ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 O CANTO DA DANÇA E A DANÇA DO CANTO: REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE MEREDITH MONK CONRADO FALBO (PPGL/UFPE) RESUMO A artista norte-americana Meredith Monk (Nova Iorque, 1942) trabalha “por entre as frestas, onde a voz começa a dancar, onde o corpo começa a cantar, onde o teatro se torna cinema” (JOWITT, 1997: 2). A centralidade da voz em seu projeto estético e sua maneira obstinada de enfatizar a corporeidade da expressão vocal me levaram a investigar as formas pelas quais o corpo em movimento é evidenciado em suas vocalizações. Neste artigo discuto a obra “Our Lady of Late” (1972-3). Mais que analisar o papel da voz como trilha para uma coreografia, me interessa discutir estratégias estéticas utilizadas de forma recorrente pela artista para explorar a voz como movimento corporal e utilizá-la como ponto de articulação entre diferentes modalidades de expressão artística. PALAVRAS-CHAVE: Voz, Corpo, Dança, Meredith Monk. THE SINGING IN DANCE AND THE DANCE IN SINGING: REFLEXIONS ON THE WORK OF MEREDITH MONK ABSTRACT North-american artist Meredith Monk (New York, 1942) works “in between the cracks, where the voice starts dancing, where the body starts singing, where theater becomes cinema” (JOWITT, 1997: 2). The central role of voice in her artistic project and her obstinacy in emphasizing the embodied character of vocal expression led me to investigate the forms through which the moving body is evidenced in her vocalizations. On this paper I discuss the performance “Our Lady of Late” (1972-3). Instead of analyzing the vocal work as soundtrack for a choreography, I am interested in discussing Monk's strategies for exploring the voice as a bodily movement and using it as an articulation point for various modes of artistic expression. KEYWORDS: Voice, Body, Dance, Meredith Monk. http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 Meredith Monk e a “voz que dança” É difícil classificar o conjunto da obra de Meredith Monk conforme os critérios tradicionais que balizam as divisões entre modalidades artísticas. Seu trabalho criativo pode ter como resultado uma peça musical, uma coreografia, uma performance teatral, um filme/vídeo, ou simplesmente algo que não se enquadre em nenhuma destas categorias isoladamente, mas contenha elementos de todas elas. Uma das provas disto é o fato de que sua obra costuma figurar igualmente em manuais acadêmicos e compêndios históricos dedicados a diversas áreas, como a dança (AU, 2002), arte da performance (GOLDBERG, 2001), artes visuais (KAYE, 2000), música (GRIFFITHS, 2011) e teatro (LEHMANN, 2007). O enquadramento de sua atividade em conformidade com a divisão disciplinar entre modalidades de criação artística nunca foi uma preocupação para Monk, que já elencou entre suas missões criar uma arte que destrói as fronteiras entre disciplinas […] uma arte que busca restabelecer a unidade existente na música, no teatro e na dança – a inteireza que é encontrada em culturas nas quais a prática artística é considerada uma disciplina espiritual com poderes curativos e transformadores (MONK, 1996: 17, tradução minha). Em uma entrevista, ela definiu seu método criativo com uma frase que tornou-se emblemática e costuma ser muito citada por comentaristas de sua obra: “Trabalho por entre as frestas, onde a voz começa a dançar, onde o corpo começa a cantar, onde o teatro se torna cinema” (JOWITT, 1997: 2, tradução minha). Esta definição remete ao movimento em oposição à estase, à mudança em oposição à permanência, e ao holístico em oposição ao especializado. Todas estas questões foram trabalhadas por Monk de diferentes formas em vários momentos de sua carreira. Em uma entrevista mais recente, ela explica por que se considera primeiramente uma compositora: o coração de meu trabalho é o canto. Penso no meu trabalho como uma grande árvore com dois ramos principais. Um deles é o canto e começou com meu trabalho solo, explorando a voz humana e todas as suas possibilidades. Esta foi uma disciplina muito rígida por mais de trinta anos, trabalhando com meu próprio instrumento e descobrindo todas as várias possibilidades. E então isto evolui para fazer CDs e composições com o [Vocal] Ensemble [seu grupo de vocalistas] e outros grupos cantando esta música. O outro ramo são as formas compostas, que podem ser óperas ou peças de teatro musical, ou instalações ou filmes. E é onde diferentes elementos são entrelaçados em uma grande composição. Mas eu sempre sinto que http://portalanda.org.br/index.php/anais 2 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 estas formas são construídas, em certo sentido, musicalmente. Mesmo com imagens, é na verdade um pensamento sobre ritmo como a estrutura primária que serve de base a tudo. E não necessariamente o ritmo métrico, mas ritmo, eu diria, é a base destes entrelaçamentos de diferentes modos perceptivos (OTERI, 2000). Monk chega em Nova Iorque em 1964, época em que “o mundo da dança já havia presenciado o primeiro estágio de uma rebelião criativa e os coreógrafos revolucionários da primeira geração da Judson Church estavam consolidando suas descobertas e avanços” (BANES, 1978: 4). Seus primeiros trabalhos estão profundamente ligados à cena do happening e das performances multimídia que eram a tônica de parte significativa das explorações dos artistas atuantes naquele período, não apenas no campo da dança, mas das artes visuais, teatro e música. Entretanto, muito cedo em seu trabalho a voz humana passa a desempenhar um papel central, articulando as potencialidades expressivas do corpo e os elementos das várias linguagens artísticas com as quais já vinha trabalhando. Monk costuma repetir em entrevistas que, ainda no início de sua carreira artística, teve o que ela chama de “revelação”: Um dia, em 1965, enquanto estava ao piano vocalizando, entendi em um flash que no interior da voz estavam possibilidades ilimitadas de cor, textura, qualidade, gênero, movimento, e maneiras de produzir sons que eram universais. Daí em diante, passei a trabalhar meu próprio instrumento – tentando descobrir as vozes interiores. Explorei várias ressonâncias, maneiras de usar a respiração, lábios, bochechas e diafragma. Também trabalhei com os extremos do meu registro e mudanças rápidas de uma qualidade vocal para outra, para que minha voz pudesse ser um condutor flexível para a energia e os impulsos que começaram a emergir (MONK, 2003, tradução minha). O trabalho vocal desenvolvido por Meredith Monk engloba um grande número de técnicas e é fruto de extensa pesquisa que inclui formas de canto ancestrais, utilizadas tradicionalmente por diversas culturas ao redor do mundo. A exploração das possibilidades expressivas da voz levou Monk a desenvolver uma abordagem que considera o som vocal muito além do papel cotidiano de veículo para a linguagem: ela não costuma utilizar palavras em suas composições e, nas raras ocasiões em que aparecem, são tratadas como matéria sonora e coreográfica, sendo progressivamente esvaziadas de seus significados habituais. Ao extrapolar as fronteiras da fala, a artista abre caminhos para a expressão de “emoções para as quais não temos palavras”, http://portalanda.org.br/index.php/anais 3 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 para que a voz seja usada como “ferramenta para descobrir, ativar, relembrar, revelar, demonstrar uma consciência pré-lógica/primordial”, e para explicitar toda a corporeidade presente na voz, buscando “a voz que dança, a voz tão flexível quanto a coluna” (MONK, 1976: 13, tradução minha). Neste artigo discutirei a obra Our Lady of Late, composta em 1972-3. Mais que analisar a obra vocal como trilha sonora de uma coreografia, me interessa investigar certas estratégias estéticas (que acabaram por tornar-se recorrentes em sua obra) voltadas para a exploração da voz como movimento corporal e sua utilização como ponto de articulação entre as diferentes modalidades de expressão artística de que lança mão em seus processos criativos. Our Lady of Late: Contextos, Projetos e Além Our Lady of Late é uma peça formada por dezoito seções (incluindo um prólogo e um epílogo) e foi composta originalmente como trilha sonora para a coreografia homônima do dançarino e coreógrafo norte-americano William Dunas (1947-2009). A data de composição é incerta: a publicação da partitura da obra (MONK, 1976), indica a data de 1972, mas a cronologia publicada no site oficial de Meredith Monk aponta o ano de 1973. Não encontrei referências específicas sobre a coreografia de Dunas, além de uma breve menção em seu obituário citando a colaboração de Monk na trilha sonora (PERRON, 2010) e a indicação escrita pela própria Monk na partitura, referindo-se a Dunas como responsável pela “instrumentação” e pela encomenda da obra para sua “peça de dança/teatro” (MONK, 1976: 5). Ainda em meados da década de 1970, Monk começou a apresentar esta obra como uma performance solo em que vocalizava sentada, fazendo-se acompanhar pelo som resultante da fricção de seu dedo na borda de uma taça de cristal cheia d'água (ver Figura 1). Em 1973 foi lançado o disco contendo a peça na íntegra, mais tarde sendo relançado em CD (MONK, 1997 [1973]). Tomada em seu conjunto complexo, Our Lady of Late demonstra um caráter claramente experimental no sentido de propor uma exploração sistemática de várias qualidades vocais e suas interações com o som contínuo http://portalanda.org.br/index.php/anais 4 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 produzido pela taça de vinho cheia d'água. Em seu texto Notes on the Voice (Notas sobre a voz), Monk faz um balanço das obras que havia criado até então (o texto foi escrito e publicado originalmente em 1976), chamando-o de “cronologia de descobertas” e relacionando cada criação às questões estéticas e técnicas que tinha em mente ou que foram despertadas pelo processo de composição. No comentário dedicado a Our Lady of Late, a artista deixa explícita a verve experimental/investigativa que é a tônica da obra: 1972-73, dueto de voz solo com taça (taça de vinho cheia d’água), (Our Lady of Late), a voz nua, a voz feminina em todos os seus aspectos; gradações de sentimento, nuance, ritmo, qualidade; a cada seção uma voz (personagem, persona), a cada seção um problema musical, uma área de investigação diferente; toda a variação da voz (afinação, volume, velocidade, textura, timbre, respiração, colocação, força); a voz como veículo de uma jornada psíquica (MONK, 1976a, : 14, tradução minha). Neste trecho, também fica claro que as investigações técnicas ou formais não estavam dissociadas de preocupações expressivas relacionadas ao projeto maior de “desnudar” a voz, revelando-a “em todos os seus aspectos”, a ponto de Monk referir-se a esta tarefa como uma “jornada psíquica”. Juntamente com Notes on the Voice, Monk publica Our Lady of Late (MONK, 1976) com uma descrição detalhada da obra composta por exemplos das vocalizações de cada seção em notação musical acompanhados de pequenos textos explicativos nos quais a artista comenta a qualidade vocal trabalhada (Ver Figura 2). Em alguns casos, a artista descreve a forma pela qual obteve a sonoridade referindo-se a processos de emissão vocal por meio de frases como “os tons em staccato são produzidos por um movimento brusco no diafragma” (1976: 7, tradução minha) ou “o ar da respiração não pressiona o peito como na maioria do canto grave” (Idem, p. 10), ou ainda “o som vem cada vez mais da garganta e torna-se mais e mais áspero” (Idem: 11). http://portalanda.org.br/index.php/anais 5 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 Trecho da publicação com os exemplos em notação musical e comentários de Monk sobre Our Lady of Late (MONK, 1976). Apesar do esforço em detalhar as vocalizações de seção e oferecer uma descrição precisa de seu próprio trabalho, não percebo aqui um desejo de orientar possíveis interessados (as) em executar a obra, como é regra na música vocal erudita registrada em partituras. Isto parece ficar mais explícito no trecho em que comenta a seção “Free” (livre): “Esta seção é cantada de forma diferente em cada performance […] Sua estrutura é difícil de descrever em palavras” (1976: 11, tradução minha); o trecho parece denotar que sua vontade de documentar o trabalho não está pautada pelo oferecimento de instruções para futuras performances a serem realizadas por outras pessoas. É importante ressaltar que estas publicações são raros exemplos de registros produzidos pela própria Monk sobre sua obra e seus pensamentos. A artista não costuma trabalhar com produções escritas, seja em forma de partituras ou de depoimentos. A esmagadora maioria dos registros disponíveis de suas ideias e comentários é acessível por meio das numerosas entrevistas que concedeu ao longo de toda a sua carreira. Ela comenta este aspecto de seu trabalho da seguinte maneira em uma entrevista gravada nos anos 1970: É realmente muito mais como se eu estivesse trabalhando a partir de um tipo de tradição oral porque, de fato, trabalho o material em minha própria voz ou posso escrever algumas frases, mas não distribuo [aos músicos] partituras para serem aprendidas. Em outras palavras, nos ensaios eu trabalho diretamente com as próprias vozes como instrumentos físicos [...] É muito mais como se eu estivesse trabalhando a partir de uma tradição oral em vez da tradição escrita ocidental. Trabalho muito mais diretamente com o próprio instrumento http://portalanda.org.br/index.php/anais 6 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 e, se escrevo a partitura, eu escrevo depois. Não gosto quando os músicos lêem partituras enquanto tocam (MONK, s/d, Transcrição e tradução minhas). Tanto os comentários de Monk sobre Our Lady of Late quanto o depoimento transcrito acima relacionam-se com uma de minhas principais hipóteses sobre o conjunto de sua obra: a hipótese de que a voz, tal como utilizada por Monk em suas composições, produz nos ouvintes um efeito imediato de explicitar o corpo que a emite por meio de vocalizações que enfatizam os processos físicos pelos quais os sons são produzidos. Esta questão parece estar relacionada a outros dois aspectos de sua obra: a recusa aos resistentes padrões estéticos ainda vigentes no imaginário popular sobre o canto erudito ocidental e, de forma mais específica, a exploração de meios não-verbais de vocalização. Canto: “a voz do corpo / o corpo da voz” É vago dizer apenas que Meredith Monk recusa o cânone ocidental ligado ao canto erudito, mas é extremamente difícil definir com um mínimo de precisão este tão falado estilo de canto vigente na tradição moderna, erudita e europeia. James Stark lembra que o termo Bel Canto, fartamente associado a esta tradição, é utilizado de forma muito vaga, denotando a falta de consenso entre historiadores da música, professores de voz e cantores. Conforme o autor, as conotações do termo abarcam “muitos aspectos da história e pedagogia vocais, incluindo várias ‘idades de ouroʼ do canto, diversas técnicas específicas de produção vocal, e uma variedade de idiomas estilísticos vocais” (STARK, 2008:. xvii). Apesar das divergências, o termo costuma ser utilizado em contextos muito específicos, remetendo a questões estilísticas e históricas razoavelmente localizáveis, como ressalva o próprio Stark: a tradição do bel canto é associada à ascensão de uma classe de cantores virtuosos e a emergência de um repertório de canções para solista e óperas que remonta a finais do século XVI e inícios do XVII. Desde estes tempos iniciais, o reconhecimento de que a voz humana poderia ser utilizada de maneiras extraordinárias separou os cantores virtuosos dos cantores de coral e amadores, e resultou em um novo modo de expressão vocal. Mas as técnicas vocais específicas que levavam a este tipo de canto não eram claramente discerníveis (2008: xvii). http://portalanda.org.br/index.php/anais 7 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 A questão da pedagogia vocal baseada nos parâmetros estéticos do bel canto sempre foi objeto de controvérsias. Stark fala de uma aura de segredo que envolve muitas das técnicas do bel canto, o que certamente está relacionado à própria criação da categoria dos virtuosi. Heloísa de Araújo Duarte Valente comenta a questão do estrelismo no universo da ópera, lembrando oportunamente que a palavra italiana “diva” traduz-se literalmente por “deusa”, e que o próprio adjetivo “virtuoso” evoca qualidades divinas atribuída a certos tipos de artista (ver VALENTE, 2003: 38-56). Entretanto, em relação à pedagogia vocal voltada para o canto erudito, a imprecisão dominante também diz respeito às peculiaridades do “instrumento” vocal: Uma das dificuldades da pedagogia [vocal erudita] consiste, entre outras coisas, em que o cantor deve aprender suas próprias coordenações a partir de um efeito sonoro a pesquisar. A imitação, ou uma abordagem muito tecnicista, não levando em conta as qualidades próprias e a morfologia de cada aluno, não pode ser erigida em método. Convém que cada um encontre sua voz, quer dizer, a ‘voz de seu corpoʼ: muito rápido o aluno, sob reserva de observações regulares, deve tornar-se seu próprio mestre, o que começar a tornar-se possível desde que percebe as sensações internas do que faz” (MELLET, 1998: 110). A maioria dos órgãos que compõem o aparelho fonador encontra-se no interior do corpo, ou seja, fora de nosso alcance visual, o que pode tornar qualquer proposta de pedagogia vocal uma forma de perpetuação do obscurantismo reinante na área, gerando muitas vezes receitas prontas ou observações vagas demais, como é o caso do texto citado acima. A dificuldade também se coloca do ponto de vista da terminologia utilizada para fazer referência a características vocais como as diferenças de timbre, registro e qualidades de emissão. Elizabeth Travassos chama atenção para esta dificuldade específica e suas diversas implicações no campo da etnomusicologia: Cantores e professores de canto não têm carência de vocabulário técnico, mas não há consenso entre eles e os termos que usam para qualificar as vozes e o modo de cantar não são unânimes. As categorias verbais consagradas no discurso musicológico, por sua vez, compõem um catálogo limitado, estreitamente vinculado à ópera. Não é de se estranhar, pois a história do canto na Europa e a instituição do belcanto não podem ser compreendidas isoladamente http://portalanda.org.br/index.php/anais 8 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 da evolução do teatro musical. Mas o vocabulário técnico que o canto erudito gerou é parte mesma da normatização técnica e estética que ele implica. Aplicar suas categorias a outros tipos de canto e vocalização é menos ingênuo do que realmente complicado: seria preciso, a cada passo, fazer a arqueologia das noções, compreender os valores aos quais estão atadas, e só então dotá-las, talvez, de outros significados. Dizer que uma jongueira tem voz de contralto não comunica muita coisa importante sobre sua voz (2008: 102). O que dizer, então, de uma artista que explora justamente as características únicas e irrepetíveis de cada voz, enfocando suas idiossincrasias e mesmo suas limitações em suas obras? Não é difícil imaginar a dificuldade (para não dizer impossibilidade) de enquadrar esta poética vocal utilizando categorias abstratas e generalizantes. A própria Monk faz comentários sobre isso ao falar de seu processo criativo, repetindo em entrevistas o que disse em um documentário: “trabalho na música como trabalho na dança, o que quer dizer que trabalho diretamente nas próprias pessoas. Crio a música para suas vozes particulares e este processo é mais ligado à dança que à música” (BLACKWOOD, 1980, Transcrição e tradução minhas). Em outro depoimento da mesma época, registrado no encarte de seu disco Dolmen Music, Monk reitera esta questão: Tenho trabalhado com a voz solo como instrumento nos últimos quatorze anos. Depois de uma formação vocal clássica e experiência como cantora de rock e folk, percebi que queria criar musical vocal que tivesse o estilo pessoal e as qualidades abstratas (assim como emocionais) que entram em jogo na criação de uma pintura ou coreografia […] ao longo dos anos, desenvolvi um vocabulário e um estilo criados para utilizar o maior leque possível de sons vocais. Quatro anos atrás, tomei uma decisão inevitável: ensinar algumas de minhas técnicas a outras vozes, em uma tentativa de expandir minha composição – para ver se estes princípios poderiam ser traduzidos (transferidos) para outros cantores e trabalhados em forma de grupo. Minhas principais preocupações ao trabalhar com um grupo têm sido trabalhar com a qualidade única de cada voz e brincar com as possibilidades conjuntas de uníssono, textura, contraponto, entrelaçamento etc. (2000 [1981], tradução minha). Voltando à análise de Our Lady of Late, temos Monk em um momento anterior de sua carreira, ainda descobrindo as possibilidades de seu instrumento e, para tanto, lançando mão de procedimentos extremos como forma de isolar elementos formais e investigá-los à exaustão. No caso desta obra, percebemos que toda a multiplicidade presente nas maneiras de utilizar a voz cantada contrasta com um acompanhamento instrumental radicalmente http://portalanda.org.br/index.php/anais 9 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 simples: uma única nota sustentada durante todo o tempo de cada seção. Em composições posteriores, Monk consolidou um estilo de acompanhamento instrumental para sua voz baseado sobretudo na repetição de padrões melódicos e rítmicos extremamente simples. Este estilo de composição, aliado à época em que Meredith Monk começa a ser reconhecida como criadora (meados dos anos 1960 e inícios dos 1970) fez com que sua obra musical fosse constantemente associada ao minimalismo por vários críticos. Monk sempre rejeitou esta classificação, alegando projetos estéticos diferentes, percepção que foi corretamente percebida por alguns estudiosos do tema, como no exemplo abaixo: A artista de muitos talentos Meredith Monk é […] uma das mais significativas compositoras popularmente associadas ao estilo Minimalista, apesar de ela não apenas desaprovar o rótulo, mas considerá-lo inadequado. Monk foi provavelmente melhor conhecida como dançarina e coreógrafa nos anos 1960 e início dos anos 1970, época em que ela de fato resistiu ao que percebia como a polêmica algo doutrinária de colegas da dança associados ao estilo redutor. O rótulo Minimalista é associado à sua música por causa de sua instrumentação reduzida e sua típica opção por sons contínuos e monótonos e módulos repetitivos […] A diferença crucial [de Monk em contraste com outros compositores minimalistas] é que estes elementos servem a Monk primeiramente como acompanhamento para seus vocais ampliados virtuosistas, semi-improvisados e tudo menos minimalistas (STRICKLAND, 1993: 252, tradução minha). Não é apenas o aspecto formal que distancia Monk do projeto minimalista: vários elementos explorados em sua obra não encontram eco entre os compositores geralmente associados a esta estética. Como exemplo, posso citar a preocupação com a ritualidade e a ancestralidade como um traço marcante em toda a obra de Monk. As características apontadas por Strickland podem ser facilmente percebidas em Our Lady of Late: ausência de coreografia e acompanhamento instrumental mínimo criando uma base sobre a qual vai atuar a voz, elemento central da composição. Na oitava de suas “notas sobre a voz”, Monk escreve sobre o papel do som contínuo produzido pela taça de vinho cheia d'água: Trabalhando com um companheiro (o instrumento acompanhante: órgão, piano, taça etc.): padrões repetidos ou ruído contínuo criando um tapete, uma tapeçaria de som para que a voz possa correr sobre, voar por cima, deslizar por baixo, prender-se e entrelaçar-se (MONK, 1976ª: 13, tradução minha). http://portalanda.org.br/index.php/anais 10 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 Podemos dizer que esta obra é um exemplo típico do estilo de composição que Monk vem consolidando ao longo dos anos. Outro aspecto típico deste estilo é a abertura para variações e improvisos prevista na própria estrutura da obra. Voltando ao Óbvio: Voz é Corpo O radicalismo das experiências iniciais de Meredith Monk com a voz tem como um dos principais efeitos a exposição do corpo que a produz. Isto fica claro em Our Lady of Late, sobretudo quando a artista utiliza tipos de emissão vocal que estão tradicionalmente associados a ruídos indesejáveis: como exemplos, podemos citar o som resultante do atrito do ar da respiração com o trato vocal (podendo ter como efeito sons arfantes ou guturais) ou a exploração das regiões de mudança de registro de vocal (causando no ouvinte a sensação de uma “quebra” na voz, observada tipicamente no canto tradicional tirolês conhecido como Yodl ou Jodl). Sabendo que a descrição verbal destas qualidades vocais é absolutamente insatisfatória, recomendo a audição do fonograma disponível para consulta na internet contendo uma performance completa desta obra (MONK, 1975). Ouvindo as vocalizações de Monk, podemos dizer que sua voz dança, não em uma acepção mais próxima do senso comum segundo a qual percebem-se os movimentos da linha melódica traçada pela voz, mas porque a própria qualidade da voz aponta para seu modo de produção, ou seja, a voz chama a atenção do ouvinte para a maneira pela qual o ar é esculpido pelo corpo enquanto vai sendo transformado em som. Provisoriamente, tenho feito referência a esta característica estilística da vocalidade de Monk como uma ênfase na “corporeidade da voz”. Facilmente percebe-se que esta ênfase é algo que não condiz com o universo estético do bel canto: os cantores virtuosi, ao aproximarem-se do divino, com seu desempenho vocal, afastam-se do plano do humano, do corpo, e de suas expressões mais concretas. A voz da diva ou prima donna das óperas europeias tradicionais não desceria de seu pedestal para demonstrar a própria http://portalanda.org.br/index.php/anais 11 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 humanidade audível nos sinais de sua gênese corpórea, pelo contrário, estas vozes são exaustivamente treinadas para escamotear estes indícios corporais e exibir resultados sonoros dignos de um ser que o ouvinte tem dificuldade em classificar como humano. O caminho de Monk parece ser o oposto: revelar, desnudar, expor esta corporeidade da voz. Além do próprio trabalho de pesquisa vocal, a estratégia mais aparente para alcançar este objetivo é sua manipulação da proposta cênica da performance, claramente perceptível na radical economia de recursos: não há cenários, o figurino é neutro, e os poucos objetos presentes em cena são estritamente necessários à execução das ações sonoras (banco para sentar e pequena mesa para apoiar a taça). Não há coreografia em um sentido mais tradicional, muito embora seja possível falar em uma característica coreográfica do uso da voz a partir dos argumentos que já apresentei até este ponto. Uma simples imagem e a gravação em áudio são suficientes para que se possa ter uma ideia muito nítida de como Monk conduzia esta performance, esforçando-se em estabelecer a voz e seus movimentos como foco exclusivo de atenção do público, da mesma forma como é muito provável que a artista tenha procedido ao elaborar a composição. Em seus trabalhos posteriores, Monk conseguiu ao mesmo tempo aprofundar e ampliar seu projeto de poética vocal. Songs from the Hill, obra imediatamente subsequente a Our Lady of Late, é ainda mais extrema ao propor trabalhar a voz “totalmente sozinha, sem acompanhamentos, sem adornos” (MONK, 1976a: 14, tradução minha). As criações de Meredith Monk continuam reverberando na criação contemporânea e permanecem um exemplo único no que diz respeito à investigação da potencialidade da voz humana. Referências AU, Susan. Ballet and Modern Dance. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2002. http://portalanda.org.br/index.php/anais 12 ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013 BLACKWOOD, Michael. Making dances – 7 postmodern choreographers. DVD. Nova Iorque: Michael Blackwood Productions, 1980. GOLDBERG, RoseLee. Performance art from Futurism to the Present. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2001. GRIFFITHS, Paul. 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Disponível em http://www.newmusicbox.org/12/mmonk_interview.pdf (acesso em 21/07/2013). PERRON, Wendy. In Memoriam – William Dunas. Nova Iorque: Dance Magazine, 01/03/2010. Disponível em: http://www.dancemagazine.com/in_memoriam/3258 (acesso em 20/07/2013). STARK, James. Bel canto: a history of vocal pedagogy. Toronto: University of Toronto Press, 2008. STRICKLAND, Edward. Minimalism:Origins. Indiana: Indiana University Press, 1993. TRAVASSOS, Elizabeth. Um objeto fugidio: voz e 'musicologias'. In: MATOS, Claudia Neiva de et al (Org.) Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2008, pp. 99-123. VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte. As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/FAPESP, 2003. Conrado Falbo Performer, pesquisador e professor. Doutorando em Teoria da Literatura pela UFPE e mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituição (2009). Desde 2008 vem trabalhando com orientação vocal/musical dirigida a profissionais das artes cênicas. É artista ocupante do Coletivo Lugar Comum desde 2011 e professor substituto dos cursos de Licenciatura em Teatro e Licenciatura em Dança na UFPE a cargo do grupo de disciplinas "Voz e Movimento" desde Janeiro de 2013. Email: [email protected] http://portalanda.org.br/index.php/anais 14