MAIS ALÉM DO II PND O INSTITUTO DE ECONOMIA DA UFRJ# Carlos Lessa* Fabio Sá Earp** A BUROCRACIA DESENVOLVIMENTISTA E OS DESDOBRAMENTOS DA ESTRATÉGIA DE INDUSTRIALIZAÇÃO AUTORITÁRIA No início da década de 70 o Brasil andava na contramão da economia internacional. Enquanto aqui se vivia na euforia das maiores taxas de crescimento da história combinadas com uma inflação aceitável, na faixa dos 20% anuais, o resto do mundo chapinhava na crise do sistema de Bretton Woods, com a transição para um sistema de câmbio flexível cujos desdobramentos eram imprevisíveis. A turbulência internacional só começou a ser sentida nestas plagas quando se refletiu no brutal aumento do preço do petróleo. A crise de 1973 teve alguns elementos de originalidade. Primeiro, a potência hegemônica estava perdendo competitividade para seus próprios aliados; segundo, a elevação do preço do petróleo foi acompanhada pelos aumentos de preços de todas as matérias primas, o que gerou inéditos excedentes financeiros em mão de países periféricos. A escassez de projetos nesta periferia fez com que a maior parte destes excedentes fosse aplicada no sistema financeiro privado internacional, que entrou em uma conjuntura expansiva. O Brasil não teve dificuldade para implantar os projetos necessários à sustentação do crescimento da economia às custas de uma intensificação do endividamento, ainda que com as taxas de risco (spreads) elevadas e taxas de juros flutuantes, corrigidas semestralmente – o que então não era considerado um problema. Nestas condições foi possível ao governo brasileiro recusar um ajuste ortodoxo e acelerar para um ambicioso programa de industrialização. O II PND propunha a # Este trabalho foi escrito em 2004 e publicado em 2007 em Tamás Szmrecsányi e Francisco S. Coelho (orgs.), Ensaios de história econômica do Brasil contemporâneo. São Paulo: Atlas. * Professor Titular do Instituto de Economia da UFRJ, Decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da UFRJ. ** Professor Adjunto do Instituto de Economia da UFRJ. 1 internalização dos ramos industriais produtores de bens intermediários e de capital típicos da Segunda Revolução Industrial, em alguns ramos a aproximação da fronteira tecnológica e um ambicioso aumento das exportações. 1 O plano foi o produto de uma elite burocrática que via a autonomia industrial como o pré-requisito para a soberania nacional. Tal burocracia esclarecida tinha sido influenciada pela vasta literatura de Economia do Desenvolvimento (ainda que eventualmente viesse a perseguir seus autores, por razões políticas) e pretendia retirar o Brasil do rol dos subdesenvolvidos para integrá-lo ao seleto clube das potências. Este parecia ser um sonho possível para um país que recentemente ostentara as maiores taxas de crescimento do mundo – o autobatizado “milagre” - e que atingira o posto de oitava maior economia mundial.2 Este segmento burocrático desenvolvimentista tinha como coordenador o próprio Presidente da República, o general Geisel (quadro formado no Conselho Nacional do Petróleo durante o governo Vargas), e como mentores e executores os ministros Reis Velloso e Severo Gomes. Governos necessitam de think tanks, organizações independentes engajadas em pesquisa multidisciplinar que buscam lastrear as políticas públicas e que estão fora do alcance da competência da burocracia. Um think tank realiza pesquisas distintas das acadêmicas por sua preocupação em atender demandas do governo, funcionando como um espaço intermediário entre acadêmicos e policy-makers.3 Este tipo de organismo não era novidade no Brasil. Já nos anos 30 tivera início a realização de estudos sistemáticos para dar suporte ao desenho de planos setoriais (aço, automobilística, etc.) e projetos públicos (CSN, Cia. Hidroelétrica de S. Francisco, etc.). Durante o Estado Novo o Conselho Técnico de Economia e Finanças e o Conselho Federal de Comércio Exterior nuclearam grupos interdisciplinares com aquela finalidade. Após a II Guerra Mundial houve uma multiplicação de equipes. Surgiram órgãos estaduais de planejamento a partir da iniciativa pioneira da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia. A Constituição de 1946 deu origem a duas importantes agências 1 Para uma avaliação do II PND ver Lessa (1988). Os economistas em muito contribuíram para incorporar as mensurações internacionais de performance econômica em um mundo de sonho, onde se compara PIBs, taxas de crescimento e taxas de inflação de diferentes países como se tais índices representassem fenômenos da mesma natureza, ignorando as diferenças entre distintos vetores de preços relativos e as dificuldades metodológicas para compatibilizálos. 3 Loureiro (1997a:203-4) . 2 2 de desenvolvimento regional: a Comissão do Vale do S. Francisco e a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia. No início dos 50 a Assessoria Econômica do segundo governo Vargas realizou a revisão do Plano Rodoviário Nacional, do programa de eletrificação e equacionou a questão do petróleo. A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos estimulou a elaboração de projetos de infra-estrutura e foi semente do futuro BNDE, que nasceu com grupos setoriais voltados para os setores de infra-estrutura e de indústria pesada. Para o aperfeiçoamento dessas equipes atuaram, entre outros, os cursos do Conselho Nacional de Economia e do Centro de Desenvolvimento Econômico CEPAL-BNDE. No final dos anos 50 o êxito do Plano de Metas e dos Grupos Executivos e Conselho de Desenvolvimento havia inspirado em praticamente todos os níveis da hierarquia pública a organização de grupos de pesquisa e planejamento para a tomada de decisão. Em 1964 parte destes organismos foi desestruturada ou reorganizada, sendo seu espaço ocupado pela FGV, pelo IPEA, pelo IPE/USP e instituições estaduais - como a Fundação João Pinheiro. A Fundação Getúlio Vargas foi criada nos anos 40, no Rio de Janeiro, por inspiração do DASP, para formar os quadros necessários à modernização administrativa do aparelho de Estado. Mas logo as pesquisas de indicadores de preços e desempenho econômico tornaram-se o carro-chefe da casa; Eugenio Gudin e Otavio Gouveia de Bulhões trouxeram seu prestígio pessoal a FGV, que passou a congregar boa parte dos profissionais de economia do país. Suas pesquisas foram irrigadas por financiamentos de organismos como a Fundação Rockfeller e o Ministério da Agricultura dos EUA. Suas publicações ocuparam desde logo posição de destaque, principalmente Conjuntura Econômica e a Revista Brasileira de Economia. Após 1964, na gestão Campos-Bulhões, este centro de pesquisa foi o laboratório onde foi gestada a política de ajuste macroeconômico. Após um relativo afastamento do centro decisório pelo Delfinato, nos governos Costa e Silva e Médici, a FGV voltou ao centro da gestão monetária no Governo Geisel, em função da presença de Mario Henrique Simonsen no ministério. O IPEA foi fundado em 1964 no âmbito do Ministério do Planejamento para realizar os estudos que embasassem as atividades de planejamento econômico e social (que na época não era ainda classificado entre os pecados mortais). Uma das características que o diferenciava da maioria dos órgãos anteriores era o fato de remunerar convenientemente sua equipe e de ter mais ancorada a idéia de planejamento, 3 além de contar com recursos suficientes para fazer pesquisas e difundí-las, através de seus relatórios, livros e revistas, sobretudo a Pesquisa e Planejamento Econômico. Além disso, enviou diversos técnicos para cursos de doutorado no exterior, os quais se vieram a perfilar-se entre os economistas mais conhecidos do país. O IPEA não se limitou a atender demandas diretas do governo, tendo igualmente promovido um salto qualitativo na pesquisa em estudos setoriais e em história econômica através de levantamentos estatísticos que aperfeiçoaram a informação sobre a economia brasileira. Em paralelo às atividades de pesquisa também formou técnicos em planejamento, através do CENDEC – que reproduziu os padrões do Centro de Desenvolvimento CEPAL-BNDE - e teve papel decisivo sobre o ensino de pós-graduação, através do financiamento das atividades da ANPEC. O IPE-USP foi fundado em 1964 com recursos da USAID, da Fundação Ford e da Aliança para o Progresso. Igualmente recebeu recursos do BID para promover cursos de especialização destinados a formar pessoal para os bancos de desenvolvimento que se haviam multiplicado na esfera estadual. O prestígio da casa aumentou fortemente a partir das gestões de Delfim Netto à frente de secretarias estaduais e ministérios, quando seus professores foram guindados a alguns dos mais importantes cargos públicos. A produção de indicadores econômicos sempre permitiu sua exposição à mídia, e as publicações de caráter acadêmico se difundiam através da revista Estudos Econômicos. O IPEA, a FGV e o IPE não estavam capacitados para estudar as especificidades da estrutura industrial e tecnológica que estava sendo implantada pelo II PND. Em particular não acompanhavam a política de informática, considerada decisiva para o encaminhamento do país rumo à geração de tecnologia de ponta. Este era um universo desconhecido, que se manifestava através de vagas bandeiras, como “autonomia tecnológica”, que ninguém sabia precisamente como poderiam ser transformadas em realidade via política científica e tecnológica, cujos objetivos, linhas de atuação e instrumentos necessitavam ser delineados e avaliados. Havia, portanto, todo um campo de conhecimento a ser desbravado e nenhuma instituição capacitada ou interessada em fazê-lo. O organismo que começou a desempenhar este papel foi a FINEP; porém este não era um centro de pesquisas, mas o órgão encarregado de financiar estudos ligados à modernização tecnológica do país. Tinha uma burocracia com características de 4 excelência, em parte treinada em cursos de pós-graduação no exterior, além de articulada ao corpo técnico do IPEA. Nos anos 70 suas necessidades de pesquisa nos campos de economia industrial e da tecnologia eram atendidas por equipes complementadas por pesquisadores recrutados nas universidades. A FINEP compreendeu as limitações deste tipo de arranjo e forneceu a inspiração, os recursos e alguns de seus quadros para a criação de um centro de ensino de pós-graduação e pesquisa em economia na UFRJ. Este não foi um projeto meramente burocrático; a articulação com a universidade passou pela incorporação de uma série de variáveis especificamente acadêmicas e foi preservada sua autonomia em relação ao cotidiano político dos policy-makers. A década de 70 assistiu a uma expansão do ensino superior nas maiores economias do mundo. Nos Estados Unidos aumentaram o número e a variedade de cursos, tanto públicos quanto particulares. Na Europa, expandiu-se quase que exclusivamente a universidade pública. No Brasil a oferta de cursos e vagas em estabelecimentos privados conheceu um boom (raramente acompanhado pela qualidade do ensino), em paralelo a um crescimento menos intenso da rede pública estadual e federal. A expansão do ensino de graduação gerou uma relativa desvalorização destes diplomas e o aumento da demanda pela pós-graduação. Os cursos de mestrado e doutorado têm custos tradicionalmente elevados, o que no Brasil levou à sua concentração em universidades públicas, geralmente articulados a centros de pesquisa. Estes centros tinham distintos graus de articulação com o poder político e uma carência de quadros qualificados. A partir de 1964 esta situação agravouse quando parte dos pesquisadores de ponta do país partiu para o exílio. O regime militar cuidou de substituí-los por jovens formados em mestrados e doutorados nos Estados Unidos e na Europa, financiados pela CAPES e pelo CNPq – em número reduzido para as necessidades do país, mas muito elevado diante do padrão anterior. Quando os exilados foram reincorporados pela “abertura lenta e gradual” promovida por Geisel a pesquisa e o ensino de pós-graduação já tinham sido fortemente alterados pela incorporação de novas idéias e novos padrões de trabalho, implantados pelas levas crescentes de novos mestres e doutores vindos do exterior. O ensino de pós-graduação e a pesquisa estão sempre articulados. Um centro de pesquisa pode não ter um curso formal, mas o contato entre pesquisadores de diferentes gerações funciona como um sistema informal de transmissão intergeracional de 5 conhecimento. De maneira similar, dificilmente um centro de ensino deixará de utilizar seus recursos humanos para desenvolver algum tipo de pesquisa. Assim, parece-nos razoável associar estas duas atividades na análise de cada centro. Ambas foram beneficiadas pelo aumento das verbas para financiamento institucional verificadas ao longo do regime militar. As instituições foram apoiadas em bloco e autonomamente decidiam seu programa de ensino e pesquisa. Os centros de pós-graduação e pesquisa (doravante denominados CPGP) tinham graus distintos de articulação com o governo. Talvez se possa dizer que a tolerância para com dissidentes políticos variava na razão inversa da proximidade com o governo federal. Muitos dos pesquisadores dos CPGP, sobretudos aqueles mais distantes do poder, vincularam-se politicamente à grande frente de oposição articulada em torno do MDB e, a partir do final dos 70, ao PT. Esta frente teve como principais bandeiras a luta pela democratização e pela distribuição da renda. Este cenário acabou levando os economistas ao centro do debate político, o que fizeram para lá transplantando as suas próprias divergências disciplinares. A CONTROVÉRSIA NO MUNDO DOS ECONOMISTAS Os economistas sempre estão de alguma forma ligados aos detentores do poder político ou àqueles que pretendem conquistá-lo. São os mais importantes dos conselheiros do Príncipe neste final de século.4 Sendo simultaneamente ligados à universidade, fazem com que o debate econômico tenha sempre uma dupla face. De um lado, há uma controvérsia estritamente acadêmica, cuja compreensão é restrita àqueles que dominam os códigos e corpos teóricos especializados. De outro, participam do debate político mais geral, articulado aos diversos grupos de interesses, desempenhando o papel de falar, como peritos, em nome da Ciência para legitimar as propostas de seus aliados e deslegitimar aquelas de seus adversários. A história da República foi temperada por debates políticos acerca de temas econômicos que opunham papelistas e metalistas, industrialistas e agraristas, desenvolvimentistas e monetaristas. O saber econômico divide-se em diversas escolas de pensamento que vivem em permanente tensão. O sucesso de cada escola depende da vitória em uma série de debates que lhe permitem arregimentar adeptos, travados tanto no interior tanto no 4 Este tema está desenvolvido em Lessa (2000). 6 interior da tribo de especialistas quanto entre estes e seus aliados leigos. Como um dos autores desenvolveu em outros trabalhos,5 os diferentes graus de especialização entre os participantes destes debates fazem com que as idéias sejam apresentadas em quatro versões com distintos graus de complexidade. A primeira versão, que chamaremos V1, trata dos fundamentos da doutrina e constitui seu hard core; é um construto hermético, acessível apenas àqueles que dedicaram longos anos ao estudo. A segunda versão, V2, trata das mesmas questões com mais simplicidade, examinado menos variáveis e sendo acessível a qualquer profissional que tenha passado com sucesso pelo treinamentopadrão. Esta é, portanto, a língua franca da profissão, só podendo ser chamado de economista quem dela entenda e nela seja capaz de se expressar. A terceira versão, V3, é a propedêutica, ainda mais simplificada e apresentada com graus progressivos de complexidade aos estudantes; seu meio de expressão por excelência são os manuais universitários e o sucesso no aprendizado conduz ao domínio da V2. Finalmente temos a versão massificada, que expõe os problemas na forma hiper-simplificada destinada à compreensão do grande público, a V4; esta é a que se envolve nos debates políticos de cada momento. É característico de dois séculos de pensamento debruçado sobre o econômico que nenhuma das escolas derrote as adversárias de forma inequívoca e definitiva – ao contrário, o debate entre os grandes vetores é continuamente realimentado. Os centros acadêmicos ou se filiam institucionalmente a uma destas perspectivas ou são ecléticos e internalizam uma visão ecumênica das controvérsias. Um profissional depois que domina a V2 dificilmente se dispõe a enfrentar o longo período de estudo necessário à compreensão de outra linha de pensamento. Mesmo os acadêmicos, que dispõem de tempo e recursos para dedicar ao estudo da V1, nos momentos em que se sentem insatisfeitos com as deficiências da escola de pensamento em que foram treinados, costumam encontrar tamanhas falhas nas linhas teóricas alternativas que acabam por preferir manter-se fiéis àquelas já conhecidas. Desta forma o engajamento teórico do economista é normalmente decidido nos bancos escolares e nos primeiros anos do exercício da profissão. O aparecimento de novas idéias raramente lança raízes na geração já formada, encontrando a maior parte de sua audiência nos estudantes. Justamente por isto é tão importante para uma escola de 5 Sá Earp (1996, 2000). 7 pensamento econômico controlar uma instituição de ensino e pesquisa, bem como os meios de divulgação de seus trabalhos. Tudo isto implica na permanente luta por recursos que no Brasil – como na Europa – vêm quase que exclusivamente do poder público. Uma escola de pensamento depende crucialmente de suas alianças com a burocracia capaz de alocar recursos. A burocracia também depende dos acadêmicos para o detalhamento de estudos e para a formação de novos quadros que garantam a manutenção dos projetos atuais, evitando soluções de continuidade. Mais ainda, precisa do apoio legitimador da universidade, pois a aura da Ciência ainda tem algum grau de sacralidade para os leigos – e no caso da economia, antes da coleção de fracassos de política econômica dos perdidos anos 80 e dos ordaliosos 90, esta aura era das mais respeitáveis. Até a década de 60 eram tênues e não sistemáticas as relações entre a burocracia de elite e o sistema de ensino de economia. A atividade acadêmica reduzia-se aos cursos de graduação, criados a partir de meados dos anos 40 na Universidade do Brasil (mais tarde UFRJ) e na USP. Na primeira avaliação do ensino de economia no país, feita na Conferência de Itaipava, em 1966, por representantes das principais instituições de ensino da disciplina,6 os resultados não foram animadores. Verificou-se que o ensino na maioria dos cursos era de baixíssimo nível e os melhores profissionais eram formados em universidades no exterior ou nas “escolas práticas” onde se concentrava a elite intelectual da burocracia - SUMOC, BNDE e umas poucas mais. Concluiu-se também que era indispensável criar centros de excelência capazes de fornecerem a professores e pesquisadores uma formação qualitativamente diferente. Em um primeiro momento a ênfase foi concedida aos cursos de mestrado, ficando o doutorado para ser feito no exterior.7 Os dois primeiros centros de pós-graduação foram a Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV-RJ e o curso de mestrado em economia do IPE-USP, criados em meados dos anos 60. Neles foram concentrados recursos externos, oriundos sobretudo da AID e da Fundação Ford, ao mesmo tempo em que foram assinados acordos bilaterais com universidades norte-americanas para a vinda de professores visitantes e o envio de 6 Entre outros lá estiveram presentes Antonio Delfim Netto, João Paulo dos Reis Velloso, Julien Chacel, Isaac Kerstenetzky, Maria da Conceição Tavares e Mario Henrique Simonsen. Ver Bianchi (1997). 7 Com o tempo o elevado custo do doutorado externo estes cursos passaram a ser internalizados – e, por vezes, complementado com uma “bolsa sanduíche”. 8 estudantes para cursos de doutorado. E foi fundada a ANPEC, associação de CPGPs em economia que se propunha a criar padrões de excelência de ensino que iam da estrutura curricular à seleção unificada de candidatos. A EPGE e o IPE foram os primeiros cursos de pós-graduação, aproveitando o apoio do governo federal e de organismos internacionais. Mas não foram os únicos; faltava um espaço para os economistas da longa tradição da economia política. O principal ponto de concentração para estes personagens foi o Departamento de Economia da UNICAMP; para onde confluíram muitos dos economistas do desenvolvimento ligados à CEPAL, naquele momento entregues à tarefa de tentar repensar as bases teóricas para uma economia política do desenvolvimento brasileiro. A presença do MDB no governo do estado de São Paulo proporcionou as bases políticas que garantiram a ampliação do financiamento ao novo CPGP. A UNICAMP apresentou-se como escola de pensamento capaz de contestar a todos os níveis as propostas oriundas da FGV, tornando-se o centro de uma elite intelectual alternativa. O cerne do debate teórico hard, ao nível V1, gira em torno da aplicabilidade do modelo de equilíbrio geral tal como formulado por Kenneth Arrow e Gérard Debreu no inicio dos anos 50 (voltaremos ao ponto). A postura da UNICAMP consistiu na busca de um paradigma alternativo, fruto de um mélange entre o keynesianismo, a economia do desenvolvimento e as diversas correntes de crítica da economia política. Mas o centro dos esforços jamais foi este debate estratosférico e sim o nível V2, de aplicação dos mais variados elementos teóricos à história para forjar uma nova análise dos rumos do desenvolvimento brasileiro. Apresentar um caminho para o Brasil em meio à crise era o objetivo central dos campineiros; daí sua escolha pela pesquisa na macroeconomia e na economia política, bem como sua forte ligação com os partidos de oposição. Ainda que não tendo desenvolvido o material didático voltado para a formação de estudantes, ao nível V3, a UNICAMP foi competente ao apresentar à mídia uma estratégia compreensível para o grande público, a versão V4, articulada ao movimento pela redemocratização. A expressão deste pensamento crítico em terras fluminenses fez-se inicialmente através do Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro. Mas ao IERJ faltavam o ensino e a pesquisa, restando o púlpito para propagar sua V4; o IERJ não tinha produção intelectual nem formava quadros. A contestação foi recebida diferentemente pela USP e pela FGV. A USP 9 simplesmente absorveu mais uma corrente, como é freqüente nas grandes escolas de formação eclética. Ao contrário a FGV, pequena escola com pensamento monolítico, partiu para o combate e tentou impedir a participação do curso de pós-graduação da UNICAMP na ANPEC. Foi derrotada, em boa parte pelo peso político da USP, e durante alguns anos manteve-se afastada da ANPEC.8 No final dos anos 70 havia no seio da burocracia esclarecida a consciência de que todos os momentos do desenvolvimento brasileiro giravam em torno do processo de industrialização, e que no estágio então vivido pelo Brasil era vital tentar ao menos compreender e se possível acompanhar a especificidade dos processos industriais bem sucedidos e a revolução tecnológica já iniciada. Seria, assim, preciso trabalhar na fronteira entre a micro e a macro, repensando os paradigmas existentes e avaliando em cada caso histórico as diversas perguntas e respostas para aplicá-las seletivamente ao caso brasileiro. Era preciso compreender o processo e formar quadros, articulando a economia, a política e a engenharia, o que nenhum dos CPGP existentes era capaz de fazer. A UNICAMP e a USP formavam scholars; a FGV formava gestores de política monetária e finanças. Nestas circunstâncias, quem formaria os quadros do Estado desenvolvimentista? No que se refere à pesquisa, quem centraria esforços em economia industrial e da tecnologia? A oportunidade para concentração de esforços surgiu quando a FINEP decidiu financiar a montagem do Instituto de Economia Industrial da UFRJ. O Rio de Janeiro apareceu como o lugar ideal para o novo centro. Nesta cidade estavam situadas as sedes das grandes empresas estatais (Petrobrás, Eletrobrás, Vale à frente de todas) o think tank do planejamento estatal (o IPEA) e os principais órgãos de financiamento público (o BNDES, a FINEP, parte do MIC). Além disso, o Rio sempre foi um centro de concentração de oposicionistas ao regime militar e existia entre os estudantes uma grande demanda insatisfeita por um curso de pós-graduação com perfil heterodoxo. Algumas tentativas tinham sido feitas de criar substitutos no âmbito da COPPE – geralmente mal sucedidos pela incapacidade de concentrarem o número e a diversidade de economistas necessários para atender aos diversos campos de ensino e pesquisa que compõem a profissão. O último destes cursos foi o mestrado em Economia da 8 É interessante notar que o representante da USP no conselho da ANPEC e defensor da entrada da UNICAMP era Affonso Celso Pastore, ferrenho monetarista e um dos alvos prediletos da crítica 10 Tecnologia, aberto no programa de engenharia de Produção, que tinha como proposta exatamente o tipo de estudos demandados pela burocracia para levar a cabo o II PND, mas não contava com os recursos humanos nem financeiros necessários. A criação de um CPGP no velho casarão da Urca resolveria estes problemas. A Faculdade de Economia da UFRJ tinha o prestígio derivado de ter sido o primeiro curso de economia criado no país e dos inúmeros personagens de destaque que passaram por seus corpos docente e discente. A faculdade operava apenas como um centro de ensino de graduação; seus professores lecionavam em tempo parcial e alguns realizavam pesquisas individuais em outros organismos. No início da década de 70 a instituição viveu sob vigilância dos organismos de segurança política e o ensino decaiu; na segunda metade da década ocorreu uma renovação no comando da instituição e em seu quadro docente. A introdução da pesquisa e da pós-graduação criou um centro capaz de competir sob certos aspectos com vantagem com a FGV, à qual faltava o ensino de graduação.9 O mesmo modelo estava sendo seguido na época pela PUC/RJ, formada por um grupo de economistas ligados ao IPEA e alguns dissidentes da FGV – com um enfoque menos ortodoxo que o desta última. Os professores que fundaram o IEI compunham-se de um pequeno núcleo de concursados da Faculdade de Economia da UFRJ a que se juntaram pesquisadores oriundos da COPPE, da UNICAMP e da burocracia de elite, sobretudo da FINEP, além de alguns sociólogos e cientistas políticos. Esta composição e o momento político vivido fizeram com que o novo centro já nascesse no fogo da luta político-ideológica, em 1979, e que adquirisse projeção como centro crítico às políticas de estabilização de porte recessivo implantadas a partir de 1980. A NOVA CONJUNTURA DOS ANOS 80 No final dos anos 70 o regime pretendia conciliar uma redemocratização controlada e um salto industrial e tecnológico financiado por recursos externos. Ao campineira... (Bianchi, 1997). 9 Os problemas derivados da intervenção fizeram com que o programa de pós-graduação e pesquisa fosse formalmente independente da Faculdade de Economia e Administração. Durante os primeiros anos funcionou como um ramo da COPPE e posteriormente foi criado um Instituto de Economia Industrial com admistração completamente separada da FEA -–ainda que muitos de seus professores e pesquisadorea lecionassem no curso de graduação da mesma. Apenas em 1996, com a junção do IEI com o curso de graduação em economia foi criado o Instituto de Economia, reunindo atividades de pesquisa e ensino de graduação e pós-graduação nesta disciplina, agora sem qualquer ligação com os cursos de 11 longo da década de 70 os Estados Unidos viram sua hegemonia econômica ser perigosamente contestada pela transformação de seus aliados políticos em rivais industriais e financeiros. A resposta norte-americana ao final da década foi uma elevação substancial de sua taxa de juros, que atraiu capitais de todo o mundo para o seu mercado. A conseqüência foi uma subida em cascata das taxas de juros em todo o mundo, apanhando no contrapé os países que, como o Brasil, se tinham endividado a taxas flutuantes. Foi o dobre de finados para aquela etapa de políticas desenvolvimentistas dos países da periferia. O início dos anos 80 foi portanto um período em que a inversão do fluxo internacional de capitais tornou obrigatório o reequacionamento das políticas econômicas. Os países endividados deixaram de receber as entradas líquidas, perderam reservas e ficaram à mercê dos credores. A alternativa seria a moratória, que transformaria um problema econômico em conflito geo-político. Em qualquer dos casos ficavam interrompidos os processos de industrialização e consequentemente bloqueado o caminho para a autonomia tecnológica. Mas as consequências foram muito mais profundas no que tange à sustentação política do regime. No Brasil em 1980-82 a política econômica abandonou a face desenvolvimentista e concentrou as atenções em um processo de ajuste. Houve bruscas variações de preços relativos, alterando os fluxos de rendas e o valor dos patrimônios; a inflação disparou e o conflito distributivo passou a girar em torno do prazo e da fórmula de indexação dos contratos. Com isto a população passou em simultâneo a sentir os efeitos de perdas de renda/riqueza e de profunda insegurança quanto ao futuro. A crença mítica na capacidade da economia brasileira ser “uma ilha de tranqüilidade no mar tormentoso da crise mundial” , como fora considerado por um ministro nos anos 70, foi substituída pelo ingresso em uma longa etapa de desesperança. O resultado da mudança no imaginário popular foi sentida já nas eleições de 1982. As oposições souberam catalizar o sentimento popular, venceram nos principais estados, colocaram na defensiva o regime militar e transformaram a redemocratização em uma questão de curto prazo. E a promessa de mudança na política econômica desempenhou um papel decisivo neste processo. Para enfrentar a crise as oposições acenavam com a possibilidade de retomar o crescimento e em paralelo distribuir a renda Administração de Empresas e Ciências Contábeis. 12 e combater a miséria absoluta, rompendo com a metáfora delfiniana que pretendia primeiro aumentar o bolo para depois distribuí-lo. Tudo isto seria feito às custas dos credores internacionais e capitaneado por um novo ator, que deixava a coxia para ocupar o primeiro plano da cena: o “economista da oposição”. A desarticulação das políticas industriais e o afastamento de seus mentores de cargos no governo desvinculou a proposta original do IEI dos novos policy-makers. Em contrapartida aumentou a articulação informal com os partidos políticos. A vinculação aos partidos de oposição colocou a escola, ao lado da UNICAMP, no papel de think tank do PMDB e do PT para as eleições de 1982. Em especial o documento Esperança e Mudança, programa de reformas proposto pelos peemedebistas, foi forjado no seio dos dois institutos de economia dissidentes. A partir de então os professores destas instituições passaram a ter maior acesso à mídia e transformaram-se em personalidades de renome nacional, encarnando a possibilidade de uma mudança radical na política econômica. Mas os rumos da democratização não foram exatamente os esperados. A composição de interesses presente no gabinete de Tancredo Neves – e mantido no primeiro momento do governo Sarney – tinha tal grau de heterogeneidade que inviabilizava a definição e aplicação de qualquer política econômica coerente. Os ministros da área econômica lutavam por propostas polares - a Fazenda sob Francisco Dornelles pregando um programa de ajuste recessivo e o Planejamento sob João Sayad pregando um ajuste heterodoxo que não comprometesse o crescimento. Depois de um período caótico venceu o grupo que propunha o tratamento heterodoxo e a pasta da Fazenda foi entregue a Dilson Funaro, que para lá levou uma equipe mista, oriunda da UNICAMP e da PUC/RJ. O efêmero sucesso do Cruzado elevou ao máximo o prestígio dos economistas de oposição. Seu fracasso, bem como o do Plano Bresser que o sucedeu, reduziu drasticamente a credibilidade destes economistas. O IEI foi obrigado a adaptar-se ao afastamento do centro decisório. O último esgar do alinhamento com o PMDB ocorreu na campanha do deputado Ulisses Guimarães à presidência da república, em 1989, quando alguns de seus professores elaboraram os programas econômico e de políticas sociais do candidato; a derrota fragorosa e posterior morte do Dr. Ulisses extinguiram esta via. No caso do engajamento 13 com o PT, professores da casa tinham e continuam tendo participação na elaboração das plataformas do partido em eleições de todos os níveis. A escola permaneceu como um centro crítico da política econômica, mas deixou de desempenhar junto à mídia o papel de propositor de políticas alternativas. É claro que seus professores sempre ocuparam diversos cargos públicos, mas em função de sua projeção pessoal, sem que o vínculo institucional tenha tido destaque na mídia. Boa parte do esforço intelectual do IEI, ainda que sem abandonar dos estudos de economia industrial, passou a partir de então a ser direcionado para o aprofundamento da comprensão do processo de transformação por que passava a economia mundial, para a avaliação dos mecanismos de ajuste preconizados pelo Consenso de Washington e para a busca da alternativas que não provocassem um processo de desindustrialização no país. Isto implicou em um aumento da convergência com a UNICAMP, mas não contribuiu para a aproximação com as autoridades que nos anos 90 conduziram a política econômica do país - pelo contrário. Isto não significa que a casa tenha deixado de desempenhar o papel de think tank. Seus grupos de pesquisa continuam estreitamente ligados a órgãos públicos Mas deixou de ser um think-tank do poder executivo federal e passou a atuar a nível setorial. E, sobretudo, teve que acomodar-se ao papel de centro que se valoriza mais pela atividade acadêmica do que pelos seus laços com a burocracia. Isto não significa que a casa tenha deixado de desempenhar o papel de think tank. Seus grupos de pesquisa continuam estreitamente ligados a órgãos públicos Mas deixou de ser um think-tank do poder executivo federal e passou a atuar a nível setorial. E, sobretudo, teve que acomodar-se ao papel de centro que se valoriza mais pela atividade acadêmica do que pelos seus laços com a burocracia. O IE E A ACADEMIA: UM CENTRO DO PLURALISMO HETERODOXO Marginalizado no cenário político, o IEI expandiu-se no plano acadêmico, abrindo seu programa de doutorado em 1988 e participando ativamente do debate no interior da disciplina. Antes de mais nada, o IEI destacou-se no debate teórico pela contestação ao pensamento ortodoxo no nível V1, ao contestar a aplicação dos elementos centrais do modelo Arrow-Debreu. Os elementos analíticos do debate teórico de mais alto nível não são formulados no Brasil, mas nos países centrais; os centros ortodoxos e heterodoxos da periferia atuam como reprodutores e qualificadores destas idéias. O debate centra-se na inaplicabilidade da racionalidade substantiva à análise 14 econômica, onde preponderam casos de racionalidade limitada, proposta por Herbert Simon em 1958 e que lhe rendeu o prêmio Nobel. Sob racionalidade limitada não se realiza o equilíbrio geral e muito menos faz sentido falar em expectativas racionais, elementos centrais para a maior parte das análises realizadas pelo mainstream. Esta postura crítica repete-se em todas as atividades de ensino e nas pesquisas realizadas na casa, sobretudo nos campos já consolidados da economia industrial, da economia da energia e da economia do trabalho, onde a abordagem heterodoxa proporciona maior aderência aos fenômenos concretos, evitado o vício ricardiano.10 Nos primeiros tempos a principal contribuição teórica da casa foi a introdução do conceito de complexo industrial, derivação aperfeiçoada do conceito francês de filière, aos casos concretos da economia brasileira. Igualmente importantes foram os estudos sobre tecnologia de informática e automação industrial, que culminaram com a construção da matriz tecnológica da informática, em parceria com a COPPE.11 A partir do momento em que a burocracia desenvolvimentista perdeu força o IE foi levado a diversificar o escopo e a clientela para suas pesquisas. Na última década os pesquisadores da casa aumentaram sua participação em novos campos de análise, como energia, meio ambiente, informação, regulação econômica, sócio-economia do Rio de Janeiro e entretenimento. É muito provável que o ecumenismo do quadro de professores tenha facilitado esta adaptação flexível. O reflexo desta diversificação foi a retirada do sobrenome “Industrial” do Instituto de Economia, em 1996. Ainda que esta recente mudança no escopo das pesquisas não possa até o momento ser objeto de demonstração empírica, o perfil tradicional da casa e sua penetração no mercado acadêmico podem ser mensurados. Em um levantamento feito a partir dos trabalhos apresentados nos Encontros anuais da ANPEC entre 1980 e 1995 observa-se que o IE ocupou o segundo lugar em número de trabalhos selecionados,12 10 O vício ricardiano implica em aplicar conclusões válidas em alto nível de abstração, como o modelo Arrow-Debreu, a casos concretos, em que existem muito mais variáveis, sem as indispensáveis mediações teóricas. Esta é a principal falha metodológica do mainstream. 11 Quando este estudo foi concluído, em 1989, tinha ficado claro que a política de informática estava em seus estertores, o que impediu o desdobramento do projeto. 12 Quem mais apresentou papers na ANPEC foi o IPE/FEA/USP, com 125 trabalhos; em seguida o IE/FEA/UFRJ, com 102,5; PIMES/UFPE, cm 72,5; IE/UNICAMP, com 72; IPEA/INPEs, com 53; UNB, com 49; UFF, com 43; CEDEPLAR/UFMG, com 30; PUC/RJ, com 29,5; CAERN/UFCE, com 23,5; EPGE/FGV, com 22,5; FGV/SP, com 22,5, UFBA, com 20; NAEA/UFPA, com 19; UFRGS, com 18,5, UFPR, com 7; outros, com 238,5, perfazendo um total de 948 trabalhos apresentados de 1980 a 1995 (Anuatti, 1997:190). 15 tendo participação destacada nas áreas de organização industrial, mudança tecnológica e crescimento/desenvolvimento econômico. Um outro indicador da pesquisa da casa é a capacidade de produzir publicações acadêmicas. Um CPGP precisa criar revistas que divulguem suas visões. Os centros mais bem sucedidos têm duas revistas, uma dedicada a análise de conjuntura e/ou estudos aplicados (nível V4) e outra a estudos de maior fôlego (níveis V1 e V2). O modelo foi implantado no Brasil pela FGV, com a Conjuntura Econômica e a Revista Brasileira de Economia. A USP ficou durante décadas limitada ao segundo caso, com sua Estudos Econômicos; há poucos anos lançou sua Economia Aplicada. A UNICAMP apenas há poucos anos lançou sua Economia e Sociedade, difundindo sua visão de V1 e V2. Já o IE ficou durante 19 anos limitado a seu Boletim de Conjuntura, que difunde sua V2 mas tem um público reduzido; apenas em 1998 lançou sua Revista de Economia Contemporânea, que começa a ser reconhecida entre os pares. Ou seja, a pesquisa do IE ocupou um nicho de mercado e foi bem divulgada no meio acadêmico. Vejamos agora o lado do ensino. A rejeição ao mainstream não implicou na adesão a um paradigma alternativo, ainda inexistente, mas a uma multiplicidade de correntes heterodoxas, como a pós-keynesiana, a neo-schumpeteriana, a regulacionista francesa e os novo e velho institucionalismo. Talvez a mais importante evidência do caráter pluralista da escola seja a diversidade de origem de seus professores, dificilmente encontrada no país. Isto nos conduz a uma análise comparativa entre o IE e os CPGPs concorrentes, a partir de alguns indicadores simples. Uma análise deste corte deve começar avaliando o porte do centro, que irá determinar a amplitude de seu leque de pesquisas e abordagens. Centros pequenos tendem a concentrar recursos em poucas áreas de pesquisa e a terem um pensamento tendente ao monolítico; professores de centros maiores têm mais oportunidades de aderirem a diferentes visões do que deve ser o trabalho na profissão. Existem no Brasil três grandes CPGPs de economia, todos com mais de 50 doutores: o IE/UFRJ, o IE/UNICAMP e o IPE/USP. Levaremos em conta mais quatro CPGPs de porte médio, os da FGV-RJ, PUC-RJ, UFMG e UnB. Além disso, na medida em que a maioria dos economistas define sua adesão a uma corrente teórica durante seu curso de doutorado, quanto mais variada formação de seus professores e pesquisadores maior tende a ser o pluralismo. Utilizaremos três 16 indicadores para tentar medir a heterogeneidade do corpo de professores de cada centro: (i) o grau de endogenismo, isto é, a proporção dos profissionais que fizeram seu curso de doutorado na própria instituição, medindo a tendência à reprodução do pensamento da casa; (ii) o grau de abertura ao exterior, medido pela proporção dos profissionais que fizeram seu doutorado além-fronteiras; (iii) o grau de americanização, medido pelo percentual de professores formados nos EUA; conforme já abordado em artigo anterior13 os cursos de doutorado nos EUA tendem a ser mais uniformes em torno do mainstream do que os europeus, onde tendem a imperar visões pluralistas. Dos 65 doutores lotados no IE apenas 18% formaram-se na casa, tendo os demais a seguinte origem: 20% da UNICAMP, 23% de outros centros universitários brasileiros, 29% de centros europeus e 12% de centros norte-americanos.14 Assim, o grau de endogenia é baixa, com 18%, e o grau de abertura ao exterior é razoável - 42%. Destes últimos, menos de um terço obteve seus doutorados nos EUA e os restantes na Europa. A elevada participação de doutores oriundos da UNICAMP demonstra a importância conferida à tradição do pensamento latino-americano. ORIGEM DOS PROFESSORES DOUTORES EM CPGPs EM ECONOMIA (DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL) CPGP O próprio CPGP Outros no Brasil EUA Europa Outros IE/UFRJ 18 43 12 29 - UNICAMP 70 21 3 3 1 USP 58 6 26 9 - FGV 10 15 75 - - PUC-RJ - 9 73 18 - UFMG - 38 25 38 - 13 Sá Earp (1996 a). Dos professores da casa, 13 obtiveram seus doutorados na UNICAMP; 12 no IE/UFRJ; 6 na COPPE/UFRJ; 5 em Londres; 4 em Sussex; 3 na FGV/RJ; 2 em cada um dos seguintes centros: Paris, Cambridge, École de Hautes Études en Sciences Sociales, Política/USP, IUPERJ, California, New School of Social Research; e um em cada uma das seguintes: Toulouse, Grenoble, P. M. France, Illinois, Rutgers, Chicago, Pennsylvannia, Oxford, Reading, Wales, História/UFF e Educação/UFRJ. Todas as informações sobre doutoramento de professores foram retiradas dos sites das respectivas instituições na Internet. 14 17 UNB - 4 50 43 4 Fonte: Pesquisa realizada nos sites de cada instituição, a partir da ANPEC. Para se ter uma idéia da excepcionalidade deste quadro passemos a uma comparação com outros centros de economia. Dos 67 doutores que lecionam na UNICAMP o grau de endogenia é de 70% e o grau de abertura ao exterior é de apenas 9%.15 Estes dados resultam de uma política voltada para o desenvolvimento de uma economia política latino-americana, capaz de repensar a proposta cepalina. Igualmente elevado é o grau de endogenia do outro CPGP de grande porte, a USP,16 onde dos 53 doutores cerca de 58% formaram-se na própria casa; já o grau de abertura ao exterior é bem maior do que o da UNICAMP, com 35% e o grau de americanização é significativo - 26%. Assim, os três maiores centros têm perfis bastante diferenciados e o IE é aquele que apresenta menor endogenia e maior abertura ao exterior. Quadro inverso ao dos maiores centros é aquele encontrado em CPGPs com menor número de docentes, como a FGV-RJ, 17 a PUC-RJ, 18 a UFMG19 e a UnB,20 onde imperam baixíssima endogenia e altíssimo grau de abertura ao exterior. Os dois primeiros buscam a maioria dos seus quadros nos Estados Unidos, refletindo sua opção pelo ensino do pensamento de fronteira do mainstream. Os dois últimos dividem seu corpo de professores entre os oriundos de centros europeu e norte-americanos, sendo que a UFMG ainda tem importante participação de professores formados no Brasil. Desta forma, observa-se que a UFRJ tem um quadro de professores bastante diferenciado em relação aos CPGP de qualquer porte. Esta composição implica na seleção do corpo de professores visitantes. Todo CPGP recém-fundado traz professores 15 Cerca de 47 professores oriundos da UNICAMP, 5 da USP, 2 da EHESC, da ESALQ, de Cornell, 1 de Paris, de Londres, da História-USP, da C. Sociais-USP, da PUC-SP, da C. Sociais-UNICAMP, da Argentina, da FGV-SP, da FCEAO. 16 Dos 53 doutores há 31 oriundos da própria casa, 4 de Yale, 2 de North Carolina, de Cornell, da FFLCH/USP, de Paris e de Vanderbilt, 1 de Chicago, de Cambridge, do MIT, da Plejanov (Moscou), de Aix-Marseille, da John Hopkins, da ECA/USP e de Illinois. 17 São 5 oriundos de Princeton, 4 de Chicago, 2 de Pennsylvania, de Illinois, da USP e da FGV-RJ, 1 de IMPA e de Minnesotta. 18 São 2 oriundos de Harvard, do MIT e da California e 1 de Londres, de Cabridge, de Stanford, de Chicago e do IMPA. 19 São 3 doutores oriundos de Londres, 2 da UNICAMP, de New York, 1 da California, Michigan, de Paris, de Gemboux, de Warwick, da História-USP, da EPGE, do IUPERJ e da UFRJ. 20 São 5 doutores oriundos de Illinois, 3 de Vanderbilt, de Londres e de Kent, 2 de Paris, 1 de Oxford, de Cambridge, de Birmingham, de Bruxelas, da Pennsylvania, de Harvard, da George Washington, de winscosin, de Cornell, da John Hopkins, da West Indias e da USP. 18 e pesquisadores estrangeiros; o IEI não foi exceção e trouxe economistas de diversas correntes heterodoxas, como os neo-schumpeterianos de Sussex e os regulacionistas franceses. O posterior envio de professores para cursos de doutorado, bolsas “sanduíche” e pós-doutorado consolidou esta aproximação. Como se pode encontrar um indicador que avalie este ponto? Uma característica do pensamento econômico heterodoxo é a concentração de esforços nos estudos nas áreas de economia política, história econômica e história do pensamento econômico. O IE tinha, em 1992, cerca de 55% de sua bibliografia concentrada nestas áreas, ficando com 45% nas áreas quantitativa e de teoria econômica.21 Além disso sempre se deu muita importância na casa ao estudo de textos clássicos, em lugar de se recorrer apenas a manuais recentes. Esta é uma característica do ensino de economia europeu, em contraposição àquele praticado nos Estados Unidos,22 e transformou-se em uma marca registrada da casa. Esta característica do ensino atrai uma boa parte dos bons alunos de segundo grau interessados em economia para o curso de graduação do IE, bem como graduados de todo o país para seus cursos de pós-graduação.23 O único curso no Rio que tem poder de atração comparável é o da PUC; o fato, porém, de seu curso ser muito direcionado ao ensino do mainstream afasta aqueles interessados em uma formação mais diversificada, como a oferecida pelo IE. Os resultados destes alunos na maioria dos concursos - do Provão à ANPEC, passando por BNDES, Banco Central, etc. - indicam que os resultados são satisfatórios. Estes aspectos positivos não devem obscurecer os problemas da instituição. O mais importante deles é o fato de ter pouca visibilidade para o grande público - o nível V4 da difusão de idéias. Uma das razões é que nenhum de seus produtos tem destaque na mídia. Ao contrário, centros como a FGV e a USP publicam índices de preços que freqüentam os telejornais, enquanto professores da UNICAMP apresentam-se regularmente em programas de televisão. A participação de professores do IE na mídia é 21 O único centro com caraterística semelhante era o CEDEPLAR/UFMG, com valores de 60%-40%; vale a comparação com a PUC/RJ (4%-96%), a USP (12-88%) e a UNB (15%-85%). Os dados são de Gustavo Franco, citados em Anuatti (1997:196). 22 Sobre este ponto ver Sá Earp (1996a). 23 Observe-se que a concorrência por estudantes de mestrado no Rio de Janeiro é mais acirrada do que em qualquer outra cudade do país. Existem quatro centros ligados à ANPEC (IE, PUC, FGV e UFF), além dos cursos de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ e o de Economia Agrícola da 19 eventual e a falta de continuidade impede a consolidação da marca. Ainda mais, a participação de professores da casa em cargos públicos de destaque geralmente não é associada a sua ligação funcional. Já para o público estudantil o alcance da visão da casa (a V3) é limitado à atuação docente de seus ex-alunos. O IE não criou manuais que identificassem a imagem da casa junto ao grande público estudantil; este é um campo em que a PUC (com a Ordem do Progresso), a FGV (com os livros de Macroeconomia e Microeconomia de Mário Henrique Simonsen) e a USP (com diversos títulos, a partir da boa aceitação de seu Manual de Economia) obtiveram grande sucesso. Mesmo a participação de professores do IE em obras coletivas de grande repercussão não divulga uma marca da casa. Desta maneira o IE pode perder nos próximos anos parte de seu público para novos cursos privados de boa qualidade, como o do IBMEC e o da FGV, repetindo ao nível da graduação um fenômeno que já ocorre na pós-graduação, onde os melhores alunos distribuem-se entre o IE e seus concorrentes. O enfrentamento destes problemas é decisivo para que o IE consiga manter-se em uma posição de destaque em um meio no qual a sobrevivência de cada CPGP depende cada vez mais de sua capacidade de alavancar recursos junto a uma clientela diversificada. UM POST SCRIPTUM CINCO ANOS DEPOIS Este artigo foi escrito em 1999, e desde então ocorreram ao menos duas mudanças importantes, cujas conseqüências serão extremamente benéficas para o IE, caso sejam mantidas. Em primeiro lugar, diversos professores da casa começaram a publicar manuais de grande aceitação; podemos citar as obras sobre economia internacional (um sucesso, com vendas de aproximadamente 15 mil exemplares), economia industrial, economia monetária, teoria dos jogos, álgebra linear e regulação da concorrência.24 Esta é uma tendência que parece ter vindo para ficar – há outros livros Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 24 Gonçalves, R., Prado, L.C., Baumann, R. e Canuto, O. (1999). A nova economia internacional. Uma perspectiva brasileira, Rio de Janeiro: Campus; Kupfer, D. e Hasenclever, L. [orgs.] Economia industrial: fundamentos teóricos e práticas no Brasil, Rio de Janeiro: Campus; Carvalho, F., Souza, F., Sicsú, J., de Paula, L. e Studart, R. (2000), Economia monetária e financeira, Rio de Janeiro: Campus; Fiani, R. (2004) Teoria dos Jogos, Rio de Janeiro: Campus; Fonseca, M. (2002) Álgebra linear aplicada a finanças, economia e desenvolvimento, São Paulo: Manole; Possas, M., Fagundes, J., Schuartz, L. e Mello, M. (2002) Ensaios sobre economia e direito da concorrência, São Paulo: Singular. 20 do gênero em preparação. O outro fato é a inserção de professores da casa no executivo federal do governo petista. Merecem ser mencionados a presidência e uma das diretorias do BNDES, duas importantes assessorias no Ministério do Planejamento e um posto de conselheiro no CADE. No cenário internacional, professores da casa ocupam a uma diretoria da CEPAL e a Diretoria executiva do BID. Esta inserção decorre das alianças políticas construídas pelos professores da casa e abre perspectivas para o aumento do prestígio e de parcerias possíveis. BIBLIOGRAFIA: . Anuatti, Neto, Francisco (1997). “Competição e complementaridade dos centros de pós-graduação em economia”, in Loureiro (1997). . Bianchi, Ana Maria (1997). “Do encontro de Itaipava ao encontro da USP: comentários à margem da história da ANPEC”, in Loureiro (1997). . Lessa, Carlos (1998). A estratégia de desenvolvimento 1974-1976. Sonho e fracasso. Campinas: UNICAMP/IE. . ---------- (2000). “A preeminência profissional e o Estado Brasileiro: dos juristas aos economistas”, in Mary del Priore (org.) Revisão do Paraíso. Os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro, Campus. . Loureiro, Maria Rita [org.] (1997). 50 anos de ciência econômica no Brasil. Pensamento, instituições, depoimentos. Petrópolis: Vozes. . ---------- (1997a). “Formação de quadros para o governo: as instituições de pesquisa econômica aplicada”, in Loureiro (1997). . ---------- (1997b). Os economistas no governo. Rio de Janeiro: FGV. . Sá Earp, Fabio (1996). “Um pouco além de Thomas Kuhn. Da história do pensamento econômico à história das idéias econômicas”. Revista de Economia Política 16(1), jan/dez. . ---------- (1996a). “Estados Unidos versus Europa: mercados distintos, maneiras diferentes de fazer ciência econômica”, Revista de Economia Política 16(4), 21 out/dez. . ---------- (2000). “A tríplice revolução da geração keynesiana. Notas sobre a dinâmica da difusão das idéias econômicas”, in Ensaios FEE, ano 21, n. 2. ENTREVISTAS Elisa Muller Fabio Erber José Ricardo Tauille Leonarda Misumeci 22