JULIO CÉSAR GONÇALVES A FILOSOFIA E O FILOSOFAR

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JULIO CÉSAR GONÇALVES
A FILOSOFIA E O FILOSOFAR INSTITUCIONALIZADO: UM OLHAR
SOBRE O ENSINO FILOSÓFICO NO ENSINO MÉDIO
PRESIDENTE PRUDENTE
2014
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JULIO CÉSAR GONÇALVES
A FILOSOFIA E O FILOSOFAR INSTITUCIONALIZADO: UM OLHAR
SOBRE O ENSINO FILOSÓFICO NO ENSINO MÉDIO
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Tecnologias da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, campus de Presidente
Prudente, junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, como exigência para obtenção do título
de mestre em Educação.
Linha de pesquisa: Processos Formativos, Diferença
e Valores.
Orientador: Prof. Dr. Divino José da Silva
PRESIDENTE PRUDENTE
2014
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À minha esposa Rose e minha filha
Ana, pelo sacrifício imposto pelas
minhas ausências tão presentes.
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Tantas foram as pessoas que trilharam comigo alguns trechos desse caminho que corro o risco
de esquecer-me de agradecer alguém, sobretudo os que fizeram parte do início deste trabalho.
Portanto, agradecerei a todos, de modo geral, e, especificamente, aos que estiveram mais
presentes, sobretudo no processo de finalização deste.
Ao professor Divino José da Silva pela paciência e compreensão dos meus limites.
Aos professores Pedro Ângelo Pagni e Alberto Albuquerque Gomes pela generosidade do
conhecimento partilhado e pela leitura e contribuições na qualificação e melhoria do trabalho
Aos colegas do Grupo de Estudos, os que já passaram e os que ainda permanecem – pelas
reflexões e diálogos.
Ao meu querido amigo Rodrigo Feliciano Caputo pelo apoio incondicional.
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A obrigatoriedade do ensino de filosofia [...] como disciplina nas três
séries do Ensino Médio brasileiro faz nascer uma antiga controvérsia. A
polêmica vem de longa data. Seus movimentos parecem pendulares:
quando a filosofia entra na instituição escolar, questiona-se sua
presença e ela deve defender sua legitimidade, quando ela é ameaçada
de ficar como optativa ou fica de fora, ela busca estar dentro e mais uma
vez precisa defender suas credenciais para tal fim. (BORBA; KOHAN,
2008, p.9).
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GONÇALVES, Julio César. A filosofia e o filosofar institucionalizado: um olhar sobre o
ensino filosófico no ensino médio. 2014. 92f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Faculdade de Ciências e Tecnologias, Universidade Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho”,
Presidente Prudente, 21 fev. 2015.
RESUMO – Este trabalho teve por objetivo trazer à discussão o modo como a Filosofia vem
se saindo dentro do corpo institucional burocrático da escola no Ensino Médio, haja vista que
se tornou componente obrigatório desde 2008. Tal reflexão se justifica pelo modo em que se
encontra nossa sociedade contemporânea (utilitarista e pragmática), bem como o ensino de
modo geral, cujo foco passa a ser a formação de um saber técnico (o saber-fazer), tão
necessário ao sistema capitalista vigente (pré-requisito dos processos seletivos para incursão
em universidades – vestibulares e ENEM). Por isso, o problema que me chamou a atenção,
dentre tantos que permeiam o tema do ensino filosófico, e que tentei desvelar nos capítulos
seguintes foi os limites do ensino de Filosofia no Ensino Médio. Apesar de a Filosofia ter
rompido os muros das universidades e saído das prateleiras das bibliotecas, popularizando-se
em lugares alternativos, a discussão sobre seu ensino, ao que me pareceu, ainda não é
considerada uma questão filosófica, senão um problema a ser discutido entre os pesquisadores
da Educação apenas. Para pensar na contramão dessa ideia, retomo a antiga discussão sobre o
que Kant, Hegel e Nietzsche pensavam ser a Filosofia e como trabalhá-la em sala de aula,
uma vez que, para demonstrar que desde suas épocas até os dias de hoje, existe uma discussão
acerca do melhor modo de se ensiná-la e sobre a qual, atribui-se a Kant a ideia de não se
ensinar Filosofia, mas filosofar, enquanto em Hegel se encontra forte ideia de que o uso da
História da Filosofia seria a fonte maior para tal aprendizado e em Nietzsche a crítica aos
estabelecimentos de ensino de sua época que atrelaram-se ao mercado. Pensar os dias atuais
foi possível trazendo o pensamento de Silvio Gallo, Walter Kohan e Ronaí Pires da Rocha
acerca dessa problemática e nas possíveis contribuições desses teóricos para a prática letiva.
Como metodologia iniciei os capítulos com relatos de minhas experiências como professor de
Filosofia nos primeiros anos de docência, ressaltando alguns problemas na formação do
professor filósofo, tanto aquele que se forma por intermédio dos métodos adotados pelas
instituições confessionais católicas quanto aos que seguem o modelo estruturalista adotados
pela USP. Para tanto, realizei uma autoanálise comparando minha postura com referenciais
importantes como Renato Janini Ribeiro, Oswaldo Porchat Pereira, Desidério Murcho,
Rodrigo Pelloso Gelamo e Lídia Maria Rodrigo. Como resultado dessas análises, pude
perceber que se faz urgência pensar a formação do professor de Filosofia advinda do sistema
confessional católico, pois grande parte dos professores, inicialmente não o pretendiam ser,
bem como a formação advinda dos moldes da USP. Também, concluí que para ensinar
Filosofia é necessário antes a coragem de se expor em público, de propor ideias e defendê-las
tomando partido, escolhendo lados e fazendo críticas, pois desse modo é que se pode exercitar
a faculdade do pensar. Romper com a imagem dicotômica que separa Professor de Filosofia e
Filósofo também se compôs em outro ponto a ser trabalhado.
Palavras-chave: Ensino de Filosofia, Filosofia no Ensino Médio, Formação de professores
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GONÇALVES, Julio César. The philosophy and the institutionalized philosophy: a look at
the philosophical teaching in high school. 2014. 92f. Dissertation (Master of Education) University of Science and Technology, Universidade Estadual Paulista "Julio Mesquita
Filho", Presidente Prudente 21 February 2015.
ABSTRACT - This study aimed to bring the discussion how the philosophy is faring within
the bureaucratic institutional body of the school in high school, considering that became
mandatory component since 2008. This reflection is justified by the way is our contemporary
society (utilitarian and pragmatic) as well as in general education with a focus becomes the
formation of a technical knowledge (know-how), so necessary to the existing capitalist system
(the prerequisite for selection processes foray into universities - vestibular and ENEM).
Therefore the issue that caught my attention among many that underlie the subject of
philosophical teaching, and I tried to unveil the following chapters was the philosophy of
education limits in high school. Although philosophy have broken the walls of universities
and left the shelves of libraries gaining popularity in alternative places, the discussion of his
teaching it seemed to me, is not considered a philosophical question but a problem to be
discussed between the Education researchers only. To think against the grain of this idea, I
return the old discussion of what Kant, Hegel and Nietzsche thought was the philosophy and
how to work it in the classroom since to demonstrate that since their times to the present day,
there a discussion about the best way to teach it and on which is attributed to Kant the idea of
not teach philosophy but philosophy, while in Hegel is strong idea that the use of the
Philosophy of History is the source greater for such learning and Nietzsche criticism of
schools of his day that hitched to the market. Think this day was possible bringing the thought
of Silvio Gallo, Walter Kohan and Ronai Pires da Rocha about this problem and possible
contributions of these theorists for teaching practice. The methodology started chapters with
reports of my experiences as a professor of philosophy in the first years of teaching, pointing
out some problems in the formation of the philosopher teacher both that which is formed
through the methods adopted by Catholic religious institutions as those who follow the
structuralist model adopted by the USP. For that I did a self-analysis comparing my posture
with important references as Renato Ribeiro Janini, Oswaldo Porchat Pereira, Desiderius
Murcho, Rodrigo Pelloso Gelamo and Lydia Maria Rodrigo. As a result of this analysis, I
realized that it is urgent to think the formation of a professor of philosophy coming from the
Catholic confessional system, since most of the teachers, initially not intended to be, as well
as the net formation of USP molds. Also I concluded that to teach Philosophy is required
before the courage to expose in public to propose ideas and defend them taking sides,
choosing sides and making critical, because this mode is that you can exercise the faculty of
thinking. Break away from the dichotomous image separating Philosophy and philosopher
Professor also wrote at another point to be worked.
Keywords: Philosophy of Teaching, Philosophy in high school, Teacher training
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 09
CAPÍTULO 1
DO OUTRO LADO DA MESA - UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE-FILOSÓFICA
................................................................................................................................... 16
1.1 O fazer-filosófico e a sala de aula ....................................................................... 16
1.2 A formação do filósofo e uma experiência com o Ensino Médio público .......... 18
1.3 O Filósofo e o Professor de Filosofia .................................................................. 30
1.4 O Ensino Médio privado e os sistemas de ensino como produto consumível..... 37
CAPÍTULO 2
UM ANTIGO RUÍDO - O ENSINO DE FILOSOFIA EM KANT, HEGEL E
NIETZSCHE ............................................................................................................ 42
2.1 O filosofar e a Filosofia em Kant ........................................................................ 43
2.2 Hegel e o ensino histórico-filosófico ................................................................... 49
2.3 Nietzsche e a crítica ao ensino para o mercado ................................................... 52
CAPÍTULO 3
A NATUREZA DA FILOSOFIA E O SEU PAPEL NA ESCOLA ATUAL .....
3.1 A Filosofia como experiência do pensar ............................................................. 63
3.2 A filosofia, os conceitos e seu aspecto interdisciplinar ....................................... 71
3.3 Por uma reestruturação do currículo escolar ....................................................... 78
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 85
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 90
62
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INTRODUÇÃO
Quando filosofar é preciso... (e obrigatório)
A epígrafe que abre este trabalho exprime exatamente o caminho claudicante a
que a Filosofia, enquanto disciplina do Ensino Médio brasileiro vem percorrendo desde seu
gênesis até os dias atuais: ora questionada por estar inserida nas instituições escolares, ora
buscando justificativas e fundamentações para entrar, quando é excluída e deixada de fora.
Entre as tantas idas e vindas à escola desde há muito, o ensino de Filosofia e o de Sociologia
tornaram-se, recentemente, obrigatórios no Ensino Médio das escolas públicas e privadas no
Brasil a partir da aprovação do Parecer CNE/CEB nº 38/2006, por Fernando Haddad, até
então ministro da Educação. A homologação do parecer alterou o artigo 10º da Resolução
CNE/CEB nº 03/98, especificamente o §2º, excluindo a alínea b e incluindo o §3º que diz que
“as propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento de componente
disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”.
Nesse rumo também, a Lei nº 11.683/2008, aprovada pelo Congresso
Nacional e sancionada pelo vice-presidente José Alencar (Presidente em exercício nessa
época), altera o artigo 36 da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases – LDB), incluindo
obrigatoriamente as disciplinas de Filosofia e de Sociologia no currículo do Ensino Médio.
Com tais medidas, buscou-se sanar a ambiguidade da LDB, que em seu artigo 36, §1º, inciso
III, diz que todos os estudantes deverão, ao final do ensino médio, demonstrar, além de outras
habilidades, “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, necessários ao
exercício da cidadania”. A crítica ao texto da LDB se dava pela generalidade com que
afirmava o artigo: a qual ou quais “domínio(s)” se referia a lei? Quais “conhecimentos” de
Filosofia e de Sociologia deveriam ser assegurados ao estudante? Por que tais conhecimentos
eram vistos como “necessários”? Faltava clareza sobre o quê, especificamente, de Filosofia e
de Sociologia deveria ser tratado nas escolas.
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Havia ainda uma discussão antagônica: ensinar Filosofia e Sociologia
enquanto disciplinas componentes do currículo obrigatório, com professores habilitados, ou,
ensiná-las a partir de discussões temáticas transversais (multidisciplinares), com conteúdo
diluído entre outras áreas e disciplinas? Toda celeuma gerada a partir dessas discussões só
inviabilizava cada vez mais a efetiva inserção da Filosofia no Ensino Médio. Antes da
instauração da lei, porém, ficava a cargo dos gestores escolares a decisão de incluí-las ou não
como disciplinas, o que acabava por gerar, na prática, resultados diversos, uma vez que a lei
não situava em nenhum momento a Filosofia e a Sociologia como disciplinas específicas e
obrigatórias, pelo contrário, demonstrou-se que era possível, através das outras disciplinas, via
discussões transversais, alcançar o domínio dos conhecimentos dessas disciplinas.
Esta presença da Filosofia e da Sociologia nas demais disciplinas por meio
de temas transversais despertou alguns movimentos organizados de educadores que viam essa
forma “opcional”, como uma maneira de barrar efetivamente a entrada da Filosofia e da
Sociologia no currículo do Ensino Médio1. Considerando o baixo valor salarial, o professor,
neste período, se via diante da necessidade de garantir para si maior jornada de trabalho
possível numa mesma escola (evitando os gastos com o deslocamento para outras), bem como
não soava positiva a ideia da inserção de outras novas disciplinas, que representava uma
iminente ameaça à diminuição da carga horária das disciplinas já existentes. Também, era
visível a existência da possibilidade de manipulação do processo de atribuição de aulas por
parte dos diretores, que poderiam beneficiar grupos de sua preferência, ou com interesses
particulares.
Ora, estas e outras tentativas de torná-las disciplinas componentes
obrigatórios no Ensino Médio, reforçam ainda mais os argumentos de que se eram de fato
“necessárias ao exercício da cidadania”, que fossem ao menos tratadas como tal, uma vez que
a abordagem transversal (proposta pela LDB), não produzia os resultados esperados, haja
vista possuírem métodos e conteúdos próprios, que a simples inserção de discussões
transversais não daria conta de abarcar. Desse modo, se faz necessário, agora mais do que
nunca, se indagar: para quê as disciplinas (Filosofia e Sociologia) nas escolas do Ensino
Médio?
1
Decisão essa que foi tomada na década de 1980, quando tais disciplinas passam a integrar o currículo do ensino
médio como disciplinas optativas, pela Lei nº 7.044/82.
21
É bom que se continue promovendo discussões acerca da Filosofia e da
Sociologia e dos seus respectivos ensinos, como já vem sendo feito através de fóruns
regionais e nacionais e das listas de discussões, mas que, sobretudo, haja uma maior
articulação política e militante para que não retrocedamos nas conquistas tão duramente
alcançadas na história da educação filosófica brasileira. Eis que esse é o momento certo para
se voltar a pensar na efetiva necessidade de criação de uma associação nacional de ensino de
Filosofia que reúna e dê mais força política às demandas da área. (ALVES, 2009). Essa força
política poderá vir das reflexões e debates acerca do que ainda precisa ser conquistado como,
por exemplo, a formação do professor de Filosofia (que muitas vezes sai da graduação sem
condições de entrar em sala de aula), o aumento da carga horária já constante no currículo; a
questão dos manuais, dos livros didáticos entre outros.
Em 2009, Rodrigo Pelloso Gelamo propôs um mapeamento, que ele
denomina de tendências, a respeito do modo como o ensino da filosofia vem sendo pensado
atualmente no Brasil, para melhor compreendê-lo. Já de início, identifica a pouca produção
teórica existente a este respeito, por acreditar que essa temática seja ainda recente, ou por
considerarem a reflexão proposta pela Filosofia da Educação, questões puramente
educacionais, devendo, portanto, ser privilegiada por pedagogos e filósofos da educação e não
como problema genuinamente filosófico - o que denota certo preconceito.
A Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (a ANPOF), criou o
seu primeiro Grupo de Trabalho (GT Filosofar e Ensinar a Filosofar), somente em 2006, isto
é, vinte e três anos após a sua fundação. Apesar dessa iniciativa da ANPOF, a maior parte dos
membros do núcleo de sustentação do GT (composto por um professor coordenador com
título de doutor na área e mais cinco professores pesquisadores, também na área), está
composta, na sua maioria, por pesquisadores vinculados aos programas de Pós-Graduação em
Educação com pesquisas voltadas para a Filosofia da Educação. O que isso representa?
Gelamo (2009) trabalha com a hipótese de esse fato poder ser muito mais uma concessão por
parte da associação dos filósofos envolvidos com a pós-graduação de que alguns
pesquisadores de educação possam discutir os problemas do ensino da filosofia, do que um
real interesse pelo assunto.
22
Também, pode-se perceber o pouco interesse nessa discussão pelo número
de grupos de pesquisa vinculados ao CNPq; dos 13 grupos existentes2, somente 5 grupos
estão ligados diretamente a programas de Pós-Graduação em Filosofia, estando os demais
ligados à pós-graduação em Educação. São eles: 1. Grupo Filosofia, Ética e Educação / UFPA
- Maria Neuza Monteiro; 2. Grupo de Estudos e Pesquisas Filosofia para crianças / UNESP Paula Ramos de Oliveira; 3. Grupo de Estudos sobre o Ensino de Filosofia / UNIMEP Marcio Aparecido Mariguela; 4. Grupo de Pesquisa sobre Filosofia e Ensino de Filosofia /
UFAL - Walter Matias Lima; 5. Núcleo de Estudos sobre o Ensino de Filosofia / UFPI Helder Buenos Aires de Carvalho.
Em contraste com esse desinteresse a Filosofia vem ocupando espaços antes
pouco ocupados ou pouco prováveis de serem ocupados, como por exemplo, sua inserção
livre da obrigatoriedade no Ensino Fundamental (Filosofia para crianças, com progressivo
movimento nos últimos quinze anos), sua presença constante nos cursos de licenciatura
(Ensino Superior). Fora das instituições educacionais a Filosofia passou a compor espaços
alternativos, tais como os “cafés” (cafés filosóficos) e a internet (cyberfilosofia), ganhou
novos públicos (Filosofia e terceira idade, Filosofia e música, literatura, seriados de TV etc), e
tornou-se instrumento de análise e solução de conflitos (inter)pessoais (Filosofia Terapêutica,
Filosofia Clínica). Esse diagnóstico corrobora a tendência de que a Filosofia estaria
assumindo novos espaços, uma vez que, não há muito tempo, seu ensino no nível Superior era
pouco viável, era restrito a escolas do Ensino Médio, impensável para crianças do Ensino
Fundamental e impraticável no âmbito do espaço público da cidade (KOHAN, 2002).
Apesar das diversas mudanças e das discussões a que passou, e vem passando,
o ensino de Filosofia, sobretudo pela nova lei que a coloca sob o status de disciplina
curricular do Ensino Médio no Brasil, ainda resta uma discussão, a meu ver, necessária neste
momento e que vem a ser a intenção maior desta dissertação: propor uma reflexão sobre a
(im)possibilidade de ensiná-la institucionalmente em razão dos limites inerentes à formação
do professor e dos aspectos que marcam a nossa cultura contemporânea. Algumas
observações e insatisfações, pessoais e de colegas de trabalho desta área, levaram-me aos
questionamentos e às hipóteses desta pesquisa. Poucas aulas disponíveis para as reflexões e
professores despreparados ou sem qualificação na disciplina (uma vez que a demanda tornouse maior que a oferta, após muitos anos sem a "necessária" presença do filósofo nas escolas),
2
Números obtidos em pesquisa até a data final da elaboração de sua tese de doutoramento, ou seja, até o ano de
2009.
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por exemplo. Também engrossa o número de insatisfações, as críticas realizadas ao sistema
educacional adotado pelas instituições particulares e o material recentemente adotado pelo
Governo do Estado, que privilegiam um ensino massificante, mecanizado e conteudista.
A problemática que proponho para esta pesquisa, não é animada por nenhuma
pretensão de originalidade outra que não a de constituir-me interlocutor para a reflexão de
uma prática docente: a minha própria. Assim, não é proposto um problema de grande colisão
científica ou pensamento filosófico, senão apenas pensar os limites do ensino de Filosofia no
Ensino Médio a partir do meu ponto de vista como professor e pesquisador, estando eu na
Universidade (onde se admite "produzir o conhecimento") e em sala de aula (onde "o
conhecimento produzido é reelaborado"). Para tanto, abri mão (a princípio), do modelo de
escrita científica tradicionalmente aceito pelos meios acadêmicos, tanto em sua maneira de
lidar com a literatura já existente antes de expor o que penso realmente, quanto no trato com a
linguagem. Dispus-me, portanto, a começar com um relato da minha vivência como docente
no Ensino Médio público e privado, buscando encontrar aí, um nicho em potencial para o
exercício de pensar tais práticas e experiências à luz de algumas teorias.
Talvez a audácia e a pretensão tenham rondado a possibilidade da elaboração
desse modo de pensar, pois, apesar do problema não ser novo e original, a discussão e forma
de abordagem do tema, se deu por meio da análise e observações que realizei em minha
própria prática cotidiana de trabalho. Também, foi possível unir duas posturas polarizadas e
separadas, muito criticadas nos tempos atuais que é a de, na Universidade e, sobretudo quando
se trata de pesquisa na área de Humanas e em Educação, especificamente, trabalhar na
construção de um conhecimento teoricamente justificado e estruturado, mas não afastado da
realidade cotidiana dos sujeitos da pesquisa. Em contrapartida, a noção comum de que o que
se produz de teoria e reflexão nas Universidades, nada tem que ver com o cotidiano, ou é
ininteligível e não adaptável à prática docente, acabam por gerar preconceitos cristalizados em
proposições como a que diz que "na prática a teoria é outra". Desse modo, optei por desbravar
esse caminho, ainda pouco percorrido, mas autêntico por se tratar de abordar um problema
que, de fato, faz sentido para mim, não apenas no campo das ideias, posto que me toca
realmente: o ensino filosófico.
Apesar do meu primeiro contato com as preocupações do ensino filosófico terse dado quando ainda cursava a faculdade (e desde pronto chamara-me a atenção), só pude, de
fato, mergulhar neste problema genuinamente, ou seja, este problema só começou a fazer
sentido para mim, quando me vi em sala de aula com o giz na mão, uma sala lotada de jovens
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estudantes e parcas noções de como trabalhar os conteúdos filosóficos, aparando choques com
os muitos preconceitos acerca da Filosofia. O meu espanto se deveu, em grande parte, à
minha formação filosófica originada em instituição confessional que preconiza o ensino tendo
como base a noção global (porém superficial), da história dos pensadores e pensamentos
ocidentais, de modo enciclopédico e linear. Mas também, da minha opção inicial ao ingressar
nessa instituição, que era prosseguir nos estudos como parte do processo de formação
sacerdotal. A Filosofia foi, para mim, um acidente de percurso, de modo que a enxergava inicialmente - apenas como um meio na tentativa de obtenção de um fim maior (o
sacerdócio), motivo pelo qual não havia o interesse legítimo do filosofar, senão apenas para
"cumprir tabela". Entretanto, o contato com os textos e o conhecimento do pensamento
construído historicamente foi me despertando, semestre após semestre, o gosto pelos estudos
e pela leitura filosófica.
Nos capítulos desta dissertação o meu intento será traçar um pequeno
panorama sob os olhares de diferentes autores acerca do problema levantado para este
trabalho. No primeiro capítulo, intitulado Do outro lado da mesa - uma experiência docentefilosófica, trago um pouco da minha prática como docente de Filosofia e o primeiro impacto
com a descoberta de ser professor quando já me encontrava em sala de aula. Essa discussão
perpassa três momentos e espaços diferentes: o iniciar da minha carreira na escola pública seção onde busco refletir sobre a formação do professor-filósofo no Brasil por meio do ensino
em instituições confessionais e a postura adotada pela USP como método de ensino filosófico
(modelo estruturalista de leitura e estudos das obras filosóficas), provenientes da França; a
dicotomia entre ser professor de Filosofia e ser filósofo - visão perpetuada pelo sistema
educacional brasileiro que reforça essa diferenciação entre Universidades públicas
(responsáveis pelo desenvolvimento de pesquisa) e outras instituições ligadas ao ensino
apenas, e a experiência com o ensino de Filosofia em escolas particulares - um reflexo do
fracasso das instituições públicas. Nessa seção, veremos a coisificação do ensino por meio do
crescente aumento dos Sistemas Educacionais Privados, tais como: Positivo, Etapa, Poliedro,
Dom Bosco, Anglo, Ético e outros.
No segundo capítulo (Um antigo ruído: o ensino de Filosofia em Kant, Hegel e
Nietzsche) proponho tratar o modo como cada um desses filósofos clássicos pensam ser a
Filosofia e como trabalhá-la em sala de aula. Esse capítulo traz as seções intituladas: A
Filosofia e o filosofar em Kant e Hegel e o ensino histórico-filosófico, para demonstrar que
desde suas respectivas épocas, até os dias de hoje, existe uma discussão acerca do melhor
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modo de se ensinar Filosofia e sobre a qual, atribui-se a Kant a ideia de não se ensinar
Filosofia, mas filosofar, enquanto em Hegel se encontra forte ideia de que o uso da História
da Filosofia seria a fonte maior para tal aprendizado. Tanto num quanto noutro, encontro
sinais de uma leitura enviezada quando se reduz todo um trajeto do pensamento a uma ou
outra máxima, sem contextualização nem preocupação com tal. Já em Nietzsche e a crítica ao
ensino para o mercado, dois são os pontos discutidos: o ensino por meio de habilidades e
competências (discurso empresarial presente na educação recentemente) e, a degradação da
cultura e o ensino filosófico atrelado ao Estado e à política econômica do país.
Por fim, em A natureza da Filosofia e o seu papel na escola (terceiro capítulo),
foi intenção conhecer o pensamento de Walter Omar Kohan, Silvio Gallo e Ronaí Pires da
Rocha acerca do que eles pensam ser Filosofia e de como propõem o seu ensino. Nesse
momento, à luz da minha prática docente confronto-a com a produção de conhecimento dos
referidos autores para que se possa pensar em que sentido a teoria se relaciona com a prática
do ensino de Filosofia. Enquanto que para Walter Omar Kohan a Filosofia seria uma
experiência do pensar o espaço onde o pensar acontece, em Silvio Gallo pode ser percebido
uma preocupação maior em visualizar a educação compreendendo três grandes áreas da
formação humana: as ciências (com as funções), as artes (com a percepção do mundo) e as
filosofias (com a criação de conceitos). Ronaí Rocha preconiza a construção de um currículo
que seja interdisciplinar e propõe uma nova reorganização das disciplinas em grupos,
diferentes do que o MEC organizou. Penso, com essas discussões e interlocuções, poder
lançar um pouco de luz às questões sobre o ensino filosófico institucionalizado que se vem
praticando desde então.
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CAPÍTULO 1
DO OUTRO LADO DA MESA - UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE-FILOSÓFICA
Neste capítulo, intenciono trazer para o campo do pensar algumas das minhas
vivências como professor de Filosofia. Vivências estas que remontam pouco mais de oito
anos, desde o término da graduação e minha introdução no mundo educacional na condição de
docente. Embora a totalidade desse período não fosse dedicada exclusivamente ao Ensino
Médio, sendo ele dividido entre este nível de ensino, o Ensino Fundamental e, concomitante
ao Ensino Superior. O fato é que, tanto em um nível de ensino quanto noutro, a problemática
maior que me moveu a desenvolver esta pesquisar parece ser a mesma: ser professor de
Filosofia.
1.1 O fazer-filosófico e a sala de aula
"Bem-vindos ao outro lado da mesa", dizia o professor paraninfo na abertura
de seu discurso por ocasião da minha formatura. A emoção do momento era tão grande que
sequer imaginei o peso dessas palavras e o que, de fato, representaria estar do outro lado da
mesa, agora como professor de Filosofia. Várias foram as formas pensadas para que eu
pudesse começar esta dissertação, mas nenhuma delas foi suficientemente capaz de despertar
o desejo de escrever senão aquela que falasse da minha própria experiência como docente de
Filosofia, ou seja, das minha vivências e inquietações do outro lado da mesa. Desse modo,
esta pesquisa originou-se, de um problema filosófico não-original – bastante conhecido até.
Um problema que me toca profundamente, que está em consonância com minha vida e
práticas cotidianas, enfim, que faz parte, de algum modo, do que vivencio ou vivenciei e que
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me inquieta. Acredito que desenvolver uma pesquisa cujo problema não esteja desse modo
presente na realidade e na vida do pesquisador, pode tornar-se uma tarefa vazia e sem sentido.
A delimitação do tema foi se desdobrando em torno de diversas dificuldades
percebidas por mim e recolhidas em meio a conversas de corredor, por colegas de profissão,
de modo que acredito estar diante de uma inquietação que é a de muitos outros professores de
Filosofia. Destaco, inicialmente, o sentimento de desconforto que passei no início da carreira
docente frente a uma realidade da qual não me vi preparado: a sala de aula. Cada sucesso ou
cada fracasso foram me construindo pouco a pouco um professor e, dessa forma, fui
submetido à outra formação da qual não tive acesso na graduação no período em que me
preparava para sê-lo, paradoxalmente. Ora deparava-me com as deficiências estruturais da
escola, ou com as de ordem disciplinar por parte dos estudantes, ora eram as minhas próprias
limitações de formação acadêmica e maturidade intelectual. O fato é que, diante dessa nova
realidade, a visão que eu trazia do que era dar aulas de Filosofia, as discussões nas aulas de
didática e os estágios de observação e regência no período dedicado à minha formação na
faculdade, não coincidiam agora com aquela prática, pelo menos, não inicialmente.
Desidério Murcho, em seu livro A natureza da Filosofia e o seu ensino (2002),
atenta para o problema da formação dos professores quando diz que, muitas vezes, o que o
novo professor de Filosofia descobre com espanto é que o que estudou e aprendeu na
faculdade é praticamente sem grande importância em sua prática letiva. Assim, de uma forma
ou de outra terá que aprender outra coisa quando iniciar suas atividades em sala de aula. Esta
afirmação de Murcho vem ao encontro do que pude vivenciar nos primeiros anos de docência:
uma espécie de desterro. Rodrigo Gelamo (2009, p.20) também afirma ter passado por
experiências semelhantes quando diz sentir-se um estrangeiro em seu próprio país. Toda a
situação das primeiras aulas, afirma, "fez com que eu me sentisse como não-filósofo em
minha formação filosófica; era como se eu falasse minha língua materna e não fosse
compreendido".
Acredito que esta sensação é experimentada no cotidiano de muitos professores
de Filosofia recém-formados que se descobrem professores no fazer-filosófico da sala de aula
e, portanto, com a prática em desenvolvimento. A todo o momento pairavam sobre meu
pensar questões que colocavam em xeque minha postura diante dessa nova e estranha
realidade. O que é ser professor de Filosofia, de fato? O que ensinar? Como ensinar? Por que
não vivi nem ouvi falar dessa sensação na faculdade? Será que sei ensinar Filosofia? Como
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não ser um professor reprodutivista? Como não ser conteudista? Como não ser relapso quanto
ao conteúdo? Enfim, todos esses questionamentos e muitos outros que vieram após esses, me
acompanharam e acompanham desde o início da docência me impelindo a pensar qual seria,
realmente, a verdadeira função da Filosofia e o papel do professor filósofo neste nível de
ensino. Evidentemente que tais questões não surgiram de uma hora para outra ou na ordem
acima disposta. Recordo-me que duas preocupações iniciais que me tomaram estavam ligadas
àquela nova realidade que me impunha uma necessidade para a qual eu ainda era um neófito.
Trata-se da inquietação sobre o porquê não aprendi a ensinar Filosofia e o que eu
deveria/poderia ensinar (e de que modo o faria) para jovens do Ensino Médio.
1.2 A formação do filósofo e uma experiência com o Ensino Médio público
Tão complexa quanto a problemática do ensino de Filosofia é, também, a da
formação de professores para esta disciplina. A formação dos professores em geral e,
especificamente os de Filosofia, parece se reduzir a aprender determinado conteúdo ou
conjunto de conteúdos e poder reproduzi-los em outro momento. É evidente que o sucesso ou
o fracasso do professor de filosofia não deve ser atribuído à sua formação acadêmica tão
somente, pois grande parte desta formação se dá na prática docente.
O início da minha experiência docente-filosófica se deu no ano de 2006,
quando, recém-formado, pude me colocar no sistema educacional e ocupar a função de
professor. Nesse ano me foram atribuídas duas aulas para uma terceira série do Estado, no
município de Oscar Bressane (há 40 km da cidade onde residia, na época). Na ocasião, quase
pagava para trabalhar. Sem pontuação na rede de ensino, o professor recém-formado não tinha
muitas opções para compor o quadro de professores de uma instituição. A escola era pequena
e a sala tinha uma média de 30 alunos, no período noturno (em sua maioria, provenientes dos
bairros rurais adjacentes). O ambiente de trabalho era bastante informal; poucos funcionários,
poucos alunos e as relações profissionais se misturavam com as de amizade. Somente meses
após o início do ano letivo, consegui aumentar a carga horária de aulas assumindo as
disciplinas de Filosofia, Sociologia e História, para as 1ª, 2ª e 3ª série do Ensino Médio
especial, para estudantes em ressocialização na Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM),
29
hoje Fundação CASA (que, junto com as escolas de cidades pequenas e distantes, também
entrava na lista das escolas preteridas dos professores veteranos).
A cabeça fervia de preocupação, afinal, tinha que fazer, pela primeira vez,
plano de ensino, selecionar conteúdos e atividades em um planejamento para o ano todo sem
muita noção de onde encontrar material didático para tal (na época o Governo do Estado ainda
não havia optado pela seleção do material didático São Paulo Faz Escola), nem por onde
começar, aprender a preencher diário de sala, preparar aulas, pensar numa linguagem para
estabelecer um vínculo de comunicação com os estudantes, formas de avaliar e o medo de
enfrentar a sala de aula. Recordo-me de não ter encontrado pessoas muito dispostas a auxiliarme nesse início. Os professores em geral, já acostumados com a rotina da sala de aula e
burocracia institucional estão calejados demais para perceber o medo e a insegurança dos
professores recém-chegados no sistema.
O professor de Filosofia pode encontrar pela frente óbices que vão desde as
insuficiências em sua própria formação acadêmica passando pela desmotivação dos colegas
de trabalho, programas mal elaborados e estudantes desinteressados (Murcho, 2002). De fato.
A minha primeira grande frustração se deu ao me deparar com as deficiências de minha
formação acadêmica e com a falta de diretrizes mais sólidas para o desempenho desta função
(como era o caso da LDB, antes do parecer CNE/CEB nº 38/2006 que deixava vaga a noção
do que se podia trabalhar em Filosofia). Deficiências essas no que tange ao conteúdo
específico da Filosofia, de pensar o ensino dessa disciplina e também de didática, de prática
docente. Apesar de ter cursado as disciplinas de cunho pedagógico, ofertadas na faculdade,
ainda assim, sentia-me completamente destituído de mecanismos que pudessem auxiliar-me
nessa nova tarefa.
Quanto à ausência de diretrizes mais sólidas por parte do governo (na época),
havia uma vantagem e uma desvantagem que incidiam diretamente no fazer filosófico em sala
de aula. Primeiro, era uma vantagem tê-las não muito claramente definidas, pois levantava-se
diante de mim um infinito campo de possibilidades para essa disciplina, podendo eu ficar livre
para trabalhar da maneira como concebia a Filosofia e selecionar seus conteúdos. Essa visão
trazia um alento ao medo da primeira vez em sala de aula, pois permitia que eu trabalhasse
temas ou filósofos a que mais tivesse proximidade e domínio. Em contrapartida, da mesma
maneira em que se pode fazer um bom trabalho quando não se tem uma boa diretriz, também
se pode fazer um péssimo trabalho e ainda assim estar amparado pela lei. Recordo-me que na
30
época havia muita discrepância dos conteúdos e métodos de trabalho entre os colegas; tinha
aqueles que assumiam religiosamente um manual de sua preferência e aqueles outros que, em
nome de uma prática filosófica laboratorial, levava os alunos para abraçar árvores em
contato com a natureza. Aí está a desvantagem.
A matriz curricular do curso de Filosofia em que me formei dividia-se em três
blocos: a) um principal que privilegiava a História da Filosofia como eixo central das aulas,
distribuídas em sete disciplinas, cada uma em um semestre e em sequência histórico-linear.
Assim, em História da Filosofia I era previsto estudar as principais questões pensadas por
Sócrates, Platão e Aristóteles; em História da Filosofia II, a Patrística e a Escolástica (e seus
principais representantes medievais) e assim por diante até chegar aos modernos,
contemporâneos e na Filosofia da América Latina; b) também, as grandes áreas da Filosofia,
tais como a Filosofia da Linguagem, Antropologia Filosófica, Ética, Estética, Filosofia da
Ciência, Filosofia da Mente, Filosofia Política, Lógica, Teodiceia e Teoria do Conhecimento;
e, c) havia ainda o grupo das disciplinas da grande área das Ciências Humanas, Sociais
Aplicadas e de base pedagógicas, tais como Sociologia, Sociologia do Conhecimento,
Psicologia, Psicologia da Educação, Espanhol, Português, Inglês, Metodologia da pesquisa,
Estrutura e Funcionamento do Ensino, Didática, Práticas de Ensino em Filosofia e Sociologia
e Estágio Supervisionado.
O fato de minha formação filosófica ter se dado numa instituição confessional
e, portanto, com o foco voltado para outro ponto que não a educação (no caso, a vida religiosa
e não laica no seminário), vez em conta surgiam questionamento sob a forma de insegurança:
será que estou mesmo preparado para me inserir no mundo da educação? Será que o que
aprendi é o suficiente para me fazer um professor de Filosofia? Na faculdade as disciplinas
eram organizadas e ofertadas de modo bastante livrescas, com pouco ou nada de tratamento
técnico dos textos filosóficos. Em sua maior parte, os textos e pensamentos dos renomados
filósofos eram reproduzidos pelos professores, de modo que tínhamos uma visão geral dos
principais pensamentos e pensadores da História da Filosofia Ocidental, porém, pouco ou
nenhum aprofundamento, sistematização e problematização dos mesmos. Soma-se ainda ao
conjunto de obstáculos à formação do filósofo, o fato de que nessas instituições confessionais
a Filosofia era vista ainda como escrava da Teologia. Essa postura era muitas vezes
verbalizada, pelos professores-padres e outros religiosos, cristalizada sob a forma de máximas
do tipo "a Filosofia nos esvazia para sermos preenchidos na Teologia". O agravante se
encontra quando, para a grande maioria dos estudantes (aspirantes à vida religiosa), não há o
31
interesse espontâneo voltado ao aprendizado da Filosofia (embora muitos deles se tornariam
professores de Filosofia num futuro próximo).
A formação de um sacerdote cristão católico exige duas graduações, a saber a
Filosofia e a Teologia. A Filosofia faz parte da formação do padre porque o "auxiliaria" a
fundamentar a tradição histórica do pensamento religioso e, representaria, portanto, a
racionalidade humana, que daria base para a argumentação, a organização do pensamento e o
tom crítico de que se espera de um líder religioso. A Teologia, os preceitos, os dogmas, a vida
de Cristo, seus apóstolos e discípulos e dos principais profetas dos tempos antigos representando a fé, a crença em Deus autor da vida e de tudo o que há.
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o
espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem
colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última
análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O possa
também chegar à verdade plena sobre si próprio. (JOÃO PAULO II, 1998,
p.7).
Nestas condições, a Filosofia é, muitas vezes, vista como uma dura etapa a ser
superada nos anos de estudos, ou seja, a Filosofia, para uma parcela significativa dos
estudantes dos seminários e faculdades confessionais, não se configura como um fim em si
mesma, mas antes um meio para se obter um final almejado: a Teologia. Ora, pouco, ou nada,
significaria para o sistema de ensino se tais aspirantes alcançassem seu fim, o que não ocorre.
Por diversos motivos particulares, institucionais e de ordem moral, muitos seminaristas
deixam, ou são convidados a deixar seu ideal inicial religioso ao concluir a etapa da formação
filosófica. Com essa interrupção, o ex-seminarista, desempregado, porém, com o diploma na
mão, agora se vê diante da necessidade de um recomeço em seus projetos de vida, procurando
na educação a possibilidade imediata de emprego passando a compor o quadro de professores
de Filosofia das redes públicas e privadas de ensino.
Nessa trajetória, o recém-professor se depara com diversas realidades a que não
estava ou não foi preparado, seja em sua formação matricial, seja pela sua disposição interior,
ou ainda, pelo distanciamento entre o que se estuda teoricamente e o que se pode perceber na
prática educativa. Esse tipo de situação é bastante recorrente entre os professores de Filosofia
32
do Ensino Médio, a presença de ex-seminaristas, ex-padres e padres assumindo essa disciplina
é bastante significativa.
Apesar da grande dimensão a que tendia abarcar a matriz curricular, sob o
discurso de proporcionar uma visão mais ampla do pensamento filosófico desde seus
primórdios até a atualidade, se tornava evidente a superficialidade com que os filósofos eram
eram abordados. O ensino consistia na reprodução e leitura de pequenos trechos de textos do
próprio filósofo, retirados de sua obra ou de comentadores sem que se buscasse situar a obra
do autor e os principais problemas filosóficos por ele tratados. A formação filosófica, focada
no mero aprender a fazer paráfrases e repetir de textos, dificulta o verdadeiro aprendizado em
Filosofia, uma vez que ao final dos anos da faculdade o que se verificaria é que os
neofilósofos aprenderam a repetir textos em detrimento do pensar filosoficamente. Quando
reflito sobre o modelo de ensino filosófico que tive, percebo que este consistiu, em grande
parte, em me ensinar a repetir um determinado conteúdo previamente selecionado pelo
professor, um exercício puramente lexical, sob a alcunha de se estar ensinando Filosofia. Não
posso afirmar que essa é uma realidade geral no Brasil, no Estado de São Paulo, ou mesmo na
região do Oeste Paulista, haja vista que tal afirmação necessitaria de maior sustentação em
pesquisa empírica, mas posso ressaltar que é a realidade de um número significativo de
professores de Filosofia, colegas de profissão, conforme conversas informais.
Desse modo, como esperar do professor, produto dessa formação, que ensine
Filosofia e que faça dela em sala de aula, um espaço para a crítica da razão, se ele próprio fora
privado dessa base? A ninguém se concede a dádiva de dar o que não tem... Enquanto
estudantes vivíamos criticando esse sistema de formação3, comparando-o ao de outras
instituições de ensino como o da UNESP e da USP que proporcionava uma visão mais
aprofundada e com propriedade sobre um determinado filósofo ou corrente filosófica. Mas,
para atingir o objetivo a que se propunha tal formação (o sacerdócio), uma visão mais ampla
sobre a história do pensamento filosófico e alguns temas era suficiente o oferecido. Numa
concepção materialista, a estrutura a que se pensaram a matriz curricular supracitada, era, de
fato, suficiente, assim como o é o fato de preparar os estudantes do Ensino Médio para as
provas de alguns vestibulares que cobravam as principais ideias de diversos pensadores da
História da Filosofia.
3
Alguns estudantes se despontavam para o conhecimento filosófico dentro do seminário, mas eram criticados ou
mal interpretados pelos próprios colegas de faculdade. Várias vezes ouvia-se o trocadilho que dizia que "quando
o seminarista começa a frequentar demais a UNESP era sinal de que estava vislumbrando outros ideais que não o
sacerdócio".
33
Evidentemente que a formação em nível superior em Filosofia não advém
somente das instituições confessionais, o que também não quer dizer que não haja
dificuldades e problemas em tal formação. A própria formação de filósofos da USP, desde a
década de 1940, possui sérios limites. A Universidade decidiu implantar os modelos
estruturalistas de leitura e estudos das obras filosóficas trazidos pelos professores franceses
que fundaram uma postura política de exclusão das ideias nacionalistas, bem como do modo
ensaísta de se fazer Filosofia presentes no Brasil na ocasião, vigorando, assim, a visão de que
não há Filosofia em detrimento de sua história. (PIMENTA; PIMENTA, 2011, p.15). Em seu
livro A Universidade e a vida atual: Fellini não via filmes (2003), Renato Janini Ribeiro
ressalta com pesar a falta de criatividade dos trabalhos acadêmicos que recebe de seus alunos,
comparados aos que recebia entre as décadas de 1976 e 1990 e atribui esse déficit à
consequência da transformação no modo pelo qual se tem feito filosofia na USP. "Se impôs
um molde de leitura filosófica que os dissuade de qualquer aventura própria, de qualquer
viagem intelectual". (RIBEIRO, 2003, p.132).
O debate que se faz no Brasil é mais focado nos autores do que nas ideias e,
por isso, um debate distante de nós, de nossa realidade. Em 1968, quando Renato Janine
Ribeiro entra na USP como estudante de Filosofia - relata, sentia um grande orgulho junto de
seus colegas por fazerem parte do departamento de filosofia da mais prestigiada Universidade
do país, entretanto, pairava no ar a ideia de que não mais havia filosofia a se fazer naquele
espaço. Tal ideia se referia ao método adotado pela Universidade de leitura rigorosa da
filosofia que já fora escrita, "dali em diante, só haveria história da filosofia" (RIBEIRO,
2003, p.134). Este método se transformou em um estilo de procurar ler diretamente um
importante pensador e analisá-lo, interpretá-lo de modo original, ou seja, assumia-se uma
postura na qual se abre mão da leitura de quaisquer comentadores do filósofo em questão,
ignorando-os a fim de apreender o filósofo em sua quase totalidade.
A característica positiva dessa metodologia se dá pelo fato de ter-se gerado um
hábito imbatível, inclusive entre os outros colegas da grande área de Humanas, de leitura
desses autores, todavia, ignorar a tradição existente dos comentadores seria lançar mão de um
sem-número de significantes culturais (RIBEIRO, 2003), além de perder a oportunidade de
criar uma comunidade brasileira de Filosofia que faça jus ao seu papel e discuta problemas
pertinentes e próximos da realidade brasileira.
34
A redução da filosofia a uma história da filosofia foi o primeiro problema - e
apesar disso o menor. O maior foi que com isso, no fundo, se ambicionou
pouco. Desejou-se proceder a uma leitura original, sim, mas a força do
adjetivo foi reduzida pelo substantivo: original, portanto ambiciosa, porém,
mera leitura, nada mais que a interpretação de um autor já dado, a quem se
aderia. (É engraçado que assim se passasse uma imagem de adesão;
supunha-se, do autor estudado, que dissesse a verdade sobre as coisas.
Supunha-se, do leitor universitário, que endossasse o autor a quem lia).
(RIBEIRO, 2003, p.136 - grifo do autor).
Ele ainda afirma que, no cotidiano a Filosofia realizada pelos seus colegas que
escrevem para jornais ou participam de debates públicos, pouco ou nada tem contribuído para
a resolução dos problemas de nossa realidade, pois, quando está presente nas questões
pertinentes de nosso tempo, o filósofo se posiciona baseado na opinião, parafraseando autores
consagrados e, desse modo, não questionando ou refletindo profundamente as circunstâncias
do momento. Quando não, "mobiliza-se um aparato conceitual fabuloso, pesadíssimo, para
dar conta de questiúnculas. Nesses dois estilos, é possível que a filosofia só valha pela
assinatura [...] do professor que avaliza sua opinião, ou do grande filósofo morto". (RIBEIRO,
2003, p.140).
O professor do Departamento de Filosofia da USP, Oswaldo Porchat Pereira,
em seu texto intitulado Discurso aos estudantes de Filosofia da USP sobre pesquisa em
Filosofia (1999), parece concordar com a posição de Ribeiro, quando afirma que se tem
produzido boas pesquisa em História da Filosofia e que a Universidade está formando, com
seriedade e rigor, bons historiadores da Filosofia, entretanto, isso tem sido feito à custa das
questões filosóficas, uma vez que "impõe-se seguramente a necessidade metodológica de
deixar de lado as posições pessoais, [...] faz-se um mister o esquecimento metodológico de si
próprio" (PEREIRA, 1999, p.132). O professor afirma que tal método é, sem sombra de
dúvida, o melhor quando se quer esboçar uma hipótese interpretativa, uma reconstrução de
acordo com o pensamento original de um autor, porém, se faz necessário questionar se essa é
a melhor forma de preparar o estudante para a prática da Filosofia.
Prepara-se alguém para a prática da Filosofia do mesmo modo como se
prepara alguém para a prática da História da Filosofia? A iniciação à
pesquisa em Filosofia é a mesma coisa que a iniciação à pesquisa em
História da Filosofia? O aprendizado de um método rigoroso de pesquisa
historiográfica, do método estruturalista, por exemplo, é o único ou o melhor
caminho para fazer desabrochar as potencialidades filosóficas daqueles
35
nossos estudantes que foram trazidos a um curso de Filosofia por sentirem
sede e fome de Filosofia? (PEREIRA, 1999, p.133 - grifo do autor).
Tanto nesse método de ensino filosófico uspiano quanto no adotado pelas
faculdades confessionais de Filosofia, de modo geral, parece-me tornar infecunda a atitude de
reflexão, ou porque se propõe formar o aspirante a filósofo em uma concepção generalista,
enciclopédica, com base quase apenas nos comentadores dos filósofos e, portanto, superficial,
ou porque adota o rigor da historiografia para conhecer um pensador e seus pensamentos
deixando de lado as possibilidades de pensar com o(s) autor(es) os problemas atuais, do
mesmo modo como afirma Pereira (1999, p.135), quando diz que "é infelizmente possível,
entre nós, terminar a graduação em filosofia, não tendo lido nem trabalhado nenhum, ou quase
nenhum, dos temas de que se ocupam os filósofos que neste momento estão em nosso mundo
propondo seus filosofemas". (PEREIRA, 1999, p.135). E o autor tem razão com o que afirma. Com
esse pensamento, não quero desconsiderar, em nenhum momento, a importância da História da
Filosofia, pelo contrário, acredito ser impossível qualquer reflexão filosófica, dentro da sala de aula,
sem que se faça uso de tal arcabouço. Porém, o que considero um grande equívoco (e que descobri,
inclusive, em minha prática docente), é que não se deve ensinar a História da Filosofia sob o epíteto de
estar fazendo Filosofia. Do mesmo modo, acredito não o ser, estudar apenas comentadores dos
principais filósofos em uma concepção generalista sem o rigor historiográfico a que o método anterior
se dispõe, em detrimento do filosofar.
O problema da formação no nível superior de ensino foi muito mais sentida por
mim do que pensada, isto é, houve muito mais situações em que percebia que não conhecia o
que era ensinar Filosofia, ou que o que eu sabia era insuficiente, do que situações em que
pudesse pensar sistematicamente sobre tal formação. Até certo ponto, no início de minha
prática docente, sentia-me um pouco seguro quanto à seleção dos conteúdos para dar aula,
mas assustava-me a ideia de não saber por onde começar. Eu simplesmente não poderia entrar
em sala de aula e despejar teorias e propor reflexões filosóficas ou sair falando de um ou outro
filósofo sem que tudo pudesse compor um sentido, tanto para mim quanto para os estudantes
que ali estariam. Portanto, se fez necessário pensar e repensar os critérios que norteariam a
seleção dos assuntos discutidos em sala de aula. A princípio me vi sufocado com tantas
informações que me vinham por meio dos relatos de experiências positivas e negativas
anteriores (que chegava a soar como coação), que foram despejadas na ocasião da primeira
reunião pedagógica e, portanto, o primeiro contato com a escola.
36
Murcho afirma que os professores do Ensino Médio "tem que deixar de ser
vítimas da formação que tiveram nas faculdades e dos ministros e secretários de estado e toda
máquina burocrática que se constitui paradoxalmente como um poderoso obstáculo ao ensino
de qualidade". (MURCHO, 2002, Local: 2% - 52 de 2525). Entretanto, para assumir tal
postura, havia a necessidade de ter sido, pelo menos, preparado para ela. Autonomia não se
adquire de uma hora para outra e sem preparo, por isso, a minha segurança inicial residiu na
possibilidade de reprodução do conteúdo e da metodologia adotada pelos meus professores da
graduação. Naquela ocasião, não tinha maior entendimento sobre a problemática que envolve
o ensino filosófico a ponto de encontrar amparo nas discussões já realizadas até o momento.
O instinto de sobrevivência pedia o mais acessível - reproduzir os conteúdos que tive na
faculdade, sobretudo os que eu tinha maior domínio e facilidade. E foi assim que iniciei.
Uma das diretrizes que norteou boa parte das minhas escolhas por conteúdo e
metodologias de trabalho como professor foi pensar que o estudante que estava à minha frente
não iria se formar filósofo (quando muito encontrava um ou outro que dizia gostar de
Filosofia). Este foi um referencial que considerei muito importante na época por estar
intimamente ligado à receptividade do estudante em relação ao conteúdo, haja vista as
dificuldades existentes em transpor o pensamento filosófico para um nível de compreensão de
quem não fez Filosofia. Particularmente, ainda acredito ser esse um bom ponto de partida para
as aulas de Filosofia: entender que o estudante à sua frente talvez não se interesse ou não
necessite conhecer a totalidade (ou grande parte) da tradição do pensamento filosófico
constante na Historia da Filosofia. Apesar da inexperiência com a sala de aula, já conhecia
uma ou outra dificuldade informalmente relatadas por alguns colegas com algum tempo de
experiência na docência, bem como suas angústias, frustrações e preocupações. Era unânime
entre eles a falta de condições de transpor o pensamento filosófico a uma linguagem
suficientemente capaz de ser entendida pelos estudantes e sem banalizar o texto trabalhado.
A Filosofia encontra agora, em seu retorno ao Ensino Médio, um terreno muito
arenoso devido os estereótipos gerados ao seu redor: disciplina de difícil acesso,
conhecimento erudito e elitizado, assuntos desinteressantes, temas de discussão fora da
realidade do estudante, "coisa de gente maluca" e a dificuldade de pensá-la como uma prática
na orientação do agir humano. Tais estereótipos são reflexos do desmerecimento e
desprestígio da disciplina na escola. Durante algum tempo insisti no ensino da História da
Filosofia com os estudantes, numa concepção de ensino extremamente conteudista e
autofilosófica, ou seja, apostava em um ensino histórico-filosófico linear como conteúdo e
37
método do filosofar, como se o conhecimento da história da Filosofia por si só fosse capaz de
proporcionar espaço suficiente para uma postura filosofante.
Neste período, organizava o conteúdo de modo a transmitir informações sobre
os principais pensadores da história em aulas meramente expositivas e contínuas. Estava
previsto, em meu planejamento, discutir o início da Filosofia com os filósofos pré-socráticos e
suas indagações acerca da busca por um elemento originador (arché) constitutivo de todas as
outras coisas no mundo, passando pelos principais pensadores dos períodos históricos até
finalizar com alguns contemporâneos. Nesta postura permaneci até perceber que amealhei a
antipatia que os estudantes tinham pela disciplina, mas, que poderia (hipoteticamente) ser
superada se trouxesse à discussão, temas do cotidiano que fossem passíveis de uma reflexão
filosófica. Esse movimento de rompimento com uma postura e o iniciar de uma outra,
demandou também, nova maneira de conceber o ensino filosófico. Se antes a História da
Filosofia era suficiente para preparar o estudante pensante para o universo filosófico, segundo
minha compreensão na época, agora essa possibilidade voltava-se para a discussão de temas
baseados no interesse deles. Essa fase foi muito marcada pela tentativa de aproximação do
conteúdo filosófico junto ao estudante do Ensino Médio, uma vez que era frustrante vê-los
dormindo na aula ou totalmente apáticos à presença do professor e do conteúdo.
Optei por iniciar esta nova abordagem com um dos temas transversais
propostos no PCN: a Ética, já que o assunto me atraía bastante e eu já possuía uma razoável
gama de materiais para um ponto de partida. Não deu para fugir muito da reprodução das
aulas dos professores que tive. Foram espelhos para o começo, uma espécie de segurança
inicial, afinal de contas no início ainda não há uma identidade claramente consciente sobre si
mesmo, mas havia sim uma definição ideal de como ser e de como não ser professor nos
moldes que tive na faculdade. De um jeito ou de outro os mestres que tive influenciaram
diretamente no início da profissão, do mesmo modo que os temas ou pensadores por eles
ensinados.
A abordagem que utilizava para esta nova postura era baseada na inserção de
diversos recursos imagéticos e sensoriais para que eles pudessem se ver na reflexão proposta,
mas que também toda a Filosofia da aula fizesse algum sentido para a vida desses estudantes.
Dessa forma, passei a priorizar um arcabouço temático para a reflexão em sala de aula que
fosse possível tal aproximação. Os manuais disponíveis na época serviram como aparato
conceitual e referencial para as discussões. Particularmente trabalhei com o Filosofia, da série
38
Novo Ensino Médio (volume único), da Marilena Chauí. O livro trazia um manual para o
professor, em sua parte final, juntamente com questões e exercícios ao final de cada unidade.
De fácil acesso, com linguagem razoável para as séries a que se propunha, esse livro foi
ofertado gratuitamente aos professores como cortesia da editora Ática. Era uma espécie de
"resumão" do Convite à Filosofia (da mesma autora), porém, com maior quantidade de
recursos didáticos como imagens, analogias e resumos de filmes, sugestões de atividades,
exercícios em forma de questões abertas.
O conteúdo programático temático proposto para o ensino estava dividido em
oitos partes, sendo duas para cada bimestre letivo. O primeiro bimestre compunha-se,
inicialmente, de uma Introdução ao estudo da Filosofia, com discussões voltadas às suas
origens e as condições históricas, sociais, políticas e econômicas, que favoreceram tal
surgimento. A etimologia da palavra, o porquê ela se fazia necessária. O que é a atitude
filosófica e a atitude crítica, também faziam parte das discussões introdutórias do conteúdo.
Um segundo tema discutido, ainda no primeiro bimestre, foi o que denominei de Visões de
mundo. Tratava-se da discussão a respeito das diversas formas de entender/conhecer o mundo,
como o senso comum, a ciência, a filosofia, o mito e o conhecimento religioso. Apesar da
ampla discussão sobre as diversas visões-de-mundo, o foco central estava em compreender o
modo de pensar do povo grego anterior à filosofia (os mitos), na tentativa de melhor
compreender o surgimento da Filosofia como nova possibilidade de olhar para a realidade.
Para o segundo bimestre de aula estava planejada a discussão acerca dos temas
da verdade e do tema da consciência. A verdade como um importante valor para a Filosofia e
as discussões sobre as dificuldades de buscá-lo. Nesse processo de busca da verdade se faz
necessário o reconhecimento da própria ignorância diante do saber suposto, a incerteza
geradora das dúvidas e questionamentos e, a insegurança que move o sujeito à busca de um
novo conhecimento ou à reelaboração do mesmo. O mito da caverna de Platão, bem como a
sua visão dualista sobre o mundo e sobre o homem, constituiu-se base para se pensar esta
temática. Com o tema da consciência, a proposta inicial era de pensar até que ponto a
consciência seria capaz de conhecer tudo o que se passa na realidade. Para tanto, propus a
compreensão da relação existente entre consciência e conhecimento e, posteriormente,
adentrar na reflexão psicanalítica sobre consciente e inconsciente. Nessa unidade, estava
previsto também (apesar de fugir da temática central), a reflexão sobre o conceito de cultura e
a formação cultural do sujeito. O determinismo psíquico em Freud seria a deixa para iniciar
outra temática filosófica que é a da liberdade como problema filosófico e, na sequência, a
39
experiência do sagrado, as religiões e suas manifestações culturais. No 4º bimestre, foram
trabalhados os temas da estética, com a discussão sobre o belo e sobre o artístico, o
preconceito (o feio) e a visão de diversos filósofos acerca desta temática. O segundo tema
trabalhado foi o da ética, com propostas de pensar o conceito de ética e moral, a ética como
necessidade da vida em sociedade, a bioética e cidadania.
A mudança de concepção de ensino da Filosofia (de histórica para temática),
inicialmente surtiu efeito de satisfação, tanto para os estudantes que passaram a ver a Filosofia
como algo mais próximos de sua realidade (e isso foi percebido pelo feedback dado por eles
mesmos nos momentos finais das aulas ou nos intervalos, por meio de comentários informais
e relacionados à sua vivência cotidiana), quanto para mim, que não tinha mais que lidar com
um dos diversos problemas que um professor enfrenta em sala de aula: a desmotivação dos
estudantes com relação ao assunto discutido. Tal postura demandaria uma mudança também
na maneira de ministrar uma aula, ou seja, neste momento, minha atenção passou a estar
voltada também para a didática dentro de sala de aula. Debates e outras formas de
apresentação do conteúdo que tinham caráter mais prático ou participativo renderam alguns
adeptos à disciplina antes temida ou desprezada. Entretanto, surge a sensação de banalização
do método filosófico, quando as aulas passam a serem vistas como um espaço de polemização
sem muito rigor na argumentação. O fato é que fui de um extremo ao outro, pensando
encontrar a solução para as minhas angústias docentes. Das aulas de História da Filosofia,
expositivas e cansativas, "repletas" de conteúdo, à superficialidade dos "debates" sobre temas
do dia a dia (tais como descriminalização do aborto, pesquisas com células-tronco, eutanásia,
cobaia humana etc), beirando o senso comum. Ora, meu senso ético me alertava sobre a
necessidade de mostrar-lhes um filosofar mais rigoroso e sério.
Desse modo, o que está em questão não é mais apenas a seleção de um
conteúdo a ser trabalhado ou a opção pela vertente histórica ou temática do ensino filosófico,
mas a própria concepção que eu tinha do que era a Filosofia. Filosofia para mim, em primeira
análise, era a saída do senso comum. Essa concepção ficou clara porque o que me
incomodava tanto no primeiro modo de dar aulas (com conteúdos da história da Filosofia),
quanto no segundo (temático), a discussão ou exposição do conteúdo, como já explicitado
acima, beirava o senso comum. Ora, eu não podia ficar discutindo coisas do cotidiano e não
dar um aprofundamento filosófico, em contrapartida, as coisas do cotidiano eram as coisas
que circundavam a realidade dos estudantes. Como lidar com o senso comum e o cotidiano
em minhas discussões? Nesse ponto, o contato com a literatura serviu-me de apoio na
40
reconstrução de uma concepção do que é a Filosofia, e que será melhor aprofundada no
terceiro capítulo desta dissertação.
1.3 O Filósofo e o Professor de Filosofia
Neste tópico a pretensão será esboçar um dos limites encontrados pelo
professor de Filosofia em sua prática em sala de aula. Dentre os problemas já levantados e
discutidos no campo do ensino filosófico, um tem ganhado bastante destaque: trata-se da
identidade do filósofo e professor de Filosofia. Parece que, muitas vezes, o filósofo e o
professor de Filosofia são duas entidades separadas e com naturezas bastante específicas. Essa
sensação deriva de falhas na formação do futuro professor de Filosofia, como visto acima.
Também parece que, mesmo explicitando os reais objetivos do curso de Licenciatura em
Filosofia, quanto à formação do professor, o resultado se mostra numa posição
diametralmente oposta.
Rodrigo Pelloso Gelamo em sua tese de doutoramento (O ensino da filosofia
no limiar da contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de
filosofia?), e Lídia Maria Rodrigo (2009), em seu texto (O filósofo e o professor de Filosofia:
práticas em comparação), buscam refletir um pouco mais sobre a identidade do professor
filósofo. Gelamo (2009, p. 19) utiliza uma metáfora na qual reconstrói sua vivência no início
de sua carreira como professor de Filosofia. Ele afirma ter se sentido estrangeiro em sua
própria terra (“esse sentimento de estrangeiridade”). Sentimento esse que o fez pensar o
lugar do professor de Filosofia, o fez pensar o que é e como ensinar Filosofia. Gelamo (2009)
explica a cisão que há entre a realidade do professor de Filosofia e do filósofo, como duas
maneiras distintas mas complementares de se entender parte das grandes angústias que
rondam a formação do professor filósofo.
Gelamo afirma que há um desacordo entre a ideia que concebia sobre o que é
ser professor e a relação estabelecida com os estudantes.
Os alunos, logo de início e de modo geral, não tinham o desejo de aprender
os conteúdos 'filosóficos'. Alguns, por terem passado por situações escolares
não muito agradáveis com professores de Filosofia; outros por mero descaso
41
ou preconceito; outros, ainda por influência dos primeiros. O que fazia
unânime era a questão, muitas vezes marcada pelo silêncio dos rostos
apáticos: 'o que isso (filosofia) tem a ver com o curso que eu faço?' A partir
daí, a questão que eu passei a me colocar era: qual a importância em ensinar
Filosofia a esses alunos, a importância de eles aprenderem, e a relação
existente entre a Filosofia e os campos de saber específicos em cada um
deles estava sendo formado? (GELAMO, 2009, p.21).
Outra dificuldade encontrada pelo autor está ligada à falta de uma espécie de
elo entre o conteúdo programático, constante nas matrizes curriculares, e o objetivo final das
disciplinas e, sobre tal dificuldade, ressalta ainda que as ementas propostas não traziam
conteúdos que possibilitassem um diálogo entre as outras propostas das outras disciplinas, na
formação específica dos estudantes.
Desse modo, o ponto de apoio para a resolução da questão anterior, além de
não solucioná-la, criou outra: como propor uma discussão que fosse
filosófica e mais próxima dos interesses dos alunos e dos próprios cursos nos
quais os alunos estavam sendo formados se a ementa da disciplina não
possibilitava realizar tal intento? (GELAMO, 2009, p.22).
Desse modo, o plano da disciplina encaminhava-se para uma temática muito
próxima da “história de como os filósofos referiam à educação”. (GELAMO, 2009, p.22).
Ainda assim, seus alunos o questionavam: “qual a finalidade de saber a história da Filosofia
da Educação se eu vou ser um professor de Matemática ou de Educação Infantil? Como isso
vai auxiliar em minha prática cotidiana em sala de aula?” Tais questionamentos levou-o a
pensar também se, de algum modo “a Filosofia pode contribuir apenas para a compreensão de
como a história dos temas filosófico-educacionais auxiliaram a pensar esses temas, neste caso,
a Educação4”. (GELAMO, 2009, p.23).
Dessa maneira, Gelamo foi compondo suas reflexões e questionamentos, a
partir da sua própria experiência como docente de outros cursos de licenciatura e bacharelado,
a fim de traçar “alguns caminhos”, como relata. Percebeu um indício: Falta de preparo do
professor que elaborou a ementa – significando um problema na concepção do ensino de
Filosofia, bem como um problema na concepção do ensino de Filosofia, ou seja, um problema
ao conceber o que é ensinar Filosofia, e outro problema no ato de ensinar Filosofia (Ensino de
Filosofia para não-filósofos).
4
Cabe ressaltar que Gelamo refere-se ao Ensino Superior
42
Assim surgiu a questão sobre o tipo de conhecimento que o professor
deveria possuir e produzir para ensinar a Filosofia e de que modo ele deveria
problematizar o ensino da Filosofia para entendê-lo melhor. Busquei então
problematizar (1) o que seria o ensino e o que seria o processo de
ensino/aprendizagem tão presente no discurso dos educadores e (2) o que
fazer para entender seu funcionamento. Afinal, perguntei-me: (3) qual é a
experiência necessária ao fazer e ao ensinar/aprender filosofia para que o seu
ensino realmente se efetive? (GELAMO, 2009, p.23-24).
Pareceu então, segundo o autor, surgir a seguinte questão após as reflexões: “o
que se espera de um filósofo quando o assunto é o ensino da filosofia?” (GELAMO, 2009,
p.24). Esse tipo de questionamento remeteu necessariamente à formação do futuro professor
e, neste caso, Gelamo ressalta o risco que se corre ao formular tal questionamento, que é o
risco de “pedagogizar” ou “metodologizar” o ensino da Filosofia. Outra forma de
problematizar o ensino da Filosofia fazia-se necessário, embora estivesse claro um ponto sob
o qual deveria ser submetido ao crivo do autor: o fazer filosófico do professor de Filosofia.
A indiferença do professor filósofo em relação ao ensinar pode transformar o
próprio ensinar em algo ainda mais complicado, pois, às vezes, o próprio professor de
Filosofia não se vê interpelado pelos problemas de sua própria atividade docente. Isso, em
tese, torna-se um agravante, uma vez que na maioria das ementas, currículos e programas
pedagógicos das disciplinas de Filosofia espera-se do professor o auxílio na formação de um
sujeito crítico. O que era necessário para ser professor de Filosofia? Numa investigação
primeira, com seus colegas de profissão, constata a ausência deste questionar, que os mesmos
acreditam que “ser professor de filosofia é ensinar filosofia, mesmo sem se ter a compreensão
filosófica do que seja ‘ser professor’ e do que seja ‘ensinar filosofia’”. (GELAMO, 2009,
p.25).
Lídia Maria Rodrigo (2009) inicia uma discussão a este respeito, remetendo as
duas realidades do filósofo (produção do conhecimento filosófico e o seu ensino) à reflexão
desde a Antiguidade, tomando como exemplo Sócrates, que foi um grande pensador e também
bom mestre, ensinando a partir dos seus diálogos; Platão e Aristóteles, fundadores da
Academia e do Liceu, respectivamente. Com base na história dos filósofos clássicos ela
ressalta a impossibilidade de separar produção do conhecimento do seu ensino, porém,
introduz a ideia de que, nos dias atuais, existe uma nítida distinção entre os que “produzem o
saber filosófico e aqueles que o ensinam”. (RODRIGO, 2009, p.80).
43
Oficialmente o Brasil reforça e consagra tal distinção quando permite a
existência dos Centros Universitários, Faculdades Integradas e Universidades (estas últimas
com dedicação total à pesquisa, enquanto as primeiras estão ligadas ao ensino).
Embora formalmente classificadas como instituições de pesquisa, em boa
parte das universidades privadas – nas quais os cursos de pós-graduação
ocupam um lugar insignificante e o regime de contratação de professores
predominante é por hora/aula – o princípio da indissociabilidade entre ensino
e pesquisa, que consta de seus estatutos, não passa de letra morta.
(RODRIGO, 2009, p.80).
As Universidades enquanto instituições capazes de produzir conhecimento, bem como
de transmitir seu ensino, diferem, do que acontece no Ensino Médio, cuja dedicação está,
exclusivamente, voltada ao ensino. Diante desta constatação, torna-se mais difícil e mais complexo,
segundo a autora, debater tais questões, uma vez que se trata da identidade do professor de Filosofia
do Ensino Médio. Os polos da dicotomia existente entre o ensino de Filosofia e a Pesquisa em
Filosofia são vistos não somente como distintos entre si, mas como hierarquizadas a partir de critérios
valorativos. O professor acaba sendo visto como reprodutor ou divulgador de um conhecimento
produzido pelo especialista e passa a ser colocado numa posição de inferioridade em relação a este,
cuja função seria a de produzir novos conhecimentos.
Esta separação que se faz não é permanente e irreversível; pelo contrário, há muitos
professores de Filosofia que desenvolvem pesquisas elaborando um discurso filosófico original, e
vice-versa. O que deve, definitivamente, deixar de existir é a atribuição de valores hierárquicos entre
tais ofícios. Ora, muitos são os colegas de trabalho de sala de aula que nem sequer se veem como
filósofo, uma vez que, a partir do momento em que saíram da faculdade, não mais voltaram a realizar
pesquisas, tendo dedicado esforços para a obtenção de uma linguagem e comunicação mais eficazes
para atingir o público jovem e levar até eles as aspirações ou inquietações filosóficas. Da mesma
maneira, observa-se, com o aumento da demanda por aulas de Filosofia, que muitos filósofos,
pesquisadores desistem ou não se identificam com o ofício do professorado, por não conseguir
conquistar a atenção dos jovens estudantes para o pensar com os filósofos selecionados. Tais
constatações tornam evidente uma coisa: que há, sim, dois ofícios distintos que carregam
especificidades inerentes às suas naturezas também distintas.
Rodrigo afirma que ser professor de Filosofia não consiste em ser um mero reprodutor
de um discurso filosófico original, mas em produzir um conhecimento tal que possibilite o maior
acesso por parte do estudante a esse discurso filosófico original. Tal conhecimento pode ser designado
44
como discurso pedagógico “pelo qual a tradição filosófica possa converter-se em saber ensinável”.
(RODRIGO, 2009, p.82). O professor não só não deve reduzir seu ofício de ensinar a mera reprodução
do discurso especialista do pesquisador acadêmico, como também deve sim, reformular tal discurso de
modo a adequá-lo ao processo de ensino e aprendizagem. É neste aspecto que se encontra a
originalidade do ofício do professor de Filosofia. “Em lugar de qualificar o professor como
reprodutor do saber especializado, será mais correto designá-lo como reformulador de saber”
[grifos da autora]. (RODRIGO, 2009, p.83).
Reformular um discurso filosófico original significa apropriar-se de tal
discurso e adaptá-lo a uma linguagem mais acessível, mais adequada ao campo reflexivo
esperado pelo público-alvo do professor, ou seja, adaptar o discurso filosófico original à
realidade do estudante, ou ao seu nível de reflexão. Sem levar em consideração este
diagnóstico, a tendência é transformar o momento do acontecimento da aula, num momento
pedante e sem sentido para eles. O professor quando reformula um discurso filosófico
original, passa a tomar posse da autoria desse tipo de saber (o pedagógico), e essa autoria o
faz sair da passividade reprodutora, muitas vezes, sugerida nos textos e manuais didáticos
disponíveis no mercado editorial e, portanto, pronta e acabada. Portanto, é conveniente
afirmar que “na prática dos docentes que assumem essa postura passiva, o manual costuma
ocupar o lugar do próprio programa da disciplina, o que equivale a abrir mão de uma
intervenção pessoal, tanto na seleção de conteúdos como em relação à sua ordem de
transmissão”. (RODRIGO, 2009, p.83).
Ora, o ato de abrir mão dessa autonomia, dessa “responsabilidade de ser autor
de seu próprio discurso didático, ele próprio contribui significativamente para o rebaixamento
e o menosprezo da função docente”. (RODRIGO, 2009, p.83). Tal responsabilidade
representa a construção de uma ordem de transmissão própria, pela qual o professor delibera
de que maneira pode dispor e expor os conteúdos por ele aprendidos no seu processo de
formação, sem, porém, deixar de levar em conta o que é necessário à formação do estudante.
A necessidade de um discurso reformulador justifica-se sob a alegação da chamada distância
cultural existente entre o estudante do nível médio de ensino e o saber filosófico. Um dos
grandes desafios encontrados pelo professor de Filosofia (a partir do retorno da disciplina à
grade curricular) são as muitas deficiências trazidas pelos estudantes. Deficiências essas de
várias ordens, mas, sobretudo, culturais, linguística e lógico-conceitual. "Essa distância é
muito grande para ser percorrida pelo próprio aluno de forma autônoma; por isso, exige a
mediação do professor como alguém, capaz de transitar entre o saber de referência [...] e o
45
aluno que deve ter acesso a ele, mas não têm condições de fazê-lo por conta própria”.
(RODRIGO, 2009, p.85).
Assim, há um equívoco, muitas vezes presente na fala de colegas de trabalho
de outras disciplinas, coordenadores pedagógicos e diretores (como já presenciado por este
pesquisador), que acredita que fazer Filosofia é ler os textos dos filósofos clássicos, ou de
seus comentadores. A leitura por si só dos clássicos, não é capaz de proporcioná-los a
mediação necessária para suprimir esta distância cultural. Assim como polemizar temas do
cotidiano do estudante (sexualidade, aborto, religião, drogas etc), também não o é. A
produção de um saber didático constitui tarefa árdua e inacabada, uma vez que envelhece, seja
pelo processo científico de refutação das teorias pedagógicas, seja em virtude das variações
das demandas sociais pelo conhecimento, dada, portanto, a necessidade vigente de
permanente atualização pelo professor. Essa forma de pensar torna possível a restituição da
dignidade à função docente sem fugir das características da sua própria natureza. E qual seria
a diferença entre a natureza da construção do saber didático e a do saber filosófico? Esta
questão é importante de ser respondida para que se entenda que o saber didático sobre a
Filosofia, não é regido pelas mesmas regras internas que estão presentes na construção do
saber filosófico.
O saber filosófico tem, por princípio inerente à sua construção, o problema.
Este norteará todo o desenvolvimento de ideias, respeitadas as regras da lógica e o rigor com
que se trata o problema e o objeto referido, com a finalidade de levantar e defender suas teses.
Já o saber didático parte do saber filosófico, dele se apropriando e reformulando-o, por meio
do domínio da linguagem e do uso criativo de recursos externos, para transformá-lo em um
saber acessível ao estudante do nível médio de ensino. Esse processo resulta na produção de
um segundo discurso, uma vez que deriva do discurso filosófico original, tomado como
suporte de referência inicial e transformado intencionalmente. Portanto, como segundo
discurso ele não se vincula a um objeto de análise específico, mas, como discurso
reformulador se caracteriza por "deslocar o discurso de referência de seu contexto originário
para submetê-lo a uma nova regulamentação, com base em princípios estranhos ao saber de
referência". (RODRIGO, 2009, p.86).
Dessa maneira, a Filosofia que é ensinada nas escolas de nível médio, é o
resultado da ação do professor que desloca o conhecimento inicial de referência (filosófico)
de seu contexto original de produção e assume uma nova configuração que dista da
46
organização e lógica da própria Filosofia, pois é submetido a recursos como a simplificação, a
exemplificação, o sequenciamento, a síntese, a comparação, a ilustração etc. Com isso, o
discurso do saber filosófico passa a fazer sentido e operar numa instância diferente a que ele
foi produzido e pensado. Existe uma tensão presente no ofício do professor de Filosofia em
relação à reformulação do discurso filosófico de referência. Essa tensão está em o professor
dar conta de em suas aulas criar uma forma de maior acessibilidade aos textos filosóficos,
sem, contudo, descaracterizá-los ou banalizá-los. Ora, é evidente que há certo desgaste
quando se traduz um texto para uma linguagem mais simples. Os recursos da simplificação,
exemplificação, síntese, sequenciamento, ilustração, por exemplo, de certo modo,
empobrecem o texto original. É um preço que se paga inevitavelmente. "A reformulação
didática tem seu ônus: o que se ganha em acessibilidade perde-se em complexidade teóricoreflexiva". (RODRIGO, 2009, p.88). O fato do empobrecimento do pensamento filosófico ser
constante e fazer parte da rotina do professor reformulador não significa que ele não tenha
condições de auxiliar o estudante a superar esse empobrecimento. O discurso reformulado
deve ser adotado pelo professor filósofo como um discurso em transição, isto é, como a
passagem de uma etapa mais simples à outra mais complexa, sendo aquela condição para esta.
O discurso reformulado não pode ser encarado pelo professor como um fim,
mas, como um meio para o alcance de um fim maior. O auxílio para a superação desta
primeira fase se daria por meio do contato direto com os textos filosóficos originais.
As dificuldades apresentadas por esse tipo de texto são inegáveis, mas, se
bem trabalhadas, sua superação constitui um instrumento privilegiado de
acesso gradual e progressivo à complexidade filosófica, como por exemplo,
concedendo-se especial atenção ao esclarecimento do vocabulário, à
explicitação dos conceitos e aos exercícios direcionados ao desenvolvimento
do pensamento argumentativo. (RODRIGO, 2009, p.91).
Para tanto, se faz necessária a seleção cuidadosa dos textos (trechos), que devem ser,
segundo Rodrigo, não muito extensos, com grau leve de complexidade conceitual e vocabulário mais
acessível, para que haja alguma possibilidade de desenvolvimento para o público desse nível de
ensino. Essa maneira de proceder, além de proporcionar ferramentas para compreensão do
conhecimento filosófico (muitas vezes hermético e de pouco acesso aos estudantes do Ensino Médio),
os ajudam a superar os limites impostos pela reformulação do discurso de referência e resolve parte da
47
problemática da falta de identidade que o professor de Filosofia sente em relação à atividade do
filósofo como pesquisador.
1.4 O Ensino Médio privado e os sistemas de ensino como produto consumível
O sucesso do ensino privado se mantém por dois principais motivos: a) a noção
comum de que o ensino de qualidade está nesta modalidade de instituição e, portanto em seus
modelos, métodos, sistemas, material de ensino e prestação de serviço; e, b) a sacralização
dessas instituições, indiretamente, por meio dos processos seletivos herméticos das grandes
Universidades do país. Quando se atribui o predicado de qualidade às escolas de Ensino
Médio privadas é importante que fique claro o que realmente se entende por qualidade quando
o assunto é a escolha da escola para um filho. Todo pai que preze por uma boa educação para
seu filho e almeja um futuro melhor que o seu próprio, vê a possibilidade desse futuro num
presente que começa com a formação, lá na escola. Por isso, frequentemente é possível
encontrar pais "preocupados" (ou culpados?), à procura de uma instituição que garanta um
ensino de qualidade aos seus filhos. Qualidade essa, na grande maioria das vezes, é sinônimo
de aprovação e ingresso em Universidades e cursos de nível Superior.
Por conta da estrutura de pensamento da sociedade atual, completamente
envolta pelo consumo promovido pelo modo de produção capitalista, o estudante é elevado à
posição de cliente e, com o apoio irrestrito de seus pais, se preocupa, via de regra, em obter
resultados imediatos e profícuos em relação aos conteúdos transmitidos na escola. Desse
modo, a instituição escolar particular passa a configurar-se principalmente como a indústria
capaz de fornecer tal produto aos ávidos clientes da contemporaneidade. Ora, toda indústria
fornece um bem ou serviço aos seus clientes de modo a querer vê-lo satisfeito e, cada vez
mais, fiel consumidor de seus produtos. Com a educação não é diferente (embora fosse
necessária tal diferença). O investimento capital que se valoriza nesta indústria do saber é o
sistema de ensino, pois ele trará os resultados esperados pelos pais do estudante.
O sistema de ensino é o conjunto de conteúdos (materiais didáticos) e formas
de ensiná-lo (por meio de variados recursos e metodologias), que vão, desde os mais simples e
tradicionais até os mais rebuscados e tecnológicos e que é ofertado como produto às escolas
particulares como promessa de sucesso ao "colocar" os estudantes no alto do ranking das
48
listas de vestibulares das principais Universidades do país. Tive a oportunidade de trabalhar
em alguns colégios que possuíam tais configurações e que trabalhavam para a promoção dos
seus sistemas de ensino (Positivo, Dom Bosco, Poliedro e Ético). Cada um a seu modo,
pretendia cumprir suas metas: inserir estudantes nas Universidades, sobretudo as públicas (de
difícil acesso).
Percebe-se que a preocupação com a qualidade do ensino não está focada para
a formação integral do sujeito, do estudante, mas sim à sua entrada numa Universidade, de
preferência às mais concorridas e para cursos elitizados e igualmente concorridos. Assim,
todo esforço da escola privada está em suprir o desejo do seu cliente pagante, de modo que
moldará toda sua estrutura (física, gestora, pedagógica, metodológica, de instrumentos
educacionais e recursos tecnológicos), para a obtenção de seus objetivos. A educação passa a
não ser o fim último em si mesma, mas, um meio para a obtenção de outro fim. É a
mediocrização do ensino. E a Filosofia? E o professor de Filosofia dentro dessa lógica
educacional para o mercado? Como ensinar Filosofia para um público que é, antes de tudo,
clientela? Antes de responder a estas questões, relato mais algumas das minhas experiências
nesse tipo de instituição.
Desde 2009 trabalho, ininterruptamente, com o Ensino Médio Privado e pude
experienciar na prática, os sistemas de ensino supracitados. Comparado ao ensino público5, o
privado possui algumas características bastante peculiares, tais como material próprio
elaborado e indicações bastante pontuais aos professores de como proceder diante dos
conteúdos e outros, conforme veremos. Não é minha intenção com esta dissertação, analisar
este ou aquele sistema de ensino ou seus materiais didáticos com rigor detalhado, mas antes,
relatar minha experiência enquanto professor de Filosofia nesta modalidade de ensino, com
todo o arcabouço de instrumentos por ele dispensado na obtenção de sua meta final.
Apesar de apresentar diferenças claras entre si, os sistemas de ensino das
escolas particulares possuem algumas semelhanças no que tange o ensino de Filosofia. As
características que os aproximam referem-se aos conteúdos ensinados; as diferenças, portanto,
ficam a cargo da maneira como ensinar. Ou seja, o sistema de ensino, conforme definido
anteriormente, é um conjunto de conteúdos e metodologias voltadas para a transmissão formal
5
A analogia que faço entre o ensino público e o privado deve ser levada em conta que a experiência no setor
público que tive se passou antes da obrigatoriedade do ensino filosófico no Ensino Médio, também anterior às
medidas tomadas pelo governo do Estado de São Paulo em adotar um material didático próprio e uniforme,
conhecido como coleção São Paulo Faz Escola. Parece que essa mudança de postura do governo em relação ao
sistema educacional público tem buscado inspirações nos moldes dos sistemas privados de ensino.
49
de saberes ao estudante. Portanto, cada um organiza e estrutura os conteúdos, as metodologias
e os suportes necessários à transmissão do saber, a seu modo. No que se referem aos
conteúdos eles primam pela memorização de fatos e contextos da História da Filosofia,
passando pelos principais pensadores ocidentais, ou por temas da Filosofia reunidos e
organizados obedecendo a linearidade histórica.
No sistema Positivo, por exemplo, os conteúdos são organizados por temas da
Filosofia e por pensadores da história em todas as séries desse nível de ensino, já no sistema
Dom Bosco os temas ficam localizados na 1ª série e os filósofos são vistos a partir da 2ª série.
O Ético, o Positivo e o Poliedro possuem modelo de ensino filosófico para o nível
Fundamental II, onde as discussões são mais voltadas para temas do cotidiano das crianças e
com base em algum conceito e tratamento filosóficos, deixando para o Ensino Médio toda a
história da Filosofia. Cabe ressaltar que estes sistemas já trazem o Plano de Ensino pronto e
com os conteúdos já divididos em bimestres ou trimestres. O Plano de Ensino é uma das
ferramentas que, ao ser elaborado pelo professor, denota sua autonomia em relação a seleção
do conteúdo e ao modo como pretende trabalhar sua disciplina e, portanto, seu proceder. Por
mais que o professor queira reorganizar o conteúdo previsto no material didático do sistema
adotado pela escola, este o engessa.
O professor não pode, por exemplo, começar com um assunto que no Plano de
Ensino imposto pelo sistema está previsto mais no final do ano letivo, uma vez que o material
do estudante é entregue em remessas bimestrais (ou trimestrais, conforme o sistema) e ao final
de cada ciclo ele é submetido a uma bateria de exames, provas e testes propostos pelo sistema,
a fim de garantir a transmissão daquele conteúdo previsto no material. Dessa maneira, o
professor não só não pode movimentar os conteúdos propostos no Plano como também não
possui a liberdade de optar por não trabalhar um assunto presente no material, tampouco
torna-se interessante para ele introduzir assuntos que não estejam ali contemplados.
A escola particular e a educação que nela se realiza trazem em suas naturezas a
completa administração, seja pela gestão pedagógica intimamente atrelada ao financeiro, seja
pelo tempo destinado às disciplinas e à efetivação dos conteúdos previstos no planejamento
do sistema de ensino "comprado", ou ainda no método imposto aos professores (por meio das
avaliações externas que os estudantes devem realizar periodicamente) reduzindo-os a meros
reprodutores de conteúdos.
50
Resta, portanto, pouco ou nenhum espaço para a produção intelectual e
questionadora do professor com seus estudantes. Desse modo, o professor, faz uso privado de
sua razão unicamente, porque é sempre um uso doméstico, (KANT, 2005, p.62). Com pés e
mãos atados, ao professor cabe a reprodução do conteúdo que já vem mastigado e imposto
pelo sistema, por meio de uma metodologia de trabalho extremamente verticalizada e com
exercícios, atividades e resoluções prontos. Não precisa ser um adolescente para notar que as
aulas, dispostas dessa maneira, serão desinteressantes e maçantes, o que acaba por ocasionar
em dispersão dos estudantes e assim, transforma o tempo destinado ao "aprendizado" em um
tempo em que o professor se fará gestor de conflitos de ordem comportamental, punindo-os
quando não entrarem na formatação do sistema.
A legitimação desse sistema educacional e seus modos de ensino e
aprendizagem são provenientes, em grande parte, dos processos seletivos das grandes
Universidades que têm contribuído para a transformação das escolas em cursinhos
preparatórios para vestibulares, além de ditarem os conteúdos a serem trabalhados em sala de
aula. A bateria de testes elaborados pelo sistema de ensino, constantes no final de cada
unidade do material apostilado, ou nos exames externos realizados nas escolas, são retirados
ou inspirados em processos seletivos das principais Universidades e recentemente de exames
institucionalmente aceitos, como é o caso do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio).
Como professor do Ensino Médio de colégios privados me senti, quase na
totalidade das vezes, preso aos modelos adotados pela instituição e ao material apostilado.
Das vezes que aproveitei momentos de curiosidade dos estudantes para provocá-los sobre
questões cotidianas e filosóficas espontâneas e, portanto, não previstas no material,
posteriormente me vi desesperado na tentativa de cumprir com o conteúdo obrigatório para
que eles pudessem realizar os exames e provas e manter meu desempenho como professor que
cumpre suas "metas educacionais".
Essa pressão que o professor sente em "cumprir" o conteúdo do material
didático se dá por três vias diferentes e moralmente aceitas no ambiente escolar. Trata-se,
primeiro, por meio do sistema educacional, com calendário de provas e testes bimestrais ou
trimestrais pré-fixados; segundo, por parte do colégio que, enquanto instituição educacional, é
capaz de valer-se dos testes e provas elaboradas pelo sistema como instrumento de controle
sobre os estudantes e, sobretudo, sobre os professores e o conteúdo por eles trabalhados, e,
por fim; pelos pais dos estudantes que pagam caro pelo material didático apostilado e acham
51
inadmissível um professor não terminar o conteúdo previsto nos livros. Ora, o que se pode
perceber é que de um modo ou de outro, o professor vê-se acorrentado a um conjunto de
saberes estabelecidos e definidos por uma convenção da qual ele próprio não fez e não faz
parte.
52
CAPÍTULO 2
UM ANTIGO RUÍDO - O ENSINO DE FILOSOFIA EM KANT, HEGEL E
NIETZSCHE
Muito embora a discussão sobre o ensino de Filosofia esteja presente no
cenário atual, tal discussão não é nova. Três importantes pensadores merecem destaque nesse
trabalho: trata-se de Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Wilhelm
Nietzsche. Hegel e Kant foram contemporâneos do pensamento iluminista (momento histórico
que privilegiou a expansão da educação e de seu debate na época) e procuraram olhar para o
ensino como um problema filosófico e, de certo modo, pensar o seu papel enquanto
professores. Nietzsche viveu entre os anos de 1844 e 1900, tendo recebido formação
educacional da escola Schulpforta (uma das mais famosas pelo currículo e alto nível de
formação humanística), e influência do filólogo Friedrich Ritschl, em quem se inspiraria
posteriormente.
É muito comum circular na fala de alguns professores de Filosofia a ideia de
que para Kant é impossível ensinar Filosofia, apenas filosofar; enquanto que para Hegel o que
se privilegia é o ensino da Filosofia por meio da tradição histórica do pensamento filosófico.
Essa forma de pensar pode ter sido a promotora de uma cisão no modo como se concebe o
ensino filosófico, gerando duas vertentes dicotômicas (e muitas vezes vistas como
antagônicas), sobre o que ensinar (conteúdos) e como fazer isso (metodologia de ensino),
entretanto, não se pode deixar iludir por essa comparação simplista de Hegel e Kant a respeito
do ensino de Filosofia, em que um se opõe ao outro, como se Hegel se preocupasse apenas
com a transmissão de conteúdos históricos da Filosofia e Kant com o aprendizado do
filosofar. Já em Nietzsche está latente uma forte crítica à formação (Bildung) e à cultura de
sua época, sobretudo em relação ao modo como se dá o ensino de Filosofia nos ginásios e nas
Universidades contemporâneas a ele. O fato é que os professores de Filosofia e os filósofos se
atrelaram ao Estado, o que, segundo o pensador, causaria uma espécie de mascaramento do
modo de ensinar Filosofia, uma vez que filosofar é uma disposição de espírito que não cabe
53
ser institucionalizada, ou seja, ter hora para começar e acabar, estar à disposição de todos
(inclusive dos jovens despreparados para ela) e estar vinculada ao mercado de trabalho.
Diante disso, se faz necessário a averiguação dessas premissas, a fim de
assegurar sua veracidade e refletir sobre suas influências no modo como se concebe a
Filosofia e seu ensino nos dias atuais.
2.1 O filosofar e a Filosofia em Kant
Para entender as ideias de Kant a respeito de como ele concebe a Filosofia e
seu ensino, foram consultadas as obras intituladas Resposta à pergunta: Que é
"Esclarecimento"? - Aufklärung (1783), Sobre a Pedagogia (1803), O conflito das faculdades
(1798), Crítica da Razão Pura (1999). Também viu-se a necessidade de incluir a leitura de
dois comentadores com intuito de melhor compreender o pensador em questão. Trata-se dos
livros Compreender Kant (2008), de Olivier Dekens e Kant e a Educação (2011), de Claudio
A. Dalbosco e um texto de Lídia Maria Rodrigo intitulado Aprender filosofia ou aprender a
filosofar: a propósito da tese kantiana (2004).
No livro Sobre a Pedagogia, Kant relata sobre a necessidade de ensinar e
também de como é possível ensinar as crianças em comunidade, sobretudo para a
humanização de si mesmas. Partindo da premissa de que "o homem é a única criatura que
precisa ser educada" (KANT, 1999, p.11), o pensador destaca a necessária atenção que deve
ser dispensada às crianças diante do seu processo formativo tanto intelectual quanto
disciplinar. Intelectual para que ela possa constituir-se num ser autônomo e livre, e disciplinar
para que possa exercitar-se diante de sua natureza selvagem, a fim de que possa fazer bom uso
da razão. Uma das características que diferenciaria o homem de outras espécies de animais é a
sua imaturidade desde o momento que nasce até a sua morte, tornando-o um ser dependente
dos outros de sua espécie. É evidente que esta imaturidade é inversamente proporcional às
experiências de ensino acumuladas temporalmente, conforme se vai vivendo em sociedade.
Desse modo, é correto afirmar que a formação do homem está implicada na continuidade e
garantia da sua própria existência, e o contrário também é verdade. A humanidade se plenifica
quando é aprendida, pois vai além da condição biológica: o ser humano nasce, mas só se torna
humano (em plenitude), posteriormente. Ser humano é uma condição projetada; no sentido de
54
que é algo a ser alcançado, atingido conforme se vai vivendo e aprendendo, o ser humano é
conforme vai sendo, isto é, conforme o homem vai se deparando com conflitos e realidades do
seu meio e, conforme ele vai interagindo com outros homens, de forma a estabelecer ou
romper laços sociais, então, vai construindo também sua subjetividade, sua personalidade, seu
modo de ser e enxergar o mundo que o rodeia.
O relacionamento entre os seres humanos tem a importante finalidade de
auxiliá-los a se tornarem conscientes de si e de sua autonomia. Portanto, pode-se afirmar que
o homem, enquanto ser biológico necessita de um reforço posterior ao nascimento, com o
qual possibilita a sua plenitude, uma espécie de segundo nascimento6, através do qual o ser
humano vai se aproximando de sua existência. Por isso, é a disciplina que vai auxiliá-lo a
transcender de seu status naturalis rumo ao status civilis, isto é, "a disciplina transforma a
animalidade em humanidade [...] submete o homem às leis da humanidade e começa fazê-lo
sentir a força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo." (KANT, 1999, p.12-13).
Kant vai afirmar que, em seu estado de natureza o homem não traz apenas a selvageria, mas
também as capacidades para que o uso da razão se desenvolva através do processo formativo,
educativo, dada pelos preceptores (pais e professores), que, de alguma forma, já passaram por
experiências semelhantes. Assim,
o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação.
Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal
educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros.
Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos homens os torna
mestres muito ruins de seus educandos. (KANT, 1999, p.15).
Cabe, portanto, à educação e aos professores, a tarefa de bem educar (o que
implica em tamanha responsabilidade), ou seja, os educadores devem ter uma postura
disciplinada para que também faça bom uso de suas faculdades do raciocínio, pois de outro
modo não poderia fazê-lo.
6
Pode-se dizer que o ser humano sofre dois nascimentos: o da gestação conforme determinam as condições
biológicas e, outro, do meio social que se insere – submetendo-se aos costumes culturais, linguísticos, morais,
entre outros, pois o humano não é simplesmente dado, ele se projeta no mundo, ele se torna o que é,
posteriormente ao nascimento biológico, em contato com o meio em que vive e com as pessoas que o
acompanha.
55
O professor se depara, portanto, com duas possibilidades de postura em relação
ao ensino, o treinamento e a ilustração. No treinamento, o estudante apenas teria condições
do uso mecânico e técnico do conteúdo que lhe foi transmitido (como muitas vezes é
perceptível nas escolas de Ensino Médio brasileiras, o preparo dos jovens para o concurso do
vestibular). Já no segundo caso, o ilustrar-se (Aufklärer), seria a capacidade que o estudante
desenvolve para usar livremente a sua razão. Desse modo, o educador não poderia ser alguém
sem preparo para exercer tal função, senão passar pelo processo formativo que o faria capaz
de instruir seus alunos para além do treinamento, isto é, uma educação para pensar os desafios
da vida.
A diferença entre o instruir e o formar para a vida está no que deles resulta. No
caso de uma educação voltada para a instrução, o estudante é formado para que seja capaz de
se "submeter", isto é, segundo Kant (1999), para que seja capaz de seguir as regras e leis e,
assim, garantir a boa vivência em sociedade. No segundo caso, o professor deveria possuir
condições de formação do sujeito que transcendessem o âmbito dessa educação para a
submissão. "O primeiro período para o educando é aquele em que deve mostrar sujeição e
obediência passivamente; no segundo, lhe é permitido usar a sua reflexão e a sua liberdade,
desde que submete uma e outra a certas regras". (KANT, 1999, p.30). Assim, a instrução é
oferecida por um informator, ou seja, por um professor que transmite conhecimento e prepara
o indivíduo aprendente para a vida cultural, social. Já a educação é oferecida por um
hofmeister, professor que prepara seu aluno para que ele possa fazer um bom uso da razão.
Para tanto, o sujeito do aprendizado não deve ser apenas instruído, pois isso implicaria no uso
instrumental, técnico, mecânico da razão. O que o tornaria esclarecido seria o bom uso que
ele faz da sua racionalidade enquanto atitude na vida cotidiana.
O "esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da
qual ele próprio é culpado". (KANT, 2005, p.63 - grifos do autor). A culpa a que Kant se
refere significa que só depende dele ir para além do uso privado da razão rumo ao uso
público, isto é, a culpa está na falta de atitude em usar a razão na qual foi formado. O papel do
holfmeister não é transformar o estudante num aufklärer, outrossim, prepará-lo para a vida,
uma vez que compete ao próprio sujeito ter a atitude de se tornar um aufklärer e sair (por si
só) do seu estado de minoridade. É notório, portanto, que tanto o treinamento quanto a
instrução seriam condições necessárias, embora não suficientes para garantir que o estudante
faça um bom uso de sua razão.
56
Em sua obra O conflito das faculdades (1993), escrita em 1798, Kant se refere
às faculdades como que organizadas em dois distintos grupos, 1) as faculdades superiores,
que abrangem conhecimentos tais como a Teologia, o Direito e a Medicina, cujas doutrinas
interessam ao governo, isto é, "em primeiro lugar, o bem eterno de cada um; em seguida, o
bem civil como membro da sociedade; por fim, o bem corporal (viver longamente e ter
saúde)", (KANT, 1993, p.24 - grifos do autor), e 2) as faculdades inferiores.que, segundo ele,
são inferiores pelo fato de estarem desobrigadas de exercerem poder de autoridade sobre o
povo. No caso, a Filosofia, "porque deve responder pela verdade das doutrinas que tem de
acolher ou até só admitir e, nesta medida, como livre e unicamente sob a legislação da razão,
não sob a do governo". (KANT, 1993, p.24). Portanto, caberia à faculdade inferior a
responsabilidade de abrir caminho rumo à liberdade, ou seja, lhe cabe "a modéstia de ser livre,
e também deixar livre, de descobrir apenas a verdade para a vantagem de cada ciência e de
pô-la à livre disposição das faculdades superiores". (KANT, 1993, p.31-32).
Neste caso, Kant modifica o sentido da concepção de Filosofia do seu tempo,
designando a ela outra função, a saber, a de crítica do pensamento. Ora, a Filosofia teria,
portanto, um papel fundamental na formação do homem, uma vez que criaria as condições
para o bom uso da razão, sendo, portanto, o holfmeister da sociedade. Por isso a máxima de
Kant que diz que não se ensina Filosofia (KANT, 1999a), agora faz sentido, pois o ensino de
Filosofia pautado na transmissão de conteúdo específico (como o da História da Filosofia),
não propicia condições para que o estudante possa filosofar, isto é, condições para que
possam refletir e tomar decisões pela livre razão, donde o ensino não deve se basear tão
somente na mera instrução.
Desse modo, se pudéssemos imaginar um programa educativo kantiano, este
estaria fundado nessa máxima: não ensinar a filosofia como uma acumulação
de conhecimento, mas "ensiná-la" como um modo de formação do homem
para o filosofar, para fazer um uso do pensamento crítico e, assim, ser
autônomo. (GELAMO, 2009, p.49).
Não seria a quantidade de assuntos discutidos, nem tampouco o conhecimento da base
histórico-filosófica que torna um indivíduo esclarecido, mas a disciplina, o exercício do uso
da própria razão, que leva à autonomia e à liberdade.
57
Lídia Maria Rodrigo (2004) alerta para a possibilidade de incorrer ao erro
quem fizer tal afirmação (de que é impossível ensinar filosofia, mas somente filosofar)
reportando a Kant, pois tratar-se-ia de uma leitura reducionista da tese kantiana a uma fómula
simplista se comparada ao texto integral do autor "sendo apresentada sem levar em conta as
premissas que lhe dão sustentação". (RODRIGO, 2004, p.91). Tal simplificação acontece
devido o fato de, na leitura sobre Kant, haver separação de dois conceitos básicos a respeito
do conhecimento da Filosofia. Trata-se da diferenciação entre conhecimento racional da
Filosofia e conhecimento histórico da Filosofia. Sem tal distinção, levaria as pessoas a
concluir que, de acordo com Kant, não é possível aprender a filosofia formulada pelos
filósofos, mas tão somente a filosofar, ou seja, a pensar autonomamente. Desse modo, tal
conclusão acaba por alimentar, segundo a autora, certa hostilidade em relação ao aprendizado
a partir da História da Filosofia, muitas vezes a substituindo por um conjunto de fórmulas
mirabolantes cujo propósito é despertar o pensar autônomo do aluno, desprezando a tradição
histórico-filosófica.
Rodrigo (2004) afirma existir mais um fator que descaracterizaria a tese
kantiana que seria a transposição para os dias atuais de uma suposição do que seria tal tese.
Ora, o erro se torna duplamente reforçado, pois uma vez feita a redução sem análise das
premissas que dão embasamento, o argumento se compromete, comprometendo também, a
sua transposição para os dias atuais, gerando, conforme destaquei anteriormente, um
menosprezo pela tradição histórico-filosófica por acreditar que dela nada se pode aprender.
Em Crítica da Razão Pura (1989), Kant expõe sua argumentação acerca da obtenção do
conhecimento, que a seu modo, podem assumir dois pontos de vistas diferentes: um objetivo e
outro subjetivo. O primeiro trata-se das condições de possibilidade do conhecimento
proveniente de experiências (a posteriori), já os subjetivos, são aqueles adquiridos apesar das
experiências (a priori).
O conhecimento do ponto de vista subjetivo - que mais interessa nessa
discussão, pois nele se encontra a aprendizagem filosófica em Kant -, estaria dividido em
históricos e racionais. Do ponto de vista histórico é possível, segundo ele, o aprendizado de
Filosofia quando o sujeito sabe o que lhe vem de fora, ou pela experiência imediata, ou pela
narração de outros, ou por instrução de conhecimentos gerais. Ensinar Filosofia seria uma
tarefa que caberia nesta última opção: como instrução.
58
A aprendizagem filosófica insere-se nesta última modalidade, e o exemplo
que Kant oferece não deixa margem a dúvidas: a aprendizagem de um
sistema filosófico, como por exemplo, o de Wolff. Ainda, porém, que tal
aprendizado conduzisse a um perfeito domínio da doutrina, de seus
fundamentos e demonstrações, ela não passaria de conhecimento histórico
completo da doutrina wolffiana. E o conhecimento histórico das doutrinas
filosóficas caracteriza-se, para Kant, por estar baseado na faculdade de
imitação, não na faculdade de invenção. Configura-se, portanto, uma
formação filosófica baseada na razão alheia, quer dizer, que não resulta do
uso da própria razão. (RODRIGO, 2004, p.93).
Assim, demonstra Kant, todo o sujeito submetido a este tipo de aprendizagem
filosófica, aprendeu tendo como base a memória e não no uso da razão, por isso, seu
conhecimento está restrito à compreensão e retenção de doutrinas formuladas por outros e não
de si próprio, "sabe e ajuíza apenas segundo o que lhe foi dado. Contestais-lhe e ele não sabe
onde buscar outra". (KANT, 1989, p.659). Dessas ideias pode-se concluir que é possível
ensinar Filosofia sem filosofar, pois "um conhecimento pode assim ser objetivamente
filosófico e, contudo, subjetivamente histórico, como é o que acontece com a maior parte dos
discípulos e com todos aqueles que não veem nunca mais longe do que a escola e ficam a vida
toda discípulos". (KANT, 1989, p.660). Em contrapartida, ele ressalta as características
básicas do sujeito oposto àquele acima citado: o mestre original - que é capaz de filosofar por
si só e seu conhecimento é subjetivamente racional, porque não fora extraído de nenhuma
fonte de experiência externa, mas da sua intelecção, de sua racionalidade. Estas características
demonstram que tal sujeito se relaciona com a História da Filosofia de modo diferente
daquele que a trata como doutrina a ser absorvida sem crítica.
Esta tese não se aplicaria, por exemplo, ao conhecimento matemático, pois,
enquanto na Filosofia o conhecimento pode ser objetivamente filosófico e subjetivamente
histórico, com a Matemática ambos se coincidem, visto que o estudante ao adquirir o
conhecimento histórico, por meio do professor, estará simultaneamente de posse do
conhecimento racional, pois só se pode aprender Matemática conhecendo e aplicando os
princípios básicos e verdadeiros da razão, que ela traz em si. (RODRIGO, 2004). Assim, Kant
conclui que "entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte,
aprender a matemática, mas nunca a Filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que
respeita à razão, apenas se pode, no máximo aprender a filosofar". (KANT, 1989, 660).
Fica claro e evidente a ideia de que não há, por parte do autor, uma dissociação
do que seja ensinar a filosofar apartado do aprender a Filosofia por meio da História, que é
59
uma das teses defendidas atualmente e que se-lhe atribui o crédito por meio de uma leitura
enviesada sobre Kant, até mesmo porque, o diálogo crítico com a tradição filosófica constituise umas das formas possíveis de filosofar contemporaneamente.
2.2 Hegel e o ensino histórico-filosófico
Nos textos Discurso ao reitor Schenk (1809) e Discurso do encerramento dos
anos letivos (de 1809, 1810, 1811, 1813 e 1815), encontra-se reflexões sobre a educação e nas
obras Acerca da exposição da Filosofia nos ginásios (Informe a Niethammer - 1912) e Acerca
do ensino da Filosofia nos ginásios (Informe ao Ministério do Culto do Reino da Prússia 1822), estão presentes as ideias sobre o ensino da Filosofia na concepção de Hegel.
É perceptível, no texto de 1812, uma maior proximidade de Hegel com a
realidade do ensino de Filosofia e de seus problemas, pelo fato de estar ocupando o cargo de
diretor e professor de Filosofia do ginásio. Essa proximidade fica clara quando, no informe,
Hegel especifica o que deveria ser ensinado em termos de conteúdos, e qual a melhor maneira
de ensinar tais conteúdos filosóficos (métodos), constituindo assim, uma apresentação da
postura do ensino filosófico para aquele momento. Em contrapartida, no informe de 1822,
Hegel mostra-se mais comedido, menos específico diante da exposição de como a Filosofia
deveria se portar no ginásio. Tudo leva a crer que tal mudança na postura se deva ao momento
em que Hegel estava vivendo, ocupando o cargo de professor universitário e, portanto,
envolto em preocupações e problemas diferentes do momento anteriormente referido. Neste,
ele ressalta a importância de agregar vários outros conhecimentos para a promoção da
formação humana, como por exemplo, um melhor preparo para o conhecimento da língua
materna e o aprofundamento no conhecimento cultural.
O que é perceptível é o movimento no seu pensar diante desses dois momentos,
que surge, talvez, como um meio de reavaliar sua postura pensante a respeito do ensino
filosófico: antes específico e pontual para depois mais geral, privilegiando uma boa base com
estudos dos filósofos clássicos, bem como da língua grega e do latim. Esse movimento
(reflexão) é notado, de modo sutil, quando Hegel demonstra dúvida acerca da permanência do
ensino da Filosofia no ginásio, sobretudo no seguinte trecho:
60
Falta ainda [no relatório de 1812], uma observação final, que eu, entretanto
não acrescentei, dado que acerca deste ponto ainda estou em conflito comigo
mesmo - a saber, que talvez todo o ensino de Filosofia nos ginásios poderia
parecer supérfluo, que os estudos dos antigos é mais adequado para a
juventude ginasial e que segundo sua substância constitui a verdadeira
introdução à filosofia. (HEGEL, 1991, p181).
Gelamo (2009) afirma que Hegel quer evitar que o ensino filosófico se reduza
a apenas exercitar a reflexão sobre algo, ele acredita que os estudantes só vão se desprender
da realidade sensível e experienciar novas maneiras de pensar (a dialética e a especulativa),
caso lhes sejam oferecidos modos de pensamento mais elevados. O ensino de sua época
estava organizado em três níveis básicos, sendo o inferior (unterklasse), médio (mitte klasse) e
o grande (ober klasse). No primeiro nível de ensino, o conteúdo filosófico ia do conhecimento
da religião aos direitos e deveres enquanto cidadãos. Ao nível intermediário unia-se o
conhecimento da cosmologia e psicologia, e, por fim, no último nível, a enciclopédia
filosófica. Com relação à primeira parte do ensino, Hegel mostra-se favorável à normativa
vigente para aquela época, uma vez que considera importante iniciar o estudo da Filosofia a
partir de assuntos ligados às coisas existentes, para só depois partir para a abstração.
Há, nesse caso, uma preocupação didático-metodológica, por sua parte, em
melhor ensinar. Entretanto, sugere alterar a ordem do conteúdo trabalhado, iniciando pelo
direito (com a temática da liberdade) e, posteriormente, questões morais. Por fim, o pensar
sobre a religião. Essa ordem, do direito à religião, segundo Hegel, seria uma forma de iniciar
os estudos filosóficos por meio de conceitos mais simples, pois são facilmente aplicáveis e,
dessa forma, os estudantes vão, aos poucos se adaptando ao exercício de abstração tão
importantes para a Filosofia. "A exigência que se apresenta habitualmente a um ensino
introdutório da filosofia consiste certamente em que se inicie pelo existente e que, a partir daí,
se faça avançar a consciência ao mais elevado, ao pensamento". (HEGEL, 1991, p.134-135).
Como forma de melhor explicar tais conteúdos, Hegel ressalta ser a lógica uma
ciência que auxiliaria nesse movimento filosófico, entretanto, ela não deveria ser ofertada
como disciplina inicial, uma vez que não despertaria o interesse dos estudantes, tanto quanto
àquelas que possuem maior aproximação com a realidade. Quando Hegel pensa no conteúdo,
o que mais atrai e é mais simples para começar, percebe-se sua preocupação com o nível de
intelecção e abstração necessários para tal, ou seja, neste momento ele está preocupado não
somente com o conteúdo a ser transmitido, mas antes com quais conteúdos são mais
61
acessíveis ao nível de reflexão abstrata a que se propõe, sem, contudo, banalizar o conteúdo
ou mesmo perder o rigor característico da reflexão filosófica. Na segunda etapa do ensino, de
dois anos, são ensinados conteúdos de ordem teórico-espirituais como a lógica, a metafísica e
a psicologia. Mais uma vez, Hegel acredita que deve ser prioridade iniciar através do
conhecimento mais acessível, que neste caso, acreditava ser a lógica por ter um caráter
abstrato mais simples que a metafísica e a psicologia. Ao último nível de ensino, fica
reservado o ensino da enciclopédia. Hegel se preocupa em ensinar Filosofia dessa maneira, na
tentativa de propor uma educação (também filosófica) universal, levando em conta a
necessidade de uma boa formação dos jovens, pois o recebia na universidade com graves
deficiências.
Desta forma, vê-se que a preocupação de Hegel em relação ao ensino de
Filosofia no ginásio, não está apenas num conjunto de conteúdos histórico-filosóficos, uma
vez que se preocupa com o grau de abstração ideal para a faixa etária de cada nível escolar.
Aprendendo os conteúdos de Filosofia, os estudantes aprenderiam também o exercício de
filosofar e vice-versa, pois este não se separa daquele.
Todo esforço de Hegel para demonstrar a necessidade de um ensino filosófico
que seja a síntese de dois aspectos importantes (conteúdos com o ato de pensar
filosoficamente), foi, a bem da verdade, uma forma de chamar a atenção para uma tendência
metodológica existente em seu tempo que desvinculava esses dois aspectos indissociáveis. Os
conteúdos, nesse caso, não são o mais importante, uma vez que o filosofar seria a maneira
pela qual se pensa um conteúdo e não o próprio conteúdo, isto é, importante mesmo é
exercitar o hábito de usar bem a razão. Evidentemente, tal exercício não é simples e rápido,
nem tampouco deve estar separado de conteúdos filosóficos.
O pensamento hegeliano acerca do ensino de Filosofia pode ser percebido a
partir do estabelecimento do vínculo entre a sistemática do ensino de Filosofia e a prática de
um método filosófico eficaz.
Em geral se distingue um sistema filosófico com suas ciências particulares
do filosofar mesmo. Segundo a obcessão moderna, especialmente da
Pedagogia, não se tem de instruir tanto em relação ao conteúdo da filosofia,
quanto se tem de procurar aprender a filosofar sem conteúdo; isto significa
mais ou menos o seguinte: deve-se viajar e sempre viajar, sem chegar a
conhecer as cidades, os rios, os países, os homens etc. (HEGEL, 1991,
p.139).
62
Quando dissociados tais aspectos, o que se tem é um questionar ilimitado, que
beira a polemização, em nome do uso da razão, ao passo que se torna um discurso filosófico
vazio de conteúdo. Portanto, só é possível ensinar Filosofia, segundo Hegel, quando há a
experiência do conteúdo, isto é, "quando se conhece o conteúdo da filosofia, não só se
aprende a filosofar, mas se filosofa realmente". (HEGEL, 1991, p.139).
Para o pensador, o ensino de Filosofia se organiza em três etapas
metodológicas, ou seja, o ato de ensiná-la compreende três níveis de aprendizagem, sendo o
primeiro o abstrato, o dialético e por último o especulativo. O abstrato e o dialético são
inferiores ao especulativo pelo grau de complexidade exigido do estudante. Inferiores, porém,
necessários. Só o pensamento especulativo pode ser considerado essencialmente filosófico,
entretanto, os pensamentos abstrato e dialético são necessários ao aprendizado e à formação
do especulativo por trazerem em si os conteúdos filosóficos. Por esse motivo não se deve
dissociar conteúdo e método, quando se refere ao ensino de Filosofia.
Quanto ao ensino do pensamento abstrato, Hegel afirma ser um erro ensinar a
abstração através da concretude, isto é, ele acredita que é necessário deixar de lado o apelo à
sensibilidade, ao concreto, como ponto de partida para este pensamento, para não incorrer ao
erro o estudante. A lógica é instrumento essencial para tal intento. Ao pensamento dialético,
mais complexo e, portanto, menos interessante para o estudante desse nível escolar, recai a
função de contestação de ideias anteriormente vistas, o que exigiria maior esforço intelectual
e racional por parte do estudante. E por fim, o especulativo que se diferencia da especulação.
Este seria o questionar inconsequente, sem o objetivo de alcançar a verdade, aquele a criação
de condições para dar unidade ao pensamento, unificando o que parece oposto e contraditório
num movimento de síntese da reflexão e da intuição intelectual. Portanto, segundo Hegel,
aprender Filosofia é aprender seus conteúdos, seus métodos e suas complicações,
indissociáveis por natureza.
2.3 Nietzsche e a crítica ao ensino para o mercado
O modo de pensar o ensino de Filosofia para o mercado objetiva-se como
conquista de habilidades e competências pelos estudantes, segundo o PCNEM, tais como:
63
Representação e comunicação: ler textos filosóficos de modo significativo;
ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros; elaborar
por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo; debater, tomando uma
posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face
de argumentos mais consistentes.
Investigação e compreensão: articular conhecimentos filosóficos e diferentes
conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes
e em outras produções culturais.
Contextualização sociocultural: contextualizar conhecimentos filosóficos,
tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos; o pessoalbiográfico; o entorno sociopolítico, histórico e cultural; o horizonte da
sociedade científico-tecnológica. (BRASIL, 1999, p.125).
De qualquer modo, ensinar Filosofia seria introjetar nos estudantes conteúdos e
habilidades, do exterior para o interior. O discurso das competências e habilidades é uma
linguagem oriunda da realidade empresarial produtiva e está cada vez mais presente no
discurso educacional brasileiro contemporâneo, o que, a meu ver, é um problema, cujo cerne
está na transposição deste discurso para a educação, delegando-a a função de proporcionar aos
estudantes competências cognitivas, tão úteis ao mercado capitalista. De acordo com Helena
Hirata (1996), o discurso das competências surge dentro da realidade empresarial francesa
como lógica pós-taylorista que possibilitava uma reestruturação na organização do trabalho a
partir da associação de qualidades requeridas dos indivíduos. Dessa forma, o conceito de
competência permitiria voltar a atenção mais à pessoa do que ao posto de trabalho.
Incorpora-se ao conceito de competência, ainda, a ideia de polivalência, uma
vez que se espera do estudante capacidade de aplicar as competências aprendidas, não a uma
ou outra situação específica, mas que saiba solucionar problemas diversos e imprevistos.
Dessa forma, o discurso empresarial, governamental e sindical “impõe” à educação a função
de proporcionar aos estudantes competências cognitivas, cuja importância é cada vez mais
preeminente, tais como a criatividade, a capacidade de análise e solução de conflitos
imprevistos, a pesquisa e sondagem, entre outras. A partir dessas discussões é perceptível a
necessidade, presente na reforma curricular, de adaptar a escola e a formação humana frente
às novas demandas sociais e, sobretudo, produtivas. Por esse motivo, “tecnologias,
competências e habilidades e adequação ao mundo do trabalho são categorias centrais nas
proposições da reforma curricular”. (SILVA, 2010, p.19).
Esse discurso está explícito nos principais documentos educacionais que
direcionam o trabalho dos professores no país. Por exemplo, a Reforma do Ensino Médio
64
prevê que o aluno, a partir de competências básicas, seja capaz de resolver conflitos de ordem
social e no mundo do trabalho. Pode-se verificar essa afirmação no art. 35 da LDB (Lei
n.9394/96), na qual, afirma que uma das finalidades do ensino neste nível da educação seria
“a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo,
de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou
aperfeiçoamento posteriores”. Já na Proposta Curricular do Estado de São Paulo (2008), o
ensino configurado por competências e habilidades se justifica por meio da ideia de oferecer
uma formação com base comum em todo o território nacional, para que, desse modo, as
escolas funcionem como uma rede.
Essa preocupação com a formação do sujeito para a sua colocação no mercado
de trabalho se torna visível quando, por exemplo, a Proposta afirma que a maior preocupação
está em “formar crianças e jovens para que se tornem adultos preparados para exercer suas
responsabilidades (trabalho, família, autonomia etc) e para atuar em uma sociedade que muito
precisa dele”. (PROPOSTA, 2008, p.13,14). Sobretudo quando, “graças a elas [as
competências] podemos inferir se a escola como instituição está cumprindo bem o papel que
se espera dela no mundo de hoje”. Ora, este tipo de educação é questionado na sociedade
atual, uma vez que a educação não teria seu fim em si mesma, mas em colocar e posicionar as
pessoas no mercado de trabalho, portanto, utilitarista e pragmática.
Nietzsche (2011) denuncia o ensino pragmático, para o mundo do trabalho,
pois este deixa de lado o ideal da formação voltada ao ser humano e, dessa maneira, deixa de
preparar os estudantes para a vida. Segundo ele a barbárie seria o resultado de uma formação
cultural e de valores que mais conserva o estudante na ignorância e no conformismo do que o
ensina para a autonomia. Para ele, que intencionou falar sobre o futuro das instituições de
ensino da Alemanha, a escola é o lugar que “busca fazer progredir a formação e a educação
dos seus cidadãos [...]" (NIETZSCHE, 2011, p.50), desse modo, acredita ser lá, na escola, que
está a potência para o pensar mais. Daí sua preocupação em discutir os rumos das instituições
de ensino da Alemanha de sua época.
Nietzsche ressalta bem este ponto, para não cair numa visão etnocêntrica,
inevitável ao comparar diferentes povos e culturas. Ele aponta para o fato de que são as
escolas o elo que liga-nos aos antepassados, que é uma espécie de patrimônio sagrado. Diante
desta constatação, considera “que muitas mudanças dos nossos estabelecimentos de ensino,
que a nossa época se permitiu para torná-los ‘atuais’, são em boa parte aspectos falhos e
65
errâncias em relação à tendência sublime que originalmente presidiu sua fundação”.
(NIETZSCHE, 2011, p.51).
Em sua Primeira Conferência (2011), ele vai introduzindo o leitor a reviver
consigo uma experiência do tempo de colégio, junto de certo amigo e relata uma inspiração
que tiveram durante uma viagem no fim do verão, de “fundar uma pequena sociedade de
colegas pouco numerosa, com o fim de dar uma organização sólida e obrigatória às
inclinações que deveriam criar no domínio da arte e da literatura”. (NIETZSCHE, 2011, p.
59). Na realidade era pretensão dele e de seus amigos, criar um vínculo de compromisso para
que cada um, uma vez ao mês, enviasse algo de sua própria produção (texto, tratado, projeto
de arquitetura, poema, música etc), e submeter-se à criteriosa avaliação dos outros membros
da sociedade. “Para que serve toda a filosofia se ela nos impede de estar sós e de gozar da
amizade na solidão, se ela nos impede mesmo que nos tornemos filósofos?” (NIETZSCHE,
2011, p. 65).
Este pensamento também me tem tomado, quando penso o ensino de Filosofia
no currículo do Ensino Médio, nos moldes do que tenho percebido, que se faz hoje,
institucionalmente, com hora marcada e, principalmente com um material didático que dita,
não somente o que ensinar, mas como ensinar. É evidente que quando essas questões me vêm
à mente, na tentativa de buscar justificativas para tais ações de políticas públicas, penso outras
questões. Se não fossem tais iniciativas, ainda sim seria possível ensinar Filosofia? Qual
Filosofia? Que tipo de professor-filósofo sou eu? Será que teríamos professores dignos do
título de filósofos para ensinar Filosofia neste nível da educação?
Sobre esta última questão, Nietzsche relata que em sua adolescência e,
portanto, inexperiente ainda, tinha uma visão de que o professor de Filosofia, ou seja, aquele
que ocupa a cadeira de Filosofia na universidade tinha ao mesmo tempo a disposição de um
filósofo, ao que ele vê como ingenuidade de sua parte (“naquela época acreditávamos ainda
ingenuamente que aquele que, numa universidade, tem o nível e a dignidade de filósofo deve
ser também filósofo: sim, tínhamos pouca experiência e estávamos mal-informados”).
(NIETZSCHE, 2011, p. 67). Esta dicotomia fica mais evidente em suas reflexões, quando ele
identifica os professores de Filosofia como reprodutores das doutrinas filosóficas da História
da Filosofia e prestadores de serviços do Estado.
66
Saudosamente lembra que foi muito importante para a sua formação, a criação
dessa “sociedade de colegas”, uma vez que esta os mantiveram longe e salvos da ânsia
profissional que o Estado impunha à educação de sua época.
A exploração quase sistemática que o Estado fez desses anos, na medida em
que quis o mais cedo possível atrair para si funcionários utilizáveis e se
assegurar, através de exames excessivamente rigorosos, da sua docilidade
incondicional, tudo isso estava muito distante da nossa formação; não
éramos determinados por qualquer espírito utilitário, qualquer desejo de
progredir rapidamente e fazer rapidamente uma carreira; percebemos todos
um fato que agora nos parece consolador: naquele momento, nenhum de nós
sabia no que tornaríamos, e inclusive isto não nos preocupava.
(NIETZSCHE, 2011, p. 69).
Sob a voz do discípulo do filósofo (em seu relato da adolescência), ele expõe
as características encontradas nos problemas da cultura e educação que aflige os
estabelecimentos de ensino. Trata-se das duas tendências, aparentemente opostas, mas unidas
no que diz respeito aos resultados: a) “a tendência à extensão, ampliação máxima da cultura, e
b) a tendência à redução, ao enfraquecimento da própria cultura”. (NIETZSCHE, 2011, p.72).
Estas tendências eram vistas como maléficas, uma vez que contribuem para a massificação e a
mediocrização, produzindo o que ele denomina de “barbárie cultivada”. Aos poucos a
educação foi substituindo seus critérios qualitativos pelos quantitativos, isto é, a preocupação
de ordem no momento é estender o ensino ao maior número de pessoas possíveis sem levar
em conta a excelência desse ensino. Educa-se o maior número de pessoas e no menor tempo
possível, pois o mercado necessita de numerosos produtores.
Os motivos da sua crítica se resumem em três efeitos percebidos por ele no
ambiente intelectual, que seria: 1) a união da produção cultural à produção industrial, “a
cultura como determinada por critérios ditados pela economia política”, 2) a divisão e
distribuição das ciências como reflexo da organização do trabalho industrial, isto é, “a cultura
especializada e estreita do erudito junto com a falta de visão filosófica de conjunto”, e 3) o
empobrecimento da educação através do “abandono do ensino da reflexão filosófica”
(NIETZSCHE, 2011, p.09). A respeito da primeira, acredita estar intimamente atrelado ao
sistema econômico-político quando propõe “o máximo de conhecimento e cultura possível –
portanto, o máximo de produção e necessidades possível –, portanto, o máximo de felicidade
possível: eis mais ou menos a fórmula”. (NIETZSCHE, 2011, p. 72). De acordo com esta
67
concepção, o objetivo da cultura, bem como a sua finalidade, passa a ser a utilidade, o lucro, o
maior ganho de dinheiro possível.
Do ponto de vista desta tendência, a cultura deve mais ou menos ser definida
como o discernimento graças ao qual alguém se mantém “no cume de sua
época”, graças ao qual se conhece todos os caminhos que permitem mais
facilmente ganhar dinheiro, graças ao qual se possui todos os meios pelos
quais se dá o comércio entre os homens e os povos. A verdadeira tarefa da
cultura seria então criar homens tão “correntes” quanto possível, um pouco
no sentido em que se fala de uma “moeda corrente”. Quanto mais houvesse
homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de
ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de fazer progredir cada
um até onde sua natureza o conclama a se tornar “corrente”, formar os
indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele
possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e de lucro.
(NIETZSCHE, 2011, p. 73).
Esta tendência à redução da cultura, tão disseminada até os dias atuais, gerou o
que ele denominou de "cultura do erudito" que, pelo fato de as ciências possuírem um campo
de estudos muito amplo e extenso, qualquer pessoa com um pouco de disposição (mas não
excepcionais, como diria ele), é capaz de aí produzir algo de natureza especializada e tão
particular que não se atentará para as outras coisas. Sobre este aspecto podemos dizer que há
uma alienação do cientista (no sentido marxista do termo), que agora mais parece um operário
diante de uma esteira na linha de produção da ciência, do qual desempenha um papel tão
específico que não pode apoderar-se de todo processo de produção, nem tampouco do produto
total final. Esse pseudo cientista - um erudito exclusivamente especializado -, passa boa parte
de sua vida dentro dessa fábrica e "não faz senão fabricar certo parafuso ou certo cabo para
uma ferramenta ou máquina determinadas, tarefa na qual ele atinge, é preciso dizer, uma
incrível virtuosidade". (NIETZSCHE, 2011, p.75). Tal postura é tida, na Alemanha, como um
fenômeno moral, a fim de encobrir diversas atrocidades e afastando-se, por consequência,
cada vez mais, da verdadeira cultura.
Nietzsche desenvolve uma ácida crítica à modernidade e às suas instituições
que se baseiam nas ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e que preconizam uma
espécie de nivelamento onde todos passam a ser homogeneizados, para assim, ser melhor
assimilados pelo mercado de trabalho e pelo Estado. Outro ponto criticado pelo pensador é a
burocratização que invade o ambiente educacional. Segundo ele nem a educação deve
sucumbir às questões burocráticas, “com quadros de horários e regulamentos, nem os
68
educadores deveriam efetivamente lidar com problemas” (NIETZSCHE, 2011, p.10) dessa
natureza, para que não haja um desvio do seu foco como educador.
O essencial da educação é permitir que cada um atinja suas potencialidades
centrais, seu núcleo criativo. Isso se daria tendo como mestres homens que tenham educado a
si mesmos, tal como Wagner, Schopenhauer e os gregos. Impossível de atingir tal objetivo se
o aparelho educacional for excessivamente grande. Por outro lado, ele (NIETZSCHE, 2011)
acredita que a tendência que reduz a cultura a um mero instrumento útil e funcional, ou seja, a
cultura dos especialistas segue os moldes de um trabalho operariado (conforme citado acima)
que, tal qual, é alienado da cultura real e autêntica, uma vez que é dividido e afastado (como o
operário de seus meios de produção e que não é dono do processo produtivo, nem se
reconhece no produto final). Desse modo, o educador desloca o foco do todo para a parte, que
ele produz e reproduz como uma "pseudocultura" que concorre para a produção da barbárie.
Portanto, a cultura,
não pode se reproduzir e crescer quando a educação está orientada para uma
profissão, carreira, uma função, um cargo, quando é movida pelo ‘espírito
utilitário’, quando é verificada através de exames obrigatórios e integradores,
quando é extensiva e universalizada; mas esta é, no entanto, a verdadeira
face da cultura da modernidade tardia vivida na Alemanha, tal como ele a
via. Na verdade, a cultura autêntica exige antes de mais nada uma visão de
conjunto que só pode ser fornecida pela filosofia. (NIETZSCHE, 2011,
p.11).
A aliança entre a doutrina oficial do Estado e a reflexão filosófica, tão criticada
por ele, gera o desenraizamento da cultura e sua subversão, o que traria como efeito a
velocidade no pensar, fruto da ciência e das transformações econômicas. O Estado, em
conjunto com os negociantes, os artistas e os "homens cultos", seriam os responsáveis pela
deterioração da cultura, quando a utiliza para seu bel prazer, como ferramenta de manutenção
do seu status e poder ante a sociedade.
Transformando a cultura em algo manipulável, conforme seus interesses,
essas potências cerceavam a liberdade necessária ao surgimento do "homem
original" ou do gênio capaz de recriar vivamente a própria cultura e levantála de seu sepulcro de onde se projetaria um outro sentido fundamental a vida.
(PAGNI, 2004, p.221).
69
Assim, às escolas passam a se responsabilizar pela formação de um homem específico
(funcionário do Estado, artista, do erudito, do negociante) e não mais preocupando-se com a
formação do homem original, do gênio. "Essas instituições contrariariam a sua tarefa mais
natural e assumiriam uma empreitada mais difícil, qual seja, a de adestrar um jovem para a
erudição e para a aquisição de uma cultura superior desvinculada da vida". (PAGNI, 2004,
p.221).
Tal postura, portanto, se distancia muito do que seria o papel das instituições
de ensino, de formação do homem extemporâneo ao seu tempo, disposto a se opor ao Estado e
que aos poucos se libertar das garras da cultura da moda. Desse modo, a escola não prepararia
o jovem para a vida, uma vez que deveria lidar com as regularidades, mas também com os
acidentes que regulam a vida, proporcionando a emergência de um novo homem, o gênio.
Assim, não haveria um modelo de educação e educador que formasse esse homem, mas sim,
"algumas contingências e uma certa solidariedade, tornando essa tarefa indeterminada e
dependente dessa atitude heroica desses poucos que anteviram a necessidade dessa ruptura
com a cultura e com o Estado de seu tempo". (PAGNI, 2004, p.222). Tal postura diante da
educação do estudante é o que vai lhe garantir o seu desenvolvimento livre para manifestar
seus instintos e sua vontade de potência.
Nietzsche instaura, portanto, uma nova possibilidade para se pensar o ensino,
diferente da pedagogia proposta por Kant ou da propedêutica de Hegel. Uma possibilidade
que coloca a vida acima de qualquer outra prioridade: como fim último da educação. Ele
critica, no que se refere ao papel dos professores de Filosofia, a postura produtivista que se
diz necessário levar os estudantes a aprender a filosofar, como bem apraz a Kant tanto quanto
conhecer a história oficial da Filosofia, propósito hegeliano. O ensino passa a ser direcionado
para um conteúdo e com propósitos inferiores, isto é, a preocupação já não está ligada à
formação para a vida, mas sim para uma especialidade. Sua crítica se dá quando percebe a
cooptação entre o Estado e os professores universitários. Nietzsche acredita que o Estado tem
medo da Filosofia, por esse motivo, favorece os filósofos que se agregarem a ele e põe à
margem os que são livres dessa parceria. Por isso, estão longe de serem amigos da verdade;
então, Nietzsche propõe alguns questionamentos aos filósofos e aos professores de Filosofia:
Primeiramente: o Estado escolhe para si seus servidores filósofos, e, aliás,
tantos quantos precisa para os seus estabelecimentos; dá-se, pois, a aparência
de poder distinguir entre bons e maus filósofos e, mais ainda, pressupõe que
70
sempre há de haver bons em número suficiente para ocupar com eles todas
as suas cátedras de ensino. Não somente no tocante aos bons, mas também
ao número necessário dos bons, é ele agora a autoridade. Em segundo lugar:
ele força aqueles que escolheu para si a uma estadia em determinado lugar,
entre determinados homens, para uma determinada atividade; devem instruir
todo jovem acadêmico que tiver disposição para isso, e, aliás, diariamente,
em horas fixas. Pergunta: pode propriamente um filósofo, com boa
consciência, comprometer-se a ter diariamente algo para ensinar? E a ensinálo diante de qualquer um que queira ouvir? Ele não tem de se dar à aparência
de saber mais do que sabe? Não tem de falar, diante de um auditório
desconhecido, sobre coisas das quais somente com o amigo mais próximo
poderia falar sem perigo? E, em geral: não se despoja de sua mais esplêndida
liberdade, a seguir seu gênio, quando este chama e para onde chama? - por
estar comprometido a pensar publicamente, em horas determinadas, sobre
algo pré-destinado? E isto diante de jovens! Um tal pensar não está de
antemão como que emasculado? E se ele sentisse um dia: hoje não consigo
pensar em nada, não me ocorre nada que preste - e apesar disso teria de se
apresentar e parecer pensar! (NIETZSCHE, 1987, p.44).
O pensar do filósofo, portanto, se vê corrompido tanto pela cultura deteriorada quanto pela
sua vinculação obediente ao Estado e, desse modo, haveria barreiras no ensinar Filosofia com hora marcada, tempo limite, com constância rotineira, para um público de jovens não
necessariamente preparados para ela etc.
A pergunta que Nietzsche faz, em sua época, é justamente a que estamos
propondo para o nosso tempo, cuja disciplina passa a compor o hall das permanentes do
currículo do Ensino Médio: é possível o filosofar institucionalizado? Tal preocupação se dá
porque não é possível conceber o filosofar do filósofo, tampouco o aprender a pensar
filosoficamente dos jovens estudantes, que sejam previsíveis.
Diante desses questionamentos é como se o autor dissesse que essa atividade
se constitui uma farsa para o filósofo e para o público ao qual se dirige, dada
sua necessidade de ocorrer de modo tão restrito, enunciando assim os limites
do ensino de Filosofia, diante de sua natureza indeterminada. [...] Tais
disposições, contudo, teriam sido deterioradas pela cultura e pelo
pensamento filosófico, em virtude de sua vinculação ao Estado, a ponto de o
filósofo não mais filosofar nem dentro nem fora de sua própria aula, apenas
obedecendo às determinações do Estado ou da cultura da moda,
comprometendo assim a aprendizagem do filosofar por parte de seus
aprendizes. (PAGNI, 2004, p.224).
71
A possibilidade que restaria ao ensino filosófico, recusada por Nietzsche, é a de
que restaria aos professores de Filosofia (que já não filosofam mais, nem dentro nem fora da
escola), ensinar o saber filosófico aos estudantes, na esperança de que eles se interessem e se
disponham a querer filosofar. Para tanto, caberia aos professores a reprodução de diversas
doutrinas e pensadores, a disputa entre eles e também sua história com o intuito de que isso os
provoquem para uma cultura filosófica erudita. O ensino de Filosofia voltado apenas para e
pela História da Filosofia não é um bom caminho a ser percorrido pelo professor e pelo
estudante, haja vista que tem a potência de gerar neste último uma ojeriza em relação à
disciplina e ao próprio ato de filosofar, bem como pode gerar uma postura errônea na
elaboração dos trabalhos (sem rigor e enfadonhos), e um estudo medíocre, canalizado apenas
para a confecção de provas nos finais de ciclos.
Nietzsche percebe que além dos efeitos causados por este tipo de educação
voltada à utilidade, existia um discurso de formação para a “livre-personalidade”, que era um
erro pela forma como era realizado. Ele percebeu que as instituições educacionais de sua
época eram demasiado permissivas, quando possibilitavam aos alunos alto grau de autonomia
em idade ainda não apropriada para tamanha responsabilidade, “e acusa ainda os professores
por alimentarem esta prática nociva à elevação da cultura”. (NIETZSCHE, 2011, p.12). Tal
postura faz com que haja um maior afastamento na relação professor e estudante no processo
de aprendizagem, pois, ao contrário do que se propunha, tais ações proporcionavam mais
dependência e submissão do que a própria autonomia. No âmbito das universidades ele
percebia que a livre-personalidade não se efetivava por causa da indiferença e do afastamento
que gerava, muito embora de início os estudantes se inebriavam com a “simples ilusão [...] de
se verem institucionalmente livres, mas com o sentimento da estrita necessidade de guias”
(NIETZSCHE, 2011, p.12).
Fica clara a crítica de Nietzsche em relação às instituições de ensino de sua
época, sobretudo no que diz respeito à maneira de ensinar que, a seu ver, era uma mistura de
futilidade e erudição, de cientificismo e jornalismo. Tal modo de ensinar estava voltado mais
para a produção de servidores do momento, e não contribuía absolutamente para a formação
de homens exigidos por uma cultura elevada. Do mesmo modo como Nietzsche tecia sua
crítica ao tecnicismo e utilitarismo da educação de seu tempo, a sociedade atual, como
percebido, enfrenta a mesma realidade. Sua crítica ajuda a pensar sobre tal realidade e o que
quer que se faça para mudar a situação, mas, sobretudo, auxilia a pensar no verdadeiro papel
da Filosofia na escola.
72
CAPÍTULO 3
A NATUREZA DA FILOSOFIA E O SEU PAPEL NA ESCOLA ATUAL
Conforme já discutido, o cenário brasileiro parece favorável à Filosofia, dentro
e fora das escolas, no que diz respeito à sua presença mais constante. Dentro das escolas, seja
pela lei que a torna obrigatória no currículo do Ensino Médio, pela sua inserção não oficial no
currículo do ensino fundamental, seja pela sua presença quase maciça nas matrizes
curriculares do ensino superior. Fora das instituições educacionais, a Filosofia está nas ruas
(cafés filosóficos), nos set’s7 terapêuticos (Filosofia Clínica) e nos meios de comunicação de
massa (internet e TV). Ora, mesmo tendo tido tamanho despontamento desde então, ao
retornar8 para as escolas propiciou também um terreno fértil para os questionamentos acerca
de sua presença na educação, sejam eles da ordem dos métodos mais eficazes do seu ensino,
ou da formação dos professores, ou da eficácia/ineficácia dos manuais adotados pelas
instituições escolares, conforme discutido no capítulo anterior. O seu retorno trouxe uma
questão que talvez seja a que perpassa as demais: trata-se de questionamentos sobre a própria
natureza da Filosofia.
O que é Filosofia? É um conjunto de saberes históricos e de personalidades que
revolucionaram o pensamento de uma dada época? É uma disposição do espírito voltada ao
pensar? É a atitude de lançar olhar crítico e reflexivo sobre o mundo? É um conjunto de
habilidades passível de ser conquistado? O fato é que a Filosofia não é algo simples e, desse
modo, seu ensino também não será. Este capítulo se propõe a dialogar com as ideias que
Walter Omar Kohan9, Silvio Gallo10 e Ronaí Pires da Rocha articulam a respeito do que vem
a ser a Filosofia e de como deve ser o seu ensino institucionalizado.
7
Este termo foi utilizado na frase, apenas como recurso de linguagem; pois é sabido que a Filosofia Clínica não
tem a necessidade de set terapêutico, uma vez que não há paciente, mas sim, partilhante.
8
Muito tem se falado sobre o retorno da Filosofia para o currículo do Ensino Médio, mas o fato é que dele ela
nunca tenha feito parte obrigatória, como vimos no capítulo anterior, senão como alternativa opcional.
9
Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Walter Omar Kohan doutorou-se em Filosofia
pela Universidad Iberoamericana em 1996, e realizou estudos de pós-doutorado entre os anos de 2005 e 2007 na
Universidade de Paris VIII. Atuou como presidente do Conselho Internacional para Investigação Filosófica com
Crianças (ICPIC), foi vice-coordenador do GT de Filosofia da Educação da ANPED e coordenou o GT
73
3.1 A Filosofia como experiência do pensar
No que diz respeito ao ensino de Filosofia, Kohan, na apresentação da
coletânea de artigos do livro que organizou em parceria com Siomara Borba, intitulado
Filosofia, aprendizagem, experiência (2008), expõe sua crença na existência de uma
correspondência entre o que pensam ser o conceito de Filosofia e o conceito de Filosofia
sustentado por Felipe Ceppas11 de que a Filosofia é uma relação de afeto com o saber, de
modo que ela só pode ser aprendida a partir da interioridade individual, articulando
afetivamente com o pensamento e os saberes, “na intimidade de um ato de busca e liberdade”.
(BORBA; KOHAN, 2008, p.15). Nesse sentido, a Filosofia não é mais que um espaço onde o
saber se constrói. E o professor nada pode fazer senão apenas sugerir e insinuar, sem, de
maneira nenhuma forçar ou determinar.
É nesse sentido que se pode dizer que a filosofia não se ensina, mas se
aprende. É nesse sentido que nós, professores de filosofia, eternamente
preocupados com a didática da filosofia (a arte de ensiná-la, ou seja, no caso
da filosofia, a arte de ensinar o que não se pode ensinar), poderíamos dar um
pouco mais de atenção, como afirma Silvio Gallo, à matética da filosofia (a
arte de aprender filosofia, ou seja, a arte de aprender uma certa relação com
o saber e o pensar), que até agora sequer tivemos a necessidade de nomear.
(BORBA; KOHAN, 2008, p.15 – grifos do autor).
A Filosofia fomenta uma interação entre o pensamento e o ato de pensar, e
estabelece relação entre os saberes e o que sabemos, sem ser especificamente um modo de
pensar ou um tipo de saber. Isso significa que ela não pode (nem deve) ser ensinada a partir de
uma metodologia instrumentalizada e lógica, ou seja, o fato de sua natureza não ser
caracterizada exatamente como um saber específico, não há estratégias, devidamente seguras,
que possibilitem a garantia de seu ensino “tão fácil como alguns pretendem definir justamente
Filosofar e ensinar a filosofar, da ANPOF. Suas atividades profissionais contam com parcerias de mais de
cinquenta colaboradores e co-autores em produções científicas publicadas.
10
Silvio Gallo é formado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC) em 1986.
Concluiu seu mestrado em 1990 e o doutorado em 1993, ambos na área da Educação e pela UNICAMP.
Atualmente é professor associado da UNICAMP, onde desenvolve projetos e pesquisas nas áreas de filosofia
francesa contemporânea e educação, ensino de filosofia, ensino médio, filosofia e transversalidade, anarquismo e
educação.
11
O texto a que Borba e Kohan se refere para conceituar Filosofia, está presente na coletânea que organizaram
(cf. CEPPAS, Felipe. Nos braços de Circe: ensino de filosofia, amor e arte. In: BORBA, Siomara; KOHAN,
Walter O. (orgs). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p.85-102).
74
conteúdos e competências – conceituais, atitudinais ou valorativas, para usar expressões mais
atuais – que possam ser predeterminadas”. (BORBA; KOHAN, 2008, p.16). Os autores
ressaltam que a respeito do ensino de Filosofia é preciso ponderar alguns aspectos importantes
que coloca esta questão na lista das questões delicadas e complexas. Trata-se de, primeiro,
perceber que não há evidências claras acerca da possibilidade efetiva de que a Filosofia possa
ser ensinada, nem tampouco ensinada em uma instituição escolar. Outro ponto a ser
observado é o fato de não poder haver nada que garanta que haja um ou mais conteúdos em
Filosofia que possa ser ensinado. Não há “nada que o professor saiba ou pense que o aluno
deveria saber ou pensar durante ou final do processo de ensino e que poderia ser avaliado da
mesma forma para todos”. (BORBA; KOHAN, 2008, p.16). Do mesmo modo, é necessário ver
que a Filosofia não é algo místico ou relegado a alguns poucos escolhidos, mas está aberta a
todos que com ela queiram tecer um diálogo.
Posiciono-me favorável ao conceito de Filosofia trazido por Ceppas e discutido
por Kohan e Borba, uma vez que parece ser muito mais lúcido conceber a Filosofia como um
"espaço onde o pensamento acontece" do que um conjunto de conhecimentos e saberes que
possam ser, por meio de técnicas e métodos, ensinada a cada um. Porém, acredito (a
princípio) ser possível o seu ensino, quando o que se aprende é um modo de se posicionar
criticamente no mundo. O olhar crítico do estudante pode ser construído também com o
auxílio do professor de Filosofia e das outras disciplinas, quando permite que o
questionamento, a dúvida tenha lugar em suas aulas, mais que isso, quando o espaço da aula é
um momento provocativo para um pensar crítico.
A Filosofia se mostra complexa, forte e fraca ao mesmo tempo, justamente por
ter essa natureza e, também por isso, é possível compreender parte do seu esforço em
justificar o seu lugar dentro da escola, no decorrer do tempo histórico. Muito embora não seja
clara a efetiva possibilidade da Filosofia ser ensinada, sobretudo em escolas aos moldes
brasileiros, não se pode negar, que o espaço que hoje se dispõe para ela no currículo,
constitui-se de uma boa oportunidade para que se possa testá-la enquanto ensino e
aprendizagem. Kohan (2002) acredita que a experiência é uma categoria que atravessa a
Filosofia, o pensar, o ensinar e o aprender, ou seja, ele acredita que, sendo a natureza da
Filosofia a experiência do pensar, se torna possível pensar e traçar novos sentidos para o
ensino e a aprendizagem da Filosofia. Assim, a pergunta que se instaura é justamente O que é
experiência?
75
A conotação de experiência adotada por Kohan (2002) difere do sentido
adotado pela ciência que a considera como sendo a repetição de um fato afim de tornar
previsível os resultados, uma vez que para a ciência positiva uma experiência só é válida
quando for passível de confirmação. Para tanto, não importa o sujeito da experiência, o
resultado será sempre o mesmo, o resultado independe do sujeito da experiência.
Essa forma de experiência, a científica, não respeita a historicidade da
experiência, a condição do ser humano. [...] A repetição de uma experiência
mata seu caráter de experiência, torna-a experimento, repetição do mesmo.
[...] As experiências são sempre únicas; é preciso que surja na repetição o
estranhamento, o outro, para que ocorra a experiência. Uma vez que aparece
o outro a experiência não é mais a mesma. E sem o outro, não há
experiência. [...] Quem é um ser humano experiente? Também não é o mais
sábio; não é quem sabe mais respostas ou quem pode aplicar um mesmo
conhecimento a diversas situações. Um ser humano experiente é aquele que
está mais aberto à experiência; é o não-dogmático; aquele que, de tantas
experiências que fez, aprendeu que elas são únicas, históricas,
intransferíveis, irrepetíveis e que só se aprende na diferença, através de outra
experiência. (GADAMER apud KOHAN, 2002, p.22).
Kohan (2002) concebe a experiência como algo único e intransferível, e nós,
seres humanos, somos os seres da experiência. Assim, ele concebe a Filosofia como
experiência do pensar, “ela pode ser cientificizada, padronizada, uniformizada, mas deixa de
ser experiência em sentido estrito, deixa de ser pensamento. Nesse mesmo sentido, deixa
também de ser filosofia”. (KOHAN, 2002, p.26). Por caracterizar-se como experiência do
pensamento, a Filosofia deve estar sempre aberta ao novo, ao diferente, ao fora dos padrões
institucionalizados, aos pontos fixos, ou seja, deve estar aberta para problematizar, perguntar,
pensar, rejeitando o que é predeterminado, estabelecido. Diante dessa concepção, Kohan
constata que o que se faz em sala de aula, nos diversos níveis de ensino, ainda não é Filosofia
enquanto experiência do pensar.
Nossa suspeita, afirmar que ainda não pensamos, levaria a afirmar que ainda
não temos experiência da filosofia. Longe de qualquer otimismo fácil,
implicaria aceitar que o que se faz dominantemente nas instituições
educacionais, no ensino fundamental, médio e até superior, ainda não é
filosofia, pelo menos se a filosofia tem a ver com promover experiências do
saber. (KOHAN, 2002, p.27)
76
Ora, Kohan admite a possibilidade de não fazermos filosofia na sala de aula,
pois a filosofia seria uma experiência do pensar e nós, segundo ele, ainda não pensamos. Essa
tese (a de que ainda não pensamos) é defendida, com base nas reflexões de dois filósofos
contemporâneos: Martin Heidegger e Gilles Deleuze. Tanto um quanto outro, afirmam que
ainda não pensamos. Para Heidegger, o pensar é um território, no qual só podemos habitar
por meio do próprio ato de pensar, isto é, só pensando podemos chegar ao pensar. E não se
pode pensar pelo outro, tampouco chegar ao pensar pelo outro. Essa ideia está explicitada nas
primeiras frases do texto “O que significa pensar?” (1973), que diz: “ao âmbito do que se
chama pensar, chegamos quando nós mesmos pensamos. [...] A pensar aprendemos quando
atendemos àquilo que dá o que pensar”. Para Heidegger existe algo (exterior ao homem, que
não depende do homem), que dá o que pensar, “quando diz que não pensamos, está querendo
dizer também que ainda não chegamos a essa região da absoluta presença do ser do ente. Isso
faz parte da aposta metafísica do Heidegger”. (KOHAN, 2002, p.29). O pensar a pensar pode
ser aprendido, e tal aprendizagem está diretamente ligada à atenção, entretanto, o fato do
pensar poder ser aprendido, não implica, necessariamente, que pode ser ensinado. Ter atenção
é a base para se chegar ao pensar, pois sem atenção não há, nem aprendizado nem pensar.
É aquilo que dá o que pensar que chama a atenção de quem aprende. Porém,
atender, diz Heidegger, não deve reduzir-se ao nosso tão comum hoje ‘ter
interesse por’. Para o interesse, o estar entre as coisas, só vale o interessante.
E o interessante de hoje é o indiferente de amanhã. (KOHAN, 2002, p.29).
Cabe entender que a atenção a que se refere Heidegger, não é passageira,
superficial ou passiva, pelo contrário, trata-se de uma espera atenta, é estar à espreita. “O
interesse pode ser circunstancial, acessório, superficial; o que merece nossa atenção é aquilo
que não pode deixar de ser pensado”. (KOHAN, 2002, p.30). Assim, um contato insistente
com a Filosofia, ou mesmo grande interesse por um autor ou tema da Filosofia, não pode, em
hipótese alguma, ser garantia do pensar. Estudar anatomia humana ou fisiologia do
movimento não é garantia absoluta do sucesso ao atleta; assim como, estudar lógica (que já
possui um determinado modo de pensar), não é garantia absoluta de que se pode pensar;
também não o pode ser para aqueles que possuem ou pretendem ter contato intenso com a
História da Filosofia ou com textos dos filósofos. Uma vez que não há pensar sem atenção e
esta não se dá de modo passageiro ou superficial, senão por meio de um estar à espreita, será
que esta postura não pode ser, de algum modo, ensinada pelo professor em sala de aula? Será
77
que essa postura não pode, ao menos, ser provocada no estudante por meio de
questionamentos, leituras, imagens e outros recursos? Será que a Filosofia é tão subjetiva que
ao professor pouco, ou nada cabe de responsabilidade sobre o pensar do estudante? Existe um
risco em seguir à risca esse ponto de vista, que é o do abandono intelectual. A linha que
separa esse pensamento deste é muito sutil, pois numa concepção de ensino filosófico em que
não se acredita que não é possível ensinar a pensar e que só se aprende a pensar, uma questão
surge imediatamente: De que modo, então, é possível aprender a pensar se não é possivel
ensinar a pensar? A impressão que fica é que este processo rumo ao aprendizado do
pensamento se dará de forma isolada, sem ou com pouco auxílio externo ao próprio aspirante
ao pensamento. O que faria o professor diante dessa concepção, em sala de aula?
Em Deleuze esta ideia é semelhante, uma vez que a História da Filosofia é uma
importante referência, insubstituível do fazer filosófico. Entretanto, constantemente tem sido
criada a ideia de que Filosofia é a própria História da Filosofia, isto é, há um movimento
constante de associação análoga do pensamento com o referencial histórico-filosófico e que,
por sua vez, impede que as pessoas pensem.
Se dedicar à filosofia de forma alguma garante que pensemos e pode,
inclusive, impedir que percebamos essa ausência do pensar porque quem se
atreveria a duvidar que pensamos se estamos dentro da filosofia, o espaço
por excelência do pensamento? (KOHAN, 2002, p.30).
Nesse sentido, não pensamos dentro da escola quando a Filosofia se torna a
imagem ou a linguagem do pensamento, isto é, quando se cria o estereótipo de que por meio
da Filosofia ou da História da Filosofia que se pode chegar à região do pensar, quando na
verdade essa atitude impede que os estudantes pensem. Kohan continua seu texto ressaltando
a importância, portanto, da dúvida relacionada às diversas propostas educacionais que
afirmam ou pretendem ensinar a pensar por meio da Filosofia. Essa dúvida, diz ele, pode ser
colocada de duas formas: 1. A partir da ótica da impossibilidade do ensino do pensar,
questionando-o, portanto; 2. A partir da ótica de uma provável deficiência “(pelo menos até
agora, talvez não ensinamos a pensar)”. (KOHAN, 2002, p.31). A abordagem adotada por
Kohan é a que coloca em dúvida o ensino do pensar sem inviabilizá-lo, ou seja, o autor não
defende a total impossibilidade do ensino do pensar por meio da Filosofia, mas antes, opta
pela ideia de que até agora, talvez esse ensino não tenha acontecido de fato. “O que me parece
78
fundamental é tentar perceber as condições de possibilidade do pensar, compreender algumas
posições que favorecem a emergência do pensar e outras que o inviabilizam”. (KOHAN,
2002, p.31).
Seguindo o pensamento deleuzeano, Kohan acredita que as condições para
começar a pensar e, portanto, livrar-se daquela imagem do pensamento, criada pela própria
Filosofia e que impede de pensar, estão justamente na crítica que se deve fazer a esta imagem
e seus postulados que “enclausuram o pensar”. Um dos postulados emergente dessa imagem é
o do modelo ou reconhecimento que
pressupõe que o pensar é reto por natureza; que ele mesmo sabe o que
significa pensar; que está referido a uma unidade, o sujeito, que o abrange
junto às outras faculdades, às quais o pensar orienta, segundo a forma do
mesmo no modelo do reconhecimento. Mas o reconhecimento, diz Deleuze,
não pode promover outras coisas que o reconhecido e o reconhecível.
(KOHAN, 2002, p.32-33) .
Desse modo, é combatendo essa imagem que está a possibilidade do pensar e,
por consequência, é onde se situa a própria Filosofia. “Se o pensar é pensar, é porque dele
pode emergir o novo, a diferença. Isso significa que possa acontecer o que hoje não é
reconhecido nem reconhecível”. (KOHAN, 2002, p.33). Ora, se do reconhecido e do
reconhecível não pode radicar o pensar, de que então o radicará?
Do encontro! Encontro de que? Do que não pode ser antecipado, deduzido,
previsto, do signo que move a sensibilidade, daquele signo que comove, que
nos deixa perplexos, daquele signo que contém os contrários que nos forçam
a pensar, os contrários que nos obrigam a colocar um problema, a colocarnos a nós mesmos como problema. (KOHAN, 2002, p. 33).
Portanto, Kohan vai expor a necessidade de aprender a pensar e como o fazer
(aponta alguns caminhos). Ele afirma que aprender tem a ver com a construção de um espaço
para o encontro entre sinais.
Aprender é um encontro com o outro em si mesmo. Por isso, o professor que
ensina com vistas a um modelo a imitar nada ensina, não só não ensina,
atrapalha a aprendizagem, pois não há aprendizagem quando há reprodução
79
do mesmo. [...] Por essa mesma razão, não se aprende nada com manuais.
Também por isso, não há nada mais antifilosófico que os chamados
‘manuais de filosofia’, ainda, ou sobretudo, aqueles que dizem que ensinam
a pensar. (KOHAN, 2002, p. 35).
O problema que surge a partir dessa afirmação de Kohan é muito mais
emblemático do que parece. Vejamos. Se o pensar só pode vir do encontro, do que não pode
ser previsto, do que não pode ser deduzido, como devo administrar essa ideia juntamente com
a obrigação de um planejamento anual, de conteúdos específicos listados como necessários e,
portanto, indispensáveis e em um espaço temporal, previamente marcado? Como é possível
aprender, como proporcionar espaço para que alguém aprenda a pensar e, portanto, fazer
filosofia? Embora me custa acreditar que não haja ao menos uma maneira de se ensinar
Filosofia nos moldes da educação de nível médio que se tem no Brasil atual, parece-me
plausível a postura de Kohan em perguntar se até agora estamos, de fato fazendo Filosofia. A
resposta a estes questionamentos, Kohan vai elucidando no transcorrer do texto. Ele propõe:
Talvez o primeiro passo seja deixar de ensinar tantos pensamentos e tentar
aprender, nós mesmos, sim, nós professores, aprender. Aprender o que? A
pensar. Talvez uma das condições do ensinar a pensar seja deixar de ensinar
a pensar e começar a aprender a pensar. (KOHAN, 2002, p. 35).
Segundo o autor, não há métodos para aprender a pensar. O que se pode
afirmar é que só é possível aprender a pensar pensando. Sem movimento não há
aprendizagem, uma vez que “ninguém pode, em repouso, propiciar um movimento ou
instalado na passividade do mesmo estimular a emergência do heterogêneo”. (KOHAN, 2002,
p.36).
Assim, Kohan critica as propostas de ensino da Filosofia, que tendem a ensinar
a pensar; tendências estas alicerçadas sobre três aspectos: 1) a pressuposição de que é
possível ensinar e aprender a pensar sem levar em conta a hipótese de tal impossibilidade,
assumindo-se, portanto, a visão de que ensinar implicaria sempre em um aprender e viceversa (colocando em um dos dois lados do pólo alguém que ensina e do outro, alguém que
aprende); 2) a concepção do pensar como conjunto de competências e habilidades, que tira a
dinamicidade, a aventura do aprendizado e impõe modelos de pensamentos como incentivo à
repetição dos mesmos; e, por último, 3) a noção de que há métodos, uns mais, outros menos
80
complicados e que, de modo geral (ou reducionista), propõem maneiras de ensinar a pensar
por meio de programas, manuais e livros já consagrados e aprovados.
Com esse modo de ver, Kohan ajuda a arejar um pouco mais a discussão já
existente
sobre o ensino filosófico que se pratica hoje, entretanto, impõe uma outra
dificuldade: como um professor em exercício da disciplina de Filosofia do Ensino Médio, vai
lidar com esses três aspectos supracitados? O que me preocupa conforme tenho tido acesso à
literatura que se produz a respeito, é que muitos autores vêm abordando essa questão
propondo reflexões legítimas, mas que inviabilizam ainda mais o trabalho do professor. O que
poderá fazer, por exemplo, um professor dessa disciplina, dentro de uma instituição
educacional (pública ou privada), que comece a repensar sua maneira de dar aulas, com os
conteúdos por ele eleitos, os métodos didáticos e filosóficos adotados, dentro de um esquema
já formatado e moldado que é o modelo de Educação que se tem? O que fará esse professor
com esse questionamento frente ao currículo, na maioria das vezes engessado e nada
dinâmico?
Ora, que se esclareça de pronto que o fato de eu estar colocando o pensamento
de Kohan em questão, não invalida em nada a agudeza e importância de tais pensamentos. Ele
explica que o verdadeiro aprendizado é encontrar um caminho em direção a si mesmo, o que
ninguém pode ensinar.
Alguém que aprende de verdade é alguém que encontra um caminho para
si, algo que ninguém pode ensinar. Se aprende com os outros, não dos
outros. Alguém que aprende a pensar é alguém que tem experiências do
pensar que o fazem pensar de forma radicalmente diferente; é alguém que
pensa sua própria experiência dando espaço a formas de ser radicalmente
diferentes. É alguém que pensa e se pensa aberto ao outro, é alguém que
não pensa segundo um modo pré-filosófico, que não afirma os "todo o
mundo sabe que.", "ninguém pode negar que.", ou "todos reconhecem
que.". É alguém que não tem pontos fixos, alguém para o qual tudo sempre
poderia ser de outro modo. Ninguém pode fazer isso sozinho. Por isso, é
importante aprender com os outros. Nesse sentido, um professor de
filosofia é alguém que dá espaço a essas experiências do aprender a pensar,
que as possibilita, que as favorece, que as promove, que não as mutila.
(KOHAN, 2002, p.36 - grifo nosso).
O que cabe ao professor é algo (arrisco-me dizer), na maioria das vezes
impossível de se verificar no cotidiano letivo. Como pode um professor de filosofia ser
81
alguém que dá espaço a essas experiências do aprender a pensar, que as possibilita, que as
favorece, que as promove, sem que o próprio professor tem esse espaço? O que seria possível
ao professor, ainda dentro dessa concepção, se ele está "condenado" ao material escolar,
avaliar seus alunos por meio de competências e habilidades, prepará-los para o vestibular e
não para vida? A solução parece-me muito maior do que o professor pode dar conta: uma
reforma educacional, por exemplo. Em um plano microssocial, quiçá, um pouco de coragem
para romper com esse círculo.
3.2 A filosofia, os conceitos e seu aspecto interdisciplinar
Nessa parte da discussão, tentarei explicitar a concepção adotada por Silvio
Gallo acerca do ensino de Filosofia no Ensino Médio. Em seu texto intitulado A função da
filosofia na escola e seu caráter interdisciplinar (2004)12, Gallo busca justificar a necessidade
da Filosofia no Ensino Médio, afirmando que para ensinar Filosofia, o professor necessita,
antes de tudo, ter muito claro, o que ele mesmo entende por Filosofia, uma vez que, no
decorrer da história, muitas foram as definições cunhadas a respeito do que ela seja. Tal noção
parece interferir (e muito), no ato de ensinar a disciplina. Ele acredita que a educação deve ser
pensada como um amplo aspecto da formação humana, uma vez que o ser humano
compreende a realidade de três maneiras distintas. Esse modo de pensar a formação humana,
demanda a necessidade de estruturar o ensino em torno de três grandes áreas do conhecimento
que devem ser incorporadas pelas instituições de ensino.
Tais áreas, as ciências, as artes e as filosofias, constituem três vias importantes
que se complementam para um melhor conhecimento do mundo pelo ser humano, não
havendo hierarquia ou dependência mútua entre elas. Segundo Deleuze e Guatarri (1992)13 pensadores que inspiraram Silvio Gallo em sua concepção sobre a natureza da Filosofia pensar é dar consistência ao caos, é uma relação com o caos e essa relação se dá por meio de
conceitos (filosofia), ou por funções (ciência), ou ainda, por sensações (arte). O caos, segundo
os autores, seria um virtual que contém "todas as partículas possíveis e adquirindo todas as
12
GALLO, S. A função da filosofia na escola e seu caráter interdisciplinar. Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação, [S.L.], n.2, mai./out. 2004. Disponível em:
<http://seer.bce.unb.br/index.php/resafe/article/viewArticle/5426>. Acesso em: 28 ago. 2012.
13
DELEUZE, G; GUATARRI, F. O que é a filosofia? Tradução por Bento Prado Junior; Alberto Alonso Munoz.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. (Col. Trans).
82
formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem
referência, sem consequência". (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.187). O acontecimento é a
realidade do virtual, ou seja, o acontecimento é uma relação que se estabelece com o virtual,
sendo atemporal e desprovido de organização no espaço. Tal relação nem sempre é a mesma,
variando de acordo com os modos como é abordada: os modos científico, filosófico ou
artístico.
A Ciência não se ocupa do acontecimento, haja vista que este é imaterial,
espiritual e incapaz de ser vivido. Ela se orienta para o mundo empírico, cujo objetivo seria a
produção de funções, no que concerne às suas relações com o mundo. Isto é, as Ciências não
possuem o objetivo de construir conceitos, "mas funções que se apresentam como proposições
nos sistemas discursivos [...]. Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas por
funções ou proposições". (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.153). As funções produzidas por
meio do conhecimento científico dizem respeito aos estados das coisas; são aquelas capazes
de observar as causas e efeitos dos fenômenos analisados. Essa é a maneira como se
comunicam e refletem sobre a organização da realidade. A função teria a pretensão de "isolar
variáveis num ou noutro instante, ver quando novas variáveis intervêm a partir de um
potencial, em que relações de dependência podem entrar, por que singularidades passam, que
limiares transpõem". (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p.149). Desse modo, a Ciência se
ocupa com o caos (virtual), no sentido de tentar entendê-lo, imprimi-lo uma organização, bem
como extrair dele informações de modo a se tornar capaz de controlar o estado das coisas,
funções pelas quais a Ciência não necessita da Filosofia. Quando ela (a Ciência) constrói um
objeto puramente por funções, há então, a necessidade de buscar na Filosofia a conceituação que não pode ser encontrada em outro lugar.
As Artes produzem, por sua vez, perceptos e afetos que são formas de
compreender o mundo por meio da estética. A Arte é a conservação do acontecimento. Ora, se
a Arte é a conservação do acontecimento, pode-se notar que ela utiliza o infinito para gerar o
finito. Ela faz do devir do acontecimento uma sensação, um instante que, por ser conservação,
se conserva a si mesma na condição de monumento, de um eterno, sem ser eternidade. A arte
faz do acontecimento uma sensação, isto é, um universo e este, seria uma realidade à parte,
um possível estético: uma incorporação do acontecimento numa obra de arte. A sensação é
uma criação da Arte como forma de incorporação do acontecimento cristalizado em um
monumento. A Arte faz da sensação um monumento.
83
O possível pertence ao mundo da sensação, do afeto e do percepto, que
excedem todo o vivido. A possibilidade estética (pictoral, musical ou outra)
nada tem a ver com a possibilidade física. Ela existe por si mesma,
independente quer do material (suporte, tela, pauta, livro), quer de seu
modelo, quer do espectador e até do seu criador [...]. Enquanto captação do
(virtual do) acontecimento, a arte é o plano de composição que recorta
sensações do caos. (NABAIS, 2013)
Mas e a Filosofia? Ora, a Filosofia é a atividade do pensamento em que
consiste na criação de conceitos. Segundo Deleuze e Guatarri (1992), a Filosofia segue o
movimento inverso ao realizado pela Ciência, isto é, a Ciência parte do virtual (do caos), para
chegar ao estado das coisas (o empírico). A Filosofia parte do estado das coisas para chegar
ao virtual. Desse modo, sendo o virtual movimento constante, velocidade absoluta e infinita,
um conceito (produto tipicamente filosófico), não poderá ser, do mesmo modo, infinito posto
que é imanente e não transcendente, uma vez que parte necessariamente de problemas
experimentados na medida em que não se cria conceitos no vazio. Filosofia seria, portanto,
um exercício constante de pensamento, um exercício constante de conceituar. O conceito, por
sua vez, não pode ser caracterizado como uma definição, uma noção ou uma representação
mental, pois seria resposta à pergunta e, deste modo, paralisaria o pensar. Ele "é um tipo de
pensamento que se articula em torno do problemático, em torno de problemas que não se
resolvem de forma direta, imediata e definitiva. O conceito [...] não é uma definição".
(GALLO, 2013). O conceito é, ao mesmo tempo, o ato de pensar e o produto desse pensar. É
uma forma de trazer um problema (ou uma questão), de forma simples e clara, sem,
entretanto, resolvê-lo ou eliminá-lo.
Sendo o conceito, uma forma notadamente racional de equacionar um
problema ou um conjunto de problemas partindo do vivido, não poderia ser abstrato,
transcendente, mas antes, imanente, uma vez que parte necessariamente de problemas
experimentados, na medida em que não se cria conceitos no vazio. "O conceito é o que
apreende o acontecimento, ou o virtual enquanto acontecimento em devir. O conceito diz o
acontecimento e não a essência ou a coisa em si". (NABAIS, 2013). Vista por esse prisma, a
Filosofia aparece necessariamente como ação e não como algo sempre pronto, dado de
antemão. "A filosofia mostra-se como produção, como ato essencialmente criativo, e o
84
filósofo como artesão, como um demiurgo que, da vivência cotidiana produz seus conceitos
como pequenas ou grandes obras de arte". (GALLO, 2002, p.278)14.
Essa concepção (a da Filosofia enquanto ação), cunhada por Deleuze e Guatarri
(1992), serviu de base para a construção da crítica que esses autores fizeram às diversas
noções/concepções de Filosofia que foram sendo criadas e cristalizadas no cotidiano do senso
comum, e que passou a constituir um discurso muito utilizado, inclusive nas escolas. Trata-se
de entender a Filosofia como "contemplação", ou "discussão", ou "reflexão sobre". Mas será
que essas abordagens são capazes de definir a Filosofia? De acordo com Deleuze e Guatarri
(1992), não.
Sempre que se está numa época pobre, a filosofia se refugia na reflexão
"sobre"... Se ela mesma nada cria, o que poderia fazer, senão refletir sobre?
Então reflete sobre o eterno, ou sobre o histórico, mas já não consegue ela
própria fazer movimento. De fato, o que importa é retirar do filósofo o
direito à reflexão "sobre". O filósofo é criador, ele não é reflexivo.
(DELEUZE, 1992, p.152)15.
Certamente, os autores não quiseram dizer que a Filosofia não pode valer-se da
reflexão acerca das coisas, entretanto, essa reflexão deve estar direcionada para a construção
de conceitos, pois não é a reflexão que faz com que a Filosofia seja Filosofia, "a reflexão não
pode ser encarada como algo específico da filosofia: o matemático, o físico, o biólogo, o
artista, o vendedor de peixe não refletem? Então o que faria o filósofo de diferente e
específico ao refletir?". (GALLO, 2002, p.280). Assim, podemos perceber que os três modos
de pensar a realidade se cruzam, embora não façam síntese entre si. Do ponto de vista da
formação humana, a Filosofia não pode ser substituída pela Ciência ou pela Arte, bem como
não pode substituir nenhuma dessas anteriores. A Filosofia faz surgir acontecimentos com os
seus conceitos, a Arte compõe monumentos com suas sensações, a Ciência constrói estados
de coisas com suas funções.
Do ponto de vista da prática docente, Silvio Gallo (2004) afirma que uma aula
de Filosofia que não se propõe a lidar com conceitos, não pode ser uma aula de Filosofia,
assim como também não o é, uma aula que trate os conceitos como algo pronto e acabado.
14
GALLO, S. Filosofia e educação: pistas para um diálogo transversal. In: KOHAN, Walter (org). Ensino de
Filosofia: perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p.277-288.
15
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução por Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
85
Gosto de pensar a aula de filosofia como uma oficina de conceitos, um local
onde os conceitos historicamente criados são experimentados, testados,
desmontados, remontados, sempre frente a nossos problemas vividos. É
também um local onde se arrisque a criação de novos conceitos, por mais
circunscritos e limitados que eles possam ser.
É o conceito que permite à filosofia que seja dialógica: dialogamos, sim, mas
a partir de conceitos, ou o que dá no mesmo, com a filosofia promovemos o
diálogo dos conceitos; assim como é o conceito que permite que ela produza
uma crítica radical; criticamos, mas a partir do conceito e pelo conceito.
(GALLO, 2004).
Uma característica da Filosofia, ressaltada por Gallo (2004), é a sua natureza
transversal, uma vez que "o conceito não é paradigmático, mas sintagmático; não é projetivo,
mas conectivo; não é hierárquico, mas vicinal; não é referente, mas consistente [...]. O que faz
dele necessariamente um empreendimento de abertura e de relação". (GALLO, 2004). O autor
ressalta, ainda, que não consegue pensar a Filosofia como sendo interdisciplinar sem remeter
essa ideia a uma noção positivista, haja vista que Comte a taxou dessa maneira por não ser ela
capaz de operar pela experimentação, nem tampouco produzir verdades positivas, assim como
as outras ciências. Desse modo, passou a Filosofia a figurar como aquela que reúne
(interdisciplinarmente), os conhecimentos parciais produzidos por cada uma das outras
ciências e organizá-los numa visão total de conjunto.
O fato é que, segundo Silvio Gallo, não se consegue negar o seu caráter
transversal, uma vez que atravessa outros campos de saberes, na mesma medida em que,
também, é atravessado por ele. "Penso que hoje não se cria conceito, não se produz filosofia,
sem uma conexão direta e transversal com as diversas artes e as distintas ciências. Embora
elas sejam distintas entre si, elas se retro-alimentam, se fecundam mutuamente". (GALLO,
2004). Entretanto, a Filosofia só pode ser transversal, se houver, efetivamente, o trato com o
conceito. A pergunta que segue essa linha de pensamento é justamente essa:
Como tratar do conceito num currículo loteado pelas disciplinas
científicas com apenas pequenos e restritos guetos para as atividades
artísticas e para as atividades físicas? Trataremos do conceito em aulas
de Matemática? Ou de física? Ou de História? Ou de Português? Não,
nenhuma dessas disciplinas se presta ao trato com o conceito, entidade
eminentemente filosófica, como vimos. Trataremos do conceito em
aulas de Educação Artística? Ou de Educação Física? Também elas
não se prestam a isso. (GALLO, 2004).
86
Gallo (2004) acredita poder pensar na Filosofia como tema transversal,
somente a partir de um currículo, também, todo ele transversal e não disciplinar. "Num
currículo disciplinar em que o território é todo loteado e dividido entre as disciplinas, que se
tornam verdadeiras 'capitanias hereditárias, só' podemos garantir a presença e a ação
conceitual da filosofia se for, ela mesma, mais uma dessas capitanias, mais uma disciplina".
(GALLO, 2004). Nesse caso, somente quando se consegue garantir um espaço para a
Filosofia enquanto disciplina é que se consegue assegurar-lhe o trabalho com os conceitos e
desejar sua transversalidade junto às outras disciplinas num processo educativo um pouco
mais abrangente16.
Como então, trabalhar com os estudantes, os conceitos (produto exclusivo da
Filosofia), numa disciplina componente de um currículo não transversal e de modo que não
seja ela, também, interdisciplinar, nem tampouco, reprodutora de definições e pensamentos
prontos e acabados? A este questionamento Gallo (2013) propõe como recurso às aulas de
Filosofia, quatro passos didáticos. Se o estudante deve fazer, ele mesmo, a experiência do
pensar, é necessário e possível criar espaço para tal. Desse modo, a primeira etapa a seguir é a
que ele denominou de sensibilização.
Nesta etapa,
os problemas propostos devem ser vividos pelo aluno como problemas seus,
que os mobilizem para fazer o movimento de pensamento. Para isso, os
estudantes precisam ser sensibilizados para os problemas, de modo a vivêlos como seus. Assim, a aula de Filosofia começa com o recurso ao nãofilosófico, a instrumentos que possam despertar nos jovens o interesse por
aquele assunto, por um determinado tema. (GALLO, 2013).
Para a sensibilização dos jovens estudantes, Gallo (2013) sugere lançar mão de
um amplo arcabouço de recursos, tais como filmes (ou trechos de filmes), documentários,
músicas, poemas, contos, programa de televisão ou algo que faça referência ao universo
cultural próprio dos estudantes e, em seguida promover a discussão entre eles, para que haja
identificação entre a temática discutida e suas vidas. Na sequência, caracterizando a segunda
etapa, a problematização, trata-se de transpor a realidade do tema para o campo do problema,
16
Cabe relembrar que o texto de Gallo foi escrito em 2004 e, portanto, anterior à homologação da lei que
instituiu a composição da Filosofia e da Sociologia, .período em que a escola poderia optar se ensinava Filosofia
por meio de uma disciplina específica ou transversal, por meio de todas as outras disciplinas. Um equívoco, por
sinal e um claro retrocesso na busca por um lugar ao sol no currículo oficial.
87
ou seja, o professor instigaria os estudantes a construirem perguntas a partir da temática
discutida e, quanto mais profunda e diversificada for essa problematização, mais elementos a
classe e cada estudante terão para produzir sua própria experiência do pensamento.
A investigação compõe o terceiro passo didático. Nesta fase, é proposto que o
professor utilize a História da Filosofia, por meio dos filósofos que, em seu tempo, pensaram
sobre o tema debatido e problematizado por eles. A consulta aos filósofos (História da
Filosofia) como forma de melhor compreensão do tema abordado, "ganham um sentido e um
significado especial, não sendo apenas mais um conteúdo a ser decorado pelos estudantes".
(GALLO, 2013). Por último, o autor propõe o exercício da experiência filosófica por meio da
conceituação. "O estudante recria o conceito estudado, refazendo ele mesmo o movimento do
pensamento que levou à sua criação, desde o problema inicial". (GALLO, 2013). Também
pode ser incentivado a construir outro conceito que dê conta de equacionar os problemas
levantados anteriormente.
Essa concepção da Filosofia como sendo a responsável por trabalhar com
conceitos (que não são prontos e acabados), se aproxima mais do cotidiano letivo do
professor, uma vez que este já lida com os conceitos (prontos e acabados), advindos do
material e/ou do Sistema Educacional. Esse modo de pensar, cabe no planejamento de ensino
anual, cabe na sala de aula quando o professor prioriza e organiza os conteúdos, podendo,
inclusive, ter certa objetividade para que ocorram mudanças em sua prática sem estar
amarrado ao Sistema ou material apostilado. A bem da verdade, a discussão muda de lugar e
ganha maior fôlego: não é mais uma questão de ensinar Filosofia por meio da História da
Filosofia ou por meio de temas filosóficos. Quando se tem essas questões como único foco
para pensar a sua prática letiva, o professor desvia o seu olhar para o que é, de fato,
importante. Trata-se agora, depois do benefício da dúvida sobre a possibilidade de se ensinar
Filosofia (contribuição de Kohan), construir um método que auxilie o professor a dar sua aula,
mas também não desmereça (com uma visão utilitarista) a discussão a que se tem feito sobre
esse assunto.
Walter Kohan foi feliz ao propor ao “professor filósofo” que pense sobre a
impossibilidade de ensinar Filosofia, para que, a partir desta questão possa problematizar sua
própria prática docente, muito embora não ofereceu uma saída condizente com a prática
cotidiana do professor. O que já não podemos dizer de Silvio Gallo. A sua concepção do que
seja Filosofia atrelada às etapas para a aula de Filosofia que não impõe conceitos, mas propõe
88
a construção dele para equacionar alguns problemas da realidade do estudante, por exemplo,
constitui-se uma aproximação interessante.
Quanto às metodologias adotadas para as aulas, somente depois de muito
tempo fui capaz de encontrar algum ponto de luz em relação à maneira de lidar com o
conteúdo filosófico e os estudantes. Luz, advinda da literatura. É evidente que a concepção
que se tem sobre o que é Filosofia e a seleção do conteúdo a que se vislumbra, está
intimamente ligado ao como é possível dar aulas de Filosofia. Tenho organizado cada unidade
temática proposta pelo material apostilado, na grande maioria das vezes, em quatro partes,
como uma maneira mais efetiva de abordagem dos temas filosóficos dentro da sala de aula. A
reflexão proposta por Kohan e a estruturação das aulas trazidas por Gallo constituíram
diretrizes ao longo das experiências que fui tendo com a docência em Filosofia, somado a
uma espécie de síntese das experiências positivas que percebi no decorrer das aulas, levando
em consideração o estímulo do interesse por parte dos estudantes, a importância da
fundamentação teórica sempre que possível baseada em trechos de textos do próprio filósofo e
ligação entre o discurso filosófico e a vida cotidiana desses jovens.
Cada unidade temática, geralmente contém uma média de três a quatro aulas
em que tento conciliar a discussão que o material didático fornece com a minha proposta de
trabalho. No material dos sistemas de ensino particular, é possível perceber um padrão
estético, metodológico e estrutural na organização das informações por ele preconizadas.
Cada unidade inicia-se com algumas questões gerais acerca da realidade e que faz referência
ao tema que será abordado, textos narrativos que trazem à discussão conceitos e problemas,
textos complementares (filosóficos ou não), e uma bateria de exercícios que se dividem entre
questões de interpretação dos textos ou atividades propostas para o aprofundamento do
assunto abordado e questões retiradas de alguns vestibulares de grandes Universidades
abordando o tema da unidade (já respondido, no manual do professor).
3.3 Por uma reestruturação do currículo escolar
No livro Ensino de Filosofia e Currículo (2008)17, Ronaí Pires da Rocha18
expõe seu modo de pensar o ensino da Filosofia e como deve estar estruturada esta disciplina
17
ROCHA, Ronaí Pires da. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis: Vozes, 2008.
89
juntamente com as demais, num currículo que seja também pensado como um todo.
Selecionei partes da compreensão deste autor por perceber algumas inadequações do seu
pensamento à realidade do professor em sala de aula. Ele inicia seu texto com um
questionamento a respeito dessa nova fase do ensino: o que pensamos sobre a Filosofia no
currículo? "O professor de Filosofia entra em uma escola que já está funcionando. Podemos
especular sobre uma possibilidade: que os membros da escola [...] queiram ouvir o que ele
pensa sobre como a nova disciplina vai funcionar". (ROCHA, 2008, p.17). Diante disso,
pode-se observar uma tentativa de busca de significação para o ato de institucionalizar a
Filosofia, o que tem feito surgir muitas expectativas legítimas, legais e também exageradas
(travestidas de discursos salvacionistas).
Atualmente constata-se, pelo menos, três formas diferentes de entender o
valor formativo da Filosofia e, por conta disso, surgem três vertentes de pensamento que
preconizam um conjunto de assuntos e um método específicos de ensinar a Filosofia. Trata-se,
primeiro, de uma visão voltada para o aprendizado da Filosofia a partir “de um conjunto
sistematizado de conhecimentos, articulados como sistemas de verdades e valores próprios
para serem adquiridos”. (ROCHA, 2008, p.11). Tal visão, estimula o ensino a partir da
escolha de textos, de correntes, ou autores consagrados do pensamento filosófico sobre o(s)
qual(is) se debruçarão professor e alunos na tentativa de compreendê-lo(s).
Outra possibilidade de compreensão e metodologia acerca do ensino
filosófico trata-se de entendê-la
como o ensino de História da Filosofia ou de temas da História da Filosofia.
Esta concepção supõe que o mais importante para a formação dos alunos é a
aquisição de um conjunto sistematizado de informações, conhecimentos
acumulados desde a origem da Filosofia. O ensino de Filosofia pode,
finalmente, ser compreendido como desenvolvimento de habilidades
cognitivas. Esta é uma concepção em evidência no Brasil, pois focaliza uma
necessidade permanente: responder ao fato de que os alunos chegam ao final
do Ensino Médio, e mesmo à Universidade, com graves deficiências
discursivas, de língua e de linguagem. E acredita-se que a leitura filosófica é
exercício indispensável para a existência de uma cultura escolar; outra coisa,
entretanto, é considerar que ela tenha que satisfazer as muitas expectativas
sobre um suposto poder que ela teria de suprir deficiências, uma espécie de
disciplina salvadora que ensinaria a pensar. (ROCHA, 2008, p.11).
18
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria - RS.
90
Ora, o ensino da Filosofia, sob esta concepção, pode ser visto como habilidade
cognitiva, pois se acredita que a leitura dos textos filosóficos seriam exercícios sine qua non
para a solução de tais deficiências, o que demonstra uma visão salvacionista a respeito da
(re)inserção do ensino da Filosofia nas escolas de Ensino Médio. Também pode ser entendida,
segundo o mesmo autor, como debate de temas da atualidade ou problemas da realidade. Ele
ressalta que essa seria uma suposição de que a discussão sobre a realidade proporcionaria aos
alunos maiores possibilidades de transformação da própria realidade. Tais possibilidades são,
na sua aplicação, ineficientes, se constituir de um ensino baseado somente na história do
pensamento filosófico (que tende a se tornar pedante e conteudista), ou, se constituir de
reflexões de temas mal recortados da realidade (que dará a impressão de não se chegar a lugar
nenhum, levando os alunos a enxergar a Filosofia como uma disciplina que não possui
métodos nem seriedade). Entretanto, aponta Rocha (2008), não há mais certa ingenuidade em
acreditar que a Filosofia é a responsável pela formação de um sujeito crítico e de uma
consciência cidadã, já há mais do que simples consenso de que estas são atribuições de todas
as atividades escolares desde a merenda escolar às aulas de Educação Física, isto é, se sabe
que não há apenas uma área ou disciplina privilegiadamente responsável por tal intento.
Apesar de já haver certa clareza entre os professores da rede de ensino
acerca da natureza da Filosofia e de suas possíveis contribuições, há também a necessidade de
perceber que um caminho longo ainda precisa ser trilhado, sobretudo no que diz respeito a
discutir sobre o currículo escolar como um todo e não como um "presépio no qual cada
professor deposita sua oferta de formação e faz assim crescer a árvore-currículo [...]".
(ROCHA, 2008, p. 17). Esse árduo caminho (o do pensar o currículo escolar como um todo),
enquanto exercício, nos ajuda a perceber as diversas relações possíveis entre a Filosofia e as
demais disciplinas que compõem a matriz curricular, ressaltando as semelhanças e as
diferenças entre elas, possibilitando, inclusive, maior consciência do que trabalhar em sala
com os estudantes. Rocha (2008), afirma ser esse um exercício fundamental, uma vez que não
podemos esperar tal resultado por parte dos órgãos públicos superiores que, de uma maneira
ou de outra, já orientaram, de modo amplo por meio de documentos algumas possibilidades.
Ele diz
Quando tentamos imaginar o cenário do ensino de Filosofia, sabemos que
algumas possibilidades vêm dos documentos do Ministério da Educação. É
muito provável que este não apresente uma definição de conteúdos
91
obrigatórios. O máximo a que chegaremos é o que já consta dos documentos
oficiais: uma lista de tópicos , entre temas e autores clássicos, considerados
como sugestões, pontos de referência. Os Estados repassarão essa orientação
para as regiões escolares; as regiões escolares repassarão essa orientação
para os municípios e os municípios repassarão essa orientação para as
escolas, lugar da derradeira iniciativa. As principais possibilidades são a de
que exista, na região da escola, alguma grande universidade que tenha
conteúdos de Filosofia no seu processo seletivo; a escola aceita - mais ou
menos - essa pressão e o professor de Filosofia passa a ensinar esses
conteúdos; se não existe tal pressão de vestibular na região da escola, no
limite inferior, o professor adota um manual ou ensina o que sabe e gosta; no
limite superior, ele faz um planejamento curricular como tem que ser feito.
(ROCHA, 2008, p.20)
Para Rocha (2008), a Filosofia possui uma natureza vinculada ao
compromisso com o pensamento racional, argumentado, voltada para a investigação dos
elementos fundamentais da realidade e de como acessá-los e, das ações humanas. Desse
modo, é possível notar que todas as disciplinas do currículo escolar podem ser abordadas
como instrumentos conceituais da Filosofia na busca de se configurar um currículo
harmonioso e integrado. Portanto, um bom começo para a Filosofia enquanto disciplina, se dá
por meio de um bom planejamento coletivo e integrado entre as demais disciplinas
componentes do currículo escolar vigente. "Não se trata apenas de lutar por esse ou aquele
conjunto de conteúdos e métodos de ensino; trata-se de afinar nossos conceitos e critérios de
escolha para conteúdos e métodos, e trata-se, ainda mais, de revisar o que pensamos ser um
currículo escolar de Filosofia". (ROCHA, 2008, p.24).
Até esse ponto, vejo a proposta de Rocha (2008), como necessária. A
interdisciplinariedade é uma necessidade urgente nas escolas, realidade que tem ficado apenas
a cargo dos próprios estudantes, ou seja, o estudante, sozinho acaba fazendo a ligação entre as
disciplinas (quando há possibilidade e percepção para tal), do contrário, o que se percebe é
que cada professor toma conta de seu "feudo" e, muitas vezes, não faz relação alguma com as
outras disciplinas ou com a realidade vivida pelos estudantes.
Após tal diagnóstico e apontamentos acerca da Filosofia e sua relação com
as outras disciplinas do currículo escolar, Rocha (2008) vê a necessidade de uma
reorganização das disciplinas escolares com base em novas categorias, diferente do arranjo
feito pelo MEC. Tal proposta visa classificar as disciplinas levando em consideração a noção
de que os saberes escolares estão em uma linha contínua e paralela com as nossas
92
curiosidades mais legítimas de compreensão e conhecimento da realidade. Ao que ele
denominou de curiosidades humanas fundamentais.
O esquema proposto pelo Ministério da Educação classifica a Física, a
Química, a Biologia e a Matemática no grupo das chamadas Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias. Numa nova classificação, Rocha propõe desmembrar esse
grupo de disciplinas, ficando de fora a Matemática, uma vez que seu intuito é compor um
grupo com as disciplinas que procuram dar conta de responder sobre o funcionamento do
mundo sem as gentes e que são ciências empíricas - da qual não faz parte a matemática. No
campo das Ciências Humanas e suas Tecnologias temos as disciplinas de Filosofia,
Sociologia, Geografia e História (organizadas pelo MEC). Elas compõem o grupo das
disciplinas que respondem ao tipo de curiosidade a respeito de como o mundo é com as
gentes.
Em especial a Geografia e a Sociologia são ciências de tipo empírico que
dependem, em grande parte, da capacidade humana de fazer observações
raciocinadas sobre a realidade. O mesmo critério se aplica, com os devidos
esclarecimentos e restrições, à História, pois ela tem compromissos com a
descrição e compreensão de fatos situados no espaço e no tempo. O mesmo
não se pode dizer da Filosofia. (ROCHA, 2008, p.31).
No grupo de disciplinas intitulado, pelo MEC de Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias, estão Língua Portuguesa, Literatura, as Línguas Estrangeiras, Arte e
Educação Física. Nessa classificação não se pensa em curiosidades sobre o mundo sem as
gentes ou com as gentes, mas sim o si-mesmo, pois trata-se de curiosidades sobre o mundo da
corporeidade, da exploração de si enquanto corpo e mente. Quanto ao caso da Matemática,
basta agora dizer que se trata de uma ciência sui generis, usualmente chamada de formal e
muitas vezes agrupada com a Lógica. A Matemática faz seu trabalho sem que lhe seja
necessário ir até o mundo dos eventos da natureza e da sociedade, daí ser chamada de formal.
Assim como a Matemática, que ficou de fora do grupo de disciplinas organizadas pelo MEC,
nesta nova configuração proposta por Rocha, a Filosofia também não entraria no seu grupo,
nem em nenhum outro, haja vista que as suas curiosidades não são as mesmas que as das
demais. Desse modo, sobre quais curiosidades humanas fundamentais se volta a Filosofia? A
Filosofia responderia às curiosidades sobre todas as outras curiosidades. Veja, a seguir, o
quadro de resumo sobre esse rearranjo proposto por Rocha.
93
Classificação do MEC
Curiosidades humanas fundamentais
Ciências da Natureza, Matemática e suas Como é o "mundo" sem as gentes?
Tecnologias: Física, Química, Biologia e Curiosidade sobre a natureza: Física,
Matemática.
Química e Biologia.
Ciências Humanas e suas Tecnologias: Como é o "mundo" com as gentes?
Filosofia, Sociologia, História e Geografia.
Curiosidades sobre o mundo enquanto
habitado e construído por gentes: Geografia,
História, Psicologia e Sociologia.
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias:
Língua Portuguesa, Literatura, Línguas
Estrangeiras, Espanhol, Arte e Educação
Física.
Curiosidades sobre nossas capacidades
compreensivas e expressivas: Explorações de
si-mesmo, enquanto mente e corpo:
Linguagens, Artes e Educação Física.
Curiosidades sobre os aspectos formais da
realidade. Matemática, uma ciência sui
generis.
Curiosidades sobre todas essas curiosidades:
a Filosofia.
Fonte: ROCHA (2008, p. 32).
Essa classificação é, diríamos bastante ousada, por colocar a Filosofia em
uma posição superior às outras disciplinas. Embora o autor da proposta ressalte a importância
de ser argumentado. Ele afirma que essa classificação é necessária, levando em consideração
a vida escolar das crianças e dos adolescentes, pois existem perguntas (que em geral surgem
naturalmente) e que "o melhor lugar para encontrar respostas para elas é a aula de Filosofia".
(ROCHA, 2008, p.33). Ainda ressalta que a Filosofia é uma área muito peculiar de reflexão,
pois se ocupa de temas fundamentais na experiência humana. Um currículo escolar
constituído sem a sua presença tolheria do estudante um espaço de formação a que ele tem
direito.
A sua acuidade com conceitos, seria o grande diferencial da Filosofia,
quando aborda os conceitos que surgem das outras disciplinas e que não são tratados em
nenhuma delas, tais como: verdade, causa, abstração, o infinito, o ser, a convenção, a justiça
etc. O fato de tais conceitos surgirem nas outras disciplinas e não serem trabalhados por elas,
94
não prejudica o estudantes no que tange os conteúdos daquelas disciplinas em específico,
entretanto, poderá ter seu conhecimento e experiências aprofundados se tiver espaço para
trabalhá-los.
Esta concepção me parece um tanto distante de ser colocada em prática, haja
vista que se torna praticamente impossível um planejamento dos conceitos a serem
trabalhados, se esperarmos os conceitos surgirem das outras disciplinas. O ritmo e o tempo
destinado às aulas de Filosofia, a sua institucionalização e a burocracia que constitui a escola,
impedem que as aulas fluam no tempo do estudante.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo maior dessa pesquisa foi proporcionar um espaço para a reflexão
sobre os limites do ensino filosófico institucionalizado no Ensino Médio à luz de alguns
importantes pensadores dessa problemática e como forma de pensar também a minha prática
docente. Para tanto, propus fazer interlocução e mediar, enquanto professor-pesquisador, o
discurso filosófico-científico, produto de pesquisas universitárias.
Nela sustento a ideia de que há uma necessidade urgente em se pensar a
formação do professor de Filosofia advinda do sistema confessional católico, uma vez que
grande parte desses mesmos professores, o é como consequência da interrupção, voluntária ou
não, do processo de formação que inicialmente estava focado em outro objetivo (o
seguimento da vida eclesial). Muitos professores de Filosofia sequer se imaginavam em sala
de aula quando iniciaram o processo de formação filosófico-religioso, isto é, muitos
professores de filosofia que ingressaram no curso de Filosofia com o objetivo de seguirem a
carreira eclesial e deixaram o processo formativo, nem serão padres, não se formaram filósofo
(como finalidade inicial – muitos nem gostam de Filosofia), nem tampouco se prepararam
para ser professores. Portanto, se faz extremamente necessário que as instituições
confessionais com vistas à formação do futuro sacerdote, assumam que são formadores de
filósofos e também de professores de Filosofia e não somente de padres. Devem assumir a
necessidade de tomar o ensino filosófico como problema realmente filosófico com espaço
específico e eficaz dentro da matriz curricular.
Noutra direção, as instituições seculares que adotam sistemas nos moldes da
formação proposta pela USP (modelos estruturalistas de leitura e estudos de textos filosóficos
– influência trazida pelos professores franceses), por exemplo, forma o egresso com perfil de
leitor de obras e pensadores específicos tornando-o quase um discípulo reprodutor do
conhecimento de seu “mestre” e, portanto, fora da realidade na qual vivemos. Sobre este
ponto, concordo com Pereira, quando afirma que ensinar Filosofia, exige antes de tudo a
coragem de se expor em público, de propor ideias e defendê-las tomando partido, escolhendo
lados e fazendo críticas, pois desse modo é que se pode exercitar a faculdade do pensar. Aos
96
professores cabem a paciência e a tolerância de ajudar o estudante (cada um em seu ritmo, em
seu tempo), a se enveredar pelo caminho aventureiro da Filosofia, uma vez que não é possível
ensinar Filosofia sem antes filosofar.
Também se faz necessário romper com a imagem dicotômica que separa
Professor de Filosofia e Filósofo, como se fossem duas grandezas inversamente
proporcionais. Pesquisa científica e prática docente necessitam ser um único conjunto, um
monobloco indivisível. Para tanto, se faz mister, dentro dos Programas de Pós-graduação em
Educação, as pesquisas relacionadas ao ensino filosófico serem mais direcionadas à prática
letiva dos professores dentro do limite da própria realidade e não deslocada desta. Aos
Programas de Pós-graduação em Filosofia cabem lutar contra a tendência endógena de
pesquisa e assumir os problemas da Filosofia da Educação e do Ensino de Filosofia como
problemas essencialmente filosóficos, rompendo, desse modo, com o círculo vicioso que
separa o que deve ser inseparável.
Quanto ao problema da possibilidade de se ensinar ou não Filosofia –
colocados por Hegel e Kant –, me parece ser uma questão ainda não esgotada (em termos de
discussão), entretanto, há que se convir que em ambos pensadores existe a preocupação de
estudar a História da Filosofia sem abrir mão da capacidade reflexiva e indagadora –
característica própria do ato de filosofar. Penso que qualquer método de ensino filosófico que
desprezar a História da Filosofia estará desprezando, por consequência, a produção intelectual
tradicional do pensamento filosófico, assim como não acredito ser possível um ensino
filosófico focado apenas na leitura e interpretação da História da Filosofia, seja ele em
qualquer nível educacional. A crítica nietzscheana ao modelo de ensino das escolas da
Alemanha, presos aos sistemas político e econômico dessa sociedade, serviu neste trabalho
como um ponto de luz para se pensar o que estamos fazendo com a Filosofia dentro das
escolas do Ensino Médio. Corremos sérios riscos com a mediocrização da educação, quando o
maior objetivo dela é o concurso vestibular das grandes Universidades ou as avaliações
externas às escolas promovidas pelo governo (que as ranqueia e as premia numa espécie de
meritocracia que tende a gerar uma competição por status e a produção de relatórios e
documentos, muitas vezes sem verossimilhança com a realidade do processo de ensino e
aprendizagem).
No último capítulo, a proposta foi trazer à reflexão as concepções do que seja
Filosofia e como ensiná-la sob a ótica de Walter Omar Kohan, Silvio Gallo e Ronaí Pires da
97
Rocha. A este respeito, parece-me plausível a concepção de filosofia apresentada por Kohan
que acredita ser ela um espaço onde o saber é construído, ao mesmo tempo em que é
transpassada pela experiência do pensar, ou seja, a noção de que a filosofia é abertura às
vivências que são únicas e intrasferíveis, ao novo, ao que está fora das convenções sociais ou
de qualquer outra ordem. Entretanto, sua teoria parece não fornecer embasamento para uma
prática letiva, uma vez que é praticamente impossível ao professor auxiliar o estudante a
utilizar o espaço filosófico para o pensar, se partir do pressuposto de que a Filosofia é uma
experiência do pensar e que o pensamento provém do encontro do imprevisível, do não
deduzível, dos contrários que faz pensar, do acontecimento.
Com estas afirmações não quero dizer que o pensamento do autor não seja
válido ou que esteja errado, ao contrário, acredito que seja importante pensar conforme ele
propõe, porém, este modo de conceber o ensino filosófico me parece um tanto descolado da
realidade prática. É evidente que a Filosofia não deve ser vista sob o viés utilitarista e
pragmático; também não é essa minha intenção ao pontuar esses aspectos. Apenas penso que
a reflexão filosófica acerca do ensino de Filosofia não pode estar apartada do fazer filosófico
em sala de aula. O que pode fazer um professor de Filosofia do Estado que assumiu uma
jornada completa de aulas, portanto, 40 horas semanais, que possui um caderno/manual que já
lhe traz os conteúdos prontos, o planejamento (a quantidade de aulas necessárias para esgotar
tais conteúdos), as competências e habilidades a serem despertadas no estudante – pelo
professor, o modo pelo qual o professor deve ministrar sua aula, uma gestão que lhe cobra
resultados demonstrados nas avaliações externas (ENEM, Vestibulares, Olimpíadas e outras),
os problemas de indisciplina – tão frequentemente vistos e a burocracia que lhe toma parte de
seu tempo? Onde cabe a ideia desse autor quando afirma que “o primeiro passo é deixar de
ensinar tantos pensamentos e tentar aprender, nós mesmos, sim, nós professores, aprender
[...], deixar de ensinar a pensar e começar a aprender a pensar”?19.
Já a definição de Filosofia proposta por Silvio Gallo, de que à Filosofia cabe a
missão de dar consistência ao caos por meio da conceituação, isto é, a Filosofia vista como o
constante exercício de conceituar, me parece um modo interessante de pensar o seu ensino,
posto que o conceito não possui a mesma sinonímia que a definição, é o ato de pensar e o
resultado do que foi pensado. Mesmo em um currículo abarrotado de disciplinas, e toda a
estrutura sistêmica já comentada anteriormente, é possível ao professor em suas aulas, pensar
19
Cf. (KOHAN, 2002, p.35)
98
sua própria prática, trabalhar conteúdos com seus estudantes e ainda assim, não perder a
capacidade de reflexão em sala de aula. Até mesmo o método esquematizado por Gallo
(sensibilização, problematização, investigação e conceituação) para se trabalhar o conceito,
parece-me interessante e possível, pois há certa maleabilidade em sua aplicação cotidiana.
Ronaí Pires da Rocha foi muito feliz ao propor uma inserção do ensino
filosófico em um currículo estruturado e construído coletiva e interdisciplinarmente. Segundo
o autor não há mais a ingenuidade de acreditar que cabe à Filosofia (e apenas a ela) a função
de formar cidadãos crítico-reflexivos e, por isso o currículo deve ser pensado e construído
interdisciplinarmente como uma maneira de mudar a estrutura seccionada que se distribuem
as disciplinas que, na maioria das vezes não estabelecem relação alguma entre si e entre si e a
realidade. A interdisciplinaridade mesmo acaba ficando a cargo do próprio estudante que deve
sair juntando e montando (como num quebra-cabeça) as disciplinas que estuda. Para o autor,
somente fazendo o exercício de pensar o currículo desta maneira é que se pode perceber as
intrínsecas relações existentes entre a Filosofia e as outras disciplinas – importante fio
condutor para a seleção dos conteúdos a serem trabalhados.
A reorganização do currículo proposta por Rocha, entretanto, prevê que a
Filosofia tome como base para a seleção de seus conteúdos, as possibilidades de diálogo com
as outras disciplinas na reflexão dos principais conceitos destas. Ora, tal proposta me parece
ter três pontos que, de início já a inviabilizaria: a) só é possível sua consecução numa escola
que adotaria, necessariamente, a construção do currículo coletivamente, pois de outro modo
não haveria como o professor dar conta de propor conceitos se não tiver contato permanente
com os professores das outras disciplinas; b) o professor de Filosofia teria que ter um
conhecimento que abarcasse a diversa gama dos assuntos trabalhados em cada disciplina do
currículo; c) essa organização não levaria em consideração as diretrizes propostas pelo Estado
e pelos PCNs que, apesar de serem propostas e não uma imposição, as avaliações externas –
sobretudo o ENEM – são construídas com base em tais diretrizes. Outro ponto a se discutir é
que dessa maneira organizado, a Filosofia passa a ocupar um lugar de destaque e privilégio,
haja vista que estaria fora dos demais grupos (assim como a matemática), e acima de todas as
disciplinas, justamente aquilo que não acredito ser o foco do seu ensino. Não cabe mais
retroceder à visão de que a Filosofia é sinônima de status cultural e que o filósofo é o ser tão
inteligente quanto desligado do mundo, da realidade. Alimentando essa visão salvacionista da
Filosofia – “mãe de todas as ciências” –, não se poderá dizer que ela contribuirá com a
99
formação do estudante, pelo contrário, poderá se tornar mais um obstáculo, dentro dos
diversos que os estudantes deverão passar para terminar o Ensino Médio.
100
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