Seleta de Legumes

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Seleta de Legumes
A quantas anda a astronomia amadora no Brasil
Ilustríssima – Folha de S.Paulo
7 de outubro de 2012
por Vanessa Barbara
De rosto redondo e bochechas fartas, o dr. Aristóteles Orsini formou- se em medicina em 1933 pela Universidade de
São Paulo. No ano seguinte, defendeu uma tese de doutorado intitulada “Fermentos amilolíticos encontrados em
sementes de leguminosas”, e pouco depois assumiu a cadeira de professor- assistente de física da Faculdade de
Farmácia e Odontologia da USP.
Em 1935, foi aprovado em concurso para livre- docência com a tese: “Algumas constantes físicas de tinturas
oficinais”. Chegou a cursar matemática e foi professor interino da cadeira de física biológica da Escola Paulista de
Medicina, além de chefe do Serviço de Radiologia da mesma instituição.
Em 1947, tornou- se catedrático de física com a tese: “Isótopos Radioativos”. Entre seus trabalhos nas áreas da
medicina, biologia e física, destaca- se: “O emprego dos raios X no estudo dos expectorantes”.
Além de médico, o prof. Orsini foi filatelista e numismata. Fundou a Associação de Amadores de Astronomia de
São Paulo (AAA) e foi diretor da Escola Municipal de Astrofísica (EMA), anexa ao planetário do Ibirapuera, que hoje
leva seu nome.
Patrono da astronomia amadora, Orsini ilustra bem o perfil de quem estuda informalmente os astros no Brasil. São
cerca de 4 mil entusiastas da disciplina com formação de geólogos, pedagogos, engenheiros, arquitetos,
matemáticos, médicos e curiosos que se reúnem para desvendar o céu, retornando por um instante às carteiras
escolares em anacrônicas discussões sobre nebulosas, supernovas e cometas, essas “estranhas estrelas de
cabelos longos”.
FUNDAMENTOS
No auditório da Escola Municipal de Astrofísica, dez oito alunos se reuniram para um semestre de aulas sobre os
fundamentos básicos da ciência, no curso 250 – Astronomia Geral. O professor, Paulo Gomes Varella, é um efusivo
senhor de bigodes que lembra um docente dos tempos de ginásio, daqueles que tentam transmitir aos alunos seu
vasto amor pelas equações de segundo grau.
As aulas tiveram início em março de 2011 e ocorreram às quintas- feiras à tarde, das duas às quatro, em pleno
Parque do Ibirapuera. O edifício, que fica ao lado do planetário, conta com três salas de aula e um auditório de 100
lugares. A despeito da expectativa quanto ao moderníssimo sistema de fibra óptica do novo projetor StarMaster
ZMP, da empresa alemã Carl Zeiss, só a última aula foi realiz ada no planetário – todas as outras se deram em
diminutas salas de aula, com lousas brancas e projetores de Power Point. Os cursos têm uma taxa única que varia
de 18 a 36 reais, com descontos para aposentados e funcionários públicos.
Paulo Varella, 55 anos, tem um sotaque paulistano carregado e é um trocadilhista incansável. Tem formação em
geologia e meteorologia (USP) e pós em ensino de astronomia (Unicsul). Dá aulas na EMA desde 1976, foi chefe
do Observatório Astronômico da instituição e autor do livro Reconhecimento do Céu (UnB, 1993), além de cartas
celestes e guias práticos para observação de estrelas, constelações e chuvas de meteoros. É o expositor mais
ativo da história do planetário, com 1750 apresentações ao vivo das sessões de cúpula.
As aulas começaram com uma breve apresentação sobre o programa de cursos da EMA, fundada em 1961, quatro
anos após a inauguração do planetário. Lá são oferecidas disciplinas livres introdutórias (Reconhecimento do Céu e
Astronomia do Sistema Solar) e também avançadas, como Cosmologia, Mecânica Celeste, Evolução Estelar e
Astronomia Esférica. Até o momento, foram ministrados 646 cursos.
Dito isso, Varella passou direto para a matéria, discorrendo genericamente sobre os sistemas solares, conjunto de
astros cuja principal interação é gravitacional, e sobre os planetas, “corpos errantes que caminham entre as
estrelas”. Forneceu uma informação básica que quase ninguém sabia: a principal diferença observacional entre
estrelas e planetas é que estes últimos não “piscam” – são pontos de luz fixa, sem a cintilação característica das
estrelas.
Ao contrário dos asteroides, que vivem circundados de poeira e são astros batatiformes (com a massa pequena e
alongada), os planetas têm massa suficiente para assumir forma esférica e limparem as viz inhanças de sua órbita.
Os asteroides também não têm atmosfera e, por isso, são cravejados de crateras provocadas pelo impacto com
outros corpos celestes (o que o professor chama de celulite planetária).
A turma anotou com fúria discreta certas informações práticas sobre a observação de Saturno, que ano passado
atingiu um brilho considerável, e surpreendeu- se com a notícia de que a partir de São Paulo é possível ver cinco
planetas a olho nu. (Intrépida, a repórter conseguiu identificar todos os cinco ao longo do ano, com destaque para a
notável inclinação de Saturno e as quatro luas de Júpiter. A título de gabolice, diz em que Copérnico, em seu leito
de morte, confessou nunca ter visto Mercúrio.)
Aos que ainda não possuem familiaridade com as constelações e não se sentem à vontade com planisférios de
papel, Varella indica um software de astronomia para iPhone: o Stellarium, que é gratuito e reconhece os astros
por meio de gps, basta apontar o aparelho para o céu.
O professor falou da inclinação das órbitas dos planetas com relação à eclíptica (órbita da Terra) e da raz ão pela
qual estamos todos amarfanhados em torno do Sol (atração gravitacional entre massas). Explicou por que em 1986
não vimos o cometa Halley com o mesmo esplendor de 1910 – é que, no início do século, o ângulo de visão foi de
90 graus e era possível observar todo o seu comprimento.
Segundo relatos da época, e conforme registrado em A comet called Halley, de Ian Ridpath (Cambridge University
Press, 1985), em 1910 a cauda do cometa chegou a varrer a Terra, gerando boatos apocalípticos de toda sorte.
Paulo Varella alertou que não é possível prever o ângulo da próxima passagem, em 2061, já que o astro percorre
um longo caminho e sua órbita é alterada por gigantes como Saturno e Júpiter. As variáveis são múltiplas e
complexas, ou seja, astronômicas. “Você acha isso complicado?”, repetia o professor, a respeito de qualquer
coisa. “Complicados são os cálculos das órbitas dos astros.”
Também complicados são os movimentos da Terra, que não se limitam à rotação e translação; incluem precessão
dos equinócios, nutação, variação da excentricidade da órbita, variação de latitudes da obliquidade da eclíptica,
deslocamento da linha dos apsides, rotação da Via Láctea e, ufa, movimento de expansão do Universo.
Na astronomia, afirmou Varella, “abandonam- se as unidades convencionais de medida, do contrário os números
ficariam desconfortáveis”. É por isso que, em vez de quinquilhões de quilômetros, se usam parsecs e anos- luz –
que, a propósito, são unidades de comprimento e não de tempo. “Não faz sentido diz er: ‘Faz uns dez anos- luz
que não te vejo.’” Apesar de tudo, é difícil conceber essas distâncias de fato.
Ainda sobre cometas, Varella não resistiu à piada e disse que o Halley passa uma vez a cada 76 anos e pode ser
visto durante apenas 4 meses – “É como a vida do ser humano: uns quatro meses de felicidade e o resto de
martírio. Quando muito”.
AMADORES
A astronomia é uma das poucas áreas onde os amadores são maioria e contribuem com dados e informações
para a comunidade científica profissional. Estes costumam ocupar- se com trabalhos mais específicos e
segmentados, sem tantas observações diretas pelas oculares dos telescópios. Suas pesquisas envolvem registros
eletrônicos, análises de dados em laboratório, exercícios de matemática bruta e desenvolvimento de teorias.
Os amadores, por sua vez , perscrutam o céu à moda antiga – com telescópios e binóculos de menor porte –, sem
dependerem de orçamentos apertados e da locação de caríssimos aparelhos em observatórios internacionais.
Seus pequenos instrumentos favorecem determinados tipos de exploração que, muitas vez es, complementam a
dos profissionais: acompanhamento intensivo de asteroides, galáxias, manchas solares, exoplanetas, cometas e a
Lua.
Alguns são excelentes construtores de telescópio. Uma área que está praticamente nas mãos deles é a de estrelas
variáveis (sistemas binários), para a qual, segundo Varella, “ninguém tem saco”.
Trata- se de observar estrelas que, com o tempo, variam de brilho. Isso pode ser causado por mudanças internas
da estrela ou por influência externa, como um eclipse entre as estrelas de um sistema binário. É um trabalho de
paciência e observação bruta, uma braçal coleta de dados relegada aos amadores.
Uma sistematiz ação nacional dos trabalhos desses diletantes aconteceu em 1988, com a fundação da Rede de
Astronomia Observacional (REA), uma entidade preocupada com o rigor do método e a padroniz ação na coleta
dos dados, a fim de servirem de base para trabalhos científicos. Seus membros são de diversos países latinos.
O forte da REA reside na descoberta de supernovas, estrelas maciças que, num estágio avançado de evolução,
explodem, emitindo um brilho intenso, para depois ir perdendo o fulgor. Nos últimos sete anos, foram reveladas
quinz e delas através de um programa automatiz ado de busca denominado Braz ilian Supernovae Search, em vigor
desde 2001, em parceria com o Centro de Estudos Astronômicos de Minas Gerais.
Outro exemplo digno de nota foi a descoberta de um cometa na noite de 28 de dez embro de 2002 por um brasileiro
da rea, o gaúcho Paulo Holvorcem, em conjunto com um norte- americano. O cometa foi batiz ado de JuelsHolvorcem.
Desse modo, apesar da denominação “astrônomo amador” remeter a uma atividade diletante, muitos desenvolvem
estudos científicos, coordenam trabalhos e publicam resultados em revistas especializ adas – a diferença é que não
possuem formação acadêmica específica. O exemplo mais lendário é o de Clyde Tombaugh, agricultor norteamericano que construiu um telescópio usando partes de um Buick 1910 e peças de uma batedeira de leite da
faz enda.
Por conta própria, Tombaugh foi observando e desenhando tudo o que lhe parecia interessante no céu. Um dia
encaminhou as anotações ao Observatório Lowell, no Ariz ona, em busca de conselhos profissionais. Pediram- lhe
que fosse até lá e, para seu espanto, ofereceram- lhe um emprego como astrônomo assistente. Em 1929, foi
contratado para dar prosseguimento a uma pesquisa iniciada em 1905 por Percival Lowell.
O alvo era um “planeta X” localiz ado além de Netuno. Dez meses mais tarde, no dia 13 de março de 1930, após
passar inúmeras noites em claro na cúpula gélida do observatório, Clyde Tombaugh, de 24 anos, passaria à
história como o descobridor de Plutão.
FURAQUINHOS
Um tanto afastados das grandes descobertas, vários alunos
foram pegos de surpresa pela notícia de que as estrelas
estão (muito) mais distantes de nós do que os planetas. Se a
Terra estivesse localiz ada na Escola de Astrofísica e Netuno
no lago do Ibirapuera, Alpha Centauri estaria em Queluz ,
numa viagem que levaria 104 mil anos só de ida. (Também
chamada de Toliman, ela é a estrela mais próxima da Terra
além do Sol.)
A WMAP e o emblema do Batman
A classe era formada por alunos de diferentes idades e
profissões. O mais novo era John Riedel, de 13 anos,
estudante do oitavo ano do ensino fundamental e apaixonado por astronomia. A maior parte de seu conhecimento
foi adquirido em documentários do Discovery Channel. Havia também um senhor peruano chamado Iván Palacios,
que sempre chegava bem cedo, um casal de aposentados aficionado em softwares de astronomia, o jornalista
Jorge Luiz de Souz a e uma ex- bailarina e personal trainer, Ana Maria Pereira, de 52 anos, que mora perto do
parque e ficou impressionada com a didática do professor.
“Como ele de fato gosta de astronomia, conduz o curso com tanto carinho que não há como não aprender e se
encantar com o universo”, declarou. “Acho que, pela minha profissão, movimento é algo que me encanta e nada
melhor que estudar o universo para entendê- lo melhor.”
A estudante de administração Janisse Paiva de Oliveira, de 26 anos, participa de quase todas as atividades da
EMA. Cursou a disciplina Reconhecimento do Céu I simultaneamente à de Física Estelar (Introdução à Astrofísica),
com Irineu Gomes Varella, e achou esta última bem complexa. “Aprendemos sobre a temperatura dos corpos
celestes, as distâncias, a paralaxe, o teorema de Pitágoras e espectroscopia”, explicou. “Tinha muita gente
faz endo contas.”
Num folder da escola, o artista plástico Guto Lacaz confessou matricular- se em um ou dois cursos por semestre:
“Comecei com Astronomia Geral com a professora Regina Atulim. Cometas, Astronomia Esférica, Sistema Solar,
Eclipses, Efemérides, Tempo e Calendários… Reconhecimento do Céu, Evolução Estelar… já fiz alguns três
vez es!”, exclamou, elogiando os professores Paulo e Irineu Varella. “Conhecimento, bom humor e giz !”, resumiu.
A escola também oferece palestras esporádicas sobre outros temas, como “Astronomia com o planeta Mercúrio”,
ocorrida num sábado à tarde, e uma série em homenagem à Semana de Radioastronomia, em outubro do ano
passado. Numa dessas aulas, ministrada por um jovem professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
falou- se das descobertas cosmológicas obtidas pela sonda WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe) com a
radiação de fundo da nossa galáxia. É uma das mais fortes evidências observacionais do modelo do Big Bang de
criação do universo.
Comentou- se o formato peculiar das imagens resultantes, muito parecido com o emblema do Batman, mas, fora
isso, o resto da exposição foi praticamente incompreensível. “Mede- se o espectro de potência em função do
ângulo e momento do multipolo”, explicou o rapaz , com a ajuda de gráficos inexpugnáveis e equações igualmente
escandalosas. Alguém fez uma pergunta cuja resposta era “dez oito avos de segundo”. Diante do silêncio, ele
passou para sua especialidade: nuvens moleculares e astroquímica.
Quando desandou a falar de um tal espectro “maser” – não laser, mas “maser” –, houve suspeitas de que estaria
inventando e, portanto, alguns desistiram de tentar entender. A introdução à astronomia geral parecia mais ao
alcance dos mortais.
Infinitamente mais acessível, aliás: uma revelação banal que causou espécie nos alunos da turma foi a de que os
meteoroides, ou cometas, possuem o tamanho de uma ervilha. “Ervilha, feijão, grão- de- bico. Os maiores são do
tamanho de laranjas”, explicou Varella, creditando o alto brilho dos cometas a um fenômeno de ioniz ação
decorrente de sua altíssima velocidade ao entrar na atmosfera terrestre.
Em vinte horas- aula, até o fim do semestre, falou- se da diferença entre planetas telúricos e jovianos – os primeiros
têm composição química e densidade próximas às da Terra, e os segundos são gasosos e mais parecidos com
Júpiter. Este, aliás, gira tão veloz mente que possui faixas gasosas alinhadas no sentido de sua rotação – vista a
olho nu, a famosa estrutura em forma de olho tem 3,5 vez es o tamanho da Terra e é provavelmente uma
tempestade colossal que vem ocorrendo há três séculos. “Uma espécie de furacão, sendo que, perto dele, os
nossos são ‘furaquinhos’”, comparou Varella.
O professor também informou que se jogássemos os planetas na água (por alguma raz ão insondável), todos
afundariam, menos Saturno, que tem a densidade menor do que uma rolha e, portanto, boiaria. Outra informação
importante: Galileu Galilei não conseguiu identificar os “anexos” laterais do planeta como sendo anéis, e pensou
que se tratasse de um astro triplo. Na mesma época, outros foram mais criativos: deparando- se com aquelas
formas estranhas, concluíram que Saturno era dotado de orelhas.
SEU ASTRAL
Torcedor fanático do Palmeiras e fã da série Arquivo X, Paulo Varella é uma unanimidade entre os alunos. Sempre
de bom humor, compartilha o vício pela astronomia com o irmão Irineu, de 59 anos, formado em física e
matemática, e com a esposa Regina Auxiliadora Atulim, de 48 anos, ambos professores da EMA. “É uma família de
loucos. Imagina como são as nossas conversas em casa”, brinca.
Varella é também diretor do Observatório Céu Austral, entidade fundada em 1987 para difundir conhecimentos em
astronomia e ciências da terra. Ele costuma diz er que fez tudo errado: se tivesse escolhido a astrologia e batiz ado
o grupo de “Seu Astral”, em vez de “Céu Austral”, certamente ganharia mais dinheiro.
Interessou- se pela ciência aos 14 anos, trabalhando como guia do relógio de sol e sonoplasta das sessões do
planetário. Tem um voz eirão de dublador profissional. Sabe contar histórias e prender a audiência; seu relato sobre
a sequência de Titius- Bode – controversa equação matemática criada para prever distâncias planetárias – deixou
todo mundo preso às cadeiras. Além disso, consegue responder até as dúvidas mais complexas e guarda na
memória uma infinidade de distâncias interestelares, dimensões, volumes, composições químicas e temperaturas.
Nas aulas, ensina como coletar meteoritos em casa, descreve os siderólitos como se fossem pés- de- moleque
(sendo os amendoins as partes rochosas) e confessa, emocionado, que gostaria de ter conhecido Hiparco
pessoalmente. Varella acredita na possibilidade de vida fora da Terra, mas “daí a dar um passo além e acreditar
em OVNIs, é outra história”.
Fala com entusiasmo da Cratera de Colônia, que ninguém na classe conhecia e que é praticamente ignorada no
meio acadêmico. Localiz ada na Zona Sul de São Paulo, na região de Parelheiros, tem 3,6 quilômetros de diâmetro
e foi possivelmente provocada pelo impacto de um meteoro de cerca de 200 metros, há uns 5 milhões de anos.
Sua profundidade máxima é de 400 metros.
Desde 1989, a área foi ocupada por loteamentos irregulares que surgiram com a instalação do Presídio de
Parelheiros, situado no interior da formação geológica. Segundo a prefeitura, hoje há 30 mil pessoas morando no
povoado de Vargem Grande, no nordeste da cratera, habitando porções internas e externas e distribuindo- se
pelas encostas. A ocupação desconfigurou parte da borda, mas, vindo pela estrada de Colônia, lá de cima dá pra
ver o contorno da estrutura. “Provavelmente o meteorito ainda está encravado lá dentro”, conta Paulo Varella,
lamentando a escassez de escavações científicas na área.
Na última aula do semestre, ele obteve autoriz ação para abrir uma vitrine onde estão expostos os meteoritos. Com
as duas mãos, tomou um fragmento do segundo maior meteorito do Brasil, o Santa Luz ia, caído em Goiás em 1919.
Do tamanho de uma bola de boliche, ele foi passando pelas mãos dos alunos, um a um, sob avisos de que era
pesado. O Santa Luz ia é feito de uma liga metálica inexistente na Terra e composta quase que exclusivamente de
ferro e níquel de altíssima densidade. A idade estimada é de 4 bilhões de anos. “Quero que vocês tenham a
sensação de tocar em um corpo celeste que não a Terra”, explicou.
Segundo um dos alunos, foi um desses momentos em que entendemos uma coisa não só com a mente, mas com
o corpo, com a pele. “Lembro quando li pela primeira vez que nós estamos em cima de uma pedrinha que flutua no
espaço”, comentou o rapaz . “O frio, o arrepio que tive ao pensar nisso me deixou quase paralisado. Deu até
vertigem.”
Todos se surpreenderam com o peso do objeto (22 kg) em relação ao seu tamanho (bolas de boliche têm até 7,25
kg), compreendendo empiricamente que só podia ser feito de um material muito condensado e singular. Uma rocha
densa, gelada e metálica que veio do espaço. “Vou falar de novo: VEIO DO ESPAÇO!”, ressaltou uma das alunas,
incrédula.
OBSERVATÓRIO
Olhando de longe, mais precisamente de um telescópio dobsoniano, até parece que a Escola Municipal de
Astrofísica é um centro de excelência internacional com verba milionária, equipamentos modernos e total subsídio
do governo. Se a estrutura funciona, é por pura tenacidade dos envolvidos, sobretudo os professores.
No último sábado de cada mês, o planetário organiz a uma sessão noturna de observação com telescópios na laje
da escola. “A gente tenta, na medida do possível, promover essa atividade”, comentou o diretor dos planetários da
cidade, João Paulo Delicato, um rapaz de voz calma que é também coordenador da Sociedade Brasileira para o
Ensino da Astronomia. Ele está no comando dos planetários desde janeiro de 2011.
Como todo bom astrônomo amador, Delicato começou com uma licenciatura em ciências exatas, passou a
pesquisador do departamento de Física da Universidade Federal de São Carlos e criou o Laboratório de
Magnetohidrodinâmica da USP. Trabalhou nos planetários de Brotas e de Campinas e acabou presidente da
Associação Nacional de Foguetes Amadores, a ANFA.
Ele se considera na obrigação de promover esses eventos ao público apesar da precariedade das instalações do
terraço, que possui fios de radiotelescópio espalhados pelo caminho e inexplicáveis reentrâncias arquitetônicas
que tapam partes do céu e deixam as laterais da laje completamente vaz adas. “Pra vocês terem uma ideia, o
arquiteto que fez o planejamento do prédio da EMA tinha decidido que o espaço de observação com cúpula ficaria
só de enfeite para a população passar e olhar”, explicou.
Daí a necessidade de orientar bem o grupo antes das observações. “A laje é aberta e vaz ada, então, quem está
com criança pequena, por favor fique de olho, segurando a mão. Nada de correr. Até porque a gente não pode
deixar a luz acesa com muita intensidade, senão ofusca a observação”, explanou Delicato a uma plateia de
aproximadamente cinquenta pessoas. A maioria nunca tinha usado um telescópio.
Ele prosseguiu: “Lá em cima está muito escuro, tenham cuidado ao subir as escadas. É para andar com calma,
olhando bem para não tropeçar em nenhum fio e nem nos aparelhos”.
Segundo Paulo Varella, o prédio da EMA foi construído na década de 60 pela Comissão de Construções Escolares
do Município, que não levou em conta a funcionalidade do observatório. A preocupação foi mais estética, com o
projeto arquitetônico, e é por isso que até hoje a cúpula prateada do terraço continua sem uso.
“Após a construção, chegou- se a abrigar um telescópio construído aqui mesmo no planetário, com 30 cm de
abertura, mas isso só durou uns meses. O problema era que, quando passava um ônibus na avenida República do
Líbano ou na Pedro Álvares Cabral, a cúpula tremia.” O projeto original não previa a instalação de uma coluna de
concreto junto ao solo, independente da estrutura do edifício, para isolar o telescópio de vibrações.
Hoje, a administração da escola tenta pelo menos reativar a cúpula para as atividades com o público. “Seria
interessante se, no futuro, a gente pudesse ter essa coluna. Isso é um trabalho de engenharia, porque vai ter que
furar esses dois pisos pra colocá- la – isso se houver realmente a intenção de transformá- la numa cúpula
observacional. Porque, se for só para uso didático, acho que podemos improvisar alguma coisa”, garante Varella,
que pensa em instalar calços de borracha nos pés do telescópio para amortecer vibrações externas, à maneira do
que é feito nas Star Parties americanas, famosos encontros de astrônomos amadores.
“Seria uma tentativa. Se não der certo, podemos tentar outra coisa: montar a base de concreto do telescópio em
cima de um colchão de areia. A areia é um material não consolidado e entremeado de ar, que não transmite
vibrações e até ajuda a absorvê- las.” Numa demonstração de otimismo, o grupo já faz reparos na abertura da
cúpula.
Por enquanto, porém, as opções são mambembes. Orientados pelos monitores do planetário, os visitantes sobem
à laje e faz em fila atrás de três telescópios ETX- 125 EC, da marca Meade, cada um com 5 polegadas de diâmetro
e controle eletrônico, no valor de 1,5 mil dólares. Há também um LX 200 da Meade, de 12 polegadas com GPS,
que custa 7 mil dólares. Delicato especifica quais astros estarão visíveis em cada um deles. Em 2011, devido ao
mau tempo, só houve três observações abertas ao público: em maio, agosto e dez embro.
No evento de agosto, com o céu de inverno a pleno vapor, os corpos observados foram a nebulosa planetária
NGC 6302, também chamada de Nebulosa da Borboleta; a constelação de Scorpius (Escorpião), por onde passa o
centro da nossa galáxia; e a estrela Antares, uma supergigante vermelha 700 vez es maior que o Sol. Pelo
telescópio, dá pra ver que Antares é um sistema binário, ou seja, na verdade são duas estrelas.
Na observação de dez embro, às vésperas do Natal, os três telescópios foram apontados para o planeta Júpiter,
com diferentes tipos de aumento. Foi possível distinguir as manchas do planeta, sua coloração alaranjada, algumas
estruturas e suas quatro luas. Também houve uma breve observação de Achernar, estrela achatada e az ulada que
é a mais brilhante da constelação Eridanus.
Deparando- se com certa ansiedade e muxoxos esparsos, João Paulo Delicato insistiu que é preciso ter calma e
concentração. “Não é como as imagens do Hubble que estamos acostumados a ver. Não é só encostar a cara no
telescópio que as coisas saltam aos olhos e você vê Marte e os marcianos acenando. Depende de paciência e de
uma certa delicadez a”, observou. “Se for um planeta, você vai enxergar primeiro uma bolinha, depois um contorno
e um detalhe ou outro. No fim das contas, essa manchinha que você viu tem milhões de quilômetros de diâmetro,
está a centenas de anos- luz de distância e é na verdade uma coisa muito interessante cuja imagem levou um
tempo enorme para chegar até nós. É importante ter isso em mente.”
No fim da fila, um grupo de rapaz es vestidos para a balada parecia alvoroçado com a experiência, ocupando- se
em defender a existência de extraterrestres para o resto da fila. Um deles achava um erro terem enviado ao
espaço uma sonda com informações sobre a Terra. “Os ETs vão pegar todos aqueles dados e invadir o planeta”,
afirmou, exaltado, na certez a de estar impressionando as meninas.
ASSOMBRO
Caminhando pelo parque, Paulo Varella consegue
reconhecer de longe quem são os loucos que estudam na
Escola de Astrofísica: aqueles que olham mais pra cima do
que pra baixo. E tropeçam. Certa noite, ele mesmo carregava
uma caixa de equipamentos e quase foi ao chão,
preocupado em sondar o céu à procura de Vênus.
Ministrado no planetário com o auxílio do projetor, o curso de
número 637 – Reconhecimento do Céu I – é o mais procurado
da instituição. Muitas vez es, as 120 vagas se esgotam. No
segundo semestre do ano passado, 76 pessoas se
inscreveram.
As aulas aconteceram às terças- feiras, das 19h30 às 21
horas, com uma turma vespertina às quintas- feiras formada
A Bolinha
pelos ex- alunos de Astronomia Geral. Aula a aula, todos
procuravam se sentar nos mesmos lugares para facilitar a
memoriz ação – menos uma vez , em outubro, quando o projetor “deu chilique” e não estava funcionando
devidamente, projetando o norte no sul e gerando outras imprecisões espaciais. A questão foi resolvida com a
expertise de Varella na arte do improviso: ele desligou as letras verdes dos pontos cardeais e pediu que os alunos
trocassem de lugar. “Finjam que o leste é pra cá”, orientou, pedindo perdão pelo despautério da proposta.
Vez ou outra, o aparelho sofria panes menores ou saía de esquadro, e aí valia o conhecimento bruto do professor,
que corrigia manualmente os problemas e botava a turma (e o aparelho) de volta no eixo. Em várias ocasiões, ele
foi capaz de continuar a aula normalmente, falando sobre coisas complicadíssimas “enquanto, com um martelo e
uma talhadeira, vou tentando consertar o projetor”. Para os íntimos, o StarMaster é também chamado de “A
Bolinha”.
Reparos também são necessários no caso da esfera armilar instalada diante do planetário, uma estrutura giratória
de ferro que permite a visualiz ação espacial do movimento celeste, tendo como referência a cidade de São Paulo.
Executada por um artista plástico, ela apresenta imprecisões de nomenclatura que precisam ser corrigidas
verbalmente pelo professor. Além disso, só pode ser destrancada com antecedência – por segurança, a esfera é
presa por um cadeado e correntes, já que uma criança “quase perdeu o braço girando ali dentro”.
Também têm problemas os planisférios impressos pela Prefeitura em 2005 para a inauguração do planetário do
Carmo, distribuídos gratuitamente aos alunos no final do semestre. Por algum motivo, o leste e o oeste foram
assinalados no lugar errado, a muitos graus de distância de sua localiz ação efetiva, como se os diagramadores
houvessem tentado “centraliz ar” as legendas.
No interior da cúpula, a dinâmica das aulas era sempre a mesma: uma explanação teórica no início, com as luz es
acesas, e depois o fechamento das portas, o breu e as estrelas surgindo garbosamente no céu. Mesmo na última
aula, quando a turma já deveria estar acostumada, ouviam- se expressões de assombro seguidas de um silêncio
quase religioso, sobretudo quando as estrelas mais fracas, de quinta ou sexta grandez a, terminavam de preencher
a abóbada.
Paulo Varella falou orgulhoso do alemão Johannes Bayer, advogado de formação e astrônomo amador que
inventou a atual nomenclatura estelar. Seguindo a ordem decrescente de brilho, pega- se uma letra do alfabeto
grego e junta- se à forma genitiva da constelação em latim, o que resulta em nomes como Alpha Centauri (a estrela
mais brilhante da constelação de Centaurus) e Eta Carinae (a quinta estrela mais brilhante de Carina), que está
prestes a explodir e virar supernova. “Se a Terra estiver no caminho, estamos perdidos”, comenta um dos
professores da Semana de Radioastronomia.
Já as cores das estrelas estão diretamente relacionadas às suas temperaturas superficiais. As mais quentes são
az uis (Rigel, Achernar), e, em ordem decrescente de calor: brancas (Vega, Sirius), amarelas (nosso Sol, Capella),
alaranjadas (Arcturus, Aldebaran) e vermelhas (Antares, Betelgeuse).
A cada aula correspondeu um modelo de céu e sua respectiva constelação- símbolo: em pleno inverno,
começamos pelo céu de verão, o mais simples, que entrou em campo com Orion, as Três Marias e Sirius, a
estrela mais brilhante do céu noturno. Depois passamos para o céu de outono (constelações Leo e Crux), inverno
(Scorpius) e primavera (Pegasus). Varella iniciava a projeção recapitulando as aulas anteriores e agregando uma
ou outra novidade, de modo que, lá pelas tantas, a crença geral era de sairíamos confusos o bastante para
estranhar a própria Lua.
Porém, aos poucos, as coisas foram se encaixando. Incentivado por um chilique permanente do projetor, Varella
não ativava os desenhos artísticos das constelações (linhas imaginárias que ligam as estrelas), limitando- se a
apontar suas respectivas formas com a caneta laser para que os alunos as visualiz assem mentalmente.
A todo instante, lembrava que os desenhos saíram da imaginação dos antigos e que não faz iam necessariamente
sentido. “Alguém aí está conseguindo ver um homem vertendo água de uma ânfora? Parabéns, porque eu não vejo
nada”, comentou sobre a constelação de Aquarius. Ou: “Não dá pra saber se isso é cavalo, peixe, borboleta ou
princesa.”
Foi assim que, para muitos, a constelação Piscis Austrinus passou a ser imediatamente reconhecida sob a alcunha
de Pimentão Celestial, e Sagitarius virou Bule de Chá, para fins didáticos. Em Eridanus há uma curva de estrelas
com um perturbador formato de panetone, aclamada pela turma como O Bolsão do Panetone (a maioria dos alunos
não havia jantado). Já Canis Major parecia um cão bassê com as patas dianteiras num galope celestial. Muito
repetido foi o trocadilho “no meu tempo, havia láctea”, um sucesso até entre os alunos repetentes.
“No final da aula, lá pelas nove, nos reuníamos na rosa- dos- ventos, ao ar livre, para tentar caçar as poucas
estrelas que apareciam no céu”, conta Nicol Alexander Alfaro, jovem chileno radicado no Brasil que se formou em
engenharia elétrica, mas largou tudo para estudar produção audiovisual. “A maioria das vez es estava nublado,
uma vez ou outra o céu um pouco mais aberto, mas só conseguíamos ver umas poucas estrelas. O Paulo, com
aquela precisão e sotaque característicos, apontava seu raio laser para uma estrela solitária e sentenciava: ‘Aquela
é RRRRigel’”. E era mesmo.
BLECAUTE
Ao ar livre, os caçadores de estrelas do curso quase nunca tinham sorte. Ainda mais no último ano, depois que o
Parque do Ibirapuera ganhou um sistema de iluminação 350% mais potente do que o anterior.
Sem consultar a Escola de Astrofísica, a administração trocou as lâmpadas tradicionais de vapor de sódio ou
mercúrio por lâmpadas LED de 113 watts, que emitem luz branca. As bases de 13 metros também foram reduz idas
para 5 metros de altura, para que as copas das árvores não interferissem na projeção de luz . A troca do sistema
custou 11 milhões de reais, compartilhados entre Eletropaulo e o Departamento de Iluminação Pública de São
Paulo, o Ilume.
A medida visava melhorar a segurança do parque, mas, para os astrônomos da EMA, foi como um assalto à mão
armada. “A poluição luminosa é a maior inimiga da observação”, sentenciou o diretor do planetário, enquanto
regulava um telescópio.
Mesmo com um céu sem nuvens e os aparelhos de alta precisão espalhados sobre a laje, era difícil obter um bom
horiz onte de observação. A iluminação ultra potente deixava o céu esbranquiçado, opaco, sem contraste.
Inadequada, desperdiçava boa parte da energia para cima, ofuscando o céu e a terra. “Inclusive já é possível
faz er cirurgias lá na calçada”, informou Paulo Varella.
Na rosa- dos- ventos, após as aulas, ele instruía os alunos a taparem com as mãos as lâmpadas mais próximas. A
cena era surreal: uma dez ena de pessoas agrupadas no meio do nada, com as mãos estendidas em posições
aleatórias, olhando para cima. “Haja estilingue”, brincou o professor, que desde então procurou convencer a
administração do parque a instalar um interruptor para apagar as lâmpadas em torno do planetário, nem que fosse
só no horário das aulas.
Há alguns meses, o problema foi resolvido. Agora é possível apagar as luz es no entorno do edifício da EMA, o que
melhora muito as observações na laje. Além disso, foi instalada uma iluminação mais direcional nos postes. Foi um
avanço, mas ainda há muito a faz er. “É por isso que a gente ama blecaute”, o professor resumiu.
Para além dos esforços em adequar a iluminação, Varella afirma que tentou instalar um posto de observação no
jardim da escola, às margens do lago, próximo ao chamado Patódromo – praça circular que à tarde é invadida por
patos e à noite cai numa relativa escuridão. A ideia era distribuir pelo espaço três pequenas cúpulas fixas para os
telescópios ETX, recém- doados pela Fundação Vitae. “Cada cúpula teria no máximo uns 2 metros de altura e 1,80
metro de diâmetro, só pra abrigar o instrumento e evitar que, a cada observação, tivéssemos que transportá- lo e
montá- lo. Sobretudo porque são aparelhos delicados e pesados, de uns 55 kg cada, que podem ser
descolimados com facilidade.”
Ele encaminhou o projeto ao Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico, que negou o pedido. A justificativa? “Quebraria a ambiência do parque.” Além disso, Varella descobriu
que o parque inteiro fora tombado, não só os edifícios como o projeto paisagístico, e por isso não se permitem
novas construções.
Em matéria estelar, a sonolência generaliz ada do poder público não é novidade. Em 1952, o prof. Aristóteles Orsini
encomendou um projetor de última geração da Alemanha (o Zeiss III) e deu início aos trabalhos para a construção
do primeiro planetário paulista, no Ibirapuera, a ser inaugurado no quarto centenário da cidade. Após passar um
tempo retido na alfândega, o aparelho ficou encaixotado no Viveiro Manequinho Lopes à espera do término da
construção do edifício. A inauguração se deu em 1957, três anos depois do previsto.
O mesmo ocorre ainda hoje com o planetário do parque do Carmo, em Itaquera, fechado há cinco anos. O
milionário projetor Universarium VIII, da Zeiss, foi adquirido em 1996 e ficou encostado num depósito por quase uma
década. Bancado pela Telefônica, o edifício em si começou a ser construído em 2002, com uma cúpula de 20
metros de altura – maior que a do Ibirapuera. Já nessa época, devido à prolongada inatividade, o projetor precisou
de reparos e foi enviado de volta a Alemanha.
A inauguração ocorreu em novembro de 2005, três anos e 11 milhões de reais depois. Contudo, em fevereiro de
2007, o edifício começou a apresentar goteiras e rachaduras e foi fechado para reformas. Por conta da umidade, os
equipamentos voltaram a apresentar problemas.
Em junho do ano passado, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente manifestou- se sobre o assunto para um
jornal da Zona Leste. Declarou que a Prefeitura estaria “viabiliz ando trâmites para a compra das peças avariadas
do projetor” e que “todas as medidas formais estão sendo tomadas para que o planetário volte a funcionar o mais
rapidamente possível”.
Nas últimas semanas, o projetor voltou a funcionar e houve algumas sessões experimentais para escolas. A
reabertura oficial do Planetário do Carmo não deve demorar.
FREITAS
Quando o assunto é telescópio ou binóculo quebrados, a senha é “Passa no Freitas”, acompanhada de um
misterioso número de telefone. De cabelos grisalhos, olhos castanhos e voz grave, Roberto Freitas conserta e
monta aparelhos ópticos em sua garagem, numa bucólica casa de vila no Cambuci.
É formado em administração de empresas com pós- graduação em marketing. Trabalhou na Victorinox, fábrica
suíça de materiais de cutelaria, até que, há dez anos, decidiu pedir um afastamento para dedicar- se integralmente
à construção e manutenção amadora de telescópios. Batiz ou seu empreendimento de Raz ão Focal. “Eu acho que
sempre fui um astrônomo”, confessou, enquanto examinava um binóculo SkyMaster da marca Celestron, de 15×70
milímetros.
O cliente que procura seus serviços ópticos já chega avisado de que deve reservar uma tarde inteira para a visita,
pois Freitas adora conversar. Ainda que esteja acostumado a colimar (alinhar) um instrumento em poucos minutos,
ele gasta o resto do tempo falando de seu assunto preferido: astronomia amadora. “Já me chamaram de lunático,
de professor Pardal, diz em que vivo no mundo da Lua”, admite.
De saída para assistir a uma palestra sobre espelhos metálicos no 14o Encontro Nacional de Astronomia, o ENAST,
na qual basicamente pretendia discordar de tudo o que fosse dito, ele convida os visitantes a voltarem com mais
calma em uma noite de céu limpo. “A gente faz um pão de queijo e brinca com este telescópio”, diz , referindo- se a
um modelo que ele mesmo montou a partir de peças avulsas.
Freitas não se considera um comerciante e nem se preocupa com o lucro. Gosta de despertar o interesse pela
ciência e compartilhar conhecimentos. Sua área de interesse aumenta a cada dia, conforme ele navega na internet
em busca de novidades, participa de fóruns e manipula uma infinidade de lentes, adaptadores, tubos de foco e
tripés, abarrotados em caixas de papelão nas estantes.
A REVANCHE
“A astronomia é uma experiência de humildade e formação de caráter”, escreveu o cientista Carl Sagan em Pálido
Ponto Azul. Embora seja uma ciência complexa e intimamente ligada à física e à matemática, ela costuma cativar
as pessoas pelo seu aspecto humanista. Numa matéria sobre o Ano Internacional da Astronomia (2009) para a
revista da Livraria Cultura, o engenheiro químico Tasso Napoleão descreve o processo: “Primeiro vem o
deslumbramento. Depois, aquela sensação de que não passamos da ‘mosquinha no cocô do cavalo do bandido’.”
A personal trainer Ana Maria Pereira concorda: “Para mim, as aulas foram uma terapia. Aprendi a ver como tudo é
grandioso e que podemos passar o resto de nossos dias descobrindo coisas, se quisermos”.
Outra coisa que atrai os amantes da astronomia é saber que, em cada ponto do céu que observamos, há um
passado diferente. A luz de Alpha Centauri, por exemplo, saiu de lá em novembro de 2007. A de Beta Centauri, em
fevereiro de 1522, pouco depois do Descobrimento do Brasil. Paulo Varella costuma diz er que o telescópio Hubble
não é só um instrumento óptico, mas um verdadeiro observador do passado, pois suas imagens captam a história
longínqua do universo.
“Os números astronômicos são tão gigantescos que olhar para toda a história da civiliz ação é como lembrar de um
pequeno espirro ocorrido alguns segundos atrás. Essa sensação é ao mesmo tempo aterradora e libertadora”,
filosofa um dos alunos, que por humildade não quis se identificar.
Já para Nicol Alexander, o melhor de tudo foi passar horas mergulhado na cadeira, olhando para aquela abóbada.
“Mais para o final do curso, estudamos o movimento dos planetas, então o professor acelera o tempo para que
tenhamos uma percepção mais clara do processo. Dá até vertigem olhar para as estrelas. Vemos um ano
passando em segundos, acompanhamos a dança de Mercúrio, as mudanças da Lua”, lembra.
Ele diz que gostaria de faz er os cursos de Reconhecimento do Céu II, III e IV, e “até os confins do Universo
conhecido”. Sexta- feira passada encerraram- se as inscrições para o tão sonhado “Reconhecimento do Céu II – A
Revanche”, que vai acontecer às terças- feiras à noite, de 9 de outubro a 13 de novembro. Ainda não há previsão
para o “Reconhecimento do Céu III – A Fronteira Final”.
Acessível a curiosos com todo tipo de formação, a astronomia desdenha da nossa arrogância e da ilusão de que
estamos numa posição privilegiada do Universo. “Nosso planeta é um grão solitário na vasta escuridão cósmica”,
definia Carl Sagan. Diante de grandez as assim inconcebíveis, nossas preocupações e angústias caem fatalmente
no ridículo. Nas palavras de Sagan: “Não há, talvez , prova maior da tolice das vaidades humanas do que essa
imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela enfatiz a nossa responsabilidade de tratar melhor uns aos outros e
de preservar e estimar o único lar que conhecemos.”
Não há dor nas costas e desilusão amorosa que resista a uma boa aula no planetário.
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