Notas sobre definições de fato social, histórico e político: subsídios para análise política em saúde Tatiane de Oliveira Silva Alencar1 Introdução A análise política em saúde requer, entre outras iniciativas, análises de conjunturas. Trata-se do estudo da dinâmica do processo político em saúde, constituído pelos fatos políticos, pelo posicionamento de atores, pela correlação de forças, pela identificação de conflitos, interesses e projetos em disputa, pelo exame de possíveis consequências e pela análise de determinantes históricos, econômicos, políticos e sociais. Assim, na análise de conjuntura procura-se caracterizar o desenvolvimento desigual das relações de força em cada um dos níveis que constituem a estrutura social, contemplando múltiplas relações, e examinar atores sociais que se opõem e se aliam com distintos graus de organização e coerência (MAGNO; PAIM, 2015). Analisam-se, desse modo, as circunstâncias em movimento que são capazes de gerar novas combinações e relações de força (GRAMSCI, 2000). Nessa perspectiva busca-se distinguir a análise política em saúde da tradição de estudos de políticas de saúde, representada pela análise de políticas de saúde (PAIM, 2015), que se volta, na maioria das vezes, para a investigação de uma política específica, visando compreender seu processo de formulação e implementação nos diferentes âmbitos de atuação. O desenvolvimento de um espaço de reflexão crítica e de pesquisa das políticas de saúde e o aprofundamento de análises políticas em saúde compõem os objetivos do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) 2, mediante a articulação de uma rede de pesquisadores da área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde (PPGS) de diversos centros de pesquisa no Brasil. 1 Farmacêutica, Doutora em Saúde Pública, pesquisadora do OAPS nos eixos Análise do processo da Reforma Sanitária Brasileira no período de 2007 a 2016 e Políticas de Medicamentos, Assistência Farmacêutica e Vigilância Sanitária. 2 O Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) está vinculado ao Projeto Análise de Políticas de Saúde no Brasil (2003-2017) apoiado pelo CNPq e Ministério da Saúde e é constituído por uma rede de pesquisadores de diversas instituições de ensino e pesquisa da área da saúde e afins envolvidas com a produção de conhecimento crítico na área de Políticas de Saúde. Disponível em: <http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/quem-somos/1/> O desenvolvimento desses estudos e investigações fundamenta-se em variados referenciais teóricos, métodos, técnicas de pesquisa e fontes de dados. Nesse particular, há uma preocupação de como lidar com um grande volume de dados e informações, posicionamentos, opiniões e fatos contidos em fontes diversas a serem utilizadas, tais como: documentos oficiais (normas, decretos, portarias etc.), publicações (jornais, revistas, boletins, sites) de entidades ou organizações da sociedade civil, entrevistas com informantes e, ainda, materiais provenientes dos diversos veículos midiáticos. Essa variedade possível de material e de dados exige do pesquisador critérios para seleção, devendo, portanto, estar atento a alguns aspectos como a origem da fonte, as ideologias e os interesses das instituições responsáveis pelas publicações. Tais aspectos nem sempre são transparentes ao pesquisador e influenciam na forma como são explicitados os diferentes fatos que ocorrem na sociedade. Essa situação resulta na necessidade de o pesquisador confrontar os dados obtidos por diferentes fontes (por exemplo, aqueles obtidos nos documentos, nas mídias e nas entrevistas) mediante triangulação de métodos no intuito de certificar-se da veracidade dos mesmos. Além desses cuidados, o pesquisador também deve fundamentar-se em elementos teóricos que auxiliem na tarefa de seleção dos dados considerados mais pertinentes ou relevantes ao objeto, os quais poderão constituir-se material da pesquisa, bem como na identificação de fatos produzidos na sociedade que serão subsídios para a análise política e análise das políticas. Contudo, essa não é uma tarefa fácil e durante a sua operacionalização emergem alguns questionamentos: O que são fatos? E acontecimentos? Há tipologia de fatos? Como proceder quanto à seleção dos fatos mais consistentes para uma análise política em saúde? Ao proceder-se a uma busca na base de dados Scielo3 não foram identificados definições ou conceitos sobre fatos políticos que esclareçam a respeito e que possam orientar estudos e pesquisas voltados para a análise política em saúde. Esta lacuna também foi constatada em estudos de análise de políticas de saúde com 3 Utilizou-se a base Scielo por não se restringir a publicações específicas da área da saúde. Apesar dos descritores fato e fato social terem sido identificados, não foram encontradas publicações que contribuíssem para os objetivos deste texto. Ressalta-se ainda que esses termos não estão registrados em outras bases que integram a Biblioteca Virtual em Saúde. O termo fato político também não foi identificado como descritor. diferentes abordagens teórico-metodológicas (VIANA; BAPTISTA, 2008; MATTOS; BAPTISTA, 2011; MACHADO; BAPTISTA; LIMA, 2012). Buscando uma sistematização preliminar dessas noções, o presente ensaio tem como objetivo esboçar uma definição de fato político de modo a orientar a realização de estudos de análise política em saúde. Nessa perspectiva, foram feitas consultas a certos clássicos da Sociologia e da História, bem como a alguns autores de Planificação em Saúde no intuito de buscar elementos conceituais e teóricos para investigações sobre políticas de saúde. Fato social A preocupação em definir um método e o objeto da Sociologia é atribuída a Émile Durkheim, sociólogo francês que construiu um contraponto ao conhecimento filosófico de sociedade defendido por Auguste Comte e Herbert Spencer, estabelecendo as bases da Sociologia como ciência (FERRÉOL e NORECK, 2007). Sua teoria influenciou o pensamento de outros sociólogos na construção das práticas de pesquisa em ciências sociais. Para Durkheim (1987), a Sociologia deve ocupar-se apenas dos fatos sociais, que são produtos da vida em sociedade, maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e que exercem coerção sobre ele, obrigando-o a adaptar-se às regras da sociedade onde vive. Apresenta, portanto, três características que permitiriam distingui-los dos demais fenômenos que ocorrem na sociedade: generalidade (os fatos sociais são coletivos), coercitividade (poder ou a força com a qual os padrões culturais de uma sociedade se impõem aos indivíduos que a integram) e externalidade (os fenômenos sociais se apresentam como coisas exteriores, devendo ser estudados de fora; os padrões e regras já foram estabelecidos na sociedade). Entretanto, os fatos são apreendidos de maneiras diferentes por sociólogos, historiadores, políticos e jornalistas. Assim, o autor estabeleceu regras para o método sociológico. A primeira consiste em tratar os fatos sociais como coisas. Para ele, os únicos dados oferecidos aos sociólogos são os fenômenos sociais, que por serem uma realidade objetiva, devem ser tratados como coisas. Esta é a regra fundamental da construção do objeto sociológico. É coisa “tudo que é dado, tudo que se oferece ou se impõe à observação” (DURKHEIM, 1987, p.28). Tratar fenômenos como coisas é tratá-los na qualidade de dados, que constituem o ponto de partida da ciência. A segunda regra consiste em descartar as pré-noções em relação ao objeto. Ou seja, é preciso duvidar de todas as ideias anteriores. Essa regra constitui a base do método científico. O autor estabelece, ainda como regra, que o sociólogo deve definir precisamente as coisas de que trata o objeto, a fim de que se saiba o que está pesquisando. A última regra é a de que a sensibilidade do sociólogo em relação ao objeto também deve ser afastada, ou seja, devem ser considerados os dados que apresentam grau suficiente de objetividade. Para o autor, a explicação de um fenômeno social requer o conhecimento da causa que o produz e a função que desempenha. A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais anteriores e não entre os estados de consciência individual. A função de um fato social deve ser sempre buscada na relação que mantém com algum fim social. Assim, a observação dos fenômenos sociais não é um puro procedimento narrativo. Mais do que descrever os fatos, a Sociologia deve constituí-los. Até mesmo os documentos oficiais devem ser examinados em todos os seus detalhes, sendo também necessário conhecer perfeitamente os princípios que presidiram a sua elaboração (CHAMPAGNE, LENOIR e MERLLIE, 1998). Vê-se que para esses sociólogos, fatos e fenômenos são utilizados como sinônimos. A pesquisa sociológica deve construir seu objeto e seus dados. A determinação dos dados válidos e pertinentes não é fácil. Muitas vezes, o que é observado não é pertinente nem significante (considerando o objeto, objetivos e teoria definidos pelo pesquisador); e o que é pertinente e significante é, quase sempre, difícil de observar. Não existem fatos brutos que possam ser coletados pelo sociólogo e sejam válidos sem uma construção teórica. Por esse motivo, os dados devem ser construídos, devem ser sempre interpretados a partir de uma teoria e integrados em uma problemática científica (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1999; CHAMPAGNE, 1998). A construção de um objeto científico requer, portanto, a ruptura com o senso comum, sendo que um dos instrumentos mais poderosos da ruptura é a história social dos problemas, dos objetos e dos instrumentos de pensamento (BOURDIEU, 1989). Assim, Bruyne, Herman, Schoutheet (1977) consideram que os fatos não devem se impor absolutamente como verdade, recomendando, tal como Bourdieu (1989), uma ruptura epistemológica e uma objetivação. Desse modo, a produção de “dado” para uma pesquisa ocorre a partir da aplicação das técnicas e dos instrumentos de pesquisa. A seleção dos dados deve ser orientada pela problemática da pesquisa, hipótese e teoria, constituindo os “fatos”. Para atingir o status de “fato”, os dados devem ser pertinentes a hipóteses teóricas precisas, ou seja, devem constituir a confirmação dessas hipóteses e a verificação (ou falsificação) dos sistemas teóricos nos quais essas hipóteses se inserem. Portanto, na Sociologia, fato social e acontecimento são fenômenos sociais com características particulares. No caso dos acontecimentos, se distinguem nitidamente do vulgar, cotidiano, repetitivo ou banal (CHAMPAGNE, 1998). Ou seja, essa diferenciação ocorre em função da importância, sentido e interesses atribuídos por um grupo, uma classe social, um indivíduo ou por um meio jornalístico. A distinção entre os fatos e os acontecimentos e, posteriormente, a priorização dos acontecimentos de acordo com sua importância, num determinado momento ou período de tempo, são etapas importantes na análise de conjuntura (SOUZA, 2014) e, consequentemente, na análise política em saúde. Particularmente em relação às manifestações midiáticas e jornalísticas, deve-se atentar que elas não fornecem apenas informações sobre um determinado fato, mas também o produz, transformando-o em um acontecimento, produzindo o seu sentido político-social (CHAMPAGNE, 1998). Isso significa que se deve interrogar sobre o que se encontra na origem da definição propriamente social que é dada ao acontecimento pelo meio jornalístico, até mesmo porque a mídia tem relevante poder político sobre a sociedade. Nessa perspectiva, um acontecimento apresentado pela mídia pode vir a ser um fato social relevante numa análise política. O conceito de fato social é o ponto de partida, mas não é suficiente para nortear os estudos de análise política em saúde, haja vista a complexidade, a dinâmica dos processos políticos em saúde, os diferentes atores envolvidos e suas capacidades (poder em suas diversas formas) e interesses, os processos de produção social que conformam as diferentes políticas. Nesse caso, faz-se necessário consultar referenciais que apontam para tipologias específicas de fatos sociais, tais como o fato histórico e o fato político. Fato histórico Carr (1982) e Schaff (1983) entendem que a história se constituiu de um processo contínuo de interpretação entre o historiador/pesquisador e seus fatos, de um diálogo interminável entre o presente e o passado, entre a sociedade de hoje e a sociedade de ontem. Assim, só é possível compreender completamente o presente à luz do passado, sendo necessário esclarecer o que são e como são constituídos os fatos históricos. Os fatos da história nunca chegam a nós “puros”, pois eles são sempre interpretados e produzidos pelo historiador; é ele quem decide quais os fatos vêm à cena e em que ordem ou contexto. Assim, qualquer fato pode ser promovido ao status de fato histórico a partir do momento que se distinguem sua relevância e sua significação (CARR,1982). Schaff (1983) estabelece uma distinção entre o acontecimento que se deu no passado e o fato histórico, de modo que um acontecimento pode tornar-se objeto da ciência da história em função da sua importância para o processo histórico, devendo-se considerar o contexto desse acontecimento, das suas relações com outros acontecimentos considerados no encadeamento da causalidade ou da finalidade. Essa preocupação com o fato histórico também é destacada por Testa (1995) ao alertar que não se deve confundir episódio histórico com história. Na história, ainda que seja única, seus relatos são mutáveis devido à ênfase que distintos pesquisadores colocam nas descrições dos episódios históricos. Assim, acentuar um ou outro episódio revela a interpretação que distintos grupos da sociedade fazem dela. Um episódio histórico é uma abstração porque está desvinculado de suas múltiplas determinações, ficando submetido unicamente à circunstância que desencadeou o episódio. Essa abstração tende a transformar a história em uma simples sequência de fatos anedóticos, superficiais, sem uma lógica que os interconecte. Para Schaff (1983), o reconhecimento de um fato como fato histórico resulta da adoção de um sistema de referência (entendido como uma área de conhecimento) e de uma teoria definida. A percepção e a formulação dos fatos são resultado da teoria. A teoria precede o estabelecimento dos fatos e se apoia nesses fatos. Do mesmo modo, Carr (1982) explicita que quando procuramos conhecer os fatos, as perguntas que fazemos e as respostas que obtemos são formuladas pelo nosso sistema de valores. Ou seja, a construção de um fato histórico é um diálogo entre a teoria que o sujeito do conhecimento aplica e as fontes que utiliza, além de sua própria subjetividade. Assim, o autor esclarece que até mesmo os fatos encontrados nos documentos precisam ser processados pelo historiador antes que se faça qualquer uso deles. As considerações desses autores possibilitam entender o fato histórico como um fato social, ou melhor, um acontecimento que, ao ser integrado a um conjunto de circunstâncias do passado que conduziram à sua realização, se mantém relevante ao longo do tempo, desencadeando outros fatos e tornando-se, portanto, objeto da ciência da história. Schaff (1983) identifica dois tipos de fatos históricos: aqueles que são reconhecidos por todos os sistemas de referência e aqueles que são reconhecidos apenas por determinado sistema de referência. No primeiro caso, tem-se os fatos históricos que, por ocuparem uma centralidade em determinado período e por modificarem a história de forma ampla, são reconhecidos por todos os sistemas de referências. Neste caso, podem ser citados a Revolução Francesa, Revolução Russa, a transição do feudalismo para o capitalismo e a Revolução Industrial. Também são exemplos o golpe civil-militar de 1964 no Brasil ou o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo em 1992. Fatos dessa magnitude não podem ser ignorados por estudos que tenham objetos relacionados com determinada região ou país, bem como o período em que tais fatos ocorreram. No segundo caso, os fatos históricos, embora relevantes, não afetam de forma marcante todas as relações sociais do período, por razões diversas que fazem com que esses fatos não tenham uma centralidade. Ou seja, determinados fatos históricos são reconhecidos e relevantes para uma determinada área do conhecimento, mas não são para outras. Nesse tipo, pode-se considerar a criação do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), em 1976, e a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986, como fatos históricos relevantes para a área de conhecimento da Saúde Coletiva, devendo ser considerados pelos estudos que tem como objeto, por exemplo, as lutas políticas no setor saúde, a gênese e desenvolvimento de políticas de saúde específicas e movimentos sociais brasileiros. Fato político Em busca de esclarecer o que pode ser entendido como um fato político é pertinente explicitar, inicialmente, o que está sendo denominado política e política de saúde. O termo política possui muitos significados, mas será considerada a concepção de política como expressão da atuação do Estado (WEBER, 1982; BOBBIO et al., 2010) e que na saúde expressa uma dada distribuição do poder, no setor e nas organizações (TESTA, 1992; 1995). Para Testa (1992, 1995), a ideia de poder encontra-se ligada ao Estado e constitui a relação sobre a qual se constroem as sociedades modernas. No setor saúde essa relação se expressa de diversas formas e em diferentes âmbitos, caracterizando distintos tipos de poder, entendido também como capacidade, recurso ou relação. Assim, as atividades que manejam recursos referem-se ao poder administrativo; conhecimentos que se utilizam em quaisquer dos níveis de funcionamento do setor saúde compõem o poder técnico; e o que funciona para defesa dos interesses dos diversos grupos interessados no setor saúde, no qual é gerado, constitui o poder político, enquanto capacidade de desencadear uma mobilização. Considerando tais elementos conceituais, a política de saúde pode ser entendida como a ação ou omissão do Estado (PAIM, 2003) diante de problemas e necessidades de saúde e seus determinantes, assim como em relação a componentes do sistema de saúde, tais como financiamento, gestão, modelo de atenção, organização, cobertura, acessibilidade, qualidade, entre outros (PAIM; TEIXEIRA, 2006). Pode ser manifestada pelas politcs e policies. O primeiro termo representa o processo político de relações de poder, de análise dos problemas e escolha das soluções, que implica a seleção de alternativas e pode resultar em conflito de interesses e, portanto, na necessidade de construção de consensos em torno dos objetivos a serem perseguidos e dos meios a serem utilizados para isso. Já as policies referem-se às ações expressadas nos documentos oficiais, nos conteúdos dos planos, programas e projetos que contemplam as atividades e recursos a serem empregados na materialização das decisões políticas (PINTO; TEIXEIRA, 2013; PAIM, 2003). Portanto, as políticas de saúde são fatos sociais, apresentando generalidade (é aplicada a toda a sociedade ou a grupos específicos e não a um indivíduo), coercitividade (determina as ações que podem ou não ser realizadas e que norteiam os direitos e deveres da sociedade) e externalidade (existe no meio social). Como fatos sociais, as políticas de saúde são decorrentes de um processo de produção social e podem constituir-se a partir de fatos políticos. Diferentes definições de fato político podem ser encontradas em áreas de conhecimento que o tomam como objeto de estudo, a exemplo do Direito. As expressões fato político e ato político são encontradas no campo do Direito, sendo pertinente verificar a possível contribuição das mesmas para a análise política em saúde. Nesse sentido, Cretella Júnior (1987), ao discutir a teoria do ato de governo, entende que ato de governo (expressão oriunda da jurisprudência francesa em 1982) ou ato político é toda manifestação de vontade do poder público que, por sua condição especial, escapa à revisão do poder judiciário, exceto em situações que impliquem inconstitucionalidade ou ofensa aos direitos individuais ou coletivos. Ressalta, contudo, que há definições e doutrinas variadas apresentadas por outros autores, havendo dificuldade em definir essa expressão de modo preciso. São exemplos de atos políticos no direito brasileiro: a decretação do estado de sítio, a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito pela Câmara dos Deputados ou Senado Federal, a nomeação e exoneração de Ministros de Estado, dos governadores, expulsão de estrangeiros etc. A ação, decorrente da aplicação de um ato político, praticada pelos agentes políticos no desempenho das funções executivas, legislativas e judiciárias, de acordo com a competência estabelecida na Constituição Brasileira, constitui-se fato político (CRETELLA JÚNIOR, 1987). Assim, para haver um fato político é preciso que exista previamente um ato político. É possível que essa definição considerada pelo Direito seja útil a estudos de políticas de saúde específicas que estejam fundamentados em referenciais teóricos desse campo. Contudo, ela é insuficiente para a análise política em saúde, pois está considerando o fato político como uma ação exclusivamente dos aparelhos do Estado e seus agentes. Faz-se necessário, portanto, considerar outros referenciais que possibilitem uma maior aproximação com a perspectiva de análise política adotada. Conceitos como hegemonia, Estado ampliado, sociedade política, sociedade civil, estratégia, transformismo, revolução passiva etc. (GRAMSCI, 2000) auxiliam a compreender a dimensão política dos fatos sociais, especialmente a ênfase dada à participação ativa do ator como forma de intervir estrategicamente e produzir mudanças na sociedade. Vianna (1997), ao analisar processos de revolução passiva, também identificou a associação entre o ator e os fatos como forma de produção de novos fatos, de transformações mais intensas na sociedade. É o ator que interpreta e dá ao fato a expressão política, devendo haver, por parte dele, critérios para uma adequada avaliação do mesmo. Há ainda a preocupação de que o ator não seja ultrapassado pelos fatos, ou seja, de que o ator seja sempre ativo, mobilizado, evitando o protagonismo dos fatos, pois isso geraria processos de mudanças mais lentos (revolução passiva mais atrasada). Um ator ativo pode ampliar e intensificar as transformações moleculares no processo de mudança social. Essa associação entre o ator e os fatos é retomada por Matus (1993, 2005), na teoria da ação social por ele desenvolvida, denominada Teoria do jogo social, que fornece elementos para pensar a política como um processo de produção social de alta complexidade, envolvendo relações políticas e estratégicas entre os atores. Dessa forma, auxilia a entender como são produzidos os fatos políticos e quem os produzem. A produção social pode ser definida como tudo o que o homem cria a partir de suas capacidades políticas, ideológicas, cognitivas, econômicas e organizativas. Trata-se de um processo predominantemente político e estratégico. Na produção, tais capacidades são revertidas ao ator social gerando acumulação ou desacumulação de novas capacidades (recursos econômicos, poder, valores, conhecimentos etc.). Matus (2005) faz uma analogia do processo de produção social como um jogo, tendo como características: o aspecto conflitivo, atores com capacidades e objetivos diferentes, e a existência de regras (genoestruturas) que proíbem e permitem, assim como inibem e estimulam as ações possíveis dos jogadores/atores sociais. No desenvolvimento do jogo, a realidade muda a cada momento (ou jogada), de modo que os recursos dos jogadores acumulam ou desacumulam em função de seus acertos. As acumulações (fenoestruturas) dos jogadores constituem capacidade de produção de fatos políticos, econômicos, organizativos, cognitivos e de valores, e são capazes de gerar fluxos de produção. Desse modo, as relações da produção social ocorrem em três níveis: nível dos fatos (fenoprodução), nível das acumulações (fenoestrutura) e no nível das regras (genoestruturas). Quanto maiores as acumulações de um ator maior a possibilidade de produzir novos fluxos. Isso gera novas acumulações, alterando as fenoestruturas e, consequentemente, produzindo novos fatos políticos que podem, por sua vez, produzir ou alterar as regras. As genoestruturas são muito estáveis (em função dos interesses dos atores mais poderosos) e, quando alteradas, assinalam as grandes mudanças históricas. No processo de produção social há forte relação entre o político e o econômico. Nas genoestruturas as regras políticas determinam e são determinadas pelas regras econômicas; por sua vez, as regras econômicas determinam o tipo de acumulações econômicas possível, as quais condicionam as relações de forças e estas condicionam as regras políticas possíveis. A partir dessas contribuições, pode-se entender um fato político como um fato social produzido a partir da interação de atores sociais com objetivos e interesses convergentes e divergentes e com distintas capacidades acumuladas, tendo em vista o Estado. Essa interação social, mediada por um conjunto de regras (por exemplo, normas jurídicas e sociais, condutas ou orientações de determinados grupos sociais, orientações políticas de determinada organização, estratégias de um programa de ação ou plano de governo etc.), resulta na produção de novos fatos políticos e, consequentemente, na acumulação de mais poder ao ator que gerou os fatos. Esse poder pode ser acumulado ou desacumulado no processo de produção social. Alguns exemplos podem ser utilizados para pensar essa definição de fato político. Considere-se, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 e as leis nº 8.080/90 e 8.142/90, as Leis Orgânicas da Saúde. Todas se constituem fatos sociais, decorrentes de um processo de debate (por meio da Assembleia Nacional Constituinte, audiências, seminários na Câmara dos Deputados e no Senado Federal) e articulações entre diferentes sujeitos e atores sociais (representantes de variados setores da sociedade e organizações interessadas na efetivação de um sistema público universal e integral, representantes do setor privado defensores dos interesses do mercado da saúde, representantes dos aparelhos do Estado) com interesses divergentes e capacidades para intervir (poder e força) variadas. Esse processo de confronto das diferentes propostas, de tentativa de construção de consenso, de negociação de interesses para alcance de mudanças, no âmbito do Estado brasileiro, constitui um fato político. Alterações na correlação de forças entre os sujeitos e atores sociais e na conjuntura do país podem implicar mudanças, produzindo outros fatos políticos decorrentes de fatos anteriores. Assim, também podem ser citados como fatos políticos o movimento pela descentralização e municipalização da saúde na década de 1990; as conferências (municipais, estaduais e nacionais) de saúde; o estabelecimento de dispositivos legais decorrentes de contradições e conflitos no âmbito da sociedade e do Estado, a exemplo da Lei de patentes, e o processo de regulamentação do financiamento da saúde; o estabelecimento de políticas sociais voltadas para a garantia de direitos para os grupos vulneráveis (população negra, quilombolas, indígenas, LGBT etc.). Mais recentemente, as mobilizações sociais e o desenvolvimento de novas formas de manifestação que caracterizaram o ano de 2013 (MAGNO; PAIM, 2015). Considerações finais A partir da articulação de autores, esse texto possibilitou a discussão do conceito de fato social, a identificação do conceito de fato histórico e a elaboração de uma definição de fato político que enfatiza a participação do ator social. A partir deles, compreende-se que é fato ou evento tudo o que ocorre na sociedade, mas o fato social (ou fenômeno social) precisa apresentar generalidade, coercitividade e externalidade - as três condições estabelecidas por Durkheim (1987). Um fato social pode se configurar num acontecimento (dependendo dos interesses envolvidos e sentidos atribuídos) e também tornar-se um fato político (caso seja produzido como resultante da correlação de forças e capacidades existentes entre diferentes atores sociais visando o Estado) e/ou um fato histórico (caso se mantenha relevante ao longo do tempo). Essa tipologia de fatos sistematizada neste texto certamente não contempla os variados objetos das pesquisas em saúde, dada a sua complexidade, sendo necessária a construção de novas definições e elaboração de conceitos à medida que as pesquisas sejam operacionalizadas. Referências BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 13 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. 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