady Madonna ocorre o oposto. A
melodia comum às trilhas de filmes faroeste ao piano é trocada por uma batida mais
lenta ao violão, marcada apenas pelo toque nas cordas, de modo a sonorizar o
acorde, mas sem qualquer elemento que caracterize um ritmo específico ou mais
agitado.
Mas, para além da interpretação das canções, no disco “Qualquer Coisa” a
citação da banda britânica começa pela capa, marcada pela estrutura idêntica à de
“Let It Be” (1970). Neste, que se constitui como o último álbum da discografia dos
Beatles, a capa já evidencia o afastamento entre os integrantes da banda; Em meio
a um fundo preto, quatro fotos, uma de cada integrante da banda, em formato
quadrado, alinhadas no mesmo formato, com o título do álbum grafado em branco
na parte superior. A mesma capa poderia ser de um disco que reunisse canções de
quatro diferentes intérpretes, uma espécie de coletânea com os greatest hits, por
exemplo.
A capa de “Qualquer Coisa” é idêntica, descontando-se o fato de que o título
grafado em branco que aparece na parte superior é o do álbum de Caetano, e os
quatro espaços das fotos são preenchidos pela mesma imagem de Caetano, apenas
marcada por cores diferentes — talvez numa referência às diferentes nuances da
personalidade de um único compositor e intérprete, que literalmente dá voz e vez,
com qualidade, a “qualquer coisa”.
Caetano também interpretou canções de Michael Jackson, o rei do pop, mas,
logicamente, conferindo a estes um caráter que lhe é próprio. O hit Billie Jean (1982)
entrou num pot-pourri criado por Caetano, à voz e violão, junto com Nega Maluca
(1950), samba de Fernando Lobo e Evaldo Rui, e Eleanor Rigby (1966), de Lennon
e McCartney, por uma similaridade temática, presente nas letras das três canções
que, ao serem ligadas, constituem uma só narrativa, conforme mencionamos
anteriormente.
!182
No álbum “Circuladô Vivo”, Caetano interpreta outro grande hit de Michael
Jackson, mais uma vez num pot-pourri, mas numa perspectiva diferente em relação
à faixa de que já tratamos.
Trata-se de Black Or White (1991), de Michael Jackson, lançada no álbum
“Dangerous”. Esta canção, que se coloca como um hino de promoção à igualdade
racial, foi concebida como uma resposta de Jackson a todas as críticas que vinha
recebendo pelo fato e se tratar de um homem negro cuja pele estava cada vez mais
branca. Grande parte da mídia e da crítica acreditava se tratar de mais uma
excentricidade do milionário artista, que na verdade — conforme revelara anos mais
tarde — de fato sofria os efeitos de um vitiligo e, a partir do branqueamento de
grande parte de seu corpo, passara então a usar uma base que lhe conferira a
aparência de um perfeito ariano, para disfarçar as manchas em sua pele.
A letra da canção é literalmente permeada pelo verso: “Não importa se você é
preto ou branco” e apregoa a igualdade de direitos, os quais são inerentes ao
homem, ao ser humano, independentemente de suas crenças, posicionamentos,
gênero, e, sobretudo, de sua raça.
Caetano Veloso se vale deste protesto veiculado pelo rei do pop norteamericano em relação a um preconceito tão forte por parte de seus semelhantes —
especialmente de seus compatriotas — para também protestar contra o preconceito
racial no Brasil, hemisfério sul, subdesenvolvido, e, de maneira mais sutil, também
contra a posição hegemônica da nação Estados Unidos da América em relação ao
mundo, numa canção de sua autoria intitulada exatamente Americanos (1992).
Para os americanos branco é branco, preto é preto (e a mulata não é a tal)
Bicha é bicha, macho é macho
Mulher é mulher e dinheiro é dinheiro
E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se
Concedem-se, conquistam-se direitos
Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime
Em Americanos, Caetano compara a questão do politicamente incorreto em
âmbito estadunidense e brasileiro. Enquanto lá, sendo ou não questionável, as
posições são todas muito claras e definidas — sem eufemismos que aparentem a
ausência de preconceitos —, “aqui embaixo”, no coração da América do Sul, tudo se
dá de forma velada. Um povo historicamente marcado pela miscigenação ousa
pregar a igualdade racial e agir de uma forma totalmente contrária ao seu discurso,
!183
num preconceito que tem raízes históricas e remontam um passado sombrio e
vergonhoso, mas que no entanto é trazido à atualidade e chega, em plena pósmodernidade, como um ranço inadmissível.
Seguindo nas referências dadas por Tatit, além dos Beatles, Caetano Veloso
também deu voz a uma canção dos Rolling Stones, e, em algumas fases de sua
carreira, até manteve alguns pontos de semelhança com o vocalista da banda, Mick
Jagger, em termos de performance — até pela semelhança da constituição física
dos dois cantores.
Let It Bleed (1969), de Mick Jagger e Keith Richards foi gravada por Caetano
— numa versão ao vivo —, e consta na coletânea “Pipoca Moderna” (2007). Este hit
da banda britânica Rolling Stones se constitui como uma ironia desta em relação aos
Beatles, em especial à canção de Lennon e McCartney Let It Be.
A versão de Caetano é marcada por um andamento — e, portanto, um ritmo
— completamente semelhante ao da gravação original da banda britânica, mas sem
o amparo da bateria, baixo e guitarras, somente voz e violão.
Extrapolando a possível rivalidade entre as duas bandas de rock britânicas,
Caetano Veloso soube dosar a medida no que tange sua atuação — tanto como
intérprete quanto como compositor, mas sobretudo como figura pública de relevância
— entre o deixar “estar” e o deixar “sangrar”.
No âmbito do Rock, em sua vertente norte-americana, Caetano deu voz a um
dos principais nomes deste estilo: Bob Dylan. Caetano gravara Jokerman (1983), no
disco “Circuladô Vivo” (1992).
A versão original da canção é marcada por uma levada quase atrelada ao
reggae, mas com a batida rock marcada pela bateria. Ganham destaque um
possível sintetizador ao fundo, e, principalmente, a guitarra elétrica, formando o
contexto ao qual se encaixa a voz de Bob Dylan. Com Caetano, a base passa a ser
o violão, e ao invés do possível sintetizador e a batida da bateria, temos tambores e
outros elementos percussivos ligados ao suingue baiano e bem leve, o violoncelo de
Morelenbaum. Algo a ser especialmente ressaltado é justamente o tom mais agudo
em que Caetano canta, literalmente abusando do vibrato. A atmosfera rock’n’roll é
praticamente substituída por uma atmosfera quase africana, brasileira característica
de um bloco-afro.
!184
Aliás Bob Dylan é uma figura do cenário musical internacional com a qual
podemos estabelecer uma comparação com Caetano Veloso devido a algumas
similaridades muito marcantes entre os dois. Surgidos praticamente no mesmo
contexto, entre os anos 60/70, marcados por canções de crítica e protesto, com
letras absurdamente longas e bastante expressivas em termos da cultura de cada
um de seus povos, respectivamente.
Após todas estas incursões pontuais pelo repertório em língua inglesa,
apenas em 2004 Caetano dedicou um disco inteiro a interpretações como estas.
“A Foreign Sound” (2004) é um disco em que Caetano Veloso assume
exclusivamente a posição de intérprete e dá sua versão de alguns dos mais famosos
standards do repertório em língua inglesa.
O álbum é composto pelas canções: Carioca (The Carioca); So in Love; I only
Have Eyes For You; I’ts Alright, Ma (I’m Only Bleeding); Body And Soul; Nature Boy;
The Man I Love; There Will Never Be Another You; Smoke Gets In Your Eyes; Diana;
Sophisticated Lady; Come As You Are; Feelings; Summertime e Detached.
Em meio a um contexto em que o mundo todo expressava certa aversão aos
Estados Unidos — devido à forma inusitada de governar do então presidente
George W. Bush — Caetano Veloso finalmente torna realidade um projeto seu
acalentado há décadas — na verdade, desde a época de seu exílio em Londres -:
um disco contendo os grandes standards do repertório americano.
A gravadora, Unisersal Music, promovera uma publicidade que tomava uma
página inteira em todos os jornais brasileiros, na qual constava o slogan: “A grande
música do mundo nunca foi tão brasileira. Apesar de não ser uma ideia totalmente
inédita em si — muitos intérpretes já o tinham feito — no caso de Caetano, este
projeto, classificado por ele como um disco “anglo-americano” foge completamente
ao convencional.
Foi durante os anos 90, década em que Caetano já tinha sua carreira
internacional devidamente solidificada, que Bob Hurwitz, presidente da Nonesuch —
gravadora que edita os discos de Caetano nos EUA — praticamente exigira de
Caetano a gravação de um álbum nesse estilo, valendo-se do argumento de que “só
ele poderia gravar Cole Porter e Bob Dylan num mesmo CD” com a mesma
naturalidade.
!185
No período que se seguiu, em meio a uma sequência de trabalhos de fôlego
por parte de Caetano — a saber, álbuns como: “Circuladô”, “Livro”, “Prenda Minha”,
“Noites do Norte” e o livro “Verdade Tropical” — o tão acalentado projeto acabou por
ser colocado num segundo plano, e os ânimos, neste sentido, esfriaram. Entretanto,
neste mesmo contexto foi que Caetano declarou que o ato de revisitar o grande
repertório americano já havia se tornado lugar-comum para os músicos de sua
geração, e, sem qualquer falsa-modéstia — bem ao seu estilo característico —
também que, no ponto de sua carreira em que se encontrava à época, sem mais
precisar provar nada a ninguém, ele já gozava de uma liberdade tal que o permitiria
fazer “qualquer coisa”.
Assim, mesmo em meio ao turbulento cenário político norte-americano em
relação ao mundo, “A Foreign Sound” foi lançado em 2004, ao que Caetano
declarara no release do disco da forma polêmica que lhe é usual: “Cantar as
canções americanas é voltar a pontos de minha vida e da cultura de massas do
século XX. Tenho ternura pelo material. Eles produziram a canção pop mais bonita
do mundo, todas essas músicas já foram cantadas pelos melhores. O nível de
composição e de execução dos americanos é um paradigma para o Ocidente”.
O crítico João Máximo, em seu texto publicado no jornal O Globo, ressaltou
que, em termos de escolha de repertório, em “A Foreign Sound”, o que de fato
importa é o que Caetano sente, e não as expectativas dos chamados “apóstolos do
bom gosto”:
É nítida sua ligação com os grandes nomes da canção americana,
Cole Porter (um So In Love primoroso), o pouco lembrado Vincent
Youmans (The Carioca), Jerome Kern (Smoke Gets In Your Eyes)
George Gershwin (The Man I Love, cantada como deve ser), Irving
Berlin (Blue Skies), Harry Warren em dose dupla (I Only Have Eyes
For You e There Will Never Be Another You), Dyke Ellington
(Sophisticated Lady). E também os clássicos Star dust(e não
Stardust como está no disco), Body and Soul e Cry Me A River. Ao
mesmo tempo em que percorre algumas canções que ninhuém
associaria àqueles grandes mestres (Nature Boy, Love me Tender,
Diana, If It’s Magic e Jamaica Farewell, esta de um nova-iorquino que
fazia calipsos para Harry Belafonte e que, entre outros foreign
sounds, compôs o hino nacional de Barbados), Caetano prova que
ele e aquele produtor estão certos: pode cantar tudo.
Hugo Sukman, outro crítico, do mesmo jornal, em seu texto realçou os
paradoxos e as provocações contidas nas escolhas de Caetano:
!186
“Ivan Lins é música; Nirvana é lixo”, diz Caetano no encarte do disco.
Poderia cantar Ivan, nosso compositor mais internacional, em inglês.
Não canta. Mas canta Come As You Are, de Kurt Cobain, lindo lixo.
Seja cantando Cobain, seja cantando Gershwin, Caetano celebra a
música que conquistou o povo do planeta. Quer, meio sério, meio de
brincadeira, conquistar o mundo. Se conseguir Corisco terá vencido,
o sertão virado mar e o mar sertão.
Sukman, em seu comentário, retoma o contexto original da citação de
“Grande Sertão: Veredas” feita por Caetano Veloso no encarte do disco e compara
sua missão ou intenção como intérprete — revelada, dentre outros elementos, pela
escolha de repertório do disco — à profecia que tange o mar e o sertão. Na verdade,
a atuação de Caetano Veloso é pode ser comparada de maneira bastante feliz nesta
expressão de Guimarães Rosa: seu esforço de levar sertão para o mar, dispersando
mundo afora os mais variados estilos da canção produzida no Brasil nos mais
diferentes tempos e espaços, e, ao mesmo tempo de trazer muito do que há fora,
além-mar, para enriquecer a canção brasileira, o sertão.
No caso específico, a partir de um comentário polêmico de Caetano Veloso,
acerca da banda estadunidense Nirvana em comparação a um de seus colegas
cancionistas brasileiros, e, no entanto, interpretando o que ele ironicamente chamou
de “lixo” e não o que fora classificado como “música”. Mas será que esta frase
expressa a verdadeira opinião de Caetano Veloso, ou apenas traz à tona por meio
de sua voz a opinião de muitos puristas que vociferam juízos de valor com este sem
o devido conhecimento de causa? Se Nirvana é mesmo “lixo”, vai do gosto e opinião
de cada um que se propõe a ouvir. Mas, que Caetano, no cenário musical e cultural
brasileiro tem realizado a intenção de Corisco: vencer, é inegável.
“A Foreign Sound” se coloca como mais uma expressão do caráter plural de
Caetano Veloso e de sua versatilidade como intérprete, já que, por meio do
repertório contido no disco em questão, o intérprete baiano dá provas de sua
propriedade como intérprete em termos de conhecimento dos mais diferentes estilos
e épocas.
Logicamente que esta incursão pelo repertório, e, portanto, pela cultura de
língua inglesa não ocorreria sem comentários críticos por parte de Caetano Veloso.
No encarte do CD está contido um texto escrito por ele, o qual anula qualquer
possibilidade de crítica relativa a uma americanização ou preferência de uma cultura
estrangeira em relação à sua, brasileira, nacional.
!187
Caetano vale-se da ironia para tecer uma crítica mordaz à suposta
superioridade norte-americana em relação a tudo e a todos, não só na área da
música, mas, partindo da própria origem do universo:
Então o mundo começou com um “big-bang”. Não só as criaturas
mais estranhas da galáxia mais remota aparecem falando inglês nos
filmes: o próprio universo surgiu emitindo uma expressão tipicamente
inglesa. Era tão parecido com “bang-bang” que o cientista britânico
que a criou não resistiu. Por que não um “bubble-gum”? — enquanto
eu me deleitava em inventar piadas como essas, meu amigo Zé
Miguel Wisnik (que contribuiu com a frase “Se tudo começou no Big
Bang só podia acabar no Big Mac”) lembrou ainda a tirada que
Nelson Rodrigues repetia em suas crônicas sobre futebol: “O mundo
começou num Fla-Flu”. Nelson certamente estava se referindo à
importância transcendental das partidas em que o Flamengo e o
Fluminense se enfrentavam, mas ele também nos trazia à mente o
sentimento de certas tardes de domingo, luminosas, ainda que
envoltas em mistério. O fato é que “Fla-Flu” soa muito mais como o
sopro divino do que a cena de duelo de caubóis proposta pelo
cientista inglês. E, no entanto, aquele que é nas palavras de Caetano
simplesmente o maior escritor brasileiro do século XX, Guimarães
Rosa, fez o personagem central de sua obra-prima “Grande Sertão:
Veredas” dizer: “E Deus, se vier, que venha armado”.
O texto de Caetano traz à tona o fato de a língua inglesa — e, portanto, toda
esta cultura americana, do norte — se estabelece com uma supremacia em relação
a todas as outras — dadas como inferiores. Ora, não bastasse a influência cultural,
em termos de música, cinema, estilo de vida, organização social, o inglês se faz
presente desde classificação da explosão que teria assinalado o começo da
expansão do universo. Eles estiveram sempre lá, à frente. Seja no Big-Bang, a
explicação de nossas origens, no cinema, o gênero faroeste com os filmes de “bangbang” — e a onomatopeia que se tornara mundialmente característica para o som do
disparo de uma arma de fogo — e na construção de toda uma indústria
cinematográfica cujos filmes, atores e diretores fazem sucesso e ditam regras ao
redor do mundo todo, a mundialização do fast food com o Big Mac, também em
proporções globais, segundo o comentário de Wisnik. Sim, tudo na cultura
americana é “big”, e até demais.
No entanto, toda esta grandiosidade é deixada de lado para um brasileiro,
seja frente a uma disputa clássica entre os times cariocas Flamengo e Fluminense,
ou mesmo diante da obra não de um, mas do grande escritor Guimarães Rosa, que
trouxera na figura do brasileiro, sertanejo, pobre e subdesenvolvido uma
complexidade que supera os conflitos dos filmes de faroeste, e, no entanto, propõe a
!188
mesma forma de combate. Aliás, não entre dois homens, mas entre um homem e
Deus.
E quem diria que os grandes hits com letras na língua universal viriam a ser
cantados por um estrangeiro? Aliás, não só cantados. Adaptados de maneira a
permitir a performance genuína e original de um intérprete em potencial, não inglês
ou norte-americano, mas, brasileiro, baiano, santo-amarense, do hemisfério sul,
abaixo, no que tange a posição geográfica — pela perspectiva de leitura que se tem,
geopoliticamente falando —, mas que se equivale, por talento e capacidade.
Caetano ousa demonstrar que, em termos de cultura, e de música, não há
barreiras. Não há dominantes e dominados. Há sim, as grandes canções, suas
versões clássicas e consagradas, mas há também a possibilidade de uma proposta
diferente. Grandes vozes como as de Elvis Presley e Frank Sinatra, por exemplo, por
incríveis e merecidamente apreciadas que sejam, não encerram as possibilidades de
interpretação, e, sobretudo, de beleza.
Caetano se propõe a apresentar as canções por uma perspectiva que talvez
soe dessemelhante ou estranha aos ouvidos de quem se prendeu a modelos, não se
permitindo abrir seus horizontes. Caetano oferece um canto diferente, um som
diferente, exterior, um som estrangeiro (“A Foreign Sound”), a partir da perspectiva
não do dominante, mas do dominado. Não do desenvolvido, mas de um
representante dos povos que buscam ainda o desenvolvimento, em termos
socioeconômicos, mas nem por isso podem ser chamados de subdesenvolvidos
cultural e artisticamente falando.
E, por incrível que possa parecer, Caetano Veloso assume esta postura não
de uma maneira violenta ou combativa. Mas, num grande tributo — sem, por isso,
deixar de se posicionar, conforme suas palavras, também contidas no encarte do
mesmo disco:
Por todo o mundo há pessoas que gostariam de achar um meio de
agradecer à música popular americana por ter enriquecido e
embelezado suas vidas. Muitos tentam. É o que faço aqui.
Considerando o texto que comentamos anteriormente, Caetano contraria as
possíveis expectativas ao encerrar a citação dos comentários com um de sua
autoria, na contramão de qualquer protesto, mas na expressão de um
agradecimento — o qual se liga à tentativa de muitos, mas que, neste caso, fora
!189
realizado por ele. Enquanto muitos se perdem em meio aos planos para encontrar
uma maneira, Caetano Veloso realizou a tão difícil ação — sem deixar, é claro, de
conferir a si mesmo os possíveis louros por tal realização.
Rodrigo Faour chama a atenção para o fato de que à época do lançamento
desse disco caracterizado por ele como “sofisticadíssimo”, Caetano ainda fazia
sucesso nas rádios brasileiras com “uma versão pop/romântica do hit brega Você
Não Me Ensinou a Te Esquecer, de Fernando Mendes, incluída na trilha sonora do
filme “Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (2003), fato que pode ser lido como a
repetição, “não com a mesma intensidade, mas com certa força” o sucesso de
Sozinho, de Peninha. A este respeito, Faour levanta, ironicamente, o
questionamento: “Nada mais natural para Caetano, concordam?”.
Apesar disso, logo depois de “A Foreign Sound” ter sido lançado no Brasil,
Caetano fez um show no Carnegie Hall para um público lotado de americanos —
conforme pode ser conferido no documentário “Coração Vagabundo” (2009), de
Fernando Grostein Andrade.
Nature Boy (1948), de Eden Ahbez, foi gravada também, originalmente, por
Nat King Cole. Mais do que apenas cantar, Caetano fez uma versão em português
da canção, a qual foi gravada por ele mesmo em “Totalmente Demais” (1986), e
também por Maria Bethânia.
Love Me Tender (1956), de Elvis Presley e Vera Matson, grande sucesso de
Elvis Presley ganha a roupagem de uma cantiga de ninar. Isto fica bastante claro
pelo andamento da canção e pelo acompanhamento por um piano cuja sonoridade é
característica das melodias de caixinhas de música, por exemplo. Além disso,
Caetano canta em falsete, bastante agudo, numa voz que pode se assemelhar tanto
à de uma mãe ninando seu filho, quanto de uma criança adormecendo ao som de
uma melodia de ninar- aliás, nesse sentido, Love Me Tender é a faixa que encerra o
álbum, reforçando esta possibilidade de leitura.
No que tange a língua inglesa, “A Foreign Sound” não se coloca como a
estreia de Caetano como intérprete de canções neste idioma. Antes, Caetano não só
interpretara canções dos mais variados estilos tanto do império do Tio Sam quanto
do reino da Rainha Elizabeth, mas também compôs diversas canções nesta língua.
!190
Constam na discografia de Caetano álbuns quase que totalmente constituídos por
peças de sua autoria com a letra na referida língua.
O álbum intitulado apenas “Caetano Veloso” (1971), tendo sido o primeiro
gravado durante o exílio londrino do cancionista baiano contém sete faixas, sendo
que, destas, seis são composições de Caetano: A Little More Blue, London London,
Maria Bethânia, If You Hold A Stone, Shoot Me Dead, In The Hot Sun of A Christmas
Day.
Assim, na língua inglesa, Caetano não só interpretou com também produziu
muitas canções — fator que talvez ajude a explicar a liberdade com que ele transita
pelo cancioneiro em língua inglesa.
Canções dos anos dourados de Hollywood, dos grandes musicais da Metro
Goldwin Mayer também ganharam versões de Caetano Veloso. Por exemplo,
Caetano gravara Let’s Face The Music And Dance (1964), de Irving Berlim.
Acerca de sua performance, é o próprio Caetano quem comenta:
Let’s Face The Music And Dance é a canção de Irving Berlim que
Fellini escolheu para “Ginger e Fred”. Pusemos o tema de “La Dolce
Vita” como introdução e frisamos o parentesco dos temas de Rota
com as composições americanas dos anos 20 e 30. Nós a tocamos
como se fôssemos uma banda fuleira que toca na rua por esmolas.
[...] a atmosfera geral (e a dinâmica em particular) faz do número um
momento encantador para mim.
Esta canção está contida no álbum que registrou a apresentação de Caetano
Veloso em Rimini, na Itália, a convite da irmã de Federico Fellini, Maddalena. Este
fator explica a atmosfera cinematográfica em que se insere a canção, desde sua
escolha.
Cheek to Cheek (1935), também de Irving Berlim, foi originalmente
interpretada por Fred Astaire no filme “Top Hat” (no Brasil “O Picolino”) (1935), do
diretor Mark Sandrich. No entanto, Caetano a gravou num dueto com Cauby Peixoto,
transpondo-a para um ritmo latino. Esta faixa consta no álbum de Cauby intitulado
“Cauby canta Sinatra” (1995).
Há também um álbum que registra a apresentação de Caetano Veloso com
David Byrne no Carnegie Hall: “Caetano Veloso and David Byrne Live at Carnegie
Hall” (2012). O show em questão aconteceu durante o festival “Perspectives”, e
contou com a presença de Jacques Morelenbaum ao violoncelo, e Mauro Refosco,
!191
na percussão, acompanhando Veloso e Byrne.
Aliás, o músico, compositor e produtor musical em questão, fundador do grupo
“Talking Heads”, já era há muito tempo amante confesso da obra de Caetano Veloso,
portanto, o registro deste encontro coroa uma amizade surgida de uma admiração
que se tornara mútua.
Caetano também deu voz a um considerável número de canções do
repertório em língua espanhola de diferentes tempos e espaços. Tatit (1995) citara o
cantor, intérprete e pianista cubano Bola de Nieve, cujo real nome era Ignácio
Jacinto Villa Fernández e este tem um papel especial na carreira de Caetano Veloso,
em relação às interpretações do cancioneiro hispânico por ele empreendidas.
Tanto canções de autoria de Bola de Nieve quanto canções que foram
sucesso na voz deste permeiam a carreira de Caetano Veloso em suas mais
diferentes fases. Em 1978, no álbum “Qualquer Coisa”, Caetano gravara La Flor de
La Canela (1950), de Chabuca Granda, um grande sucesso de Bola de Nieve.
Enquanto a gravação deste, datada de 1950 é marcada pelo
acompanhamento unicamente pelo piano, em sequências de arpejos grande parte
da canção, e apenas em alguns trechos uma batida mais atrelada ao estilo original
do compositor cubano, a gravação de Caetano é marcada por um acompanhamento
de cordas, numa cadência que, desde o início traz marcado o ritmo um pouco mais
acelerado.
Neste mesmo álbum Caetano gravara não a versão original, mas uma versão
de sua autoria de uma canção de Eliseo Grenet que foi sucesso na voz de Bola de
Nieve: Drume Negrita (1949) — no caso, Drume Negrinha.
A canção de Grenet é fruto da tradição oral de escravos negros que viviam
em Cuba, e a conceberam como uma canção de ninar. A versão de Caetano adapta
a realidade de Cuba ao contexto brasileiro, mais especificamente da Bahia, e com
um vocabulário constituído por expressões contemporâneas:
Drume negrinha
Que eu te transo uma nova caminha
Que venha ter muito axé
Que tenha gosto d'ocê
Drume pretinha
Que eu te trago de toda Bahia
Tudo que der pra trazer
Com quase todo prazer
!192
Se tu drume eu te descolo um araçá
Cor do céu de lá
Se não drume esse mandu de carnaval
Não vai pegar
Da versão original, além do ritmo e do arranjo, é mantida na letra a expressão
“drume” — ao invés da sua correspondente em português: “dorme” —, que pode ser
expressão da fala das pessoas socioeconomicamente menos favorecidas. Além
disso, elementos da cultura especificamente baiana — conforme a menção ao
estado baiano — ganham lugar, tais como: “axé”, “araçá”, “mandu” e “carnaval”, e,
assim, a “negrita” — “negrinha” — passa a “pretinha”, conforme a canção que foi um
dos maiores sucessos do conjunto Novos Baianos, Preta Pretinha (1972), de modo
que a personagem da canção é transposta para uma menina brasileira.
De autoria de Bola de Nieve, propriamente, Caetano gravara Ay, Amor!, da
década de 50, em seu disco “Fina Estampa Ao Vivo” (1995). Mas, mais do que
gravar canções desta referida figura, Caetano homenageou-a com a canção Canto
Do Bola De Neve (1987). Esta canção, na verdade não contém uma letra, e nem
sequer uma melodia muito clara, mas somente Caetano ao fundo, emitindo palavras
que praticamente não podem ser identificadas, reproduzindo os vibratos
característicos do cantor cubano em questão.
Aliás, Caetano gravara um disco inteiro composto apenas por hits do
cancioneiro em língua espanhola, e a motivação para tanto é no mínimo
interessante. O ano era o de 1994, e Caetano recebera um convite de sua gravadora
para lançar a versão de alguns de seus maiores sucessos em língua espanhola —
como fizeram tantos outros cancionistas como Chico Buarque e Roberto Carlos, por
exemplo — de modo a conquistar sucesso com o público de países hispânicos.
Apesar de se tratar de uma boa jogada mercadológica, Caetano se recusou. Ao
invés de produzir versões em espanhol de suas próprias canções, Caetano ousou
fazer diferente: escolher algumas de suas canções favoritas em língua espanhola,
de outros compositores, e gravá-las.
A partir desta premissa, o álbum “Fina Estampa” foi lançado em 1994. Este se
coloca como um movimento não “para fora”, visando a ampliação de público, mas,
!193
“para dentro”, totalmente intimista, numa retomada da memória afetiva, conforme
Caetano explicou para a “Folha da Bahia”, no mesmo ano70:
Para mim, o destino ideal deste disco é aprofundar o diálogo com
algumas pessoas que, espalhadas pela América Espanhola, vêm há
algum tempo generosamente prestando atenção à minha música. A
ambição de aumentar o número dessas pessoas, embora me pareça
legítima, é secundária e só aparece como subproduto do desejo da
gravadora para a qual trabalho, de ampliar o mercado' hispanoamericano para os meus discos. O que importa, no entanto — e o
que define o perfil desta 'fina estampa' — é que, apesar de ser
aparentemente um gesto dirigido para fora da minha língua e da
minha cultura, trata-se antes de um movimento para dentro de minha
memória mais íntima e para o interior do Brasil: na cidadezinha de
Santo Amaro, na Bahia, onde nasci e vivi até os 18 anos, ouviam-se,
nos anos 40 e 50, canções cubanas, mexicanas, argentinas,
paraguaias ou porto-riquenhas que marcaram a formação de toda
uma geração. Elas são 'minhas', estão ligadas a recordações de
família e de amizade que me dão uma espécie de direito sobre elas
— e sem dúvida lhes dão um imenso poder sobre mim. Se hoje sou
capaz, às vezes, até mesmo de conversar em espanhol (se o
interlocutor não fala português), devo-o aos boleros e às rancheiras,
às rumbas e aos tangos, aos merengues e as guarânias. A única
coisa que não posso dizer é que foi com muita dor e dificuldade que
deixei de fora um número pelo menos tão grande de canções
igualmente representativas disso e, portanto, igualmente adequadas
a este disco, quanto o das que gravei. E o que o número das gravei
— e de que não quis abrir mão — é maior do que a gravadora
desejaria.
“Fina Estampa” é constituído por quinze canções, sendo elas: Rumba Azul;
Pecado; Maria Bonita; Contigo Em La Distancia; Recuerdos de Ypacarai; Fina
Estampa; Capullito de Aleli; Un Vestido Y Un Amor; Maria La O; Tonada De Luna
Llena; Mi Cocodrilo Verde; Lamento Borincano e Vete de Mi. Com este álbum,
Caetano, na posição de intérprete, embarca numa viagem que se inicia no México e
percorre, em direção ao sul: Cuba, Porto Rico, Venezuela, Peru, Argentina, Paraguai
e Uruguai, de 1931 a 1992.
Numa entrevista, Violeta Weinschelbaum perguntou a Caetano Veloso: “Como
foi recebido um disco como Fina Estampa no Brasil?” Ao que Caetano respondeu:
Muito bem, foi meu disco que mais vendeu no Brasil. Quase toda a
música que está aí foi escutadíssima no Brasil dos anos cinquenta e
até princípios dos anos sessenta. Então, os mais velhos lembravam
daquilo e os mais jovens, que não conheciam aquela música,
encontraram ali uma série de canções agradáveis, que chegaram já
filtradas pela bossa nova e pelo tropicalismo. O que aconteceu foi
uma soma de públicos. É uma experiência, por mais que soe doce e
Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/search/label/1994]. Acesso em 31 de
março de 2014.
70
!194
agradável, um pouco estranha, porque passa por esse filtro de
refinamento da bossa nova e pelo filtro irônico do tropicalismo. As
canções estão ali com essa pequena distância e isso as torna
modernas para os modernos. Mas são canções sentimentais e
populares e por isso têm um público mais amplo. (VELOSO in
WEINSCHELBAUM, 2006, p. 21)
Apesar de um disco composto apenas por canções estrangeiras, Caetano o
classifica superlativamente como “o [... disco que mais vendeu”, dando a entender
um sucesso superior inclusive à toda sua produção em língua portuguesa, como
compositor/intérprete. Tendo agradado aos mais velhos, que, assim como Caetano,
ouviram as versões originais de todas estas canções, e despertado a curiosidade e o
gosto dos mais jovens, que provavelmente vieram a conhecer estas mesmas
canções na voz de Caetano. Como de praxe, Caetano ressalta o filtro da “bossa
nova”, pelo qual passa toda sua produção musical, e no caso das canções latinas
marca o caráter de recriação destas peças.
Não se dando por satisfeito, Caetano lança três anos depois, em 1997 o disco
“Fina Estampa Ao Vivo”, registro de uma das apresentações da turnê de seu álbum
anterior.
Contendo as canções: O Samba e o Tango; Lamento Borincano; Fina
Estampa, Cucurrucucu Paloma; Haiti; Canção de Amor; Suas Mãos; Lábios Que
Beijei; Você Esteve Com Meu Bem?; Vete De Mi; La Barca; Ay, Amor!; Pulsar;
Contigo Em La Distancia e Itapuã, o disco ao vivo permitiu a Caetano tranquilizar
sua consciência — em meio à sua autocrítica — no que diz respeito à forma correta
de interpretar algumas de suas canções favoritas.
Assim, as razões que motivaram a gravação de um disco que contém todo o
repertório de um outro disco exatamente anterior são explicadas por Caetano num
texto de sua autoria que vem impresso na contracapa do disco, no qual ele explica:
Quis regravar a canção “Fina Estampa” somente por causa dos erros
de letra do disco de estúdio. No show em que o número saiu
tecnicamente bem e musicalmente razoável — e em que corrigi
todos os outros erros — eu insisti em cantar “justes” em vez de
“fustes”. Talvez um dia tenha que gravar essa canção de novo no
estúdio. Por agora, apenas peço perdão. Ampliar o mercado? —
Onde quer que eu vá, levo comigo minha versão pessoal do
desenvolvimento da música popular brasileira (uma tradição de que
devemos mesmo nos orgulhar): a paixão que o canto de Orlando
Silva despertou em João Gilberto, levando-o a criar um estilo de
música popular moderno que influenciou todo o mundo e
revolucionou o Brasil. “Você esteve com meu bem?” pode ser um
!195
pedaço do elo perdido entre o canto de Orlando e a invenção de
João. Essa invenção nada seria não fosse pela luz que Antonio
Carlos Jobim lançou sobre ela.
A turnê e o registro em disco do show ao vivo estão ligados — além da
divulgação do disco “Fina Estampa”, é claro — se colocam também como uma
espécie de errata no que diz respeito à gravação da canção que serviu de nome ao
disco.
Caetano mais uma vez pontua seu posicionamento em relação a uma
proposta de gravação de versões de suas canções em espanhol visando “ampliar o
mercado”, advinda da gravadora: não. Ao invés disso, Caetano optara por gravar
versões suas de grandes canções do cancioneiro em língua espanhola. Desse
modo, tendo cometido um erro na letra de Fina Estampa, Caetano cria um
espetáculo e lança um outro disco contendo, inclusive, outras canções — tanto em
português quanto em espanhol — que não estavam contidas originalmente no álbum
de estúdio.
Caetano reafirma em seu texto, e com sua atitude na posição de artista, sua
“versão pessoal do desenvolvimento da música popular brasileira”, a qual, passa por
outros tempos, espaços, culturas e estilos.
Bastante expressiva em relação a esta intersecção com as canções em
língua espanhola e o viés político que permeia toda sua obra e sua atuação como
artista é uma canção de autoria de Caetano Veloso, intitulada Quero Ir A Cuba
(1983).
Iniciada pelo verso: “Mamãe eu quero ir a Cuba”, a canção é marcada por um
tom de curiosidade de uma provável criança que desejaria conhecer o país insular
em questão. Passando por aspectos da “ilha”, a qual é comparada “à Bahia”,
referência a uma de suas mais reconhecidas cantoras, Célia Cruz,e, é claro, à
Revolução Cubana. Acerca desta, a voz poética confessa “que tocou [seu] coração”
de um tal modo que é reproduzido o pedido de Peti: “Cuba seja aqui”, possivelmente
numa crítica política que tange, sobretudo o desenvolvimento humano dos cidadãos
cubanos, para muito além do governo de Fidel Castro.
Deste modo, em meio aos vislumbramentos de tudo isso, a mesma voz que
iniciara a canção com o desejo de ir até lá, encerra a canção com os versos:
“Mamãe eu quero ir a Cuba / E quero voltar”, deixando claro ser um desejo de
!196
apenas conhecer, e não de vir a lá se fixar — o qual dá a entender, no que
provavelmente subjaz ao texto, que, por difícil que seja, a vida no Brasil não seria
trocada por qualquer outro território que seja.
Vem à tona uma brasilidade que não está ancorada em ufanismos políticopartidários, mas apenas ao fato de ser brasileiro e amar sua terra.
Isto se revela tanto nas composições, quanto nas interpretações de Caetano.
E, aliás, acerca de seu próprio ofício de interpretar cantando, Caetano, em sua
canção Genipapo Absoluto (1991), sintetizou o sentido deste ato, e também do que
tem sido sua atuação nesse sentido:
Cantar é mais do que lembrar É mais do que ter tido aquilo então Mais do que viver do que sonhar É ter o coração daquilo
De fato, a propriedade — no sentido de real conhecimento de causa — de
Caetano ao visitar tanto o cancioneiro nacional quanto os internacionais, dando sua
voz a estas e tantas outras canções ao longo de sua carreira, revela por meio de sua
prática efetiva o fato de “ter o coração” de tudo isso.
E, ao pensarmos no coração como a fonte deste canto ou desta voz única
que se revela e manifesta numa multiplicidade de outras em Caetano Veloso,
chegamos a uma compreensão mais clara do verso que se coloca como síntese de
uma das canções confessadamente preferidas de autoria própria deste cancionista
baiano: “Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim”.
!197
CONCLUSÃO: COMPREENDER CAETANO VELOSO: O QUE QUER, O QUE
PODE ESTE CAMALEÃO? UMA PROPOSIÇÃO
“You don’t know me
Bet you’ll never get to know me
You don’t know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There’s nothing you can show me
From behind the wall”
(Caetano Veloso, You Don’t Know Me)
Configurou-se como o objetivo central desta tese trazer à tona esta faceta de
agitador cultural exercida por Caetano Veloso ao longo de sua carreira, e em toda
sua atuação ao longo destes quase cinquenta anos.
Há que se ressaltar que esta é apenas uma das muitas e possíveis reflexões
que podem ser realizadas a partir de uma figura e obras tão singulares, no que
tange a construção de sentidos e os diferentes contextos socioculturais em que
ambas estão inseridas.
Em “Bossa-Nova de Caetano e em Caetano: Um impulso que segue
pulsando” procuramos investigar a relação do cancionista baiano com este estilo
musical — que marca a inspiração que motivara o início de sua carreira artística — e
de que maneira este elo teve continuidade até os dias atuais.
Apesar de não ter se tornado um compositor ou intérprete atrelado apenas à
Bossa-Nova — de modo a não poder ser caracterizado ou reconhecido apenas por
este estilo musical —, Caetano Veloso trilhou uma jornada marcada por um
movimento que o fizera sê-lo também uma figura emblemática deste gênero musical
brasileiro tipo exportação, seja por suas interpretações de um número considerável
de canções deste repertório em especial, seja por suas composições neste estilo,
mas, sobretudo, por seu posicionamento, sua postura como artista, na qual a BossaNova tornou-se uma espécie de filtro, ou fio condutor tanto do gosto e das
preferências que remontam o pessoal, até toda sua produção, destinada ao público
em larga escala. Em Caetano Veloso, tudo começa com a Bossa, é avaliado e
desenvolve-se a partir desta, e, durante todos estes anos, parece voltar a esta,
como um fruto ou resultado que faz jus à sua origem.
!198
Justamente a partir desta imersão na Bossa-Nova, surge a inspiração vertida
em missão no cenário musical, não atrelada apenas a uma repetição, num constante
tributo, mas, acima de tudo, da construção e produção de uma continuidade no
movimento inaugurado por João Gilberto e Tom Jobim: o Tropicalismo. Em:
“Tropicália: Um divisor de águas na cultura brasileira” ganha enfoque a novidade ou
inovação proposta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que tem os olhos voltados
para o futuro, sem no entanto perder de vista tudo o que foi significativo no passado.
Aliás, pelo contrário, na verdade o Tropicalismo pode ser lido como a adoção de
uma liberdade criativa em prol do desenvolvimento da arte musical e cancional
brasileira, a fim de impactar a juventude da época tanto quanto a Bossa impactara e
se impusera como divisor de águas neste segmento ao fim dos anos 50.
O constante diálogo com a sétima arte, seja por meio das temáticas de suas
canções, seja por seus esporádicos e pontuais exercícios de efetiva prática neste
segmento, ou até pela tentativa de roteirização e produção de uma peça
cinematográfica sua também trazem à tona o agitador cultural, que navega com
propriedade e até certa tranquilidade pelos mais variados estilos, tempos e espaços
do cinema, de modo a encontrar sua maneira de expressão, seu tom pessoal neste
segmento. Em: “A Cena do Camaleão. Luzes, Câmeras, Canção” a proposta se liga
a investigar o todo o percurso de Caetano Veloso com o cinema. Da crítica
cinematográfica em jornais, ainda na Bahia, durante sua juventude — e, logicamente
sua paixão que norteou suas intenções iniciais em termos de atuação —, à
participação em peças e filmes, como ator, a constante adoção de sua poética
musical como trilha sonora de inúmeros filmes, seriados, peças e novelas ao longo
destes anos, podemos constatar um movimento paralelo à música, marcado por
constantes intersecções entre estas duas áreas da arte, até mesmo em termos de
performance ao palco, em se tratando de todo um jogo cênico que confunde
realidade e ficção, pessoa e personagem em Caetano Veloso.
O ciclo se encerra com “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão”,
uma investigação do caráter também múltiplo e multifacetado musicalmente falando
não apenas do compositor, mas do intérprete, que dá voz a todo um universo no
âmbito da canção, de modo a criar ou instaurar um universo seu, particular e
paralelo. As canções e os intérpretes que Caetano Veloso traz em sua voz, partem
do original num exercício de mimese que dá origem, traz à tona outras
!199
possibilidades de sentido, em termos de interpretação, impactando o público, tanto
ao revelar o que é próximo, parecido, quanto ao revelar o inverso, totalmente oposto,
na linha tênue, como um equilibrista, entre o agrado e o choque, bem condizente
com a arte, em termos de proposta.
O interessante é perceber que, se por um lado, Caetano Veloso é uma figura
muito comunicativa e que sempre está a tecer comentários sobre os mais diversos
assuntos, e inclusive sobre sua obra, por outro ele acaba sendo bastante reservado,
sem evidenciar da maneira clara que lhe é característica as intenções que subjazem
sua produção artística. Logicamente que a sua obra, por si só, seja talvez mais
expressiva do que qualquer tentativa de elucidação por palavras. Até mesmo
porque, em termos de arte, a questão da inspiração e de sua concretização não se
trata de um processo objetivo e nem tão previsível quanto eventualmente se gostaria
que fosse — aliás, deixando de lado a questão formal dos estudos e análises, ainda
bem, já que a surpresa com cada novidade, no prosseguimento do trabalho de uma
figura tão inventiva quanto Caetano Veloso, revela-se, ao mesmo tempo como um
deleite, para um apreciador, e também mais um enigma a ser decifrado,
oportunidade de um exercício de exame, análise e reflexão.
Nesse sentido, colocamo-nos, como muitos o fazem, indo ao encontro das
teorizações em geral, partindo da concepção uma possibilidade de interpretação e
passando, então, a desenvolvê-la, no sentido de desdobrá-la e examiná-la, a fim de
chegar a uma compreensão mais profunda sobre Caetano Veloso, suas canções,
seu comportamento e todos os seus possíveis desdobramentos.
Um trabalho de criação artística como esse, pautado pela linguagem em sua
multiplicidade de manifestações — verbal, musical, corporal, comportamental, e
portanto, cultural — já tem passado pela prova do tempo com êxito e se configurado
como cânone. Desse modo, não se restringe ao que já se consolidara como a
tradição, mas, antes, inicialmente pode chocar, por superar os limites desta, mas,
com o passar do tempo, soma a ela elementos antes inadmissíveis como tal.
Eduardo Gianetti da Fonseca numa pergunta a Caetano Veloso no programa
“Roda Viva” 71, explicitou uma hipótese no que diz respeito à compreensão desta
figura camaleônica:
71
“Roda Viva” — 23/09/96
!200
Eu queria arriscar uma generalização... Eu te ouço desde 1978,
encontrei realmente o seu trabalho em 78, quando saiu o LP Muito.
E, de lá para cá, estou acompanhando com muita intensidade. Gosto
muito do seu trabalho! E identifico uma trilha que aparece no seu
trabalho, que eu gostaria de arriscar aqui e ouvir o que você pensa
disso. Acho que, de um lado, você defende a conquista de uma
ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na política, na economia que a
nossa convivência pública seja bem ordenada e seja civilizada. Isso
é muito presente, é muito forte, é muito contínuo. De outro lado, você
também defende o nosso coração iorubá [de origem africana], a
nossa alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria
espontânea que brota do fundo do fundo da nossa alma brasileira. E
acho que a grande utopia que você coloca para todos nós é
combinar essas duas coisas. Conquistar a civilização, mas não
perder o que nós temos de melhor, que é essa grande alegria, essa
grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia que está
em todos nós. Acho o seguinte, Caetano: será que essas duas coisas
podem ser combinadas? Será que alguém vai conseguir juntar uma
coisa sem perder a outra? Temo que a civilização entristeça a alma
humana. [risos] E nenhum povo conseguiu escapar disso! E nós, no
Brasil, resistimos muito a isso. Acho que a grande utopia, os "trópicos
utópicos" que vejo em você é exatamente na busca dessa fusão.
Você refaz essa fusão na sua arte e eu acho que, na arte, a equação
se fecha. Na vida prática, não vejo como fechar essas duas coisas e
acho que, à medida que o Brasil se civiliza, infelizmente nós vamos
perder, aos poucos, essa alegria, essa vitalidade emocional, essa
coisa fantástica que ainda está viva. (FONSECA, 1996)
Fonseca, em seu comentário, ressalta uma característica de Caetano Veloso
— expressa tanto por meio de sua obra, quanto por meio de seu comportamento e
postura como artista — a combinação de elementos aparentemente impossíveis de
serem aliados ou agregados. Fonseca contrapõe a “conquista de uma ordem
civilizada no Brasil” — uma ideia de desenvolvimento, atrelada à realidade de
contextos como o europeu — a “o nosso coração ioruba”, a essência de nossas
múltiplas raízes atreladas a culturas indígenas e africanas. O economista em
questão ressalta o fato de esta união dar certo na arte de Caetano Veloso, mas
duvida, questionando-se em relação à realidade, tendo em vista o caráter excludente
entre os dois elementos.
Caetano Veloso, em sua resposta, ressalta uma plena identificação da
hipótese levantada por Fonseca com os seus ideais, do ponto de vista artístico:
A sua pergunta, para mim, não precisa de resposta! Não precisa de
resposta. Gostei imensamente do modo como você formulou. E acho
que ela, de uma certa forma, abrange — posso dizer mesmo — a
totalidade dos meus interesses. [risos] Pelo menos dos meus
interesses que podem ser tornados, ou precisam ser, tornados
públicos. Acho que você tocou num ponto que é fundamental! Mas a
minha ambição talvez seja ligeiramente maior do que a própria
questão da fusão, entendeu? A minha ambição seria a de tomar
!201
posse da civilização, porque acho que há dados universais ligados à
convivência social. E acho que são dados definitivos e que esses
dados devem ser compartilhados por todos os seres humanos, que
devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. (VELOSO,
1996)
Ao concordar plenamente, a ponto de nem sequer precisar elaborar uma real
resposta para o questionamento de Fonseca, mas apenas comentar ainda mais o
assunto nele levantado, Caetano Veloso toca num ponto fundamental para a
reflexão que estamos empreendendo, em relação à sua face de agitador cultural:
“tomar posse da civilização” para poder partilhar e distribuir “dados universais
ligados à convivência social”.
Desse modo, podemos depreender alguns pontos que se colocam como
respostas a alguns dos questionamentos levantados ao longo desta tese. Em
primeiro lugar, a importância da questão da cultura, independentemente se de
nações do norte ou do sul, desenvolvidas ou subdesenvolvidas. Tudo que tem
beleza, força e promove uma ruptura dos limites e barreiras que estabelecem estas
separações todas — e todas as consequências delas advindas.
Para tanto, Caetano Veloso adota uma postura literalmente antropófaga —
não apenas no Tropicalismo, mas em toda sua carreira — culturalmente falando, no
que diz respeito à devoração, a tomada para si de elementos exteriores (tanto
nacional quanto internacionalmente falando), a digestão (a familiarização, o pleno
conhecimento das características destes), e o verter o expelir de uma obra nova,
inédita e diferente do que servira como base, marcada já pela plena assimilação do
que até então era o diferente ou oposto, não num roubo, ou mera cópia, mas num
ato de compartilhamento.
Essa atitude ou comportamento ajuda a entender porque não há limites em
termos de área de atuação, temáticas desenvolvidas, estilos musicais, posturas,
enfim... Aliás, isto vai ao encontro do próprio conceito de cultura, conforme pontua
Bauman (2013):
Segundo o conceito original, a “cultura” seria um agente da mudança
do status quo, e não de sua preservação; ou, mais precisamente, um
instrumento de navegação para orientar a evolução social rumo a
uma condição humana universal. (BAUMAN, 2013, p. 12)
Caetano faz jus às palavras de Bauman, questionando e modificando o status
quo, numa constante absorção de praticamente tudo, que, da realidade, passa para
!202
a arte, fazendo jus à função do cancionista, contida nos versos de uma canção de
Caetano Veloso.
Nesta, o cancionista (compositor/intérprete) é dado como “todo aquele que
nos empresta sua testa construindo coisas pra se cantar”, colocando-se como um
representante de toda uma grande coletividade, e talvez até mesmo por isso,
conseguindo atingi-la com tamanha veemência por meio de suas canções.
Aquilo que é expresso nas canções, a síntese do que se passa ou poderia se
passar com todo um povo, é dado na mesma canção como:
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
E o otário silencia
Toda festa que se dá ou não se dá
Passa pela fresta da sexta e resta a vida
Vale ressaltar que a canção em questão, Festa Imodesta (1974), nunca foi
gravada oficialmente por Caetano Veloso, mas fora composta por encomenda para
compor o álbum de seu colega de ofício, Chico Buarque de Holanda que tivera todas
as suas canções censuradas, no contexto da ditadura militar brasileira.
Em meio a um completo desrespeito às liberdades e diretos dos cidadãos
como um todo, Caetano ousa dar esta festa completamente imodesta em termos de
expressão e de protesto, até ao empregar na letra os termos “malandro” e “otário”,
referindo-se justa e respectivamente à designação daqueles que se expressavam
contra os desmandos dos militares, e os mecanismos de censura que impediam os
próprios artistas de se manifestarem por meio de sua arte, com a liberdade devida.
Caetano Veloso há quase cinquenta anos tem mantido os olhos atentos a
todas as possíveis frestas das mais diversas cestas e vertido todos estes fatos em
arte, em canções, legando para a história uma maneira diferente de fazer aqueles
que tem vindo ou ainda virão depois conhecerem tudo que aconteceu.
O trânsito entre as culturas e, tanto o louvor quanto o protesto, por meio da
arte, se traduz numa literal agitação que faz as pessoas que entrem em contato com
sua obra — sejam fãs ou não — pararem, refletirem, e, sobretudo se posicionarem
nas mais variadas esferas atreladas ao convívio e existência.
Por tudo isso, “salve o compositor popular” e salve o agitador cultural Caetano
Veloso.
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