1 O problema do ensino de filosofia hoje: o “falar francamente” como estilística da verdade Wilson Correia Introdução Como apenas o nascer é o fato existencial que realmente escapa de quaisquer considerações implicadas no exercício da volição humana, resta-nos o problema realmente decisivo em filosofia: o que fazer da vida? E essa inquietação é visivelmente derivada da preocupação fundamental de Albert Camus, o qual afirmou: “Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida” (CAMUS, 1989, p. 7). Para ser mais preciso, esse é um problema relacionado ao campo ontoantropológico, tendo a ver com esse “ser” que se convencionou chamar “humano” e ao seu modo ôntico de habitar-agir no mundo, entre os também ditos “semelhantes humanos”. Além disso, para nós, ensinantes e estudantes de Filosofia, o problema anterior apresenta a questão ligada ao modo como operamos nossos recursos cognitivo-discursivos, com a fala como práxis, uma vez que, segundo Heidegger, “o pensamento age enquanto pensa”, de uma passagem onde lemos: “O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do ser ao homem” (HEIDEGGER, 1973, p. 25). Refiro-me ao falar que não é mera emissão de sons, grunhidos ou o que o valha, mas, sim, àquele que consubstancia o duplo implicado no ato de pensar e no seu produto correspondente: à fala como portadora de sentido e significado, de princípios e valores, de cores e tons de inteligibilidade que se colocam para além da simples representação verbal, indicando-nos que, se a Filosofia pode oferecer o instrumental práxico necessário a um “falar francamente” e que possibilite a “estilística existencial da verdade” ao humano em sua vida privada, pública e sócio-cultural, então o seu ensino merece ser praticado e, dessa maneira, compreendido por quem a ensina ou mobiliza em ambientes de educação formal. Do contrário, a que se prestaria o ensino, e a aprendizagem, da Filosofia? 2 1 Dos aspectos históricos relativos aos modos de ensinar Paralelamente ao ensino espontâneo, que vai do nascimento à morte, e que gerações adultas disponibilizam aos novatos “humanos” cotidianamente, o Ocidente também instituiu e institucionalizou o ensino formal: sistemático, metódico, teleológico. Massificado preponderantemente após o Renascimento (COMAR & PINTO, 2007), o sistema escolar se serve de gamas variadas de sujeitos que atuam em tempos, lugares e espaços na condição de especialistas na “arte de ensinar”, notadamente ciências, artes e Filosofia, tendo a profissão já regulada chegado ao anseio de “ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 1997). Mas, talvez se encontre em Sócrates (JAEGER, 2001) a maneira germinal da modalidade institucionalizada de ensino. Ainda que visando a preparar para a morte e em busca de um conceito absoluto para coisas, seres e entes (conceito que, para muitos, é inexistente) parece verossímil a compreensão de que a Maiêutica Socrática, ao manejar hipotética e dissimulada ignorância, não se furtou a deixar à ocupação docente o apego à problematização dialógica como caminho para se ensinar a busca de conhecimentos, decisivos à tarefa de atribuição de sentido ao mundo pelo ser humano. Da Maiêutica Socrática herdamos o mote pedagógico-filosófico: o que é? Outro momento emblemático relativo à história do ensino é a Escolástica Medieval cristã, quando, ao que nos parece, aquele absoluto, que era apenas aspiração socrática, torna-se certeza a ser transmitida pelo ensinante e assimilada pelo aprendiz. Ilustram-no os momentos de que aquela pedagogia se fez: disputatio (disputa), determinatio (determinação) e repetitio (repetição), em que aos debates para disputas teóricas entre defensores de perspectivas paradoxais sobre um mesmo tema se seguiam a determinação, pelo mestre, da tese considerada verdadeira, a qual, daí em diante, deveria ser repetida como forma de ensino e, também, de aprendizagem (CAMBI, 1999). A Escolástica Medieval nos deu o imperativo: magister dixit! (O mestre disse!). No período que se estende de fins do Renascimento, passando pela Modernidade e chegando à Contemporaneidade, quando se dá o alcance da autonomia pelas ciências particulares, a instauração da ciência da educação e a quase assumência por completo da pedagogia pela psicologia, muitas outras tendências pedagógicas podem ser verificadas, entre elas: a escolanovista, em suas variadas expressões, e a tecnicista, do lado da mundividência liberal; e a tendência libertária, a pedagogia da libertação e a pedagogia histórico-crítica, do lado da cosmovisão crítica do capitalismo (LIBÂNEO, 1990; SAVIANI, 2008). As tendências da pedagogia liberal ora enfatizam o papel do ensino, colocando o professor no centro do processo de ensinar, 3 secundarizando o seu correspondente processo do aprender; ora centralizam o aluno, reservando ao professor o papel de auxiliar, facilitador ou mediador do ensino e da aprendizagem; ora, ainda, os processos tecnológicos metódicos e planificados que contam com a máquina como sua auxiliar. Contudo, uma tendência e outras confluíam para duas aspirações teleológicas reservadas à prática de ensinar: preparar o cidadão para desempenhar papéis sociais predeterminados, sobretudo para os de: trabalhador assalariado e cidadão liberal (DEWEY, 1979; BOBBITT, 1918). Aí a gênese das finalidades atuais da educação, tão propalados em documentos oficiais, marcos legais e no ideário pedagógico que testemunhamos todos os dias: “formar para o mercado” capitalista e “formar para a cidadania” liberal (BRASIL, 1997, 1998). As tendências críticas, ditas progressistas e transformadoras, assumem a perspectiva teleológica voltada para a defesa do entendimento de que outra sociedade, diferente da capitalista, é possível. As pedagogias sócio-histórica e da libertação propõem a superação da sociedade capitalista, segundo os termos conceituais aproximados do materialismo histórico-dialético (SAVIANI, 2005; FREIRE, 2003). Já a tendência libertária, por fim, propõe a formação para a vivência da liberdade culturalmente produzida, diferente, pois, do conceito de liberdade inata ou natural advogada pelos iluministas burgueses (GALLO, 1995). Daqui herdamos as finalidades contestadoras para a educação: formar para a transformação, para a libertação e para a liberdade. Hoje sabemos que em cada uma dessas “tendências” o professor assume uma postura teórica definida e fala de um lugar político bem delimitado. Neutralidade docente, pureza pedagógica, inocência didática, não contaminação filosófica não existem e se somam a tudo aquilo que não vamos encontrar em uma sala de aula. Toda prática de ensino é interessada, na medida em que propõe e defende princípios e valores que se voltam para a tentativa de resposta às seguintes questões: que modelo societário defender? Que estilística humana antever como produto da prática docente? 2 E o professor de Filosofia, o que ele pode fazer? Que esse espectro pedagógico múltiplo e diversificado interfere na prática docente do professor de Filosofia não dá para negar. E que o problema do ensino de Filosofia, hoje, não pode ignorar o “falar francamente” como desafio que nos interessa a todos, em geral, e a professores e estudantes de filosofia, em particular, isso é fato. Por quê? Na perspectiva ontoantropológica, compreendemos que o humano não se reduz ao idiota centrado como alfa e ômega de si mesmo. Indivíduo, ele também não se reduz ao próprio ser, pois, para vir ao 4 mundo, o novato humano necessitou de, pelo menos, dois outros humanos. Nascido, precisou de pequeno exército adulto do gênero para se firmar, totalmente dependente de terceiros para permanecer vivo. Passos adiante dessa entrega involuntária, mas necessária, aos outros o transformam em pessoa, fazendo-o portador daquela veste social (persona, pessoa) com que se apresenta à sociedade, em meio à qual, imerso em processos vários, faz-se sujeito, portador de identidade e de subjetividade a serem vividas no âmbito privado, profissional, da cidadania, bem como nos campos social, cultural e político, entre outros (SILVA, 1999). Certamente, é como candidato a essa condição, de sujeito social, que o novato humano vivencia a pertença aos processos de educação formal, os quais, graças à Lei 11.684/08 (BRASIL, 2008), contam com a disciplina Filosofia na condição de obrigatória. Componente curricular que, sob a ótica metodológica mais ampla, pode ser ensinado na perspectiva histórica, temática, problemática, por autor, por linhas de pensamento, como experiência de pensamento e, ainda, como atividade de (re)criação conceitual para o entendimento e representação teórica do real, do mundo, da sociedade, da vida e da existência (ASPIS & GALLO, 2009), para os quais, em situação real de ensino o professor pode sensibilizar, problematizar, investigar e promover a prática de conceituação (GALLO, 2006). Contudo, indo além dessa preocupação mais imediata com o “como” (metodológico-estratégico), importa-nos, sobremaneira, um “o que” (conteúdo), um “que” (relativo ao tipo de sociedade a defender) e um “para que” (finalidade relativa ao modelo de sujeito social a ser educado): O que ensinar em termos de conteúdos? Que modelo societário defender? Para que estilística existencial educar? Uma práxis docente que se quer responsável, que oferece respostas aos problemas humanos, responderá a essas indagações, consciente ou inconscientemente. Melhor se for conscientemente, como resultado de um processo de pensar, valorar, escolher e decidir relativos ao “quefazer” como profissional do ensino. E em filosofia essa proposta se torna mais grave, dado que é o campo em que o ensinante é chamado a lidar diretamente com os conteúdos da consciência humana, bem como com o (in)consciente coletivo. Vejamos, pois, onde o “falar francamente como estilística da verdade” pode ser cunhada em todo esse processo. Ainda que Camus tenha afirmado nunca ter visto “ninguém morrer pelo argumento ontológico” (1989, p. 13), fatos históricos nos mostram que diversos personagens filosóficos sofreram na própria pele as consequências de suas buscas: Platão chegou a ser preso; Sócrates recebeu a pena capital; Giordano Bruno foi parar na fogueira; Galileu Galilei teve de abjurar –isso para ficar em exemplos mais remotos e mais emblemáticos relativos à busca da verdade 5 versus imposição ideológica ou versus imperativos consensuais de “verdades” mais convenientes, em lugar da perspectiva da aspiração à verdade mais incômoda (DURANT, 2000). Quem teve sorte diferente parece ter sido o estagirita Aristóteles, o qual aderiu ao Geocentrismo, aquela “mentira” científico-filosófica mais destacada quando o que se quer é exemplificar os modos como discursos e verdades são cunhadas por teorias em culturas e mentes planeta afora (DURANT, 2000; FOUCAULT, 1996). Por que se fez necessário esse tipo de conteúdo que tomou conta do fazer científico, de braços dados com o fazer filosófico e até com a prática teológica? Que modelo de sociedade precisou dessa “verdade”? Que estilística existencial se valia desse “dogma” para se auto-afirmar mundo afora? E hoje, será que coisas teóricas parecidas no âmbito da ciência e da filosofia repetem a façanha geocêntrica? Ao que consta, a resposta é pela afirmativa: sim, nós, vivos, encontramo-nos às voltas com tentativas idênticas de cunhagens de verdades consensuadas e que se prestam a interesses os mais díspares na atualidade. Em meio a tudo isso, o que falar, por exemplo, do chamado “aquecimento global”? O que argumentar perante a famigerada “sustentabilidade”? O que dizer a respeito de “interdisciplinaridade”? Como se posicionar em face da problemática das “células-tronco”? O que defender em termos de “avanço científico-tecnológico”? O que sustentar sobre “consumismo”, “sofrimento animal”, “capitalismo”, “vazio existencial”, “aborto”, “liberdade sexual”, “direito reprodutivo”, “eutanásia”, “hegemonia política”, “desigualdade social”, “individualismo”, “estado”, “abstenção da paternidade”, “suicídio” e, sobretudo, a respeito de “capitalismo verde”, entre tantas outras problemáticas que nos acossam? Tudo isso tem ou não tem a ver com o ensino de filosofia? Sim? Não? Por quê? Conclusão Talvez valha, aqui, a seguinte indagação: “... como os professores de filosofia poderiam filosofar para que o aprendiz também fosse despertado para tal, diante de uma situação em que a determinação da cultura só ampliou a deformação profissional daqueles e apenas auxiliou a sufocar a disposição destes para aprender a pensar criticamente o tempo presente?” (PAGNI, 2004, p. 227). Em resposta a essa indagação, o que está sendo proposto e provocado neste texto é: que a estilística da verdade, fundada no falar francamente, pode ser uma trilha para isso. Porém, claro, essa tarefa não parece nada fácil. Não se trata, aqui, de se fazer portador de uma verdade, mas, sim, da atitude de busca da verdade. Isso requer, sobremaneira, a coragem para colocar sob o crivo da razão os discursos e as ordens do dia, os fenômeno e os processos humanos cotidianos, indo 6 escavá-los lá onde eles escondem interessantes, obscuras e obtusas fragilidades, notadamente as de cunho ideológico. A mim me estranha muito quando vejo a atividade crítica do ensino ser subsumida pelo discurso ideológico, ao largo de uma postura científica comprometida com a busca verdade, longe de uma atitude filosófica de pesquisa daquilo que poderíamos entender como encaminhamento rumo ao que de verdadeiro poderíamos tentar conceber e, o mais importante, empregar nas defesas que fazemos de modelos societários possíveis e de significativos estilos existenciais potencialmente abertos, os quais, desde suas entranhas, articulem anseio por justiça e liberdade. Em meu modo de entender, se o ensino de filosofia puder contribuir para que esse anseio seja menos anseio e mais práxis, então ele estará plenamente justificado. Referências bibliográficas ASPIS, Renata Lima & GALLO, Silvio. Ensinar Filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta, 2009. BOBBITT, Franklin. The curriculum. Boston: Houghton Mifflin Company, 1918. BRASIL. 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