deitado eternamente em berço esplêndido

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Subestimar a crise: a retórica brasileira
Carlos Lessa
A globalização financeira construiu um gigantesco castelo de cartas com dimensão
cósmica e uma multiplicação de andares. O PIB mundial, ou seja, a totalidade da
atividade econômica, em um ano, de todos os países do mundo, soma, segundo o
International Settlements, pouco mais de US$ 65 trilhões; os ativos financeiros (toda a
dívida primária) estariam acima de US$ 130 trilhões; os derivativos e outras alquimias
financeiras são estimados por aquele estabelecimento (ninguém tem certeza), com
prudência, em mais de US$ 600 trilhões.
Sobre a base real, em duas décadas e meia, os bancos e os agentes do mercado
de capitais montaram este "palácio de ficções" e "soldaram as cartas" com a cola da
confiança recíproca. A atual crise dissolveu a cola e o encolhimento de confiança vem
desmontando seções e andares do edifício financeiro. As cartas não se depositam apenas
sobre o PIB, mas transmitem a enfermidade dos andares superiores para o piso da
economia real. Auxílios de governo, desde o Proer americano até as estatizações parciais
de bancos europeus, tentam restaurar a confiança, porém parecem, dialeticamente,
tornar mais escassa a confiança recíproca.
Nos EUA, é cada vez mais freqüente o prognóstico de uma recessão em 2009. O
governo espanhol já anunciou que entrará, necessariamente, numa recessão. A Islândia
(que o discurso neoliberal exaltava como modelo de êxito) estatizou seu principal banco
e anuncia um pacote de resgate de com o FMI. Os bancos da OECD vacilam. Na
conservadora Suíça, o UBS, seu maior banco, já falou de perdas de US$ 40 bilhões. As
Bolsas de Valores e de Mercadorias vivem, aos solavancos, trajetórias inequivocamente
descendentes. A China anuncia declínio de sua taxa de crescimento. A Argentina fala em
estatizar a previdência privada complementar. Os preços das commodities desabam. Em
todo o mundo interligado surgem problemas de crédito (menos na China, que participou
da globalização mercantil mas jamais permitiu a articulação financeira interna com o
castelo de cartas). Bancos quebram, ou desaparecem. Os governos improvisam "Proers",
reduzem juros e - suprema heresia em relação ao neoliberalismo - assumem
participações acionárias, bloqueiam pagamentos de dividendos e reduzem os salários dos
executivos dos bancos semi-estatizados.
Enquanto isso, num país tropical "deitado eternamente em berço esplêndido", se
sucedem declarações como "a crise não atravessará o Atlântico", para mais à frente
afirmar que o Brasil "será atingido apenas por uma marolinha". O mais alto dirigente do
país recomendou que as pessoas mantivessem o consumo e, pouco depois, em outro
local, aconselhou a poupança; o presidente da Febraban declarou que não havia
"problema de crédito no país"; o ministro do Planejamento afirmou que "meteria a faca"
no gasto público. A projeção oficial afirma que o país crescerá, em 2009, 4%.
O presidente do Banco Central diz que o Brasil está "blindado contra a crise".
Adverte, contudo, que "mesmo um carro blindado pode tombar por um erro de direção",
insinuando que é motorista experiente em "dirigir carros blindados".
No contraplano, mais além das quedas da Bovespa, se registram dificuldades
terríveis para financiamento externo para as exportações nacionais, se multiplicam
dificuldades de crédito no interior da economia, os bancos pequenos solicitam
transferência de suas carteiras para os bancos grandes.
O Banco Central adverte quanto ao risco de inflação e reluta em reduzir juros. Para
animar o crédito, reduz os depósitos compulsórios bancários e é surpreendido com o
aumento dos depósitos voluntários dos bancos no BC; tenta vender dólares através de
cerca de dez grandes bancos e recebe a queixa que os dólares estão sendo estocados por
estes bancos. O país descobre que grandes empresas, líderes em seus setores - Sadia,
Aracruz, Votorantim - perderam centenas de milhões em operações ciclópicas com
derivativos; pelo menos uma se defende dizendo que acompanharam a política oficial do
Banco Central.
Há um aparente paradoxo no fato de o enfraquecimento financeiro americano, que
abriu a crise, ser acompanhado da alta do dólar em relação a uma cesta de 26 moedas.
Teria "se valorizado" 8% em relação às demais moedas do planeta. É fácil entender o
que está por trás deste paradoxo: a desmontagem, nos EUA, está levando suas
empresas, bancos, fundos e famílias a "realizarem", com perdas, suas aplicações de risco
fora dos EUA, bem como fazer regressar aplicações financeiras. Assim sendo, é fácil
entender que retirarão, urbi et orbi, de todo o mundo, inclusive do Brasil. Nossa Bolsa
estava alimentada por aplicações financeiras do exterior; da mesma forma que uma
parte expressiva dos títulos do Tesouro está em posse de aplicadores estrangeiros
interessados em desfrutar os super ganhos que nosso Banco Central permitiu, mantendo
a taxa de juros Selic lá em cima e desonerando de qualquer fiscalização o aplicador
estrangeiro.
É verdade que jamais o Brasil teve em suas mãos tão expressivas reservas
internacionais. Manda a prudência segurar estas reservas. Deveríamos nos inspirar na
China e cortar as ligações viscerais entre bancos, empresas e mercado de capitais
atuantes no Brasil com o castelo de cartas que desmorona fora do país. O Banco Central
deveria centralizar todas as operações cambiais e nomear o Banco do Brasil seu único
agente cambial. Poderia fazê-lo, legalmente, por um simples ato administrativo.
Ideologicamente, estamos assim autorizados a nos defender ante a demonstração
inequívoca de incompetência gerencial do "centro do mundo" em matéria monetária e
financeira e seu pragmatismo adotando "Proer", absorvendo títulos podres, estatizando
bancos. O Brasil não pode perder suas reservas cambiais, nem pode conviver com o
desequilíbrio do balanço comercial. À ameaça de fuga em massa de dólares para o
exterior, nos cabe a contrapartida de regular o fluxo de saída. A retórica não tampa o sol
com a peneira.
Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira do Instituto de Economia da
UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) (endereço eletrônico: [email protected]). Escreve mensalmente, às
quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 22 outubro de
2008.
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