31º Encontro Anual 2007 Caxambu, MG 22 a 26 de outubro de 2007 ST 5 - Cidades: perspectivas e interlocuções nas ciências sociais Coordenadores: Heitor Frúgoli Jr (USP), Laura Graziela Gomes (UFF) Narradores urbanos: etnografias nas cidades brasileiras Autoras: Ana Luiza Carvalho da Rocha Cornelia Eckert Banco de Imagens e Efeitos Visuais Laboratório de Antropologia Social Programa de Pós Graduação em Antropologia Social IFCH e ILEA Universidade Federal do Rio Grande do Sul Documentários Estudos da antropologia urbana e etnografias nas cidades brasileiras: Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert, Rafael Devos, Viviane Vedana, Anelise Gutterres, Rafael Lopo. Colaboração e Olavo Marques, Fernanda Rechenberg, Thaís Cunegatto, Henrique Dallago. Banco de Imagens e Efeitos Visuais, LAS, PPGAS, IFCH e ILEA, UFRGS. Narradores urbanos: etnografias nas cidades brasileiras Ana Luiza Carvalho da Rocha Cornelia Eckert Filiações no percurso antropológico O documentário Narradores Urbanos do qual trazemos neste Seminário Temático um fragmento, se desdobra de nossos objetivos de pesquisa acadêmica dedicada a antropologia visual/imagem e antropologia urbana de problematizar o caráter temporal da experiência humana presente ao mundo contemporâneo e as suas repercussões nas práticas e saberes que os indivíduos e grupos urbanos constroem em suas relações com a cidade. Partimos da perspectiva de que espelhando referenciais culturais de um passado coletivo, a vida urbana recompõe-se num tempo coletivo. Em nossas etnografias na cidade (disponíveis em Iluminuras, www.estacaoportoalegre.ufrgs.br) bem como de nossa proposta de museu virtual e banco de imagens (BIEV), torna-se central o estudo dos itinerários urbanos e das formas de sociabilidade, das intrigas e dos dramas que configuram o teatro da vida citadina, apreendidos como uma espécie de mapeamento simbólico do movimento da vida. No estudo de narrativas das trajetórias vividas pelos habitantes urbanos refletimos sobre a complexidade sociológica das estruturas espaço-temporais sob as quais se assentam os fenômenos da alteridade e da experiência humana no mundo contemporâneo. Reconhecemos que o fenômeno urbano é o resultado da ação recíproca de indivíduos e de grupos no plano de trocas sociais o que nos leva a tratar das formas específicas dos arranjos da vida social que aí se processam, segundo a complexidade dos gestos acumulados de seus habitantes, seja para a compreensão do processo de territorialização/desterritorialização de identidades sociais no mundo contemporâneo; seja para o entendimento da descontinuidade/continuidade sistêmica de valores acionados, de redes/espaços sociais que situam os sujeitos segundo suas trajetórias, posições e papéis, suas adesões e suas dissidências no contexto citadino. 0Sobretudo, visto sob o ângulo da transformação mundial das culturas, é a produção da Diferença em termos dos processos microscópicos, no que concerne à adequação/transformação entre forma social e fluxo vital, instituições e comportamentos individuais e coletivos, que se pode elucidar sobre o "como" e o "porquê" dos laços coletivos e os contextos sociais onde são vividos e negociados. No plano das ciências humanas, a produção da Diferença1 atinge outras proporções: qual o lugar que ocupa a desordem2 na formulação do pensamento antropológico por vezes asfixiado pela obsessão de encontrar “leis” absolutamente necessárias e universais para vida social. A destruição/reconstrução de singularidades culturais e regularidades locais, cada vez mais remete, o antropólogo, a pensar as referências de tempos vividos e ordenados na experiência ordinária dos atores sociais como forma de atribuir significação aos seus atos/pensamentos.3 Na antropologia brasileira, o campo fértil para o conhecimento deste processo tem sido a análise da dinâmica da vida urbana, pois a cidade é um território expressivo da experiência temporal contemporânea dos grupos humanos que nela habitam, não sendo suas estruturas espaciais e as formas de vida social que aí se processam um aspecto banal e evidente de suas vidas cotidianas. No Brasil, a escola paulista das professoras Ruth Cardoso e Eunice Durham e no Rio de Janeiro, Roberto da Matta e Gilberto Velho conformaram nos anos 1960 e 1970, linhas de pesquisa tendo por tema a sociedade urbana no Brasil. Estes são seguidos de perto por alunos ou pares em pesquisa que corroboravam com seu interesse temático como Ruben Oliven, Antônio Augusto Arantes, Alba Zaluar, Tereza Caldeira, Myriam Lins de Barros, José Guilherme Cantor Magnani entre outros, caracterizando o período de 1970 e 1980 como sendo o de maior desenvolvimento de pesquisas tendo por enfoque as populações urbanas no Brasil. Como pesquisadoras antropólogas interessadas no estudo da memória coletiva e trajetórias urbanas nas cidades brasileiras consideramo-nos herdeiras das questões problematizadas por esta linhagem. Trazemos aqui o desenvolvimento de uma série documental a partir do exercício interpretativo destes cientistas sociais que configuram narrativas do viver urbano que viabilizam o reconhecimento de uma “estilística” da 1 Referimo-nos aqui menos à obra de DELEUZE, G. Différence et répétition, Paris, PUF, Seuil, 1968, que a obra de VATTIMO, G. Les aventures de la différence, Paris, Editions Minuit, 1985, onde o autor, reverenciando o pensamento de W. BENJAMIN, precisamente sobre a experiência do homem das grandes metrópoles, analisa o declínio do sujeito da tradição metafísica (burguês-cristão) e seus reflexos no estudo do mundo contemporâneo (do “despertar do ser”) e onde o sujeito não se deixa mais perceber como presença, estabilidade, fundamento absoluto, mas como “finitude”, “ser-para-a morte”. 2 Os comentários de BOUDON, R. La place du désordre, critique des théories du changement social. Paris, PUF, 1984, permanecem, ainda hoje, bastante pertinentes. 3 Não por acaso, é interessante aqui citar as obras de DE CERTEAU como estratégias aos olhos dos antropólogos preocupados com o estudo do mundo urbano contemporâneo. A referência a este autor tem sido freqüente para o caso do reconhecimento, por parte dos antropólogos, de que o processo de fabricação de teorias contemporâneas deve retornar à realidade das práticas cotidianas dos grupos/indivíduos e a seus “saberes não-sabidos” como forma de recolocar o tema da “multidão sem qualidades” sob outro prisma: “o das artes do fazer”. DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994; DE CERTEAU, M. A Cultura no Plural. Campinas, SP: Papirus, 1995. antropologia (Cardoso de Oliveira, 1995, 177 a 189) em seus estudos da e na cidade pela sua potencialidade de gerar conhecimento sobre o viver no contexto urbano em suas reflexões conceituais neste campo. A própria característica discursiva da antropologia nos sugere esta circulação de interpretações para além dos escritos etnográficos e analíticos produzidas pelos antropólogos brasileiros sobre as camadas médias no Rio de Janeiro, sobre as populações migrantes a caminho da cidade, sobre os habitantes nas periferias da cidade de São Paulo ou sobre os citadinos em seus confrontos cotidianos em face a democracia disjuntiva brasileira. O suporte filmico de trazer os antropólogos urbanos brasileiros como personagens que narram suas cidades percorrendo a complexidade do conhecimento simbólico produzido sobre nossas cidades, ressoa nas múltiplas interpretações das experiências de habitar nestes contextos. Estas narrativas ampliam assim qualquer estilística desse campo disciplinar pela variabilidade das significações secundárias sobre as significações primárias fornecidas em um construto intelectual sobre a condição urbana. Com esta motivação persegue-se o acesso ao excedente de sentidos (Ricoeur, 2000 e Cardoso de Oliveira, 1995, 177 a 189) que não nega o conceito que compreende a cidade (deslocamento, pedaço, violência, fala do crime, polifonia, desordem, estilo de vida, sujeitos psis ou éticos, resistência, franja, heterogeneidade) mas não o legitima em uma única significação primária. Antes é dado um tratamento semântico aos documentários como um projeto de reconfiguração dos sentidos, abrindo para múltiplos jogos de interpretação, os acontecimentos do saber e da prática antropológica. A cidade como objeto antropológico A cidade como objeto de pesquisa antropológico foi sendo compreendida, ao longo do tempo, a partir de instrumentos teóricos e conceituais eficazes por sua condição de locus de interpretações de processos de transculturais. Esses enfoques teóricos apropriados pro uma antropologia já consagrada em seu método etnográfico de estudos de sociedades ditas simples revigora as análises de culturas urbano-ocidentais pela sua qualidade de proporcionar o conhecimento da(s) cidade(s) a partir da investigação em seus espaços, territórios, lugares, etc, tudo construindo no pesquisador a reflexão sobre a cidade que o habita e o concebe. Tomar a cidade como objeto temporal significa, aqui, contemplar o acontecimento urbano seja a partir da imagem mnésica que os habitantes enquanto atores sociais sugerem, seja do fundo comum de sentido ao qual pertencem. Tendo por objeto de reflexão as cidades modernas, a ênfase analítica dá-se sobre as formas de organização e interação entre indivíduos e suas redes de relações como campos de negociação da realidade em múltiplos planos. Trata-se de reconhecer o tempo urbano vivido através das narrativas de trajetórias e de itinerários de indivíduos/grupos neste jogo de eterna reinvenção de "práticas de interação" de seus habitantes.4 A chamada “linha de pesquisa em antropologia urbana ou estudo das sociedades complexas”, consiste na descoberta destas formas de vida social no meio urbano, o que levou o antropólogo a voltar-se para sua própria sociedade na busca do entendimento de seus próprios sistemas de significações, através de uma preocupação singular com o conteúdo simbólico das cidades "enquanto representação do universo pelo homem e mediação na integração do homem nesse universo"(5). Sob este invólucro as formas de vida social no meio urbano tornam-se objeto de indagação aos olhos dos antropólogos sob o comentário atento de Georg Simmel: “A vida engloba em um só ato a limitação e o deslocamento do limite”6. Marcadas por processos dinâmicos de transformações, os antropólogos brasileiros seguem de forma criativa as orientações dos estudos da Escola de Chicago investigando também aqui os sistemas de representações mentais (imagens e valores) que caracterizam a vida na cidade7, as "regiões morais" e suas “províncias de significado”8 que se colocam a partir do revelado emicamente e traduzidos num discurso antropológico sobre o "outro"; lá onde a própria idéia de "negociação da realidade" implica não só o reconhecimento da diferença como elemento constitutivo da sociedade9 mas a arbitrariedade da escritura etnográfica10. A cidade interpretada se revela então como exercício reflexivo de ver-se a si mesmo nas transformações históricas profundas tanto quanto nas regularidades e rotinas de uma vida cotidiana. Como matéria significante, os enfoques teóricos dos antropólogos urbanos vão encadeando um corpo conceitual que transmite uma 4 . GOFFMAN, E. Les rites d'interaction. Paris, De Minuit, 1974, p. 42. . LEROI-GOURHAN, A. O gesto e a palavra, técnica e linguagens. Lisboa, Edições 70, 1965. 6 SIMMEL, G. apud LÉGER, F, La pensée de Georg Simmel, Paris, Kimé, 1989, p. 289. 7 . SIMMEL, J. Sociologia. Estudios sobre las formas de socializacion. Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1984, p. 61. 8 SCHUTZ, A. Estudios sobre teoria social. Buenos Aires, Amorrortu editores, 1972. 9 . VELHO, G. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Zahar, 1994, p. 21-22. 10 . CLIFFORD, J. y MARCUS, G. E. (Eds). Retoricas de la Antropologia. Madrid, Serie Antropologia, Jucar Universidad, 1991. 5 experiência de “profunda desorientação” (Canevacci, 1993), como propõe a máxima antropológica de tornar familiar o que é estranho e de estranhar o que é familiar. Nessa, redes de pessoas dinamizam estruturas sociais, negociam identidades, empreendem posições políticas, diferenças econômicas e avanços tecnológicos, estilizando a existência no ritmo do nascer e do morrer, no âmago dessa “criatura” que “criamos” coletivamente e que nos cria individual e socialmente. Para o sociólogo-historiador Norbert Elias aqui haveria um encadeamento de situações históricas e de experiências comuns que refletem um vivido em nível da nação, da civilização, definidas como quadro social da memória coletiva ocidental, onde “o observador, simultaneamente, observa a prática e situa sua própria maneira de ver a un palier do processo”. A consciência de si (do antropólogo) “deveria sem dúvida também ser apreendida na sua gênese. A memória coletiva dos indivíduos ocidentais é também a sua”.11 Assim, pode-se redimensionar a cidade etnografada como objeto que realiza uma obra temporal uma vez que seus territórios e lugares se prestam ao enraizamento de uma experiência de sentidos reinterpretada sistematicamente por uma comunidade de comunicação, emitindo múltiplas figurações de uma constante reordenação do viver coletivo. A cidade assume, assim, um lugar estratégico como locus privilegiado para a reflexão antropológica em sua busca de apreender, a partir de uma perspectiva compreensiva, tanto a "comunicação" que preside as formas de vida social no meio urbano, como as multiplicidades e as singularidades que encerram o vivido humano no interior deste espaço existencial criado pelo homem da civilização. A exemplo dos estudos de antropologia e sociologia urbana no século XX, também as metrópoles brasileiras e a vida humana tornam-se objeto de estudo seja em seus fenômenos vitais como em seus "retalhos, os resíduos”, “secundário ou excêntrico”: as migrações, o trabalho, a família, o cotidiano, tanto quanto o consumo, “a moda, o jogo, o colecionador, os dioramas, a prostituição, o flâneur, as passagens, o interior, as ruas, a fotografia, o réclame".12 Para nós, como antropólogas e pesquisadoras do e no mundo urbano, tornou-se lugar estratégico o estudo dos itinerários dos grupos urbanos e de suas formas de 11 . BOURDARIAS, F. “Norbert Elias: les techniques du regard”. In. Sociétés. Revue des Sciences Humaines et Sociales. Paris, Dunod, n° 33, 1991. p. 259. 12 . CANEVACCI, M. A cidade polifônica. Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo, Studio Novel, 1993, p. 107. sociabilidade na compreensão do mundo urbano contemporâneo no Brasil e em especial na cidade de Porto Alegre. O sentido destes deslocamentos dos grupos/indivíduos entre as "províncias" e "territórios" de significação nas cidades é para nós uma das questões cruciais para se compreender o fenômeno da memória coletiva e, por conseqüência, da estética do viver urbano das modernas sociedades industriais. Mas também as formas que orientam nossas interpretações seguem as configurações de um campo conceitual que nos precede e que orientamos nos trabalhos dos pesquisadores em nosso projeto. Assim, ao narrarmos as formas do viver urbano em Porto Alegre, reconhecemos o pertencimento a uma comunidade dialógica no âmbito de um campo semântico. Desta forma, somos todos nós também configuradores de um pensamento sobre as formas dos tempos vividos nas cidades. O "tempo social", neste caso, é o produto de um processo de consolidação temporal pensado por comunidades éticas (ethic), fruto da hierarquização de uma série de instantes e de rupturas de trajetórias vividas. Evita-se assim perceber a história de uma cidade presa às modalidades simbólicas de controle do tempo expressas pelos grupos/indivíduos e agenciadas no contexto de seus ambientes psico-históricos.13 Olhar, escutar, escrever... narrar a cidade Para se compreender o processo dinâmico de mutação e turbulências das formas de vida nas cidades do mundo contemporâneo, leva-se em conta o tempo presente do vivido de seus habitantes narrado por eles próprios ao antropólogo em sua escuta em campo para sua reconfiguração nas narrativas produzidas sobremaneira no suporte da escrita etnográfica, em que suas vozes reverberam. Nesta nação de múltiplas mediações para referirmos aqui os estudos culturais de Roberto Da Matta, compreender a cidade tem se revelado um ato de arrumar, encadear e encaixar as diversas estruturas temporais e espaciais dos ritmos das trajetórias e histórias de grupos humanos que nela habitaram e habitam, num esforço de estabelecer um tempo humanitário que se solidarize com a tarefa de seus habitantes de construir uma durée.14 13 Adotamos para a análise da Cidade como objeto temporal as reflexões de DURAND, G. Les strucutres anthropologiques de l’Imaginaire. Paris, Dunod, 1984, ao situar a produção do fenômeno urbano como parte do trajeto antropológico do homem, ou seja, o fruto das acomodações das pulsões subjetivas humanas às intimações do seu meio cósmico e social. O espaço urbano aparece, assim, como parte da expressão de uma “fantástica transcendental”, onde se situa o fenômeno da memória, ao permitir aos seus habitantes “remontar o Tempo” e perenizar suas ações no mundo. 14 Importante aqui situar a trilogia da obra de G. FREIRE (Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Daí a importância de estudarmos e também desenvolvermos no projeto BIEV etnografias que captem as formas destas configurações temporais na cidade que engendram as formas como os sujeitos pensam a ordenação de superposições temporais vividas. Pela dinamização da memória de uma comunidade urbana, seus agentes consolidam uma temporalidade vivida como coletiva, rica em significações ordenadas na descrição etnográfica como momentos singulares de internalização de formas culturais do comportamento “nativo”, pois é por meio da escrita que a voz do Outro se torna a base da “fala interior” do próprio antropólogo. Dito de outra forma, a escrita etnográfica, ao configurar-se na própria tríade autor/tradutor/texto, proporciona, ao antropólogo, a sistematização de seus pensamentos interiores e a construção de ações estáveis em relação à cultura e à sociedade pesquisadas. Ao mesmo tempo, a leitura dessa escrita projeta as afirmações dos antropólogos para muito além daquilo que encerra a obra etnográfica no contexto de sua comunidade lingüística de origem. Apoiadas nos comentários de Lev Vygotsky (1994) sobre as complexas operações cognitivas que surgem de entrelaçamentos entre escrita e fala humana, podemos afirmar que é na espacialidade e na temporalidade da construção da própria escrita etnográfica, em seu estatuto de “memória mediada”, que o ato de pensar do antropólogo desprendese da lógica de suas lembranças, ou do que ele é capaz de lembrar-se de suas experiências de campo, para orientar-se progressivamente pela estrutura lógica de conceitos em si. Sob esse ângulo, podemos dizer, parafraseando este autor,15 que, para o antropólogo, mais do que para qualquer outro cientista social, “lembrar significa pensar”, pois sua memória está carregada da lógica que o processo da lembrança é obrigado a desvendar. A singularidade do discurso êmico proferido pelo antropólogo residiria, portanto, no caráter reflexivo expresso em suas pesquisas, tema este que tangencia uma "hermenêutica do si" (Ricoeur, 1991), da qual não se pode afastar a produção/construção do conhecimento antropológico em suas bases mais profundas. Trata-se de um momento singular da produção teórica e conceitual da Antropologia, Mocambos e Ordem e Progresso) como desafio para se pensar o ritmo das acomodações do tempo através das quais a civilização urbana no Brasil se implantou, diferenciando-se nitidamente desde uma perspectiva da cidade colonial, cidade imperial e cidade democrática, cf. ROCHA, A. L. C da. “Le sanctuaire du désordre, l’art de savoir-vivre des tendres barbars sous les Tristes Tropiques”. Tese de doutoramento, Paris V Sorbonne, l994. 15 Nossa inspiração é a obra de Lev Vygotsky intitulada A Formação Social da Mente (1994). Detivemonos, especialmente, nos comentários desse autor no que se refere ao estudo das leis e das características que regulam os sistemas de signos, tais como a escrita ou a fala, em sua estreita interação com o sistema de instrumentos, ambos fenômenos comportamentais produzidos culturalmente. quando a experiência temporal do "sujeito do investigador" – na correlação entre o "si" e o "diverso do si" (Ricoeur, 1991) – começa a ser incorporada como centro de suas preocupações. Acompanhando este "ponto de revolução", o antropólogo passa a interrogar-se a propósito de "quem fala designando-se a si mesmo como locutor (dirigindo a palavra a um interlocutor), desencadeando-se aí toda uma reflexão sobre o estatuto indireto da posição do si"16. Assim, acaba-se igualmente por problematizar metodologicamente a mediação narrativa como constituinte, em Antropologia, do método etnográfico que, se acredita, possa elucidar os paradoxos da identidade pessoal do antropólogo como fundamento da produção téorico-conceitual desta matriz disciplinar na contemporaneidade. Em seus estudos das culturas e sociedades humanas, os antropólogos passam, então, a confrontar-se com o fenômeno da interioridade do tempo. Isto é, por exigências de "deslocamento" do sujeito cognoscente na produção da "objetividade" científica, o antropólogo constata que suas reflexões, oriundas da análise de suas próprias experiências vividas em campo, traduzem assertivas relativas à problemática do si. Nestes termos, as “estruturações do real” produzidas pelo antropólogo, consideradas segundo percepções subjetivas objetivadas, tanto quanto as práticas e ações sociais dos grupos por ele investigados passam a ser analisadas como "ordens de significado de pessoas e coisas" (Sahlins, 1979, p. 10). Por esta via, a “matriz disciplinar da Antropologia”17 desloca suas ordens de preocupações epistemológicas para o "caráter reflexivo do si"18 na produção de seus conceitos e teorias, onde o tema da identidade narrativa e autoral ganha importância na polêmica encerrada pelas produções etnográficas em Antropologia. Encobre-se, aqui, o fato de que a “dialética do si”, gerada na descentração do sujeito do antropólogo (Piaget, 1997), é redutível ao caráter das identificações (valores, 16 Marcel MAUSS, já em 1902, recomendava aos etnógrafos "buscar os fatos profundos, inconscientes quase, porque eles existem apenas na tradição coletiva". Mauss recorre à noção de inconsciente para melhor dar conta da natureza das representações coletivas ("categorias do entendimento"): "Para Mauss, a noção de inconsciente parecia indispensável para explicar não apenas a categoria, mas igualmente o costume, os hábitos em geral". CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 38. 17 . Para Roberto Cardoso de Oliveira, “uma matriz disciplinar é a articulação sistemática de um conjunto de paradigmas, a condição de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e relativamente eficientes.” CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988, p. 15. 18 Serão aqui mencionadas inúmeras expressões que têm sua origem nas obras de P. RICOEUR supracitadas, das quais nos apropriamos para fazer avançar a análise sobre história de vida em Antropologia, tendo como suporte o tema da identidade narrativa. normas, ideais, modelos) nas quais o investigador/comunidade investigada se reconhecem, desvendando-se alteridades, ficando latente a problemática da ipseidade.19 Nos termos de uma sociopsicogênese das teorias e conceitos da Antropologia, a tarefa do etnógrafo se consolida, assim, como sendo a de investigar "um sentido em configurações muito diferentes, por sua ordem de grandeza e por seu afastamento das que estão imediatamente próximas do observador" (Levi-Strauss in Mauss, 1985). Abre-se, assim, espaço para se problematizar, no corpo das práticas antropológicas, o tema da constituição do "si-mesmo" do etnógrafo como "um outro", confrontado na escritura de seu texto com o lugar de autoria/autoridade de sua produção teórico-conceitual, segundo uma hermenêutica da existência, na impossibilidade do tratamento impessoal da identidade no plano conceitual. Para além da importância de se discutir o contexto em que se dá o processo de construção etnográfica, as determinações políticas, históricas e conjunturais da construção do enunciado e a avaliação da apreensão teórica feita pelo pesquisador (Caldeira, 1988), o que hoje deve ser ponderado pelas ciências humanas é o fato de que o conhecimento humano, em sua pluralidade, segue todo um outro percurso que não o da causalidade finalista e fatalista da formulação de ordens complexas de estruturação do conhecimento20. O métier do antropólogo deriva-se, assim, deste processo antropossociopsicogenético das representações racionais no Ocidente moderno. De acordo com tais formulações, todo o conhecimento (mesmo o produzido pelo antropólogo em torno da sua identidade pessoal na Antropologia) é o conhecimento transcendente de uma totalidade na qual cada coisa se situa em relação à unidade do conjunto, numa rede de correspondências e similitudes simbólicas cuja causalidade não se reduz a conexões de coisas a séries infinitas e simples. Isto em razão de que a função simbólica que preside as operações cognitivas é essencialmente função eufêmica, obedecendo a um dinamismo prospectivo a partir do qual o homem tende a organizar as suas formas ordinárias de conhecimento do e no mundo. Através da composição narrativa que retoma o tempo da ação "em campo", o antropólogo faz coincidir as redes de relações nas quais os atores/comunidades se 19 O aspecto ético aqui envolvido se traduz no fato de o antropólogo “relativizar”, num processo descentrado de seus hábitos e identificações adquiridas (seu “eu mesmo”) sem, no entanto, explicitar aí seus vínculos com a capacidade de designar-se, a si próprio, como “um outro”, jogando-se no campo da indeterminação e do julgamento moral da manutenção do si. 20 Ver a respeito E. CASSIRER, 1972, obra que poderíamos fazer interlocutar tanto com PIAGET. 1970, S. VIGOTSKY, 1995 e H. WALLON, 1945 quanto com C. LEVI-STRAUSS, 1970 e LÉVY-BRHÜL 1925. movimentaram com a escritura em seu diário de campo, numa referência às negociações cotidianas do sentimento de pertencimento ou exclusão (negação voluntária ou exclusão involuntária), onde todos os elementos do conjunto estão numa relação de "intersignificação". Neste ponto há que se considerar um dos problemas das aprendizagens do métier do antropólogo, precisamente, saber inscrever a dialética do si na configuração21 da seqüência dos acontecimentos contingentes observados em campo, numa ordem compreensiva do mundo das ações humanas, onde a linguagem é lançada fora de si mesma, por sua veemência ontológica, uma vez que é através dela que a coerência interna de sua obra conjuga a experiência temporal de seu ato interpretativo. Por isso, vale lembrar aqui a obra que inspira este projeto de desorientação e deslocamento do pensar, O si-mesmo como outro (1991), e os comentários que faz Paul Ricoeur sobre os traços da experiência temporal que separam identidade-idem e a identidade-ipse na formulação da identidade pessoal, para o caso do métier do antropólogo e seus desdobramentos epistemológicos na geração do paradoxo que encerra o método etnográfico: fazer convergir o tempo da ação e o tempo da narração. Uma prática de pesquisa no contexto urbano que encontra também inspiração na trilogia de Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa, e na fenomenologia bachelardiana de obras como A Poética do Espaço e a Dialética da Duração. Na cidade do Rio de Janeiro que vamos mostrar agora na narrativa de Gilberto Velho tanto quanto as demais cidades de Ruben Oliven (Porto Alegre) e de Ruth Cardoso, Eunice Durham, Tereza Caldeira, José Magnani (São Paulo) despontam como lugares de deslocamentos e itinerários na trama narrada das experiências vividas pelos antropólogos em suas permanências e transformações. Os modos do viver urbano pensados em sua inteligibilidade narrativa se configuram, então, como intertextualidade da cidade observada, ouvida, escrita e interpretada pela comunidade de antropólogos urbanos. Filiações fílmicas no exercício documental Como mostramos, a produção “filmica” Narradores Urbanos, retraça o percurso de conformação de um pensamento antropológico sobre a cidade moderna ao longo das transformações históricas profundas em seu próprio objeto de estudo, tendo como foco 21 Segundo P. RICOEUR, 1991, p.169: “Aplico o termo configuração a essa arte de composição que faz mediação entre concordância e discordância”. central o percurso da trajetória intelectual de “antropólogos urbanos” no Brasil ao interpretarem a cidade pesquisada. Nesta trajetória, a série situa o personagem do antropólogo a partir de seu lugar de habitante de uma grande metrópole, através do convite para uma desorientação ou deslocamento, no tempo e no espaço. Em seu métier de pesquisar a cidade se tornam personagens de histórias narradas, elaborando um olhar plural em torno do viver a cidade no mundo contemporâneo, estratégia encontrada para a construção do encontro etnográfico entre a cidade e o seu narrador, o antropólogo. Do suporte fílmico e sobre o ato de registro, seguimos a tradição de filmes etnográficos de intervenção ativa. Podemos aqui referir entre outros o filme de Jean Rouch e Edgar Morin, Chronique d’un Été (1961) no sentido de ser concebido como uma interrogação cinematográfica tendo por intenção o sociodrama (Da Rhin, 2006). Em Rouch, a câmera e o gravador, se somam ao caderno de notas na pesquisa etnográfica em sua proposta de “Antropologia compartilhada”. Neste ou em seus filmes contextualizados na África, o jogo da Alteridade/Identidade que a prática etnográfica contempla é o que mais as imagens deixam ver a respeito da forma como Jean Rouch representa um ethos, sintetizando até certo ponto, dois estilos de documentários clássicos que são o de Robert Flaherty (Nanouk, l'Esquimau22), conjugação de ficção e documento, e o de Dziga Vertov (L'Homme à la Caméra23) em sua pretensão de um cine-olho. Ambos os documentaristas tem sua produção fílmica referidas ao cinema documentário do início do séc. XX cada qual preocupado a sua maneira com o tema da realidade e da veracidade da representação contida na imagem fílmica. Numa síntese criativa e original destes estilos, foi com Jean Rouch que a Antropologia visual ganhou um procedimento metodológico paradigmático, o da antropologia compartilhada, pela forma reflexiva e dialógica como se dá à construção da representação etnográfica da Alteridade/Diferença através da imagem fílmica, e posteriormente aprimorado com o uso da câmera de mão, com som sincronizado. Este processo orienta o antropólogo-cineasta a considerar os obstáculos técnicos e culturais que estão por detrás do ato de filmar pessoas, culturas e povo, incluindo a sua própria, 22 O filme Nanouk l'Esquimau, 1h e 19 min, realizado em 1922 por Robert Flaherty durante sua estadia de 15 dias, durante o inverno de 1920, na região de Ungawa é considerada a primeira ficção: conta a história da vida rude de caçadores nômades esquimós, no norte canadense e de sua luta contra as forças da Natureza, vivido na ficção pelo caçador Nanouk, cúmplice de Flaherty na realização deste documentário sobre uma cultura em vias de extinção. 23 L´homme à la camera, o cine-olho de Dziga Vertov, produzido em 1929, trata dum dia na vida cotidiana da cidade de Odessa, a partir da experiência de um cinegrafista e da montagem destas imagens sendo acompanhada por seus espectadores. como constituintes dos contornos imprecisos que reúnem o cinema à realidade da vida daqueles que ele procura retratar através da representação fílmica. Após a aventura que representou a realização de Chronique d´un été cada vez mais a produção de seus filmes tem a câmera como protagonista do acontecimento documentado. Se a influência cultural do cinema é evidente nas obras rouchianas, como afirma, Ricardo Costa24, a “ficção etnográfica” que elas representam obedece certamente a uma intenção particular, ou seja, a de colocar o antropólogo no interior do fenômeno a ser etnografado. Segundo Jean Rouch, “o cinema-verdade não é a verdade no cinema, é a verdade do cinema”. A câmera protagonista do encontro com o outro diferente do etnógrafo-documentarista, desde as obras rouchianas, jamais poderá ser a mesma de Flaherty ou de Vertov, pois está em constante referência a civilização das imagens que a gerou, ou seja, a cultura ocidental e o seu desejo de domesticação da diferença pelo consumo de sua imagem. Em Chronique d´un été, os personagens reais (homens e mulheres; operários e intelectuais; negros e brancos; africanos, franceses, alemães; católicos, muçulmanos e judeus, etc), reunidos numa mesma cidade, Paris, residindo em moradias e bairros distintos, interagem entre si, discutem-se e interpretamse a si mesmos. Todos de alguma forma apresentam-se como protagonistas de simesmos para a câmera. E é para a câmera, instrumento de investigação e registro, aberta a experimentação da verdade de si que todos se revelam desde os estilos de vida, as visões de mundo, as crenças e os sonhos de que portadoras suas culturas. Dos filmes etnográficos de Jean Rouch, diferente muitas vezes das palavras do próprio cineasta-antropólogo sobre as origens de suas próprias imagens, que tendem a ressaltar, como vício do cinema direto, as idiossincrasias do seu autor diante das experiências vividas em outras sociedades e culturas, o que fica é que o documentário é quase um sinônimo da matéria da vida social, parte integrante do mundo do próprio antropólogo. Nunca esquecer que para Jean Rouch, a câmera deve não só participar na ação do antropólogo no mundo como pode tornar-se, ela mesma, ator importante ou até mesmo insuspeito protagonista dessa ação de compreender as diversidades das culturas humanas. No récit biográfico de Rouch, o trabalho etnográfico aparece como sempre na dimensão de uma aventura, a descoberta do Idêntico mediado pela presença das evidências da Alteridade do outro, recolocada por este outro, como Mesmo, a partir da 24 Ver a propósito o artigo de Ricardo Costa, A outra face do espelho. Jean Rouch e o ”outro'', acessível através do site Http://bocc.ubi.pt/pag/costa-ricardo-jean-rouch.html Diferença que a presença do antropólogo com sua câmera desencadeia no interior das práticas culturais de sua sociedade. Neste ponto, precisamente os filmes de Jean Rouch são paradigmáticos a respeito do que David MacDougall25 comenta sobre o fato do filme documentário etnográfico se caracterizar por revelar nas imagens do Outro como a presença residual do corpo do cineasta-etnógrafo no campo. Conforme comenta David MacDougall26, as imagens fílmicas sempre chamam a atenção por aquilo que elas aludem ao que esta fora da sua própria duração. Um documentário fílmico tem múltiplas identidades, a das pessoas filmadas, a das pessoas reais, fora do filme, das pessoas construídas na interação com o cineasta e contempladas nas imagens por ele produzidas. Os dramas que presidem as decisões e escolhas por esta ou aquela narrativa onde o conhecimento do Outro é configurado, é sempre um conhecimento construído através do ato do cineasta-antropólogo em campo, no jogo da Identidade e do Mesmo com a Alteridade/Diversidade. No caso dos Narradores Urbanos, os deslocamentos sugerem um jogo reflexivo com estes processos de conceituar as formas de interpretar a cidade ao longo das trajetórias intelectuais dos protagonistas. Estes acontecimentos definidos como semantical gap são trabalhados nos cortes e rupturas tomados como elementos indutores de suas narrativas do e no meio urbano uma vez que através da reflexão exploram os sentidos das continuidades e descontinuidades, seja nas rotinas seja em macro situações em que se concebe o fenômeno do "desencaixe" do tempo e do espaço tão característico da Modernidade. No que tange as escolhas fundamentais de realização do exercício - os dispositivos de pré-produção (roteiro), da produção (gravação) e da pós-produção (montagem) - elas são determinadas no sentido de restaurar, sempre que possível, as modalidades diversas adotadas pelo pensamento antropológico no Brasil para o estudo das formas de vida nos grandes centros urbanos, sugeridos pela diversidade na forma que os antropólogos adotam na construção de seu próprio campo de saberes. Os lugares filmados, o tempo restituido 25 Ver a respeito David MacDougall, The corporeal image. Film, ethnography and the sense Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2006. 26 A propósito consultar David MacDougall Transcultural cinema, Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1999. Uma vez que Antropologia urbana tem afirmado que as diferenças identitárias nos grandes centros urbano-industriais podem funcionar como lugar tanto de abertura como de fechamento dos indivíduos e/ou grupos sociais para o mundo do Outro, pode-se supor que o próprio campo de saberes e fazeres em Antropologia Urbana sofra as injunções das “marcas culturais” do lugar onde se situam. Neste caso, os lugares da vida urbana nacional visitados foram definidos a partir das escolhas dos antropólogos entrevistados, no respeito às linhas de adoção e formação intelectual e de pesquisa. Gilberto Velho, que trazemos nesta sessão como “notícia”, escolheu lugares de seu bairro e de seu trabalho. Desta forma acomoda os fenômenos estudados sobre estilos e projetos de vida, rede de significação, territórios simbólicos, fronteiras de sentido e nichos de tensões/violências/emoções ao contexto acadêmico. O tempo de filmagem foi concebido durante três dias entre entrevistas e visita a lugares ou situações sugeridos pelo antropólogo para registro. A primeira forma editada foi analisada pelo antropólogo que sugeriu várias modificações de referências espaciais e situações do cotidiano que convergiam com suas reflexões. O tempo de narração de cada documentário diferencia-se segundo o personagem “etnografado”, no sentido de que a sua forma restitui as peculiaridades do ato da própria pesquisa antropológica em questão. Ao final trata-se de uma série de documentários que apresenta o universo caleidoscópico dos saberes e fazeres antropológicos no Brasil através de uma interpretação comparativa de cenários/cidades e personagens/antropólogos. Consiste assim em uma série documental que explora as diversas sínteses e avaliações dos principais antropólogos acerca do cenário urbano no Brasil, na busca do tratamento narrativo diferencial segundo o olhar de cada antropólogo sobre a cidade.. Etnografia das etnografias Esta etnografia da obra antropológica referente a cidade a partir da narrativa dos antropólogos urbanos é concebido pelo deslocamento interpretativo do entrevistado em sua própria cidade, o que significa dizer, dentro de uma proposta benjaminiana, que afirmamos uma preocupação com a pesquisa antropológica a partir do paradigma estético27 na interpretação das figurações da vida social na cidade. Um investimento que contempla uma reciprocidade cognitiva como uma das fontes de investigação, a própria retórica analítica do pesquisador em seu diálogo com o seu objeto de pesquisa, a cidade e seus habitantes. Uma vez que tal retórica é portadora de tensões entre uma tradição de pensamento científico e as representações coletivas próprias que a cidade coloca em cena, o pesquisador constrói o seu conhecimento da vida urbana na e pela imagem que ele compartilha, ou não, com os indivíduos e/ou grupos sociais por ele investigados. O uso do vídeo na perspectiva do registro dramático, tem nos forçado a refletir sobre o papel estratégico da imagem-movimento não apenas como modalidade de registro, no tempo, do processo de inserção do antropólogo em campo (seus dilaceramentos), mas como parte do seu processo de interpretação dos atos de destruição/reconstrução das formas de vida social nas modernas cidades urbanoindustriais, e de onde emerge a evidência da escritura etnográfica como construção da inteligência narrativa do próprio antropólogo. No sentido do desenvolvimento de uma dramaturgia filmica, os documentários exploram as correspondências ou paralelismo entre os momentos fortes das entrevistas e as imagens sobre o tema em foco. A partir de um roteiro que concebeu as complexidades de pensarem o seu próprio pensamento que pensou a cidade, a edição final explora as imagens produzidas e construídas especialmente por tais antropólogos, em conjunto com a equipe de gravação. Esforço simmeliano de “sempre escavar as camadas mais profundas, em uma interpretação” (Waizbort, 2000, p. 29) configurando a arte narrativa, que mistura uma pluralidade de sentidos, e como requer Nietzsche, uma constelação, complexo de sucessões, mas também de coexistências (apud, Waizbort 2000, p. 30). A poética da narrativa fabula o tempo, superpondo imagens, vibrando sons e estetizando formas que resituam o personagem em seus pensamentos, seus gestos, suas performances. Jogos de agir e refletir que agenciam os fatos na ipseidade do ato do autor criativo, na arte do fazer que exprime um campo conceitual que configura uma singularidade do saber antropológico de preencher a cidade de significações e de razões para imaginar. Referências ARANTES, Antônio Augusto Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural. SP, Brasiliense, 1984. ARIES, Philippe. "A família e a cidade". In: VELHO, Gilberto e FIGUEIRA, Servulo. Família, psicologia e sociedade. RJ, Ed. 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Apesar da predominância dos estudos etnográficos voltados para as complexidades das sociedades tradicionais na década de 1930 a 1950, a forte influência da sociologia urbana no Brasil estimula um novo cenário: a da emergência de uma geração de antropólogos brasileiros que se voltam ao estudo de problemas sociais na cidade sob o viés simbólico, político, social e cultural suscitando questões epistemológicas de grande potencial reflexivo. Com pesquisas etnográficas no contexto urbano estes estudos consolidaram o campo de conhecimento sobre o fenômeno de modernização das cidades brasileiras e a construção social da pessoa moderna em seus conflitos e antagonismos. Com a preocupação de adensar as pesquisas etnográficas na cidade, temos desenvolvido uma reflexão sistemática sobre o fazer etnográfico nas ruas no contexto urbano no âmbito do projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais www.estacaoportoalegre.ufrgs.br Neste processo desenvolvemos paralelamente uma “etnografia” da “obra etnográfica” produzida a partir da narrativa dos antropólogos urbanos como Ruth Cardoso, Eunice Durham, Gilberto Velho que conformaram esta linha de pesquisa nos anos 1960 e 1970, seguidos de perto por alunos ou pares em pesquisas que corroboravam este interesse temático como Ruben Oliven, Alba Zaluar, Tereza Caldeira, Myriam Lins de Barros, José Guilherme Cantor Magnani entre outros, caracterizando o período de 1970 e 1980 como sendo o de maior desenvolvimento de pesquisas tendo por enfoque as populações urbanas no Brasil. Esta pesquisa tem por resultado a produção de documentários sobre as trajetórias teórico-metodológicas de pesquisadores antropólogos brasileiros estudiosos do fenômeno urbano e as complexidades das metrópoles no Brasil que implicam em promover um deslocamento epistemológico do narrador em sua própria cidade, o que significa uma preocupação com a pesquisa antropológica a partir das figurações da vida social na cidade. Denomina-se esta série de “Narradores da/na cidade, olhares em antropologia urbana”. Como pesquisadoras antropólogas interessadas no estudo da memória coletiva e trajetórias urbanas nas cidades brasileiras consideramo-nos herdeiras das questões problematizadas por esta linhagem. Tendo por projeto acadêmico o estudo das dinâmicas de interações e representações sociais na e da cidade sob a perspectiva de suas formas de vida social visamos relacionar estas diferentes experiências de estudo para tratar as formas de sociabilidade no meio urbano do Brasil e suas variações culturais. Palavras-chave : cidade, antropologia urbana, etnografia, memória coletiva, trajetória intelectual.