“Crazy-paving” após polineurite Danielle Cristine Campos Bedin¹ Rimarcs Gomes Ferreira² Carlos AC Pereira³ 1- Residente de Pneumologia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP 2- Médico Patologista da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP 3- Coordenador programa de doenças pulmonares intersticiais-UNIFESP Relato de caso Paciente de 32 anos, feminino, branca, natural de Itabuna (Bahia), procedente de São Paulo, ensino fundamental completo, corretora de seguros, casada, evangélica. Queixa de dispneia progressiva (MRC 2 MRC 4) há 2 semanas associada à tosse produtiva, febre diária (38°C a 39°C). Relata que há 3 meses esteve internada em outro serviço (durante 3 meses) por paresia em mmii ascendente seguido de tetraplegia. No último mês da internação, após melhora neurológica completa, iniciou quadro de dispneia aos moderados esforços. Conforme resumo de alta, a hipótese diagnóstica foi Neuropatia periférica revertida e Fibrose pulmonar a esclarecer. Prescrito prednisona 40mg/dia e encaminhada ao pneumologista. Antecedentes pessoais: - Nega tabagismo - Nega doenças prévias - Nega exposições a pássaros, mofo e produtos químicos. Medicações em uso: Prednisona 40mg/dia há 2 meses. Exame físico Mau estado geral, corada, hidratada, dispneica, febril (38,1°C) IMC: 31,25 kg/m². FC: 120 bpm f: 32rpm PA: 110x70 mmHg SpO2: 91% (AA). Ausência de linfonodos palpáveis A.C.V.: ritmo cardíaco regular em dois tempos sem sopros, bulhas normofonéticas A.R.: MV+ bilateralmente com estertores grossos em bases e terço médio Abdome: sem alterações Extremidades: sem alterações Neurológico: G15, PIFR, sem déficits motores ou sensitivos Radiograma de tórax PA Gasometria arterial e pH pH 7,45; PaCO2 =25,3 mmHg; PaO2= 57,3 mmHg; HCO3= 17,5 mmol/L; BE=-5,1 mmol/L; SaO2 = 88% . Tomografia computadorizada de tórax Tomografia de Tórax: Linfonodomegalia mediastinal e hilar bilateral, medindo 3,0 x 1,5 cm na cadeia peritraqueal direita; áreas de atenuação em vidro fosco com espessamento interlobular e intralobular. 1. Quais doenças abaixo cursam com tomografia computadorizada de alta resolução com áreas com atenuação em vidro fosco e espessamento de septos? a) Proteinose alveolar b) Bronquiolite obliterante com pneumonia em organização c) Síndrome do desconforto respiratório agudo d) Infecção pulmonar e) Todas as afirmativas anteriores Opacidade em vidro fosco é um termo radiológico indicando área de opacidade pulmonar aumentada na qual vasos e estruturas pulmonares ainda podem ser vistos. Opacidades em vidro fosco estão associadas a distúrbios inflamatórios ou infiltrativos pulmonares. Histologicamente é observado preenchimento dos alvéolos com material amorfo, espessamento da parede alveolar e intersticial. A opacidade em vidro fosco pode ter o padrão irregular, resultando na atenuação em mosaico com espessamento linear, padrão tomográfico chamado de ““crazy-paving”” (pavimentação em mosaico). O componente linear do padrão ““crazy-paving”” pode ser dividido, conforme mostrado por W. Wever, e col.(2011) em: - Espessamento septal interlobular - Espessamento septal intralobular - Depósito linear de material nos ácinos Figura b: espessamento septo interlobular; c: espessamento septo intralobular; d: áreas irregulares de fibrose; e: padrão periacinar Figura retirada de Wever e col., European Society of Radiology, 2011. Inicialmente o padrão ““crazy-paving”” foi descrito como típico de proteinose alveolar. Entretanto, esse padrão é visto em outras doenças pulmonares agudas (edema pulmonar, infecção pulmonar, pneumonia intersticial aguda, síndrome do desconforto respiratório agudo) e crônicas (pneumonia intersticial usual, pneumonia intersticial não específica, pneumonia em organização, adenocarcinoma lepídico, proteinose alveolar, pneumonia lipídica, sarcoidose). O diagnóstico diferencial é feito com base nos aspectos clínicos e radiológicos, a minoria necessita de complementação diagnóstica com biópsia. Entre as causas agudas, a infecção pulmonar que mais cursa com essa alteração tomográfica é a infecção por Pneumocystis jiroveci. A TCAR (tomografia de tórax em alta resolução) mostra atenuação em vidro fosco associado a espessamento interlobular. Na síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), o radiograma de tórax mostra opacidade pulmonar bilateral e a na TCAR consolidação bilateral com áreas com atenuação em vidro fosco que pode progredir para distorção arquitetural, bronquiectasias e faveolamento. Achados histológicos incluem edema alveolar e perivascular. Entre as causas crônicas de padrão em ““crazy-paving”” estão pneumonia intersticial não específica em que 80% dos casos mostram alteração tomográfica com vidro fosco bilateral e simétrico; adenocarcinoma lepídico (chamado anteriormente de carcinoma bronquioloalveolar) tem imagem tomográfica com padrão de vidro fosco pela baixa densidade do material intraalveolar com imagem reticular sobreposta devido à infiltração intersticial de células inflamatórias e tumorais; a proteinose alveolar que pelo preenchimento alveolar por material proteico mostra tipicamente o padrão de ““crazy-paving”” na TCAR; a pneumonia lipídica, doença causada pela inalação de óleos, mostra áreas com padrão em ““crazy-paving”” e consolidações com áreas de hipoatenuação indicando presença de material lipídico; na sarcoidose, doença granulomatosa não caseosa, a alteração tomográfica mais comum é espessamento do feixe broncovascular e micronódulos mas pode estar entre as doenças que mostram vidro fosco com espessamento interlobular. Resposta correta: E Evolução Após admissão, por piora do quadro respiratório (Insuficiência respiratória) foi realizado intubação orotraqueal. As principais hipóteses diagnósticas foram sepse grave de foco pulmonar e iniciado antibioticoterapia de amplo espectro. Pela presença de padrão em ““crazypaving”” pensou-se em proteinose alveolar possivelmente secundária à doença linfoproliferatica devido à linfonodomegalia mediastinal. A paciente realizou broncoscopia com biópsia de lobo inferior direito e colhido lavado broncoalveolar. O anatomopatológico mostrou descamação alveolar multifocal com macrófagos vacuolizados e xantomatosos. O lavado broncoalveolar foi negativo para bactérias e fungos. Prosseguindo a investigação, foi realizado biópsia cirúrgica de linfonodos mediastinais (linfonodos da cadeia 3 e 4), pulmonar (segmentectomia em segmento inferior do lobo superior direito e lobo médio) e traqueostomia. Anatomopatológico - Linfonodos: hiperplasia reacional de padrão linfóide - Pulmonar: Anatomopatológico: Pneumonia lipídica 2. Quando à Pneumonia Lipídica, assinale a alternativa incorreta: a) É uma doença incomum, em geral de causa autoimune. b) A maioria dos pacientes é assintomática e dificilmente evolui para insuficiência respiratória aguda. c) Fatores predisponentes para essa doença são doenças neuromusculares, lactentes e idosos. d) Na tomografia de tórax os achados mais comuns são opacidades em mosaico com espessamento de septo interlobular, acometendo principalmente lobos inferiores e áreas de consolidações. e) O lavado broncoalveolar pode ter aspecto turvo, sendo diagnóstico diferencial a proteinose alveolar. Pneumonia lipídica é uma doença incomum resultante de acúmulo de óleo de origem vegetal, animal ou mineral. Sua incidência é desconhecida, em estudos de autópsias, varia de 1 a 2,5% (Baron, 2003). A doença é dividida em: - Exógena: forma mais comum da pneumonia lipídica, causada por inalação de óleos, sendo mais comum o óleo mineral usado para tratamento de constipação intestinal; causado também pela aspiração de substâncias usadas por “cuspidores de fogo”. É dividida em aspiração crônica ou aguda do óleo; - Endógena: também chamada de “pulmão de ouro” é causada pelo acúmulo de colesterol no pulmão devido degradação das próprias células pulmonares. Pode estar associada com pneumonia obstrutiva; A população de risco para desenvolver a doença são idosos acamados, pessoas com doenças neuromusculares associadas à disfagia e crianças (uso de grande quantidade de óleo mineral para tratamento de bolo de áscaris). A aspiração do óleo mineral normalmente não é percebida, pois sua consistência pode não provocar reflexo de tosse. A maioria dos casos de inalação de óleo mineral é assintomática, dificilmente cursam com insuficiência respiratória aguda. Quando há sintomas, em geral nos quadros de aspiração aguda do óleo, tosse e dispneia progressiva são os sintomas mais recorrentes, seguidos de dor torácica ventilatório dependente, hemoptise, febre e perda de peso. Estudos mostram que o diagnóstico de pneumonia lipídica é difícil e tardio, pois a exposição a óleos é frequentemente identificada somente após o diagnóstico ser feito por biópsia, quando a anamnese é feita de forma direcionada. O aspecto radiológico mais comum é área de vidro fosco com espessamento de septos interlobulares (““crazy-paving””), acometendo principalmente lobos inferiores, pode haver áreas com consolidação associadas à hipoatenuação do parênquima. O lavado broncoalveolar pode auxiliar no diagnóstico, tendo aparência macroscópica turva, espumosa. No entanto, esse achado é inespecífico sendo diagnóstico diferencial de proteinose alveolar. A citologia mostra macrófagos vacuolizados com material lipídico em seu interior. Presença de óleo extracelular e vacúolos dos macrófagos maiores auxiliam a diferenciar a forma exógena da endógena. Resposta: A Evolução Como na anamnese inicial não havia evidência de fator de risco para pneumonia lipídica, foi realizada nova anamnese na qual a paciente relatou que durante a internação no outro serviço para investigação de neuropatia, além de tetraplegia apresentou disfagia (apesar disso manteve dieta VO). Por quadro de constipação intestinal, foi prescrito óleo mineral. Após 1 mês de internação para investigação neurológica, evoluiu com dispnéia e queda da SpO2. Ficou internada na UTI por 1 mês devido ao quadro pulmonar, necessitou de oxigênio suplementar no período e recebeu alta hospitalar com diagnóstico de fibrose pulmonar a esclarecer. DIAGNÓSTICO Pneumonia lipídica exógena 3. Quanto ao tratamento da Pneumonia lipídica, assinale a alternativa incorreta: a) Deve ser diagnosticado o agente causador da pneumonia lipídica e suspenso seu uso. b) Pode cursar com complicações como superinfecções causadas por micobactérias atípicas e Nocardia. c) Após suspender o agente causador, deve ser iniciado córticoterapia 1mg/kg/dia. d) Retirada mecânica através de lavagem pulmonar, apesar de poucos estudos, pode ter benefício. e) Tratamento cirúrgico pode ser indicado para casos não responsivos ao tratamento medicamentoso Existem poucos estudos que definem o melhor tratamento para pneumonia lipídica, no entanto é sabido que a identificação e suspensão precoce do agente causador melhora o prognóstico da doença, além de prevenir o uso desses óleos em pacientes com risco de aspiração. Conforme estudo, a resolução das opacidades na radiografia de tórax pode variar de 2 semanas a 8 meses após suspender o agente causador. Em pacientes sintomáticos, deve ser dado também suporte ventilatório com oxigênio suplementar quando necessário. O uso de corticóides sistêmicos é controverso, devendo ser evitado. Alguns estudos mostraram benefício no uso de corticóide sistêmico em casos graves da doença, porém em pequeno número de casos. Há poucos estudos sobre remoção mecânica com lavagem pulmonar na pneumonia lipídica, a maioria relatos de caso. Alguns defendem que a lavagem deve ser feita em pacientes graves, em ventilação mecânica invasiva de difícil desmame, outros defendem o procedimento em pacientes com a forma grave da doença que desenvolvem infecções pulmonares de repetição. Sias e col. (2009) realizaram estudo com lavagem pulmonar através de broncoscopia em crianças com diagnóstico de pneumonia lipídica. Nesse estudo o tempo médio de início de tratamento para a doença, decorrente do uso de óleo mineral para oclusão intestinal por Ascaris lumbricoides, foi de 32 dias e houve benefício com a remoção mecânica. Há pouca evidência quanto o tratamento cirúrgico para casos de pneumonia lipídica, mas ressecção de parte do tecido pulmonar por ser indicado nos casos em que não houve resposta ao tratamento clínico (Marchiori, 2010). A presença de óleo mineral nos pulmões predispõe a infecções recorrentes principalmente bacterianas, e também à superinfecção por micobactérias atípicas e Nocardia. Aspiração repetida do óleo pode resultar em fibrose pulmonar, causando falência respiratória e ocasionalmente resultando em hipertensão pulmonar. Resposta: C Evolução Iniciado desmame do corticóide, progressão de desmame de oxigênio suplementar (nebulização) Traqueostomia ocluída e catéter 3 l/min. repouso catéter 1 L/min. repouso SpO2 95% sem oxigênio suplementar na alta hospitalar. 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