WITTGENSTEIN PSICÓLOGO?

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WITTGENSTEIN
PSICÓLOGO?
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
JOSELÍ BASTOS DA COSTA
Resumo: Wittgenstein critica a Psicologia de sua época,
particularmente o mentalismo formulado numa perspectiva
essencialista e o uso de uma linguagem fisicalista para descrever a vida mental. Wittgenstein acentua o caráter social
da significação das vivências subjetivas, enfatizando a compreensão da vida mental e da causalidade psíquica em função do contexto social e da cultura, influenciando a
renovação crítica da Psicologia.
Palavras-chave: Wittgenstein e Psicologia, linguagem e Psicologia, linguagem e construtivismo social
L
udwig Wittgenstein encerra suas Investigações Filosóficas – principal texto de sua filosofia madura e que
caracteriza o segundo Wittgenstein – com uma observação desencantada e irônica sobre a Psicologia, afirmando que
“Existem na Psicologia métodos experimentais e confusão
conceitual. (Como, noutro caso, confusão conceitual e métodos
de demonstração.)” (WITTGENSTEIN, 1979). Na verdade,
quase toda a sua obra está eivada de referências, sempre em tom
crítico, à Psicologia. Mas a que Psicologia, ou melhor dizendo,
a quais Psicologias ele se refere e por que as critica?
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A principal estratégia do homem para lidar com o mundo é
representá-lo por meio de um comportamento simbólico, a fala e
de seu produto, as expressões lingüísticas. Mas o que faz os homens entenderem-se sobre suas representações do mundo? Existiria nos homens algum aspecto subjetivo anterior à linguagem que
lhes permitiria validar o seu conhecimento do mundo ou este conhecimento resultaria de um acordo permanentemente renovado
entre eles quanto ao significado dos elementos usados para representar o mundo?
A própria questão, assim formulada, já traz em si as possibilidades de resposta. Numa perspectiva, o significado de uma palavra é dado a partir de elementos concretos ou abstratos exteriores
à linguagem, pertinentes ao mundo físico ou mental. As palavras
são então entendidas como definidas a partir de elementos que
existem independentemente da existência de expressões lingüísticas que os identifiquem. O significado é dado mediante o estabelecimento de uma relação entre a palavra e um objeto ou
fenômeno qualquer, e a palavra seria uma “representação” desse
objeto ou fenômeno. Já numa outra perspectiva, não é possível
entender palavras a partir de sua relação com coisas e fenômenos
do mundo físico ou mental, uma vez que as palavras só podem ser
definidas em seu significado pela maneira como se faz uso delas,
pelo modo como uma determinada comunidade lingüística as usa.
Ludwig Wittgenstein, em contraposição a seu Tractatus
Logico-philosophicus, que de certo modo se situava na primeira
posição, diz em suas Investigações Filosóficas que o significado
de uma expressão lingüística não decorre de sua vinculação a um
objeto e sim do seu uso específico por uma comunidade lingüística. Para ele, “… a significação de uma palavra é o seu uso na
linguagem”1. A linguagem é por ele concebida como uma instituição, um produto social2.
O texto Investigações Filosóficas é na realidade, em grande
parte, dedicado ao combate à compreensão da linguagem em termos nominativos e de correspondência entre palavra e mundo. A
linguagem é nele concebida como um “jogo”, com suas regras e
fins evidentes nas combinações e efeitos das palavras. A atividade
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
Comecemos pela Segunda Questão para Depois Passar
à Primeira
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lingüística é apenas um tipo de atividade humana, relacionada com
os outros tipos de atividades, num contexto determinado, sob certas
condições físicas específicas e exercido em função das necessidades humanas. O problema do significado das palavras é, então,
expresso em termos de sua adequação como resposta num sistema
de respostas integradas e em termos de suas funções na vida humana (POLE, 1966).
Para analisar o modo como a linguagem funciona e seus significados, Wittgenstein desenvolveu o conceito de “jogos de linguagem”, que é definido pelos modos de uso das palavras; ele faz
uso de exemplos simplificados de “jogos de linguagem”, mas estes
jogos podem ser complexificados indefinidamente pela anexação
de outros elementos3. Este conceito é aplicado a todo conjunto
integrado de usos de elementos lingüísticos que forme um complexo dentro do corpo de uma linguagem natural. Decorre daí que
cada uso específico das palavras consiste num jogo de linguagem
específico, e, desse modo, uma linguagem, natural não é mais que
um nexo de “jogos de linguagem”. Fora dos jogos de linguagem
as palavras não podem possuir significado (POLE, 1966).
É neste sentido que o uso de uma palavra define o seu significado. Enquanto articulação de jogos, a linguagem só pode ser
entendida como conjunto de regras estipuladas por convenções de
uso que definem, delimitam e integram os seus diversos elementos lingüísticos. Mas o uso a que Wittgenstein se refere não é o
“uso fáctico” da palavra e, sim, o seu “uso correto”, entendido como
a concordância com as regras de uso da palavra estabelecidas e
praticadas por uma comunidade lingüística4. Uma palavra pode
ser usada, de fato, de diversas maneiras incompatíveis mas apenas o seu uso correto, quando se cumprem certas condições determinadas, relativas à sua aplicação a uma ou outra situação de uso
e a um ou outro objeto, é que permite uma delimitação adequada
de seu significado.
A adequação da palavra a essas condições implica na observância de uma série de elementos que delimitam o uso significativo da palavra, quais sejam gestos, expressões faciais, ou mesmo
circunstâncias de uso estabelecidas pela comunidade lingüística e
adquiridas através do treino e da experiência, enfim, toda a lógica
do modo como as palavras são usadas pela comunidade lingüística. Wittgenstein chama a essa lógica de “ palavras, expressão que
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se refere aos conjuntos de regras extralingüísticas, regras de uso
da linguagem para propósitos não-lingüísticos, vinculados às necessidades e à vida humana e expressas nos jogos de linguagem.
Para ele é essa “gramática” das palavras que explicita a ligação
entre linguagem e realidade (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).
Wittgenstein admite um vínculo associativo entre a palavra
e o objeto, dado no momento da ostensão enquanto técnica de
ensino da linguagem5 mas recusa o conceito de “definição ostensiva” (entendido como uma conexão conceitual entre significado e objeto) e prefere o de “ensino ostensivo”6 (entendido como
uma conexão conceitual entre significado e uso). As ligações
entre a linguagem e o mundo são assim constituídas num contexto de uso convencionado da palavra por parte de uma comunidade lingüística7, com ênfase na sua “gramática”, expressa
através dos “jogos de linguagem” os quais são adquiridos em
função do treinamento8.
A questão que se coloca então é a rejeição de uma correspondência perfeita entre palavra e pensamento, entre signos e imagens
mentais, entre linguagem e significados mentais. É nesse sentido
que Wittgenstein propõe substituir a pergunta “o que é o significado de uma palavra?” pela pergunta “o que é a explicação do significado de uma palavra?”, uma vez que assim se remete não à procura
de um objeto ou imagem mental a ela correspondente mas sim às
regras que regulam o uso dessa palavra (WITTGENSTEIN, 1958).
Uma das conseqüências que se pode derivar das idéias de
Wittgenstein sobre a linguagem é a impossibilidade do uso de
expressões lingüísticas para representar experiências privadas e
vivências subjetivas. Não se pode supor uma linguagem “privada”, uma vez que linguagem é, por definição, um fenômeno de
natureza “pública”. Do modo como ele o entende – o uso da comunidade lingüística – não se pode falar de um “uso correto” das
palavras de uma linguagem “privada” e, conseqüentemente, uma
linguagem privada não poderia ser chamada de linguagem.
Ora, o que é isso se não uma dura e radical crítica ao conceito
de mente e ao mentalismo enquanto formulados numa perspectiva
essencialista? Uma crítica à própria possibilidade de uma ciência
da mente e da vida mental, uma Psicologia, como entendida à sua
época, uma ciência à procura das leis causais dos comportamentos
e sentimentos do homem nos processos e conteúdos da mente?
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
Entretanto essa postura crítica de Wittgenstein em relação ao
mentalismo não pode ser entendida como uma concordância com
a posição que, no âmbito da Psicologia de sua época, se propunha
antagonista das posições mentalistas, fenomenológicas e
essencialistas, o behaviorismo, particularmente a vertente do
behaviorismo lógico.
O problema tratado por Wittgenstein em seus argumentos
sobre a linguagem privada não é, em absoluto, a existência da mente
ou das vivências interiores; ele não nega, em absoluto, a existência de dados sensíveis e experiências interiores nem nega o caráter privado dessas experiências e dados. Ele nega, sim, a
possibilidade de uso de uma linguagem privada através da qual se
possa fazer referência a vivências interiores e a dados sensíveis.
Wittgenstein não nega em seu argumento sobre a linguagem privada a existência da mente ou de fenômenos mentais, muito menos a possibilidade de uma linguagem que os descreva; sua
preocupação é, a partir da negação da possibilidade lógica de uma
linguagem fenomenológica, afirmar a impossibilidade de falar
dessas vivências e da mente usando uma linguagem fisicalista. Sua
filosofia da linguagem não pode pois, em absoluto, ser considerada behaviorista (ZILHÃO, 1993; HINTIKKA, HINTIKKA, 1994).
Ao tratar desse problema, Wittgenstein afirma o uso social
como possibilidade de significação no uso de uma linguagem que
descreva sensações ou vivências internas. Ele critica o modelo
“objeto x designação” que pressupõe a representação direta de
um elemento mental por um nome; para ele as relações entre a
vida mental e uma linguagem que a represente são mediadas por
jogos de linguagem, o que lhes dá um caráter público e não privado (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994). Wittgenstein não nega a
existência das vivências privadas, mas acentua o caráter
interpessoal da significação dessas vivências; o significado de
uma linguagem das sensações é construído através de um esquema interpessoal9.
O que Wittgenstein discute na verdade é a necessidade de um
jogo de linguagem público para que se possa falar de sensações e
de vida mental, o qual se constitui com base nas deduções de uma
lógica explicitada nas manifestações comportamentais e evidências externas dessas experiências e vida mental. As manifestações
públicas das vivências privadas, na medida em que compõem jogos
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Notas
1
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2
Wittgestein (1979), I, seção 43.
Wittgestein (1979), I, seções 199, 202.
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
de linguagem, permitem, por sua natureza social, significar essas
vivências10 (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).
Mas a natureza pública de uma linguagem que expresse as
experiências internas e a vida mental não implica na impossibilidade da natureza privada dessa vida mental, do mesmo modo que
a necessidade de um esquema público para significar as sensações
e vivências internas não implica na necessidade de que estas sensações e vivências sejam públicas e não privadas (HINTIKKA;
HINTIKKA, 1994). Sendo assim, as relações entre as vivências
privadas e suas manifestações públicas não são contingentes e sim
lógicas, e a discussão da linguagem privada é uma discussão semântica e não epistemológica (HINTIKKA; HINTIKKA, 1994).
Do mesmo modo que critica uma linguagem fenomenológica,
Wittgenstein também critica o uso de uma linguagem fisicalista para
descrever a vida mental, principal característica do behaviorismo
lógico (ZILHÃO, 1993). Para ele, o behaviorismo lógico, do mesmo modo que o mentalismo, não passa de confusão conceitual.
Entretanto, sua postura em relação às principais correntes da
psicologia de sua época foi não apenas crítica mas principalmente
inovadora. Ao desenvolver o argumento do fundamento público da
linguagem e da sua dependência social, abriu as portas para uma
nova compreensão da vida mental e da causalidade psíquica, remetendo-as ao contexto social e à cultura. Seu pensamento influenciou
a renovação crítica nas teorizações das vertentes cognitivistas da
Psicologia, o redirecionamento conceitual na abordagem
behaviorista, que hoje é majoritáriamente cognitivista, tendo abandonado por completo os postulados do behaviorismo lógico; influenciou, principalmente, o surgimento de novas abordagens teóricas
centradas no valor explicativo do contexto social e da cultura para
o comportamento dos indivíduos, como é o caso do construtivismo
social (WILLIAMS, 1985; SCHATZKI, 1993; HOWIE, PETERS,
1996; VAN DER MERWE, VOESTERMANS, 1995).
Poder-se-ia então afirmar que, mesmo que para seu aparente
desgosto, Wittgenstein é um dos fundadores da Psicologia contemporânea.
3
Wittgestein (1979), I, seções 2, 8.
Wittgestein (1979), I, seção 258.
5
Wittgestein (1979), I, seção 6.
6
Wittgestein (1979), I, seções 15, 26.
7
Wittgestein (1979), I, seção 37.
8
Wittgestein (1979), I, seções 197 a 199.
9
Wittgestein (1979), I, seção 244.
10
Wittgestein (1979), I, seção 244.
4
Referências
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni.
12. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores). Parte II, seção XIV.
POLE, D. La ultima filosofia de Wittgenstein. In: FERRATER MORA, J. et al.
Las filosofias de Wittgenstein. Barcelona: Oikos-Tau, 1966. p. 99-198.
HINTIKKA, M. B.; HINTIKKA, J. Uma investigação sobre Wittgenstein.
Campinas: Papirus, 1994.
WITTGENSTEIN, L. The blue and brown books, Oxford: Basil Blackwell,
1958.
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
ZILHÃO, A. Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem. Lisboa: Colibri,
1993.
WILLIAMS, M. Wittgenstein’s Rejection of Scientific Psychology. Journal
for the Theory of Social Behavior, v. 15, n. 2, p. 203-223, 1985.
SCHATZKI, T. R. Wittgenstein: Mind, Body, and Society. Journal for the
Theory of Social Behavior, v. 23, n. 3, p. 285-313, 1993.
HOWIE, D.; PETERS, M. Positioning Theory: Vygotsky, Wittgenstein and
Social Constructionist Psychology. Journal for the Theory of Social Behavior,
v. 26, n. 1, p. 51-64, 1996.
VAN DER MERWE, W. L.; VOESTERMANS, P. P. Wittgenstein’s Legacy
and the Challenge to Psychology. Theory & Psychology, v. 5, n. 1, p. 27-48,
1995.
Abstract: Wittgenstein criticizes Psychology of his time,
specially mentalism as an essentialist perspective and the use
of fisicalist language to describe mental life. He accentuates
social character of subjective experiences emphasizing the
comprehension of mental life and psychological causality like
a result of social context and culture, influencing the critical
renovation of Psychology.
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JOSELÍ BASTOS DA COSTA
Doutor em Psicologia Social. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFPB.
estudos, Goiânia, v. 35, n. 5, p. 817-824, set./out. 2008.
Key words: Wittgenstein and Psychology, language and
Psychology, language and social constructionist psychology
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