Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. Freud Além da Alma e o Transtorno Conversivo Angel Soares Silveira1, Andreia Carvalho2·, Luciane Vieira Pozzebon Silveira,3 Dra. Débora S. De Oliveira4 Resumo: O presente artigo foi elaborado com o objetivo de possibilitar maior compreensão acerca do Transtorno Conversivo e dos critérios que necessitam serem preenchidos para seu diagnóstico. Para tanto, foi realizada uma análise do filme “Freud Além da Alma”, o qual apresenta um panorama do transtorno em diversas personagens, como uma paciente histérica internada em um hospital, pacientes com sintomas conversivos sendo hipnotizados por Charcot e também Cecily, paciente de Breuer, a qual apresenta paralisia e cegueira decorrentes do transtorno. Tendo por base tal análise, a relacionamos aos critérios diagnósticos apontados pelo DSM-IV, bem como apresentamos uma breve sinopse do filme, uma análise sobre alguns recortes do mesmo onde utilizamos a literatura para discutir pontos referentes ao transtorno conversivo e, por fim, nossas considerações finais. Palavras-chave: transtorno conversivo; cinema; transtorno somatoforme. 1 Acadêmico do Curso de Psicologia do Cesuca-Faculdade Inedi. Acadêmico do Curso de Psicologia do Cesuca-Faculdade Inedi. 3 Acadêmico do Curso de Psicologia do Cesuca-Faculdade Inedi. 4 Professora do Curso de Psicologia do Cesuca-Faculdade Inedi. 2 37 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. Introdução O Transtorno Conversivo é caracterizado por sintomas que afetam a parte motora e/ou sensorial do sujeito, indicando que o sujeito possa estar com uma patologia neurológica ou outro quadro clínico (APA, 2002). Os sintomas relacionados às funções motoras incluem “prejuízo na coordenação ou equilíbrio, paralisia, fraqueza localizada, afonia, dificuldade na deglutição ou sensação de nó na garganta e retenção urinária” (APA, 2002, p. 475). Há também os sintomas sensoriais como “perda da sensação de tato ou de dor, diplopia, cegueira, surdez e alucinações. Os sintomas também podem incluir convulsões” (APA, 2002, p 475). Além dos déficits sensoriais e motores, outras características do transtorno conversivo devem ser mencionadas, como o fato de que o membro que se encontra paralisado poderá ser movido quando o indivíduo dirigir sua atenção para outros estímulos. Apesar de apresentarem sintomas que lhe causam limitação e sofrimento, estes indivíduos apresentam uma falta de preocupação com as possíveis decorrências destes sintomas, além destes serem vistos como associados a traumas ou a fatores estressores. Também é importante destacar que o transtorno apresenta início e fim abrupto. Segundo o DSM-IV-TR, o transtorno conversivo apresenta subtipos e é necessário especificar tipo de sintoma ou déficit, sendo eles: “com sintomas ou déficit motor, com sintoma ou déficit sensorial, com ataques ou convulsões e com quadro misto” (p. 480). Freud Além da Alma: o filme O filme Freud Além da Alma, que se passa em 1885, em Viena, apresenta um 38 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. histórico do início da psicanálise. Logo na primeira cena, assistimos ao neuropatologista e anatomista Theodor Meynert, ex-professor e chefe de Freud, examinar uma paciente que apresenta cegueira e paralisia das pernas de natureza histérica. Meynert relata que, na paralisia espasmódica real, a perna não ficaria tão rígida e, em seguida, acende um palito de fósforo para demonstrar que o reflexo fotomotor - contração da pupila causada por estímulo luminoso - está preservada, concluindo, assim, que a perda da visão não seria verdadeira. Meynert afirma, também, que a histeria não é uma doença e que o histérico deseja apenas chamar a atenção e fugir das responsabilidades da vida. Freud, que internara a paciente, enfia uma agulha em sua perna, mas surpreendentemente ela não sente dor. Algum tempo depois, Freud vai estudar com o famoso neurologista Jean-Martin Charcot, em Paris. Em uma aula, Charcot diz que ótimos relatos de histeria foram feitos no passado, em julgamentos de bruxas e, em seguida, faz uma demonstração para seus alunos sobre a histeria. Nessa cena, apresenta-se uma mulher com as pernas paralisadas e que não anda a seis anos, cujo quadro se iniciou após um trauma psicológico, um acidente de trem. Um homem histérico, com tremores nas mãos, também está presente na mesma cena. Os tremores começaram após um grande susto: a cabana onde estava fora atingida por um raio, mas ele não se feriu fisicamente. Por meio da hipnose, Charcot elimina os sintomas dos dois pacientes, e, em seguida, os inverte: a mulher passa a apresentar tremores e o homem se torna paralítico. Charcot afirma ter provado que a histeria não tem uma origem orgânica e que os sintomas podem ser eliminados e criados por sugestão. No mesmo filme, conhecemos uma paciente do médico e fisiologista austríaco Josef Breuer, amigo e mentor intelectual de Freud. Cecily Koertner está paralítica, cega e se recusa a beber água de sua caneca e, ao despertar do transe hipnótico, já é capaz de 39 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. beber água. Mais adiante, Cecily recupera a visão quando, também sob-hipnose, se lembra da morte do pai em um bordel - uma situação que ela preferia não ter visto. 40 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. O transtorno conversivo, os critérios diagnósticos e o filme Segundo Louzã Neto, Cordás e Cols. (2011) “A característica essencial do transtorno conversivo é a presença de sintomas ou déficits, afetando as funções motora ou sensorial voluntária, os quais sugerem uma condição neurológica ou outra condição médica geral, associados a um conflito psicológico” (p. 213). Em seguida, os autores complementam afirmando que “muitas vezes, somente um neurologista experiente é capaz de diferenciar um quadro conversivo de um quadro com base orgânica de fato” (p. 213). Em uma das cenas, o professor Meynert diz a Freud que não aceita pacientes histéricas em seu hospital e prontamente realiza alguns testes e alega que a paralisia e a cegueira da paciente são apenas uma exibição para atrair atenções, causar pena e fugir das responsabilidades. Com relação a tal atitude Borge e Ramadam (1985) citado por Silva (2011), destacam que “comparar a histeria conversiva com uma simulação é um erro, visto que a pessoa que simula tem consciência de seus atos, e a pessoa com histeria não”. Tais características também estão de acordo com o critério C apresentado pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-IV-TR da American Psychiatric Association (APA, 2002), o qual aponta que “O sintoma ou déficit não é intencionalmente produzido ou simulado (como no Transtorno Factício ou na Simulação)” (p.480). Louzã Neto, Cordás & Cols. (2011) acrescentam que “uma vez que não são produzidos de maneira consciente pelo paciente, os sintomas nesse tipo de doença não se assemelham à simulação” (p. 215). Hales, Yudofsky e Gabbord (2012) afirmam que: Os sintomas de transtorno conversivo podem parecer servir a inúmeras propostas inconscientes, tais como a expressão de desejos ou impulsos proibidos na forma mascarada, a imposição de auto punição por meio de um sintoma incapacitante 41 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. por um desejo proibido ou uma má ação ou a remoção de si mesmo de uma situação esmagadora, potencialmente fatal. (p.734). Referente a esta cena em que Meynert e Freud examinam a paciente que está paralítica e cega, podemos identificar o critério diagnóstico A que, segundo o DSM-IVTR, corresponde a “um ou mais sintomas ou déficits afetando a função motora ou sensorial voluntária, que sugerem uma condição neurológica ou outra condição médica geral” (APA, 2002, p.480), sendo que no caso desta paciente ela apresenta um déficit motor, que é a paralisia, e um déficit sensorial, que é a cegueira. No momento em que Meynert examina a paciente e afirma que em uma paralisia real a perna não estaria tão rígida e ao acender um fósforo as pupilas contraem-se, demonstrando não se tratar de uma cegueira, podemos identificar o critério D apontado pelo DSM-IV-TR (APA, 2002) para o diagnóstico do transtorno conversivo. Este pontua que “ O Transtorno Conversivo não é diagnosticado se os sintomas ou déficits são plenamente explicados por uma condição neurológica ou outra condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância, ou como um comportamento ou experiência culturalmente sancionados” (p. 475). Acerca dos sintomas apresentados pela paciente, Freud citado por Macedo (2005) explica que “a representação que deve ser esquecida tem certa carga de excitação, a qual a paciente precisa dar um destino. Neste momento acontece a transformação para algo somático - energia incompatível é convertida para algum órgão do corpo” (p.190). Segundo Fernandez e Chaniaux (2010) “Como, em geral, o paciente não conhece bem como esses sintomas motores ou sensoriais se expressam, os sintomas conversivo representam caricaturas ou cópias grosseiras dos observados na verdadeira doença neurológica” (p. 138). Na cena em que Breuer hipnotizada Cecily, a paciente 42 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. revela um trauma relacionado a água, chegando ao ponto de não conseguir beber, sendo que tal fato torna evidente o sofrimento desta paciente. Sobre este sofrimento, Borge e Radamam (1985) citado por Silva (2011) afirmam que: A pessoa histérica sofre muito real e intensamente, vitima dos conflitos que seu psiquismo não consegue solucionar, mas, como todos os neuróticos, envereda por caminhos tortuosos inconscientes, resultando daí a sintomatologia que lhe acarreta uma carga ainda maior de sofrimentos (p.10). Tal sintoma está de acordo com o critério E que o DSM-IV-TR (2002), apresenta “O sintoma ou déficit causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo, ou indica avaliação médica” (p.480). Em outro momento do filme, Breuer estava hipnotizando Cecily para descobrir a causa de sua cegueira e Freud começou a questioná-la a respeito do que aconteceu na noite em que ela perdeu a visão. Aos poucos ela recorda-se do evento que a havia traumatizado, sendo este evento o fato de ela ter tido que reconhecer o corpo do pai que havia morrido em um bordel. Nesta cena do filme podemos identificar o critério B apresentado pelo DSM-IV-TR (APA, 2002), o qual aponta que “há fatores psicológicos associados com o sintoma ou déficit; este julgamento fundamenta-se na observação de que o início ou a exacerbação do sintoma ou déficit é precedido por conflitos ou outros estressores” (p. 475). O filme também retratou o momento em que Freud assistiu a uma aula de Charcot, na qual ele utilizava a hipnose em Servais e Janne, pacientes que apresentavam sintomas conversivos após traumas psicológicos, sendo que nesta aula Charcot conseguiu demonstrar aos seus alunos que apenas com o comando oral era possível eliminar os sintomas conversivos, deixando visível que a doença apresentada pelos pacientes não é de origem orgânica. Acerca do uso da hipnose em pacientes com 43 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. transtorno conversivo, Fernandez e Chaniaux (2010) afirmam que “tais sintomas podem, também, ser eliminados por meio de heterossugestão, inclusive hipnose” (p. 138-139). Nesta mesma cena, Charcot relatava aos seus alunos a causa dos sintomas de seus pacientes: Janne havia ficado paralitica após um acidente em uma ferrovia, no qual não teve ferimentos, já Servais havia desenvolvimento os tremores (paralisia agitans) após um raio atingir a cabana em que ele havia se escondido durante uma tempestade. Ambos não mantinham lembranças sobre tais acontecimentos. Torna-se evidente que os sintomas apresentados pelos pacientes são causados por um trauma, o que corresponde ao critério B presente no DSM-IV-TR (2002) que aponta para fatores psicológicos julgados como associados aos sintomas e que é reforçado também por Fernandez e Chaniaux (2010) ao afirmarem que “os sintomas conversivos aparecem de forma súbita, em geral após um evento de estresse” (p. 138). Sobre as formas como estes sintomas são apresentados pelos pacientes, Fernandez e Chaniaux (2010) declaram que “eles são exibidos pelos pacientes com grande dramaticidade e teatralidade, e, frequentemente, temos a impressão de que o paciente está fingindo, exagerando ou querendo chamar a atenção das outras pessoas” (p. 138). Outra característica importante do transtorno conversivo é La Belle Indifférence, sobre a qual Fernandez & Chaniaux (2010), afirmam que “representa uma atitude exatamente oposta aos comportamentos histriônicos que tais pacientes podem apresentar ante seus sintomas físicos” (p.138) Sobre esta indiferença apresentada pelos pacientes com este transtorno, Dalgalarrondo (2008) menciona que “Chama a atenção, nesses pacientes, o fato de, ao notarem seus distúrbios corporais aparentemente muito graves (paralisia, cegueira, anestesia, etc.), reagirem vivencialmente com indiferença exemplar” (p. 323). 44 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. Considerações finais Assim como vemos na literatura, o filme “Freud além da alma” também nos apresenta que o indivíduo com o transtorno conversivo manifesta déficit na função motora e/ou déficit na função sensorial, os quais podem incluir paralisia e a ocorrência de cegueira, bem como seus sintomas são derivados de algum fator psicológico, como um trauma, o que acarreta um significativo sofrimento. Tais limitações físicas que surgem por conta dos sintomas do transtorno, trazem prejuízos tanto no âmbito social quanto no ocupacional, pois o paciente encontra-se restringido a determinadas tarefas e atividades, mesmo não se tratando de uma doença orgânica e sim de fatores emocionais e psicológicos dos quais o individuo muitas vezes reluta em se dar conta. Além disso, tornou-se perceptível que o indivíduo sofre por conta de suas limitações que são acarretadas pelos sintomas, estes podendo ser através de paralisia, cegueira, surdez, etc. Mas apesar deste sofrimento por suas restrições, o indivíduo com transtorno conversivo não preocupa-se tanto com as implicações de seus sintomas, ou seja, não há uma preocupação com uma doença grave como no sujeito que sofre de hipocondria. Através da visualização do filme “Freud além da alma”, obtivemos a compreensão de que para diagnosticar um indivíduo com Transtorno Conversivo corretamente, é necessária uma avaliação cuidadosa e um trabalho em equipe, ou melhor, um auxílio interdisciplinar, já que os sintomas são observados em doenças neurológicas e fazem parte de critérios para se fechar um diagnóstico. Referências 45 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013 Recredenciamento Portaria MEC 347, de 05.04.2012 - D.O.U. 10.04.2012. American Psychiatric Association – APA – (2002). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV-TR (D. Batista, Trad.) (4 ed. ver.). Porto Alegre: Editora Artmed. (Trabalho original publicado em 2001). Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto Alegre: Artmed. Fernandez, J. L. & Chaniaux, E. (2010) Cinema e Loucura: conhecendo os transtornos mentais através dos filmes. Porto Alegre: Artmed. Hales. E. R., Yudosky. C.S, Gabbord.O.G. (2012). Tratado de Psiquiatria Clinica. 5ª ed. São Paulo: Artmed. Louzã Neto, M. R., Cordás, T. A.& Cols. (2011). Transtornos da Personalidade. Porto Alegre: Artmed. Silva. M. M. (2011). Quando o corpo fala: Um estudo sobre as principais queixas relatadas por pacientes e identificadas pelos profissionais da saúde como não possuindo uma causa orgânica aparente.Unisul -Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça. Macedo. M. M. K. (2005). Neuroses: Leituras psicanalíticas. 2ª ed. Porto Alegre: Pucrs. 46 Revista Saúde Mental em Foco do Cesuca, 2(1) , 37-46, 2013