O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA1 Fernanda Aime Lamp Waick2 RESUMO: O presente trabalho estudou o princípio constitucional da moralidade administrativa por meio da apresentação de dois posicionamentos doutrinários sobre o seu conteúdo jurídico, representados pelos autores Wallace Paiva Martins Júnior e José Guilherme Giacomuzzi. Abordou-se, também, a inserção do princípio da moralidade administrativa na Lei de Improbidade, a natureza jurídica desse diploma legal, a conceituação do vício de improbidade, bem como os requisitos para a configuração da improbidade administrativa por violação a princípio da Administração Pública. Finalizou-se o estudo com a colação de precedentes judiciais, nos quais se entendeu configurada a improbidade administrativa por violação ao princípio da moralidade administrativa. Palavras-chave: Princípio. Moralidade Administrativa. Improbidade Administrativa. INTRODUÇÃO Com o advento da Constituição de 1988, o princípio da moralidade administrativa foi elevado à categoria de princípio constitucional e restou expresso no caput do art. 37, para, juntamente com a legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, orientar a atividade da Administração Pública. Ademais, no parágrafo quarto do art. 37, deixou o legislador consignado que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Em atendimento a esse mandamento constitucional, foi editada a Lei nº 8.429/92, denominada Lei de Improbidade Administrativa – LIA – que dividiu os atos de improbidade em três categorias: aqueles que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º), aqueles atos que causam prejuízo ao Erário (art. 10) e os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). No que respeita à violação de princípio norteador da Administração Pública, enquanto categoria normativa à qual pertence a moralidade administrativa, a Lei nº 8.429/92 estabeleceu severas sanções para o agente infrator, que consistem em ressarcimento integral do dano, se 1 2 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso orientado pelo Prof. Me. Orci Paulino Bretanha Teixeira, apresentado à banca examinadora composta pelas Professoras Me. Carla Maria Petersen Herrlein e Dra. Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros em 15/06/2009. Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais – Faculdade de Direito – PUCRS. Contato: [email protected] houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. A tipificação como improbidade de atos que atentam contra os princípios da Administração Pública constitui, em verdade, a grande novidade da Lei nº 8.429/92, diploma que tem sido muito festejado, porquanto as sanções mencionadas pretendem reprimir os agentes que buscam através do cargo, emprego ou função um meio de satisfazer interesses privados em detrimento do patrimônio público, seja ele material ou moral. É de se sublinhar, por fim, que esse estudo não se situa no plano da filosofia do direito, contentando-se em buscar o conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa nos limites no direito administrativo positivado e nas construções doutrinárias realizadas por autores que estudam o direito administrativo, aplicando-se o mesmo raciocínio à parte em que é abordado o tema da improbidade administrativa. 1 O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA 1.1 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Sabe-se que o mundo jurídico é composto de normas, divididas em duas3 categorias: regras e princípios, cada qual possuindo características próprias e funções específicas. Após apresentar criticas aos modelos de distinção utilizados para a diferenciação dessas duas espécies, Humberto Ávila traz a seguinte proposta conceitual acerca das regras e dos princípios (grifos no original): As regras são imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda 3 Não se desconhece a referência que faz Humberto Ávila acerca da existência de postulados hermenêuticos e postulados normativos aplicativos, caracterizados por serem normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas, entretanto essa discussão não é objeto do presente trabalho. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 122. uma avaliação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrente da conduta havida como necessária à sua promoção. Tanto as regras quanto os princípios, cada qual com suas particularidades mencionadas na transcrição acima, desempenham um papel no cenário jurídico. Ao que interessa o presente trabalho, os princípios, como ressalta José Guilherme Giacomuzzi4, possuem funções como a de otimização de condutas, a orientação do intérprete indicando valores fundantes, bem como a de controlar os atos praticados no exercício da competência discricionária5 do Administrador. O referido autor destaca ainda a função dos princípios como contrapeso ao aumento da discricionariedade decorrente da inflação legislativa que acaba por elevar o Poder Regulamentador do Poder Executivo e o seu âmbito decisório. Esse fenômeno – diz o autor – está ligado à mudança de um Estado garantidor – em que a lei é geral e abstrata – para um Estado gestor6, no qual encontram-se leis e regulamentos que pretendem articular políticas públicas – onde a lei renuncia sua carga de generalidade e abstração a fim de concentrar-se em fatos singulares e específicos7. Nesse novo cenário, os princípios ganham relevância com a sua carga valorativa orientadora das ações, situação que não poderia deixar ser diferente no que diz com princípio da moralidade. 4 5 6 7 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 211. Distingue-se os atos vinculados dos discricionários. Celso Antônio Bandeira de Mello denomina atos vinculados aqueles que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma. Os atos “discricionários”, pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade e avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.394. Nesse sentido, gestão pública se contrapõe à Administração Pública, pois há uma aproximação aos paradigmas de qualidade e eficiência perseguidos pelo setor privado. Fábio Medina Osório aponta que a Administração estava ligada à idéia de fazer valer a vontade do povo, momento histórico em que a obediência a processos formalmente corretos do ponto de vista jurídico seria mais importante do que o atendimento a resultados. Vital seria – segundo o autor – a garantia de isenção e imparcialidade do administrador o que somente se tornava possível a partir de limitações formais e atendimentos a exigências burocráticas. No Estado gestor, ao contrário do clássico administrador, aquele responsável pela gestão da coisa pública goza de maior liberdade e preocupa-se com resultados, sem desprezo, obviamente, pela ética institucional, pautando a sua conduta na idéia de eficiência, na busca por resultados, no monitoramento de indicadores, no planejamento estratégico e na economicidade de gastos. OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.168-173. GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 216-218. 1.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – BREVES ANOTAÇÕES 1.2.1. A moralidade administrativa na França A idéia de moralidade administrativa foi sistematizada no século XX, na França, por Maurice Hauriou e foi desenvolvida dentro do instituto do détournement de pouvoir, segundo o qual o fim do ato discricionário deveria estar vinculado a uma finalidade pública de utilidade ou interesse geral8. Conforme ressalta José Guilherme Giacomuzzi, a clara função da moralidade administrativa era a de permitir o controle jurisdicional sobre a finalidade do ato9. Isso porque o Conselho de Estado Francês somente podia analisar questões vinculadas à legalidade do ato, aparecendo o desvio de poder como instituto destinado a coibir atos cuja finalidade era outra que o interesse público. Nesse primeiro momento, para exemplificar, Giacomuzzi cita o famoso caso Lesbats, em que o Conselho de Estado Francês foi chamado a se manifestar sobre o indeferimento, por parte da Municipalidade, de pedido de autorização para o estacionamento em praça fronteira à estação de estrada de ferro, para atender ao transporte de passageiros. Pela prova produzida, restou evidenciado que o indeferimento da autorização teve como propósito a garantia de exclusividade de prestação dos serviços por outra empresa, finalidade estranha ao interesse público, anulando-se o ato por desvio de poder10. Em um segundo momento, aparece a obra de Henri Welter denominada “Le Contrôle Jurisdictionel de la Moralité Administrative”, na qual assevera que a moralidade administrativa que pretendia estudar não se confundia com a moral comum, pois seria composta de regras de boa-administração, ou seja pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o Bem e o Mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa11. Nessa segunda fase há uma preocupação em independentizar a idéia de moralidade administrativa como sendo o conjunto de regras de conduta tiradas do interior da Administração 8 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43. 9 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 50. 10 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 80. 11 LIMBERGER, Têmis. Atos da Administração lesivos ao patrimônio público: os princípios constitucionais da legalidade e moralidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 125. Pública. No entender de Giacomuzzi12, a obra de Henri Welter assume relevo, porquanto foi a única obra jurídica da época a tratar do tema da moralidade administrativa e porque contém outras hipóteses que não o desvio de poder como ofensivas à moralidade administrativa, quais sejam, o erro de fato e o controle dos motivos do ato, hipóteses que vêm previstas na legislação brasileira pela Lei nº 4.717/65, que regula a Ação Popular13 para anular os atos administrativos. Acerca desse período, Giacomuzzi relembra o julgamento pelo Conselho de Estado Francês do caso Lefranc, de 22.1.1926, no qual foi anulada, por excesso de poder fundado em causa jurídica inexistente, a demissão de funcionário motivada por abandono de emprego – abandono, esse, jamais ocorrido14. Após Henri Welter, Lacharrière dedicou-se ao tema com a monografia “Le Côntrole Hierárchique de l’Administracion dans la Forme Jurisdictionelle”, em 1938, referindo-se à moralidade administrativa como conjunto de regras para disciplinar o poder discricionário, regras que não se confundiriam com a moral comum15. Ressalta Giacomuzzi que a idéia de moralidade administrativa não vingou na França, vez que o Conselho de Estado Francês somente poderia se manifestar sobre a legalidade do ato. Ao invés de moralidade administrativa, que extrapolaria o âmbito da legalidade, os franceses adotaram o instituto do détournement de pouvoir, sendo que todos os vícios do ato administrativo condizentes com aquilo que se pode querer embutir em um suposto “controle da moralidade administrativa” estavam ou se alocaram no controle da legalidade, tanto na França quanto no Brasil16. 12 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo, Malheiros, 2002, p. 89. 13 Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: [...] d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. 14 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo, Malheiros: 2002, p. 103. 15 LIMBERGER, Têmis. Atos da Administração lesivos ao patrimônio público: os princípios constitucionais da legalidade e moralidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 126. 16 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 108-109. Dessa breve exposição, tem-se que, através da idéia de moralidade administrativa, houve o alargamento da sindicabilidade do Conselho de Estado Francês acerca dos atos da Administração através do instituto desvio de poder (em que as finalidades do ato deveriam estar de acordo com o interesse público), passando-se, posteriormente, a admitir o pronunciamento do Conseil também sobre eventual ocorrência de erro de fato, bem como sobre os motivos indicados como fundamento para a prática do ato. 1.2.2. A moralidade administrativa no Brasil A idéia da moralidade administrativa no Brasil aparece, com esse signo, somente na Constituição de 1988, na cabeça do art. 37. Entretanto, José Guilherme Giacomuzzi sustenta que apesar de não estar escrito o significante moralidade administrativa, a Lei da Ação Popular introduziu o significado – desvio de poder – que estava em voga na época – acolhendo tacitamente a proteção da idéia da moralidade administrativa17. De acordo com Wallace Paiva Martins Júnior18, a preocupação do legislador com atos eivados de desonestidade já aparece em 1941, com a edição do Decreto-Lei nº 3.240, o qual previa normas específicas para o seqüestro e a perda de bens de pessoas que cometessem crimes dos quais resultasse prejuízo para a Fazenda Pública ou locupletamento ilícito para o acusado, sendo que a medida podia atingir terceiros que dele tivessem adquirido bens dolosamente ou com culpa grave. Em atendimento a parte final do §31, do art. 31 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, foi editada a Lei Federal nº 3.164/1957, que instituiu a tutela extrapenal da repressão da improbidade administrativa, restrita à modalidade de enriquecimento ilícito e limitada a certos funcionários públicos e determinadas entidades administrativas19. Com base nesse diploma legal, os bens adquiridos pelo servidor público ilicitamente, poderiam ser submetidos a seqüestro e perda em favor da Fazenda Pública, mediante ação civil promovida pelo Ministério Público ou por qualquer pessoa do povo no juízo cível. Em 1958 surgiu a Lei Federal nº 3.502/58, denominada Lei Bilac Pinto, a qual, segundo Wallace Paiva Martins Júnior, teve uma dimensão maior do que a Lei nº 3.164/57, porquanto na 17 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 129. 18 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 181. 19 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 182. categoria de sujeitos ativos que poderiam ter seus bens confiscados foram incluídos os dirigentes de autarquia. A maior dimensão referida pelo autor também se reflete no conceito de servidor público (exercentes de cargos, funções, ou empregos, civis ou militares, por eleição nomeação ou contrato, em qualquer dos Poderes da República, na União Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios). Em 1965, surge a Lei nº 4.717, denominada Lei da Ação Popular20 – LAP, dispondo em seu art. 1º que qualquer cidadão (pessoa que está em gozo dos seus direitos políticos) será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos. O art. 2º da Lei nº 4.717/1965 dispôs que são nulos os atos lesivos ao patrimônio público nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e e) desvio de finalidade. Conforme mencionado na parte histórica referente ao surgimento da idéia de moralidade administrativa na França, ela estava – e ainda está apesar da abrangência do erro de fato e da análise dos motivos determinantes, introduzidos por Welter – intimamente ligada ao desvio de poder, elemento expresso no texto da Lei da Ação Popular como fundamento para tornar nulo o ato administrativo. Em 1992, como decorrência do disposto no art. 37, §4º da Constituição21, foi confeccionada a Lei nº 8.429, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, doravante denominada LIA, dividindo os atos de improbidade em três categorias: os que causam enriquecimento ilícito (art. 9º), os que causam prejuízo ao erário (art. 10) e os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). A grande inovação da Lei nº 8.429/92 em relação aos diplomas anteriores mencionados foi, pois, a tipificação como improbidade de atos 20 21 A ação popular aparece na Constituição de 1934, é suprimida em 1937, retornando na Constituição de 1946. Art. 37§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. que violem os princípios da Administração Pública22, sendo importante destacar que em que pese não conste da cabeça do art. 11 a expressão moralidade administrativa ela ali encontra proteção. Para aqueles que violarem um preceito da Administração Pública – ponto que interessa ao presente trabalho – prevê a LIA, em seu art. 12, inciso III, sanções consistentes em ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. Percebe-se, pois, que, a despeito de somente vir consagrada na Constituição de 1988, a preocupação dos operadores jurídicos com a moralidade administrativa e com a indevida utilização do cargo, emprego ou função por parte do agente público, já aparece desde os anos quarenta, culminando com a edição da Lei nº 8.429/92, que, trazendo as sanções mencionadas no parágrafo anterior pretende não só alcançar aqueles agentes que tragam algum prejuízo ao patrimônio público material, mas também alcançar aqueles agentes que não se comportam de acordo com os preceitos que devem orientar a Administração Pública, ou seja, buscou proteger também o patrimônio moral. 1.3. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA A primeira grande distinção efetuada pelos autores mencionados nas referências bibliográficas quando abordam o princípio da moralidade administrativa consiste em afirmar que a moralidade administrativa não se confunde com a moral comum, razão pela qual não se poderia deixar de dizer algumas palavras a seu respeito. 22 Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo; IV - negar publicidade aos atos oficiais; V - frustrar a licitude de concurso público; VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço. 1.3.1 Moral comum e moral jurídica A moral jurídica não se confundiria com a moral comum, porquanto a moral – ainda mais em uma sociedade pluralista23 como pretende ser a nossa – não é uma só, varia no espaço e no tempo, caracterizando-se por uma forte subjetividade e incerteza. Recolheria, ademais, o Direito uma parte da moral vigente e a introduziria no mundo jurídico através das regras e dos princípios, conforme o conhecido desenho de dois círculos que se entrelaçam sendo em um representado o Direito e em outro a Moral: apesar da intersecção entre ambos, eles não se confundem em sua integralidade. Famosa, pois objeto freqüente de referência, é a lição de Hely Lopes Meirelles24, que citando Hauriou, afirma que o conteúdo da moralidade administrativa não se confunde com a moral comum, estando conectado às regras tiradas da disciplina interior da Administração. Para Giacomuzzi, entretanto, dizer que a moralidade administrativa não se confunde com a moral comum, estando vinculada ao conjunto de regras tiradas do interior da administração, seria muito pouco, pois invocar tais máximas é esvaziar, em conteúdo, o discurso jurídico racional, lembrando-se de que em um tal discurso se apóia a idéia de legitimidade do Direito25. Consigna, ainda, Giacomuzzi26, que muito embora a doutrina insista em repetir que a moralidade administrativa não se confunde com a moral social, é recorrente a invocação da moral comum em precedentes judiciais e na doutrina quando se pretende falar da moralidade administrativa. Com efeito, ao tratar do princípio da moralidade administrativa, Maria Sylvia Zanella Di Pietro escreve que27: [...] quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; 23 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil 24 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.90. 25 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 173. 26 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 173. 27 DI PIETRO. Maria Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 111 apud CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função pública. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p.96. entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos. Por isso mesmo, a imoralidade salta aos olhos, quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna. Não é preciso, para invalidar despesas desse tipo, entrar na difícil análise dos fins que inspiram a autoridade; o ato em si, o seu objetivo, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrada.Na aferição da imoralidade administrativa, é essencial o princípio da razoabilidade [...] Juarez Freitas28, ao enfatizar o caráter autônomo do princípio da moralidade administrativa, vincula o seu conteúdo não apenas ao conjunto de regras extraídas do interior da Administração Pública, mas também aos padrões éticos da sociedade (grifos em itálico no original): No atinente ao princípio da moralidade, por mais que se possa assimilá-lo a outras diretrizes e conquanto experimentando pronunciada afinidade com os demais princípios, certo é que o constituinte brasileiro, com as imensas conseqüências técnicas e hermenêuticas que daí advém, pretendeu conferir-lhe autonomia jurídica. Segundo princípio estão vedadas condutas eticamente inaceitáveis e transgressoras do senso moral médio superior da sociedade, a ponto de não comportarem condescendência. Não se confunde, por certo, a moralidade com o moralismo, este último intolerante e nãouniversalizável por definição. De certo modo, tal princípio determina que se trate a outrem do mesmo modo que se apreciaria ser tratado, isto é, de modo virtuoso e honesto.. O “outro”, aqui é a sociedade inteira, motivo pelo qual o princípio da moralidade exige que, fundamentada e intersubjetivamente, os atos, contratos e procedimentos administrativos venham a ser contemplados e controlados à base de orientação decisiva e substancial que prescreve o dever de a Administração Pública observar, com pronunciado rigor e a maior objetividade possível, os referenciais valorativos da Constituição, cumprindo vivificar, exemplarmente, o combate contra toda e qualquer lesão moral ou imaterial provocada por ações públicas não-universalizáveis, destituídas de probidade e de honradez. [...] O princípio da moralidade no campo administrativo não há de ser entendido como singelo conjunto de regras deontológicas extraídas da disciplina interna da Administração. Na realidade, prescreve exatamente mais: diz com os padrões éticos de uma determinada sociedade, de acordo com os quais não se admite a universalização de máximas de conduta que possam fazer perecer liames sociais aceitáveis (justificáveis axiologicamente). É certo que um controlador arguto, tendo em vista a mencionada submissão do administrador ao Direito, conseguiria alcançar resultado idêntico, por outras vias. Essa referência ao senso comum feita pela doutrina quando tenta esmiuçar o conteúdo do princípio da moralidade administrativa se deve ao fato de que o Direito não está totalmente divorciado da realidade que pretende regulamentar e ordenar, recolhendo do senso comum, do 28 FREITAS. Juarez.O controle dos atos administrativos e os direitos fundamentais. 3ªed. São Paulo: Malheiros: 2004, p. 53-56. senso vigente, valores e internalizando-os na ordem jurídica, sendo, portanto, ao mesmo tempo valores pertencentes ao senso comum e ao mundo jurídico. 1.3.2 A moralidade administrativa como superprincípio É recorrente o entrelace efetuado entre o princípio da moralidade e outros princípios constitucionais expressos ou implícitos como menciona Juarez Freitas e Maria Zanella Di Pietro nas transcrições supra. Nessa mesma linha de raciocínio, para Wallace Paiva Martins Júnior29, o princípio da moralidade é verdadeiro superprincípio informado e informador dos demais. Nas palavras do autor: O enfoque principal é dado ao princípio da moralidade na medida em que ele constitui verdadeiro superprincípio informador dos demais (ou um princípio dos princípios), não se podendo reduzi-lo a mero integrante do princípio da legalidade. Isso proporciona, por exemplo, o combate de ato administrativo formalmente válido, porém destituído do necessário elemento moral. A moralidade administrativa tem relevo singular e é o mais importante desses princípios, porque é pressuposto informativo dos demais (legalidade, impessoalidade, publicidade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação), muito embora devam coexistir no ato administrativo. Exsurge a moralidade administrativa como precedente lógico de toda a conduta administrativa, vinculada ou discricionária derivando também às atividades legislativas e jurisdicionais, consistente no assentamento de que: o Estado define o desempenho da função administrativa segundo uma ordem ética acordada com os valores sociais prevalentes e voltada à realização de seus fins, tendo como elementos a honestidade, a boa-fé, e a lealdade e visando a uma boa administração. Assim, no atuar, o agente público deve medir atenção ao elemento moral de sua conduta e aos fins colimados, porque a moralidade afina-se conceito de interesse público não por vontade da norma constitucional, mas por constituir pressuposto intrínseco de validade do ato administrativo. Para o referido autor, a moralidade administrativa estaria ligada ao princípio da juridicidade, previsto no art. 2º, I, da Lei nº 9.784/199930, o qual determina que o administrador atue não somente de acordo com a lei, mas também de acordo com todo o ordenamento jurídico, aí compreendidos os princípios, a jurisprudência e os costumes. Registre-se, contudo, conforme leciona Fábio Medina Osório31, que não existe possibilidade de reconhecer o costume contra legem, para respaldar ou dar legitimidade à ilegalidade. 29 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 31-32. Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I atuação conforme a lei e o Direito; 31 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.316-317. 30 Relacionar-se-ia a moralidade administrativa com o princípio da legalidade, consagrado no art. 5º, inciso II, da Constituição que traz consignado que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e consagrado também no art. 37 da Constituição, destinado, dessa vez, a informar a conduta dos agentes públicos, restringido o seu campo de atuação àquilo que a lei permite, na medida em que a lei é a vontade da Administração. Como é sabido, ao particular é dado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe e à Administração somente aquilo que a lei autorize. A moralidade administrativa também estaria conectada ao princípio da impessoalidade32, que veda o favoritismo para os amigos e o mau tratamento para os desconhecidos, princípio que, por sua vez, está intimamente conectado com a efetivação do princípio da igualdade. A determinação de atuação impessoal vem prescrita no art. 2º, parágrafo único da Lei nº 9.874/1999, segundo o qual na condução dos processos administrativos deve ser observada a objetividade no atendimento do interesse público33, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades. A moralidade administrativa estaria conectada com o princípio da publicidade, que determina que, ressalvados os casos de sigilo necessário, a Administração deve disponibilizar 32 Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que exigir impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento; aplicação desse princípio encontra-se, por exemplo, no art. 100 da Constituição, referente aos precatórios judiciais; o dispositivo proíbe a designação de pessoas ou de casos nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim. No segundo sentido, o princípio significa, segundo José Afonso da Silva (1989:562), baseado na lição de Gordillo que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1993, p. 59. 33 Celso Antônio Bandeira de Mello refere que o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem, acrescentando que dito interesse só se justifica na medida em que se constitui veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro. Pertinente destacar que o interesse público – interesse primário - nem sempre coincide com o interesse do Estado e das demais pessoas de Direito Público – interesse secundário – sendo que esse último só pode ser legitimamente perseguido por elas se coincidentes com o interesse primário. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello exemplifica dizendo que seria concebível um interesse da pessoa do Estado em recusar administrativamente – e até a questionar em juízo, se convocado, aos pretórios – responsabilidade patrimonial por atos lesivos a terceiros, mesmo que os houvesse causado. Teria interesse em pagar valor ínfimo nas desapropriações, isto é, abaixo do justo, inobstante o preceito constitucional. Com todos esses expedientes, muitos dos quais infelizmente (e injustamente) adota, resguardaria ao máximo o seu patrimônio, defendendo interesses à moda de qualquer outro sujeito, mas agrediria a ordem normativa. Ocorre que em todas essas hipóteses estará agindo contra o Direito, divorciado do interesse público, do interesse primário que lhe assiste cumprir”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p 52-58. informações referentes aos próprios administrados bem como as que se relacionam com o interesse público, de forma que a população possa ter acesso aos dados de que necessita para ajuizar ações judiciais ou exercer a fiscalização dos atos do poder público. A moralidade administrativa também estaria ligada ao princípio da eficiência34, característica fundamental da boa administração, princípio que exige que a atividade prestada pela Administração produza resultados visíveis para o administrado, posto que a prestação de um serviço de péssima qualidade por certo não atende ao interesse público, descumpre a finalidade do Estado e não poderia estar de acordo com a moralidade administrativa. A moralidade – para Wallace Paiva Martins Júnior – teria, ainda, por vetor, a boa-fé, compreendida como honestidade e lealdade bem como o dever35 de boa administração, o qual diz com a proteção de interesses públicos. Outro vetor do princípio da moralidade administrativa seria a razoabilidade, entendida como adequação entre meios e fins, asseverando o autor que a decisão ilógica, irracional, desproporcional ofende o padrão ético de conduta e via, de conseqüência, o princípio da moralidade36. Assim, para aqueles que se filiam ao entendimento de Wallace Paiva Martins Júnior e entendem o princípio da moralidade como um superprincípio a ela remetem os demais, realçando como caractere da moralidade administrativa nuances pertencentes a outros princípios. 34 Fábio Medina Osório refere eficaz é a conduta que consegue fazer efetivo um intento determinado, mas o problema está em definir os caminhos prudentes que o sujeito decide seguir e que uma atuação contra as regras que presidem o setor público não pode ser eficiente, já que seus resultados e, mais do que isso, seus caminhos estão entranhados no conjunto de danos produzidos. Um agente público que, atropelando fórmulas éticonormativas, consegue obter resultados econômicos favoráveis não será um sujeito eficiente na perspectiva da ética institucional. MEDINA OSÓRIO, Fábio. Teoria da Improbidade Administrativa : má gestão pública : corrupção : ineficiência. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 65-66. 35 Dever se distingue de ônus porque expressa a necessidade (jurídica) de um determinado comportamento do sujeito titular, observando certa ação ou omissão, enquanto que o ônus manifesta a necessidade prática de o sujeito desenvolver determinado comportamento para obter um efeito jurídico favorável a si mesmo, sob pena de não obtê-lo se não o cumprir. MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 68. Fala-se também em poder-dever, que, segundo Hely Lopes Meirelles, tem as seguintes características: “o poder tem para o agente público significado de dever para com a comunidade e para com os indivíduos, no sentido de que quem o detém está sempre na obrigação de exercitá-lo. Nem se compreenderia que uma autoridade pública – um Governador p.ex. – abrisse mão de seus poderes administrativos, deixando de praticar atos de seu dever funcional. O poder do administrador público, revestindo ao mesmo tempo o caráter de dever para com a comunidade, é insuscetível de renúncia pelo seu titular. Tal atitude importaria fazer liberalidades com o direito alheio, e o Poder Público não é, nem pode ser, instrumento de cortesias administrativas. Se para o particular o poder de agir é uma faculdade, para o administrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo para exercitá-lo em benefício da comunidade”. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 107. 36 MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 68. Giacomuzzi37, entretanto, critica essa visão do princípio da moralidade administrativa, afirmando que não contribui no sentido de encontrar um conteúdo jurídico autônomo para a moralidade administrativa, senão a confunde com os demais. Nas palavras do autor: Mas há algo de grave em tentar preencher o conteúdo do princípio da moralidade com outros princípios jurídicos, ou em sobrepor aquele a estes: um tal proceder revela, talvez inconscientemente, desprezo pelo conteúdo jurídico dos demais princípios e mesmo uma descrença em sua força normativa, bem como na própria Constituição e nas leis. Corolário disso pode ser a entrada de visões personalíssimas, como se fossem “jurídicas”, travestidas de “princípio da moralidade”. Numa palavra: fazer da moralidade um sobreprincípio, formado por vários dos demais, é minguar a importância destes é deixar de lado o conteúdo jurídico dos outros princípios, subvertendo-os e esvaziando a sua força normativa e seu conteúdo dogmático. Não se trata mais tão-somente de um problema de “signos”. Tal questão se relaciona com a afirmação da autonomia do princípio da moralidade administrativa, reconhecida doutrinariamente por Juarez Freitas, Maria Zanella Di Pietro e José Afonso Silva. Entretanto, Márcio Cammarosano38 não comunga desse entendimento e afirma que a moralidade administrativa refere-se a valores que informam o direito positivo, como a lealdade, boa-fé, veracidade e honestidade, referibilidade essa que não lhe permite reconhecê-la como princípio autônomo, pois, para tanto, seria preciso que pudéssemos dar um exemplo de ato administrativo que comportasse invalidação só com a invocação desse princípio, sem que se vislumbrasse ofensa a qualquer outro, exemplo que o autor não conseguiu encontrar. Desnecessário tecer maiores comentários sobre como os princípios mantêm relação um com os outros e como não se pode interpretar um instituto jurídico isoladamente, mas há de fazêlo, sim, dentro do ordenamento jurídico. Entretanto, para a corrente que entende a moralidade administrativa como superprincípio, preenchendo o seu conteúdo jurídico com nuances pertencentes aos demais princípios, resta a advertência de Giacomuzzi no sentido de perquirir se sobraria algum espaço para um conteúdo autônomo da moralidade. Partindo desse horizonte, Giacomuzzi propõe outro modelo doutrinário para a compreensão da moralidade administrativa, que diz com o estabelecimento de dois vetores consistentes na boa-fé objetiva e no dever de probidade, tema que é objeto do tópico a seguir. 37 38 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 162. CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função pública. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 95-96. 1.3.3 A moralidade administrativa como boa-fé objetiva e como dever de probidade Divergindo da posição que pretende preencher o conteúdo do princípio da moralidade com os demais princípios, Giacomuzzi propõe preencher o conteúdo da moralidade administrativa com um elemento objetivo (boa-fé objetiva) e um elemento subjetivo (dever de probidade). No que toca à boa-fé objetiva, referido autor afirma a possibilidade de, à primeira vista, aproveitar-se, no direito administrativo, o desenvolvimento doutrinário existente no direito privado sobre esse instituto. Vejamos, então, para bem compreender a noção de boa-fé-objetiva, o que leciona Judith Martins-Costa39 (grifos no original): Já por “boa-fé objetiva” se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao §242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da commom law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitido uma aplicação mecânica do Standard, de tipo meramente subsuntivo. [...] Diversamente, ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade na retidão, na lealdade, e principalmente, na consideração para com os interesses do “alter”, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. A escolha da boa-fé objetiva e não subjetiva40 para preencher o conteúdo da moralidade tem sua razão de ser consubstanciada na desnecessidade de indagação acerca do elemento psicológico na conduta do agente, o ato administrativo que fere a boa-fé objetiva é ato da Administração, pouco importando de quem partiu e quais suas intenções, sendo com esse sentido aceito por Giacomuzzi a distinção entre objetivo e subjetivo41. Assim, o princípio da boa-fé objetiva se relaciona com a honestidade, com a retidão e com a consideração para com os interesses do outro que, no domínio do direito administrativo, pode ser entendido como a sociedade, sendo possível relacionar a boa-fé também com a 39 MARTINS-COSTA. Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 411-412. 40 Segundo Judith Martins-Costa A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’ ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo aplicável], em regra ao campo dos direito reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. MARTINSCOSTA. Judith. A boa-fé no Direito Privado. 1ª ed., 2ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 411. 41 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.241. veracidade e a confiança, a qual, segundo Giacomuzzi42, parece ser uma das mais importantes funções da boa-fé como vetor do princípio da moralidade: Uma das funções que me parece mais relevante atribuir-se à boa-fé como princípio veiculado pela moralidade do art. 37 da Constituição Federal de 1988 é justamente o mandamento de proteção à confiança enquanto elemento componente do Estado de Direito Social. A confiança, que adquirira no âmbito privado especial relevância, tem-na, na órbita pública, redobrada. A proteção da confiança – ou confiança legítima (Vertrauensschutz) – liga-se também à segurança jurídica, princípio só aparentemente conflitante com a justiça e revelador, num patamar de análise mais abstrato, de uma das aspirações mais insatisfeitas do gênero humano, havendo quem também a indique como postulado básico do Estado de Direito. [...] A Lei nº 9.784/9943 trouxe dispositivo expresso em que relaciona a boa-fé como um dos critérios que deve pautar a conduta da Administração. Giacomuzzi, ao interpretar o artigo 2º da Lei nº 9.784/99, assevera que os critérios previstos no parágrafo único para o agir administrativo, guardam relação pontual com os princípios elencados no caput do artigo. A título de exemplificação, refere o autor que o inciso primeiro44 se relaciona ao princípio da legalidade; o inciso segundo45 se relaciona aos princípios da finalidade e do interesse público; o inciso terceiro46 com o princípio da motivação e o inciso quarto (atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé) com o da moralidade administrativa47. Conforme mencionado, a boa-fé seria o viés objetivo da moralidade administrativa, cabendo, agora, analisar o viés subjetivo que se relaciona com o dever de probidade, o qual determina que o administrador seja honesto no sentido de destituído de má-fé. Aquele que descumpre com esse dever de probidade, de honestidade, poderá incorrer nas sanções da Lei nº 8.429/92 acaso estejam presentes outros requisitos para a incidência da LIA, que serão abordados em ponto pertinente. 42 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 266-267. 43 Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; 44 I - atuação conforme a lei e o Direito; 45 II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; 46 III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; 47 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p 245-246. A despeito das divergências apontadas, parece haver um certo consenso ao relacionar a moralidade administrativa com a honestidade, a lealdade48, a veracidade, a boa-fé, a boaadministração, o dever de probidade e com finalidades conectadas ao interesse público, elementos que ajudam na delimitação dos contornos da moralidade administrativa, apesar de não se poder apresentar um conceito, pois, conforme Giacomuzzi49, não se tem como dizer o que é o princípio da moralidade (ou os demais), mas somente o que ele determina (mandato) que seja – e mais – no caso concreto. 2 O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA 2.1 A NATUREZA JURÍDICA DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Dispõe o art. 37, §4º da Constituição de 1988 que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. Tem-se aí expressa a vontade do legislador constitucional de retirar o ato de improbidade administrativa da esfera do Direito Penal. O artigo 12 da LIA50, por sua vez, antes de arrolar as sanções em que incidirá aquele sujeito que praticar um ato de improbidade administrativa, ressalva que as sanções da LIA são independentes das penais, civis e administrativas, previstas nas legislações específicas. Conforme 48 Para Fábio Medina Osório, o dever de lealdade institucional traduz a idéia de confiança, inserida no regime democrático, que baliza as relações entre eleitores escolhidos, administradores públicos e administrados, funcionários públicos em geral e os destinatários de suas decisões, governantes e governados. Quebrada a confiança, pelo rompimento do dever de lealdade institucional, existe um grau mais elevado de violação da moral administrativa. Diz o autor que a lealdade traduz uma dimensão axiológica da moralidade administrativa e sempre que os agentes desprezem normas da moral administrativa, estarão indicando possível violação do dever de lealdade institucional, cuja observância significa não só a atenção à legalidade, como dever fundamental, mas também a outros princípios que norteiam a Administração Pública, v.g., impessoalidade, eficiência, publicidade, proporcionalidade, economia administrativa [...] Nas atitudes dolosas, o agente trai o dever de lealdade institucional, incorrendo em uma vulneração de normas de moral administrativa. Nas atitudes culposas, o agente trai, de igual modo, a lealdade institucional, que lhe exige prudência e cuidado no trato de interesses que não lhe pertencem, porque o setor público, dentro de certos limites, não tolera a incompetência administrativa e esta é uma modalidade de deslealdade. OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.139-141. 49 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 210. 50 Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: [...] registra Giacomuzzi51, da natureza não penal do ilícito de improbidade, o qual seria um ilícito civil lato sensu – ilícito administrativo, advém não só a denominação de ato de improbidade como sendo um ato ilícito e não como sendo crime, mas também o rito processual, prazos, oitivas de testemunha, regras de competência, colheita de provas et coetera. Se como ilícito civil lato sensu – ou ilícito administrativo – não fossem entendidas as condutas tipificadas na Lei de Improbidade Administrativa, adverte o mesmo autor, como conseqüência seriam inconstitucionais as cabeças dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA, porquanto ofensivas ao princípio da legalidade que no direito penal exige a clara definição da conduta que será tipificada como crime, o que não acontece com os artigos mencionados, dada a sua estruturação como cláusula geral, com incisos meramente exemplificativos. Para Fabio Medina Osório52, o ato de improbidade administrativa é um ato ilícito de natureza não-criminal, conforme menciona no seu livro Teoria da Improbidade Administrativa: É possível dizer que a LGIA é um instrumento peculiar, distinto, destinado a cuidar da probidade administrativa, ou seja, a improbidade tipificada como ilícito pelo direito administrativo, não pelo direito penal. Não exclui nem elimina outros instrumentos. Ao contrário, com estribo na Constituição Federal, desempenha um papel normativo especializado e contundente. Repare-se que a sistemática da Lei dos Crimes de Responsabilidade é muito mais aberta que a da própria LGIA, aproximando-se da esfera política de responsabilização, em que a discricionariedade dos julgadores é fenômeno amplamente admitido. Os crimes de responsabilidade evidenciam as tênues fronteiras entre direito penal e direito político, ao passo que os atos de improbidade definidos na LGIA estão bem enquadrados na categoria do direito administrativo, na perspectiva judicial. Entretanto, afirmar que o ato de improbidade administrativa é um ato ilícito não criminal não significa dizer que com ele não guarda relação, pois, diante do fenômeno da incidência múltipla, é perfeitamente possível ser um determinado ato tipificado como ato de improbidade e também como crime. Nesse sentido, Giacomuzzi53 afirma que um ilícito penal contra a Administração configurará, em tese, ato de improbidade administrativa, mas que o contrário não seria verdadeiro. Para ilustrar a afirmação, confronta o art. 31554 do Código Penal com o art. 10, 51 Entende o autor o ilícito de improbidade administrativa como um “meio-termo” entre o ilícito penal e o ilícito civil. Aproveitando a figura geométrica de Assis Toledo, entende que o ilícito de improbidade configuraria um terceiro círculo, intermediário entre o menor (criminal) e o maior (civil). GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.292-297. 52 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.119-120. 53 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.296. 54 Art. 315 - Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei: IX da LIA55, salientando que enquanto aquele exige o dolo na conduta do agente este contenta-se com a presença da culpa Essa premissa acerca da natureza jurídica administrativa dos atos de improbidade é de fundamental importância, posto que, como mencionado, refletirá na ação de improbidade, a qual não seguirá o código processo penal. Registradas essas considerações fundamentais acerca da natureza jurídica cumpre verificar o dever de probidade administrativa, o qual, uma vez desrespeitado, ensejará a incidência da LIA. 2.2 O DEVER DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE De acordo com os autores mencionados, é lícito dizer o dever de probidade aparece como decorrência do princípio da moralidade administrativa e com ele não se confunde, podendo ser desenhado como um círculo menor dentro de um círculo maior correspondente à moralidade administrativa. José Afonso Silva56 aponta que a probidade administrativa: [...] é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial pela Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão dos direitos políticos (art. 37, §4º). A probidade administrativa consiste no dever de o ‘funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício de suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer’. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem. Para Giacomuzzi, como registrado no primeiro capítulo, o dever de probidade seria o dever de ser honesto57 ao lidar com a res publica. Para Fabio Medina Osório o dever de probidade compreenderia um grande grupo de casos que não podem ser determinados por critérios fáceis, mas estaria vinculado à honra do agente público, honra essa caracterizada não Pena - detenção, de um a três meses, ou multa. Art. 10 Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: IX - ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; 56 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19ª. ed. São Paulo, 2001, p.653. 57 Fábio Medina Osório diz que homens com vícios morais podem encaixar-se tranqüilamente no que seria honestidade funcional, desde que observem as regras de bom exercício de suas atividades funcionais. É dizer o sujeito que é mau marido, ou péssimo amigo nas relações pessoais, mau pai, mau filho, jogador, com qualquer tipo de orientação sexual, poderá cumprir com todas as suas obrigações profissionais, satisfazendo os pressupostos da honestidade funcional. Dessa maneira, o conceito de honestidade funcional seria mais restrito do que aquele empregado no uso comum da palavra. OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.150. 55 somente por ser honesto, mas também por parecer honesto, dever que pode exigir obediência a outros deveres, como, por exemplo, a eficiência58. Para Juarez Freitas59, o princípio da probidade administrativa consiste na proibição de atos desonestos ou desleais para com o Poder Público, sendo que vedaria a violação de qualquer um dos princípios, independentemente da caracterização de dano material desde que tal violação cause dano à moralidade administrativa. Wallace Paiva Martins Júnior, por sua vez, leciona que o princípio da probidade administrativa valoriza a implementação prática do princípio da moralidade e confere ao povo60 um direito público subjetivo de ter uma administração proba e honesta através da disponibilização de instrumentos repressivos da improbidade administrativa. Diz o autor que a probidade administrativa estabelece-se internamente como dever funcional inserido na relação jurídica que liga o agente público à Administração [...] e externamente, determina que nas relações jurídicas com terceiros a Administração observe o dever de probidade61. Sobre a probidade administrativa, Marcello Caetano62, citado por Wallace Paiva Martins Júnior, enumera oito aspectos que serviriam para delinear o contorno do dever de probidade: a) guarda fiel dos bens, direitos, interesses e valores públicos, abstendo-se do uso em proveito próprio ou de qualquer procedimento tendente a danificá-los, destruí-los ou diminuir-lhes o valor; b) abstenção de proteger interesse, ainda que por interposta pessoa, em contrato a celebrar com a entidade a que esteja vinculado ou em negócio que dela dependa, particularmente se no exercício das funções puder exercer influência; c) proibição de aceite, por si ou interposta pessoa, de qualquer vantagem patrimonial, ou promessa futura, a fim de praticar ato influindo nas suas funções, ou mesmo abster-se de praticá-lo ou influir em outrem para obter esse comportamento, ou de fazer negócios pessoais com quem possa resultar dependência econômica comprometedora da sua função pública; d) vedação da exigência de particulares ou de consentimento de que se exijam deles quantias ou serviços legalmente indevidos e de abuso dos seus poderes para opressão da liberdade e interesses alheios ou para lesão do patrimônio privado sem fundamento legal; e) proibição de fazer negócio lucrativo com o provimento de alguém em cargo público; f) inadmissibilidade da circulação de listas de subscrição de donativos, em seu favor ou de terceiros, no recinto de trabalho ou de subscrever as que lhe forem apresentadas; 58 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.110-111 e 125. 59 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios jurídicos fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.187-188. 60 Wallace Paiva Martins Júnior utiliza a palavra povo, que, segundo Darcy Azambuja, é a população do Estado, considerada sob o aspecto puramente jurídico, é o grupo humano encarado na sua integração numa ordem estatal determinada, é o conjunto de indivíduos sujeitos às mesmas leis, são os súditos, os cidadãos de um mesmo Estado. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 17ª ed. Porto Alegre: Globo, 1978, p.19. 61 MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 102.- 103 62 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, t.1, p.684 e s, apud MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed.São Paulo: Saraiva, 2009, p.109. g) impossibilidade de advogar ou intermediar interesse particular nos serviços de sua competência; h) recusa do aceite de homenagens de subalternos ou particulares com interesses dependentes do exercício de sua função pública, salvo aposentadoria ou transferência. O dever de probidade, portanto, aparece como elemento essencial às ações do agente público, o qual deve proceder de maneira honesta e parecer proceder de maneira honesta, deve ser leal à instituição que serve, não se aproveitando do cargo63 emprego ou função que ocupa na Administração para servir a interesse que não seja o interesse público. Vejamos, então, qual a caracterização que a doutrina dá para o vício de improbidade. 2.3 O VÍCIO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Para José Afonso da Silva64, a improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem. No caso de violação ao princípio da moralidade, entretanto, não se mostra como requisito essencial para a incidência da Lei de Improbidade que da ação advenha algum prejuízo de ordem material, bastando que o princípio da moralidade administrativa seja atingido de forma grave a configurar uma lesão moral.65 Imoralidade administrativa qualificada diz José Afonso Silva, ao que Giacomuzzi acrescenta qualificada pelo elemento subjetivo do agente (dolo ou culpa) que necessariamente deverá estar presente para a configuração do ato ímprobo66. Já, de acordo com Marino Pazzaglini Filho, a improbidade administrativa seria mais do que a singela atuação em 63 Segundo Hely Lopes Meirelles, cargo público é o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular na forma estabelecida em lei. Função é a atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais, sendo comumente remunerada através de pro labore. Diferencia-se, basicamente, do cargo em comissão, pelo fato de não titularizar cargo público. Destaca o autor que todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo. As funções do cargo são definitivas; as funções autônomas são, por índole, provisórias, dada a transitoriedade do serviço que visam a atender, como ocorre nos casos de contratação por prazo determinado (CF, art. 37, IX). Daí porque as funções permanentes da Administração só podem ser desempenhadas pelos titulares de cargos efetivos, e as transitórias, por servidores designados, admitidos ou contratados precariamente. Os empregados públicos, por sua vez, são todos os titulares de emprego público da Administração direta e indireta, sujeitos ao regime jurídico da CLT. Não ocupando cargo público e sendo celetistas, não têm condição de adquirir a estabilidade constitucional [...] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ªed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.419-420. 64 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.653. 65 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios jurídicos fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.187-188. 66 GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública: o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.287. desconformidade com a letra fria da lei, mas sim uma ilegalidade qualificada pela imoralidade e a má-fé67. Para Wallace Paiva Martins Junior68 o vicio da imoralidade administrativa ocorre pela violação ao dever de probidade administrativa, corolário do dever de boa administração, provocando a invalidade do ato praticado pelo agente. Para esse autor a improbidade significaria, em linhas gerais, o seguinte: [...] servir-se da função pública para angariar ou distribuir, em proveito pessoal ou para outrem, vantagem ilegal ou imoral, de qualquer natureza, e por qualquer modo, com violação aos princípios e regras presidentes das atividades na Administração Pública, menosprezando os deveres do cargo e a relevância dos bens, direitos, interesses e valores confiados à sua guarda, inclusive por omissão, com ou sem prejuízo patrimonial. De acordo com Fábio Medina Osório haveria uma relação gradual que se daria entre a legalidade, a moralidade administrativa, o dever de lealdade institucional e improbidade administrativa. Assim, para que se veja configurada a improbidade administrativa, seria necessário passar pelas três primeiras etapas: ilegalidade, imoralidade e deslealdade69. Fábio Medina Osório70 formula o seguinte conceito para improbidade administrativa: (A) Categoria ético-normativa ligada à idéia de honra institucional, no marco da moralidade institucional republicana, que abarca patologias e transgressões normativas consubstanciadas em graves desonestidades e ineficiências funcionais dos agentes públicos, nas flutuações pertinentes à proporcionalidade enquanto postulado normativo e exposta ao processo hermenêutico institucionalizado num marco da razoabilidade. (B) Espécie de má gestão pública, em que podem existir múltiplas categorias, revestindo-se das notas da desonestidade ou ineficiência graves, passível de cometimento por ações ou omissões, dolosas ou culposas, por parte de agentes públicos no exercício de suas funções ou em razão delas, com ou sem a participação de particulares. (C) Exige a vulneração de regras legais e princípios (ou princípios e regras) constitucionais que presidem as funções públicas com grave agressão a direitos fundamentais e a normas de cultura administrativa vigentes; (D) Perfectibiliza-se a partir de normas sancionadoras em branco, que se integram e complementam por outras normas, e não pela simples violação a princípios e muito menos pela direta incidência da Lei 8.429/92. 67 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3 ed. 2 reimpr.São Paulo: Atlas, 2007, p. 19. 68 MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 116-117. 69 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.142. 70 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.464. Tendo em vista que a LIA não se destina a punir administradores inábeis, mas sim os desonestos, não é frente a qualquer ilegalidade que se manejará esse diploma legal, dependendo a sua incidência de outros requisitos apontados pela doutrina e que serão doravante abordados. 2.4 REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE POR VIOLAÇÃO A PRINCÍPIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA É de se começar esse capítulo ressalvando a opinião de Fábio Medina Osório no sentido da inadmissibilidade de enquadramento de uma conduta na LIA em razão de pura e simples violação de princípios; seria necessário que ocorresse violação a regras. Fábio Medina Osório também alinhava opinião no sentido da impossibilidade de configuração de ato de improbidade administrativa a partir da vulneração direta da Lei de Improbidade, haveria de se constatar violação de outros dispositivos complementares71. Isso porque as normas previstas na LIA seriam normas sancionadoras em branco que careceriam de outros suportes normativos para a sua incidência, e acaso se aceitasse a hipótese de violação direta estaria aberto o caminho para grave insegurança jurídica72. No caso de violação da moralidade administrativa – caput do art. 11 – Fábio Medina Osório entende como requisito fundamental, além da violação a uma regra, a comprovação do dolo na conduta do agente73, apontando, ainda, os seguintes requisitos: (i) a ação ou a omissão do agente público deve se dar no desempenho de suas funções; (ii) que deve ser considerado o desvalor do resultado e da ação, tendo em vista que LIA não se destina punição de qualquer fato ilícito, mas de condutas graves; (iii) que se deve averiguar a imputabilidade geral do sujeito, pressuposto de qualquer punição; (iv) e que deve estar comprovada a relação de causalidade entre a competência funcional do agente e o ato ímprobo74. Para José Armando da Costa o elemento objetivo desse tipo genérico consiste na ação ou omissão que, eivada de desonestidade, agrida o princípio da moralidade, e o elemento subjetivo seria o dolo – conduta voluntária do agente – não havendo chance para a modalidade culposa, até 71 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p. 466. 72 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p. 275. 73 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p. 259. 74 OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p. 279-300. porque não se pode conceber, com lógica, a idéia de comportamento desonesto por incúria (culpa em sentido estrito). Ressalta ainda o autor que a infração disciplinar consuma-se independentemente de o agente alcançar o resultado almejado com a sua conduta75. Marino Pazzaglini Filho, por sua vez salienta o caráter residual do art. 11 em relação às outras duas modalidades de improbidade, vez que se de um ato violador de um princípio advier enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, ele será enquadrado nos arts. 9º e 10. Aponta, também, que a desonestidade do ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública pressupõe a consciência da ilicitude da ação ou omissão, evidenciando-se que a punição se dá a título de dolo. Dessa maneira, seriam quatro os requisitos para a configuração da improbidade administrativa por violação ao art. 1176: •ação ou omissão violadora de princípio constitucional regulador da Administração Pública; •comportamento funcional ilícito denotativo de desonestidade, má-fé ou falta de probidade do agente público; •ação ou omissão dolosa funcional; e •que não decorra da transgressão de princípio constitucional, enriquecimento ilícito do agente público ímprobo ou lesão ao Erário. Segundo Wallace Paiva Martins Júnior, o fato de haver expressa menção do legislador no sentido de se punir condutas dolosas e culposas no art. 10 não torna impunível o ato culposo violador de princípio jurídico orientador da Administração Pública77. Perfilhando entendimento conectado ao de Wallace Paiva Martins Júnior encontra-se precedente da Segunda Turma do STJ, julgado em 15-02-2007, desprezando a presença do elemento subjetivo (dolo ou culpa) na conduta do agente na hora de avaliar se o ato enquadrar-se-ia nas malhas da LIA, afirmando que a simples ilicitude ou imoralidade bastaria para configurar o ato de improbidade78. 75 76 77 78 COSTA, José Armando da. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p.140-141. PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3 ed. 2 reimpr.São Paulo: Atlas, 2007, p.111-114. MARTINS JUNIOR. Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 286. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DESPESAS DE VIAGEM. PRESTAÇÃO DE CONTAS. IRREGULARIDADE. LESÃO A PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. ELEMENTO SUBJETIVO. DANO AO ERÁRIO. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. SANÇÃO DE RESSARCIMENTO EXCLUÍDA. MULTA CIVIL REDUZIDA. 1. A lesão a princípios administrativos contida no art. 11 da Lei nº 8.429/92 não exige dolo ou culpa na conduta do agente nem prova da lesão ao erário público. Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade. Precedente da Turma. (omissis) Superior Tribunal de Justiça, REsp 880.662/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/02/2007, DJ 01/03/2007 p. 255. Entretanto, a pesquisa realizada revela tratar-se de posição minoritária, caminhando a jurisprudência no sentido da necessidade de dolo na conduta. Isso porque a LIA não se destina à punição do administrador inábil ou de qualquer ilegalidade verificada no decorrer do dia a dia da Administração, que podem e devem ser tratadas em diplomas menos rigorosos79, com a aplicação de advertência e suspensão, por exemplo, previstas na Lei nº 8.112/90, reservando-se a LIA para os casos em que a conduta do agente é manifestamente desonesta80 e admitir a punição por violação a princípio sem a presença do dolo seria banalizar a LIA e desvirtuá-la completamente. Do exposto nesse tópico conclui-se, pois, que não haverá caracterização de ato de improbidade administrativa por violação do princípio da moralidade (caput do art. 11) se do ato também advier enriquecimento ilícito para o agente infrator ou causar prejuízo ao erário, porquanto a conduta será enquadrada nos arts. 9º e 10. Outrossim, a ação ou a omissão deve se dar no desempenho da atividade profissional e, para a maioria dos autores, deve estar caracterizado o dolo na conduta do agente público, denotativo de desonestidade e de má-fé, não se punindo a título de culpa. Essas são, em síntese, as construções teóricas da doutrina acerca dos requisitos para a incidência da LIA no caso de violação de um princípio norteador da Administração Pública. Vejamos, então, como os Tribunais se têm manifestado sobre os requisitos para que se configure ato de improbidade administrativa violação do princípio da moralidade administrativa. 79 Fábio Medina Osório lembra que o Ministério Público mineiro investigou, em 2001, denúncias de que todos os deputados estaduais estariam percebendo, a título de remuneração, vantagens ilegais extravagantes e, portanto, ilícitas, alcançando valores estratosféricos. A estratégia adotada pela Procuradoria-Geral de Justiça foi negociar, institucionalmente, com a presidência da Casa Legislativa a redução dos salários/benefícios dos parlamentares, no bojo do inquérito civil, em função de sua ilegalidade, tese que acabou sendo aceita. Não se cogitou a aplicação da LGIA, embora existissem entendimentos nesse sentido, porque, certamente, a conduta administrativa dos parlamentares vinha acobertada com roupagem aparentemente jurídica e altamente institucionalizada, denotando que era fruto de uma cultura patrimonialista de toda uma instituição, não da vontade individual deste ou daquele parlamentar. A negociação e o ajustamento à ordem jurídica foram os melhores e mais eficazes remédios, até porque, no caso, as instituições – Judiciário, Ministério Público e Assembléia Legislativa – deveriam seguir numa convivência harmônica e racional. Além disso, já havia notícia do ajuizamento de demanda visando o ressarcimento ao erário, fora dos marcos da LGIA. OSÓRIO. Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007, p.374-375. 80 Registre-se novamente que quando se fala em desonestidade para caracterização da improbidade administrativa, a palavra possui abrangência menor que quando utilizada ordinariamente, pois a desonestidade capaz de ensejar a aplicação da LIA diz com falta relacionada ao desempenho da atividade administrativa ou no trato com a coisa pública e não em assuntos privados. 2.5 A PROTEÇÃO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA POR MEIO DA LEI DE IMPROBIDADE – O QUE DIZ A JURISPRUDÊNCIA O acompanhamento do entendimento dos Tribunais mostra-se importante, porque é através da análise de precedentes que se pode desenhar mais precisamente os contornos do princípio da moralidade administrativa. Demais disso, a análise de alguns julgados mostra-se relevante para ver em que medida o entendimento dos tribunais se afasta daquilo que é preconizado pela doutrina. No julgamento da Apelação Cível nº 70026579086, a Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul81 reconheceu como improbidade administrativa a conduta de Prefeito e Vice Prefeito de Faxinalzinho que frustraram a licitude de concurso, pois, em conluio, objetivaram garantir a permanência do Prefeito no serviço público, após o término do seu mandato, condenando-os nos termos do artigo 11, caput, e inciso V, da Lei n° 8.429/92. Segundo consta do acórdão, o Vice-Prefeito (Luiz Bartinicki), no exercício da chefia do Executivo (pois o Prefeito, Ivori Marcelino Sartori, encontrava-se em férias), promoveu concurso público para admissão de novos servidores, havendo, dentre as vagas ofertadas, uma para o cargo de Tesoureiro. Consoante previsão editalícia, o período de inscrições foi bastante exíguo (apenas 8 dias). Publicada a classificação final dos aprovados, surpreendentemente, o Prefeito afastado (porque de férias) logrou o primeiro lugar no cargo de Tesoureiro. Em seguida, Ivori pediu licença do cargo de Tesoureiro, para reassumir a Prefeitura, optando pelo subsídio de Agente Político, fatos que sinalizam a ilicitude do comportamento de ambos. Além disso, pouco antes do Prefeito se afastar, editou lei municipal, aumentando o padrão salarial do cargo de Tesoureiro, ocorrência que é verdadeiramente significativa no sentido de desvelar as suas intenções. No julgamento da Apelação Cível nº 7002777907382, a Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul entendeu como improbidade administrativa (art. 11 caput e inciso I), conduta de servidores públicos municipais que ficavam, fora do horário de expediente, na posse máquinas do Município (caminhão e retro-escavadeira), para o fim de 81 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026579086, Quarta Câmara Cível, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 10/12/2008. 82 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70027779073, Quarta Câmara Cível, Relator: João Carlos Branco Cardoso, Julgado em 14/01/2009. prestar serviços particulares, recebendo o pagamento direto dos beneficiários. Tudo com a anuência do Secretário Municipal de Obras. Por último, menciona-se o julgamento da Apelação Cível nº 7001896187083, precedente no qual a Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu como improbidade administrativa que violou o princípio da moralidade (art. 11, caput) as condutas de Leonir Koche e Luís Reis Passini consistentes em terem firmado contrato de compra e venda com o Município de Erval Seco, na condição de fornecedores, respectivamente, de gêneros alimentícios e madeira, não obstante fossem, no mesmo período (2001/2003), Vereadores da respectiva Câmara Municipal. Do acórdão extrai-se o seguinte trecho: Seja como for, na hipótese dos autos, não se pode negar a ofensa ao princípio da moralidade administrativa, merecendo, ainda, lembrança o fato de que a condição de Vereador privilegiava, inequivocamente, os demandados na obtenção das informações acerca da necessidade da Administração Pública quanto a aquisição de gêneros alimentícios e madeiras. Ainda, impõe-se ressaltar que nem mesmo o fato de haver ato de dispensa de licitação do Prefeito Municipal (fl. 110) descaracteriza os atos sob análise, como atos de improbidade. A um, porque posterior a maioria das contratações e, a dois, porque tal fato não afasta o dever de honestidade, lealdade e boa-fé dos demandados para com a Administração Pública. Nesse caso, não ficou constatado que a conduta dos acusados gerou prejuízo ao Erário, porquanto as contas do Município foram devidamente aprovadas pelo Tribunal de Contas, mas mesmo assim restou caracterizada a improbidade administrativa, vez que ofendido tanto o princípio da moralidade quanto o da impessoalidade. Relembra-se, outrossim, que a decisão não vem eivada de um subjetivismo ou sentimento pessoal acerca do conteúdo da moralidade administrativa, senão obedece aos ditames da Constituição que entendeu melhor vedar a contratação entre agentes políticos e o poder público, na forma do art. 54, I84. Dos precedentes mencionados, percebe-se que o princípio da moralidade, exigindo probidade, lealdade e atendimento ao interesse público daquele que lida com a res publica, não vem sendo aplicado através da LIA com subjetivismos incompatíveis com a segurança jurídica exigida. Ao contrário, ele vem sendo preenchido por regras e por princípios retirados do próprio 83 84 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70018961870, Primeira Câmara Cível, Relator: Luiz Felipe Silveira Difini, Julgado em 19/12/2007. Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I - desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; ordenamento jurídico, vez que a violação da moralidade administrativa apareceu, nos precedentes mencionados, conjugada com a violação de outros princípios ou com a violação de outras regras. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram apresentados os pontos de vista de duas correntes doutrinárias sobre o conteúdo jurídico do princípio da moralidade administrativa: aquela que o entende como formado por vetores advindos de outros princípios e aquela que o entende como formado pela boa-fé objetiva e pelo dever de probidade. A despeito das observações particulares de cada autor, a moralidade administrativa tem sido associada à honestidade, à lealdade, à veracidade, à boa-fé, à boaadministração e ao atendimento do interesse público. Hoje, aquele que não observar tais deveres e ferir gravemente o princípio da moralidade administrativa será punido como determina a Lei nº 8.429/92, que tipifica, em seu art. 11, como ato de improbidade a ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições. Apesar de não estar escrita a expressão moralidade administrativa ela está, sim, protegida nesse artigo, porquanto ele é meramente exemplificativo, sendo que a honestidade uma das facetas do princípio da moralidade. A Lei de Improbidade Administrativa é de natureza não criminal, entendimento perfilhado por todos os autores mencionados no trabalho, em consonância com a redação do §4º do art. 37, que é clara ao dispor que as penas ali mencionadas se dão sem prejuízo da ação penal cabível. Fala-se, portanto, em ilícito de improbidade administrativa. Em face da redação aberta do dispositivo no art. 11, a sua interpretação tem sido feita de forma cautelosa, para não alargar excessivamente a abrangência da LIA e ocasionar o desvirtuamento do instituto. Assim, Fábio Medina Osório chega a sustentar que não haveria como se violar diretamente um princípio, haveria a necessidade de que uma regra fosse também violada, sob pena de afronta à segurança jurídica. Outros autores mencionados se contentam em afirmar que para o reconhecimento do ato violador da moralidade administrativa como ato ímprobo, impõe-se que a pessoa seja capaz de entender seus atos e determinar-se de acordo com eles, que haja a violação de um princípio jurídico em face de ação ou omissão praticada no desempenho das funções, que nessa ação ou omissão fique caracterizado o dolo e que da conduta não advenha enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, posto que daí a conduta seria enquadrada nos arts. 9º e 10. Verificou-se, ademais, que a jurisprudência, em sua maioria, tem acompanhado o entendimento doutrinário no sentido da necessidade da presença do dolo na conduta do agente, justamente por pretender a LIA punir o administrador desonesto e não o inábil. Outrossim, dos precedentes mencionados para exemplificar a aplicação da LIA em caso de descumprimento do princípio da moralidade administrativa, verificou-se que a violação de dito princípio vem caracterizada juntamente com a violação de outros princípios ou de outros dispositivos legais. Diante do exposto, percebe-se que o princípio da moralidade administrativa veio impor ao administrador o cumprimento da lei de maneira honesta e leal às instituições que serve, pois somente assim o interesse público e a sociedade estarão bem servidas. A Lei de Improbidade pretendeu, pois, de forma repressiva, desestimular que aquele que envereda por carreiras públicas o faça buscando se aproveitar da sua posição para fins não condizentes com o interesse público e que, via de regra, abalam a necessária confiança da população nos ocupantes de posições na Administração, desestabilizando as instituições democráticas. O que se deve tomar cuidado, todavia, como efetivamente o tem feito a jurisprudência, é não pretender com as sanções previstas pela Lei de Improbidade, realizar uma verdadeira caçada às bruxas, punindo qualquer deslize ou ato ilegal. A LIA, como instrumento repressor de condutas que violem os princípios da Administração, deve ser preservada para casos em que verifica uma grave ofensa à moralidade administrativa, atuando como ultima ratio do direito administrativo. RÉSUMÉ : Le travaille a etudié le principe constitucionnel de la moralité administrative par la présentation de deux position doctrinaire sur son contenu juridique, representé par les auteurs Wallace Paiva Martiins Junior et José Guilherme Giacomuzzi. Il a abordée, aussi, l’insertion du principe de la moralité administrative dans la Loi d’Improbité Administrative et la nature juridique de cette loi. Également, il a introduit le concept d’improbité administrative, les conditions par la configuration d’improbité administrative par violation d’un principe de l’administration publique. On a fini l’abordage du thème avec precedents judiciels, dans lesquels les Tribunaux ont entendu configurée l’improbité administrative par violation du principe de la moralité administrative. Mots-clés: Principe. Moralité Administrative. Improbité Administrative. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm> Acesso em: 15 mai 2009. ______. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4717.htm>. Acesso em 15 mai 2009. ______. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. 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