nº 1 Sabe aqueles sentimentos que deixamos submersos em nossas profundezas? A poesia ensina-nos o que fazer com eles, e nos conduz a um belo lugar: não ter medo de sentir, seja lá o que for. Ao ler poesia, nos livramos da necessidade de ler algo que faça sentido. Um poema não precisa “querer dizer algo”: se é bonito e nos ajuda a entrar em contato com nossos sentimentos, cumpre sua função. Se o texto trouxer belas cenas à nossa imaginação, já temos o que precisamos. Poemas reavivam nosso estoque de imagens e emoções. São portas através das quais entramos na maravilha que é o instante. A poesia ajuda-nos a ser livres. Clara Cruz www.claracruz.com.br pastora da alma Mãe do céu, que bom seria me desreprimir todinha! E deixar que os pensamentos corram livres pelos bosques uns levíssimos cabritos sem porteiras nem tranqueiras para lhes atrapalhar o bonito e leve salto… Ah, e eu seria sua pastora! Pensamentos, meus cabritos, deixem de me atormentar, quero lhes pastorear… (Lá do céu me pastoreia minha mãe) Que bom seria! conversa com uma deusa Sabe que de vez em quando me ataca uma crença tão forte na vida, tão forte que eu nem sei como, nem quanto vai durar. Só sei que é imensa, e é boa. Uma crença soprada lá do fundo da minha voz: Este é o corpo que tu tens, não reclames dele, a natureza não fez os homens para odiarem-no. Verás como vais conseguir lidar bem com ele, com teu corpo, com o fato de ter nascido no corpo de uma mulher. Corpo de mulher, essa fortaleza linda e alada finalmente despertada. Apesar de tudo e todos não declares guerra ao teu corpo: ama-o. Ama-o com afinco e certeza. Vai bem teimosa e insiste, insiste, acredita nele, e verás que tudo o mais se dissolve, se cura, puro milagre. Deixa o tempo passar e vem me contar quão grata estarás. Serás deusa entre as deusas, mortal. Deusa entre as deusas. alto mar Onda redonda no mar tão profundo qual é a minha âncora minha âncora no mundo? O que é que me salva do meu ostracismo O que não me deixa cair num abismo? Que nau não naufraga no redemoinho? Como é que é ser ostra e não ser sozinho? Sou ostra fechada mas dentro eu me abro. por dentro por dentro um dia eu me salvo. ariel As estrelas são as sereias do céu. Sua voz nos ilumina. Ouve que baixinho cantam o silencioso mar da noite… Abre bem teus olhos, ouve. Ouve atentamente o brilho… No instante em que as ouvires entrarás na eternidade. uma histeria chamada mulher Que bonito que é o sujeito, sendo todo errado ele é tão perfeito… Ser histérica, sabe, meu bem? Ser histérica é abrir o corpo como quem abre as asas, é abrir o corpo e a alma para o novo e o inesperado, para viver as mais loucas e insuspeitadas aventuras. Sou uma histérica que histericizou, o grito trancado que não mais calou. (Cada palavra que ganho tua mais um pedaço de quem eu sou.) “completamente blue” Viver num mundo de palavras esperando achar sentido é viver na ilusão, na mais completa solidão, a la Cazuza. (Viu, Poeta? Também sou filho único, também conheço a dor de ser palavra solta da frase, a imagem esquecida que está fora do poema…) Quem vive buscando um porquê nas palavras que encontra, faz do rio pedras no caminho… É amado e não ama. oração todos os poemas falam de amor porque todos os poemas falam a ti, Poesia, doce amor, fruta louca de tão linda… enfim, nós Quer saber onde a gente mora? Presta atenção em como a gente fala. A gente mora é na língua portuguesa, e na memória… A nossa casa é uma memória falada em português. o sol entra na gente é pelas palavras Ó seres machucados de linguagem, castigados de consciência, adornados de arrependimentos Quando vossos corpos deixarão de arder a cada palavra pronunciada? A cada ferida deixada pela linguagem… Vossos corpos só estarão pertinho um do outro depois que se tiverem resolvido os mal-entendidos da linguagem… … os mal-entendidos do corpo! ler o mundo Ler é o verbo mais difícil de conjugar: de executar, entenda-se… Pois quem pode ler o mundo? A quem foi dado escutar a trêmula Criação? A lânguida diáfana e molenga respiração…? [Das coisas todas que aqui estão?] A quem é dado ver os milagres da escutação? Este ressonar profundo desde a infância do mundo… Quando o mundo não falava. (Só ouvia e respirava). as duas meninas A tristeza, menina esguia, passeia por dentro dos corredores da gente mais elástica que a angústia: essa mais espessa, mais durinha, tropeça pelas [escadas. A tristeza é mais fácil de manejar que a angústia. A tristeza é mais comportadinha, ela eu consigo [pôr no colo, alimentar, ninar. A angústia é mais arredia, joga para o teto o prato de atenção que lhe dou. A tristeza é mais fácil de tomar pela mão e levar [para onde estou indo. A angústia puxa-me para trás, quer voltar para [casa. Não quer seguir adiante. Faz pirraça e imobiliza-me. Tenho mais dificuldade de cuidar da angústia. Mas quero acolher sua dor. Não quero mandá-la embora, porque sei que ela precisa de mim, tanto quanto a tristeza. Angústia, meu bem: vem. Quero acolher tua dor, pertinho do meu coração. Deita no meu colo, dorme comigo. Tudo vai ficar [bem. Tenho duas filhas, e não apenas uma. É das duas que quero cuidar. mímolos para S. Bem-vindo à Casa dos Sentimentos Transparentes. É só aqui que eu sei morar. Aqui não é o lar que faz os parentes. Aqui são os parentes que constroem com sábia paciência e sólidas pedras do mar o líquido cristal… A lenta morada do amar. luz só quando dei tchau pro meu velho jeito de ser é que a vida concordou em deixar de morrer a fujona Caçadores que somos, passamos a vida a perseguir a lebre da infância. (Shh. Faz silêncio, agora…) …Mas ela sempre se nos sai mais rápida. Sai-se-nos! Fugiu. Corre ligeira, quase levita. Se não a alcançamos nós não compramos gato por lebre. (Não existe remédio melhor que essa febre.) a terceira A morte me futrica me futrica com seus dedos gelados. Toda hora me aparece, rouba a atenção que dou à vida, exibe-se para nós duas, criança ciumenta. Morte: que importuna és! Não paras quieta, não te assentas em parte nenhuma. És como o passado, no poema de Quintana: “não reconhece seu lugar, está sempre presente.” Tu, morte, meu futuro não te conformas em estar alhures, vives comigo no aqui e no agora. Ver mais poemas em: www.claracruz.com.br