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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
O CANTO DA DANÇA E A DANÇA DO CANTO: REFLEXÕES
SOBRE A OBRA DE MEREDITH MONK
CONRADO FALBO (PPGL/UFPE)
RESUMO
A artista norte-americana Meredith Monk (Nova Iorque, 1942) trabalha “por
entre as frestas, onde a voz começa a dancar, onde o corpo começa a cantar,
onde o teatro se torna cinema” (JOWITT, 1997: 2). A centralidade da voz em
seu projeto estético e sua maneira obstinada de enfatizar a corporeidade da
expressão vocal me levaram a investigar as formas pelas quais o corpo em
movimento é evidenciado em suas vocalizações. Neste artigo discuto a obra
“Our Lady of Late” (1972-3). Mais que analisar o papel da voz como trilha para
uma coreografia, me interessa discutir estratégias estéticas utilizadas de forma
recorrente pela artista para explorar a voz como movimento corporal e utilizá-la
como ponto de articulação entre diferentes modalidades de expressão artística.
PALAVRAS-CHAVE: Voz, Corpo, Dança, Meredith Monk.
THE SINGING IN DANCE AND THE DANCE IN SINGING:
REFLEXIONS ON THE WORK OF MEREDITH MONK
ABSTRACT
North-american artist Meredith Monk (New York, 1942) works “in between the
cracks, where the voice starts dancing, where the body starts singing, where
theater becomes cinema” (JOWITT, 1997: 2). The central role of voice in her
artistic project and her obstinacy in emphasizing the embodied character of
vocal expression led me to investigate the forms through which the moving
body is evidenced in her vocalizations. On this paper I discuss the performance
“Our Lady of Late” (1972-3). Instead of analyzing the vocal work as soundtrack
for a choreography, I am interested in discussing Monk's strategies for exploring
the voice as a bodily movement and using it as an articulation point for various
modes of artistic expression.
KEYWORDS: Voice, Body, Dance, Meredith Monk.
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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
Meredith Monk e a “voz que dança”
É difícil classificar o conjunto da obra de Meredith Monk conforme os
critérios tradicionais que balizam as divisões entre modalidades artísticas. Seu
trabalho criativo pode ter como resultado uma peça musical, uma coreografia,
uma performance teatral, um filme/vídeo, ou simplesmente algo que não se
enquadre em nenhuma destas categorias isoladamente, mas contenha
elementos de todas elas. Uma das provas disto é o fato de que sua obra
costuma figurar igualmente em manuais acadêmicos e compêndios históricos
dedicados a diversas áreas, como a dança (AU, 2002), arte da performance
(GOLDBERG, 2001), artes visuais (KAYE, 2000), música (GRIFFITHS, 2011) e
teatro (LEHMANN, 2007). O enquadramento de sua atividade em conformidade
com a divisão disciplinar entre modalidades de criação artística nunca foi uma
preocupação para Monk, que já elencou entre suas missões
criar uma arte que destrói as fronteiras entre disciplinas […] uma arte
que busca restabelecer a unidade existente na música, no teatro e na
dança – a inteireza que é encontrada em culturas nas quais a prática
artística é considerada uma disciplina espiritual com poderes
curativos e transformadores (MONK, 1996: 17, tradução minha).
Em uma entrevista, ela definiu seu método criativo com uma frase que
tornou-se emblemática e costuma ser muito citada por comentaristas de sua
obra: “Trabalho por entre as frestas, onde a voz começa a dançar, onde o
corpo começa a cantar, onde o teatro se torna cinema” (JOWITT, 1997: 2,
tradução minha). Esta definição remete ao movimento em oposição à estase, à
mudança em oposição à permanência, e ao holístico em oposição ao
especializado. Todas estas questões foram trabalhadas por Monk de diferentes
formas em vários momentos de sua carreira. Em uma entrevista mais recente,
ela explica por que se considera primeiramente uma compositora:
o coração de meu trabalho é o canto. Penso no meu trabalho como
uma grande árvore com dois ramos principais. Um deles é o canto e
começou com meu trabalho solo, explorando a voz humana e todas
as suas possibilidades. Esta foi uma disciplina muito rígida por mais
de trinta anos, trabalhando com meu próprio instrumento e
descobrindo todas as várias possibilidades. E então isto evolui para
fazer CDs e composições com o [Vocal] Ensemble [seu grupo de
vocalistas] e outros grupos cantando esta música. O outro ramo são
as formas compostas, que podem ser óperas ou peças de teatro
musical, ou instalações ou filmes. E é onde diferentes elementos são
entrelaçados em uma grande composição. Mas eu sempre sinto que
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estas formas são construídas, em certo sentido, musicalmente.
Mesmo com imagens, é na verdade um pensamento sobre ritmo
como a estrutura primária que serve de base a tudo. E não
necessariamente o ritmo métrico, mas ritmo, eu diria, é a base destes
entrelaçamentos de diferentes modos perceptivos (OTERI, 2000).
Monk chega em Nova Iorque em 1964, época em que “o mundo da
dança já havia presenciado o primeiro estágio de uma rebelião criativa e os
coreógrafos revolucionários da primeira geração da Judson Church estavam
consolidando suas descobertas e avanços” (BANES, 1978: 4). Seus primeiros
trabalhos estão profundamente ligados à cena do happening e das
performances multimídia que eram a tônica de parte significativa das
explorações dos artistas atuantes naquele período, não apenas no campo da
dança, mas das artes visuais, teatro e música. Entretanto, muito cedo em seu
trabalho a voz humana passa a desempenhar um papel central, articulando as
potencialidades expressivas do corpo e os elementos das várias linguagens
artísticas com as quais já vinha trabalhando. Monk costuma repetir em
entrevistas que, ainda no início de sua carreira artística, teve o que ela chama
de “revelação”:
Um dia, em 1965, enquanto estava ao piano vocalizando, entendi em
um flash que no interior da voz estavam possibilidades ilimitadas de
cor, textura, qualidade, gênero, movimento, e maneiras de produzir
sons que eram universais. Daí em diante, passei a trabalhar meu
próprio instrumento – tentando descobrir as vozes interiores. Explorei
várias ressonâncias, maneiras de usar a respiração, lábios,
bochechas e diafragma. Também trabalhei com os extremos do meu
registro e mudanças rápidas de uma qualidade vocal para outra, para
que minha voz pudesse ser um condutor flexível para a energia e os
impulsos que começaram a emergir (MONK, 2003, tradução minha).
O trabalho vocal desenvolvido por Meredith Monk engloba um grande
número de técnicas e é fruto de extensa pesquisa que inclui formas de canto
ancestrais, utilizadas tradicionalmente por diversas culturas ao redor do
mundo. A exploração das possibilidades expressivas da voz levou Monk a
desenvolver uma abordagem que considera o som vocal muito além do papel
cotidiano de veículo para a linguagem: ela não costuma utilizar palavras em
suas composições e, nas raras ocasiões em que aparecem, são tratadas como
matéria sonora e coreográfica, sendo progressivamente esvaziadas de seus
significados habituais. Ao extrapolar as fronteiras da fala, a artista abre
caminhos para a expressão de “emoções para as quais não temos palavras”,
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para que a voz seja usada como “ferramenta para descobrir, ativar, relembrar,
revelar, demonstrar uma consciência pré-lógica/primordial”, e para explicitar
toda a corporeidade presente na voz, buscando “a voz que dança, a voz tão
flexível quanto a coluna” (MONK, 1976: 13, tradução minha).
Neste artigo discutirei a obra Our Lady of Late, composta em 1972-3.
Mais que analisar a obra vocal como trilha sonora de uma coreografia, me
interessa investigar certas estratégias estéticas (que acabaram por tornar-se
recorrentes em sua obra) voltadas para a exploração da voz como movimento
corporal e sua utilização como ponto de articulação entre as diferentes
modalidades de expressão artística de que lança mão em seus processos
criativos.
Our Lady of Late: Contextos, Projetos e Além
Our Lady of Late é uma peça formada por dezoito seções (incluindo um
prólogo e um epílogo) e foi composta originalmente como trilha sonora para a
coreografia homônima do dançarino e coreógrafo norte-americano William
Dunas (1947-2009). A data de composição é incerta: a publicação da partitura
da obra (MONK, 1976), indica a data de 1972, mas a cronologia publicada no
site oficial de Meredith Monk aponta o ano de 1973. Não encontrei referências
específicas sobre a coreografia de Dunas, além de uma breve menção em seu
obituário citando a colaboração de Monk na trilha sonora (PERRON, 2010) e a
indicação escrita pela própria Monk na partitura, referindo-se a Dunas como
responsável pela “instrumentação” e pela encomenda da obra para sua “peça
de dança/teatro” (MONK, 1976: 5). Ainda em meados da década de 1970,
Monk começou a apresentar esta obra como uma performance solo em que
vocalizava sentada, fazendo-se acompanhar pelo som resultante da fricção de
seu dedo na borda de uma taça de cristal cheia d'água (ver Figura 1). Em 1973
foi lançado o disco contendo a peça na íntegra, mais tarde sendo relançado em
CD (MONK, 1997 [1973]).
Tomada em seu conjunto complexo, Our Lady of Late demonstra um
caráter claramente experimental no sentido de propor uma exploração
sistemática de várias qualidades vocais e suas interações com o som contínuo
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produzido pela taça de vinho cheia d'água. Em seu texto Notes on the Voice
(Notas sobre a voz), Monk faz um balanço das obras que havia criado até
então (o texto foi escrito e publicado originalmente em 1976), chamando-o de
“cronologia de descobertas” e relacionando cada criação às questões estéticas
e técnicas que tinha em mente ou que foram despertadas pelo processo de
composição. No comentário dedicado a Our Lady of Late, a artista deixa
explícita a verve experimental/investigativa que é a tônica da obra:
1972-73, dueto de voz solo com taça (taça de vinho cheia d’água),
(Our Lady of Late), a voz nua, a voz feminina em todos os seus
aspectos; gradações de sentimento, nuance, ritmo, qualidade; a cada
seção uma voz (personagem, persona), a cada seção um problema
musical, uma área de investigação diferente; toda a variação da voz
(afinação, volume, velocidade, textura, timbre, respiração, colocação,
força); a voz como veículo de uma jornada psíquica (MONK, 1976a, :
14, tradução minha).
Neste trecho, também fica claro que as investigações técnicas ou
formais não estavam dissociadas de preocupações expressivas relacionadas
ao projeto maior de “desnudar” a voz, revelando-a “em todos os seus
aspectos”, a ponto de Monk referir-se a esta tarefa como uma “jornada
psíquica”.
Juntamente com Notes on the Voice, Monk publica Our Lady of Late
(MONK, 1976) com uma descrição detalhada da obra composta por exemplos
das vocalizações de cada seção em notação musical acompanhados de
pequenos textos explicativos nos quais a artista comenta a qualidade vocal
trabalhada (Ver Figura 2). Em alguns casos, a artista descreve a forma pela
qual obteve a sonoridade referindo-se a processos de emissão vocal por meio
de frases como “os tons em staccato são produzidos por um movimento brusco
no diafragma” (1976: 7, tradução minha) ou “o ar da respiração não pressiona o
peito como na maioria do canto grave” (Idem, p. 10), ou ainda “o som vem cada
vez mais da garganta e torna-se mais e mais áspero” (Idem: 11).
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Trecho da publicação com os exemplos em notação musical e comentários de Monk sobre Our
Lady of Late (MONK, 1976).
Apesar do esforço em detalhar as vocalizações de seção e oferecer uma
descrição precisa de seu próprio trabalho, não percebo aqui um desejo de
orientar possíveis interessados (as) em executar a obra, como é regra na
música vocal erudita registrada em partituras. Isto parece ficar mais explícito no
trecho em que comenta a seção “Free” (livre): “Esta seção é cantada de forma
diferente em cada performance […] Sua estrutura é difícil de descrever em
palavras” (1976: 11, tradução minha); o trecho parece denotar que sua vontade
de documentar o trabalho não está pautada pelo oferecimento de instruções
para futuras performances a serem realizadas por outras pessoas.
É importante ressaltar que estas publicações são raros exemplos de
registros produzidos pela própria Monk sobre sua obra e seus pensamentos. A
artista não costuma trabalhar com produções escritas, seja em forma de
partituras ou de depoimentos. A esmagadora maioria dos registros disponíveis
de suas ideias e comentários é acessível por meio das numerosas entrevistas
que concedeu ao longo de toda a sua carreira. Ela comenta este aspecto de
seu trabalho da seguinte maneira em uma entrevista gravada nos anos 1970:
É realmente muito mais como se eu estivesse trabalhando a partir de
um tipo de tradição oral porque, de fato, trabalho o material em minha
própria voz ou posso escrever algumas frases, mas não distribuo [aos
músicos] partituras para serem aprendidas. Em outras palavras, nos
ensaios eu trabalho diretamente com as próprias vozes como
instrumentos físicos [...] É muito mais como se eu estivesse
trabalhando a partir de uma tradição oral em vez da tradição escrita
ocidental. Trabalho muito mais diretamente com o próprio instrumento
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e, se escrevo a partitura, eu escrevo depois. Não gosto quando os
músicos lêem partituras enquanto tocam (MONK, s/d, Transcrição e
tradução minhas).
Tanto os comentários de Monk sobre Our Lady of Late quanto o
depoimento transcrito acima relacionam-se com uma de minhas principais
hipóteses sobre o conjunto de sua obra: a hipótese de que a voz, tal como
utilizada por Monk em suas composições, produz nos ouvintes um efeito
imediato de explicitar o corpo que a emite por meio de vocalizações que
enfatizam os processos físicos pelos quais os sons são produzidos. Esta
questão parece estar relacionada a outros dois aspectos de sua obra: a recusa
aos resistentes padrões estéticos ainda vigentes no imaginário popular sobre o
canto erudito ocidental e, de forma mais específica, a exploração de meios
não-verbais de vocalização.
Canto: “a voz do corpo / o corpo da voz”
É vago dizer apenas que Meredith Monk recusa o cânone ocidental
ligado ao canto erudito, mas é extremamente difícil definir com um mínimo de
precisão este tão falado estilo de canto vigente na tradição moderna, erudita e
europeia. James Stark lembra que o termo Bel Canto, fartamente associado a
esta tradição, é utilizado de forma muito vaga, denotando a falta de consenso
entre historiadores da música, professores de voz e cantores. Conforme o
autor, as conotações do termo abarcam “muitos aspectos da história e
pedagogia vocais, incluindo várias ‘idades de ouroʼ do canto, diversas
técnicas específicas de produção vocal, e uma variedade de idiomas estilísticos
vocais” (STARK, 2008:. xvii). Apesar das divergências, o termo costuma ser
utilizado em contextos muito específicos, remetendo a questões estilísticas e
históricas razoavelmente localizáveis, como ressalva o próprio Stark:
a tradição do bel canto é associada à ascensão de uma classe de
cantores virtuosos e a emergência de um repertório de canções para
solista e óperas que remonta a finais do século XVI e inícios do XVII.
Desde estes tempos iniciais, o reconhecimento de que a voz humana
poderia ser utilizada de maneiras extraordinárias separou os cantores
virtuosos dos cantores de coral e amadores, e resultou em um novo
modo de expressão vocal. Mas as técnicas vocais específicas que
levavam a este tipo de canto não eram claramente discerníveis (2008:
xvii).
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A questão da pedagogia vocal baseada nos parâmetros estéticos do bel
canto sempre foi objeto de controvérsias. Stark fala de uma aura de segredo
que envolve muitas das técnicas do bel canto, o que certamente está
relacionado à própria criação da categoria dos virtuosi. Heloísa de Araújo
Duarte Valente comenta a questão do estrelismo no universo da ópera,
lembrando oportunamente que a palavra italiana “diva” traduz-se literalmente
por “deusa”, e que o próprio adjetivo “virtuoso” evoca qualidades divinas
atribuída a certos tipos de artista (ver VALENTE, 2003: 38-56).
Entretanto, em relação à pedagogia vocal voltada para o canto erudito, a
imprecisão dominante também diz respeito às peculiaridades do “instrumento”
vocal:
Uma das dificuldades da pedagogia [vocal erudita] consiste, entre
outras coisas, em que o cantor deve aprender suas próprias
coordenações a partir de um efeito sonoro a pesquisar. A imitação, ou
uma abordagem muito tecnicista, não levando em conta as
qualidades próprias e a morfologia de cada aluno, não pode ser
erigida em método. Convém que cada um encontre sua voz, quer
dizer, a ‘voz de seu corpoʼ: muito rápido o aluno, sob reserva de
observações regulares, deve tornar-se seu próprio mestre, o que
começar a tornar-se possível desde que percebe as sensações
internas do que faz” (MELLET, 1998: 110).
A maioria dos órgãos que compõem o aparelho fonador encontra-se no
interior do corpo, ou seja, fora de nosso alcance visual, o que pode tornar
qualquer proposta de pedagogia vocal uma forma de perpetuação do
obscurantismo reinante na área, gerando muitas vezes receitas prontas ou
observações vagas demais, como é o caso do texto citado acima. A dificuldade
também se coloca do ponto de vista da terminologia utilizada para fazer
referência a características vocais como as diferenças de timbre, registro e
qualidades de emissão. Elizabeth Travassos chama atenção para esta
dificuldade
específica
e
suas
diversas
implicações
no
campo
da
etnomusicologia:
Cantores e professores de canto não têm carência de vocabulário
técnico, mas não há consenso entre eles e os termos que usam para
qualificar as vozes e o modo de cantar não são unânimes. As
categorias verbais consagradas no discurso musicológico, por sua
vez, compõem um catálogo limitado, estreitamente vinculado à ópera.
Não é de se estranhar, pois a história do canto na Europa e a
instituição do belcanto não podem ser compreendidas isoladamente
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da evolução do teatro musical. Mas o vocabulário técnico que o canto
erudito gerou é parte mesma da normatização técnica e estética que
ele implica. Aplicar suas categorias a outros tipos de canto e
vocalização é menos ingênuo do que realmente complicado: seria
preciso, a cada passo, fazer a arqueologia das noções, compreender
os valores aos quais estão atadas, e só então dotá-las, talvez, de
outros significados. Dizer que uma jongueira tem voz de contralto não
comunica muita coisa importante sobre sua voz (2008: 102).
O que dizer, então, de uma artista que explora justamente as
características
únicas
e
irrepetíveis
de
cada
voz,
enfocando
suas
idiossincrasias e mesmo suas limitações em suas obras? Não é difícil imaginar
a dificuldade (para não dizer impossibilidade) de enquadrar esta poética vocal
utilizando categorias abstratas e generalizantes. A própria Monk faz
comentários sobre isso ao falar de seu processo criativo, repetindo em
entrevistas o que disse em um documentário: “trabalho na música como
trabalho na dança, o que quer dizer que trabalho diretamente nas próprias
pessoas. Crio a música para suas vozes particulares e este processo é mais
ligado à dança que à música” (BLACKWOOD, 1980, Transcrição e tradução
minhas). Em outro depoimento da mesma época, registrado no encarte de seu
disco Dolmen Music, Monk reitera esta questão:
Tenho trabalhado com a voz solo como instrumento nos últimos
quatorze anos. Depois de uma formação vocal clássica e experiência
como cantora de rock e folk, percebi que queria criar musical vocal
que tivesse o estilo pessoal e as qualidades abstratas (assim como
emocionais) que entram em jogo na criação de uma pintura ou
coreografia […] ao longo dos anos, desenvolvi um vocabulário e um
estilo criados para utilizar o maior leque possível de sons vocais.
Quatro anos atrás, tomei uma decisão inevitável: ensinar algumas de
minhas técnicas a outras vozes, em uma tentativa de expandir minha
composição – para ver se estes princípios poderiam ser traduzidos
(transferidos) para outros cantores e trabalhados em forma de grupo.
Minhas principais preocupações ao trabalhar com um grupo têm sido
trabalhar com a qualidade única de cada voz e brincar com as
possibilidades conjuntas de uníssono, textura, contraponto,
entrelaçamento etc. (2000 [1981], tradução minha).
Voltando à análise de Our Lady of Late, temos Monk em um momento
anterior de sua carreira, ainda descobrindo as possibilidades de seu
instrumento e, para tanto, lançando mão de procedimentos extremos como
forma de isolar elementos formais e investigá-los à exaustão. No caso desta
obra, percebemos que toda a multiplicidade presente nas maneiras de utilizar a
voz cantada contrasta com um acompanhamento instrumental radicalmente
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simples: uma única nota sustentada durante todo o tempo de cada seção. Em
composições posteriores, Monk consolidou um estilo de acompanhamento
instrumental para sua voz baseado sobretudo na repetição de padrões
melódicos e rítmicos extremamente simples. Este estilo de composição, aliado
à época em que Meredith Monk começa a ser reconhecida como criadora
(meados dos anos 1960 e inícios dos 1970) fez com que sua obra musical
fosse constantemente associada ao minimalismo por vários críticos. Monk
sempre rejeitou esta classificação, alegando projetos estéticos diferentes,
percepção que foi corretamente percebida por alguns estudiosos do tema,
como no exemplo abaixo:
A artista de muitos talentos Meredith Monk é […] uma das mais
significativas compositoras popularmente associadas ao estilo
Minimalista, apesar de ela não apenas desaprovar o rótulo, mas
considerá-lo inadequado. Monk foi provavelmente melhor conhecida
como dançarina e coreógrafa nos anos 1960 e início dos anos 1970,
época em que ela de fato resistiu ao que percebia como a polêmica
algo doutrinária de colegas da dança associados ao estilo redutor. O
rótulo Minimalista é associado à sua música por causa de sua
instrumentação reduzida e sua típica opção por sons contínuos e
monótonos e módulos repetitivos […] A diferença crucial [de Monk em
contraste com outros compositores minimalistas] é que estes
elementos servem a Monk primeiramente como acompanhamento
para seus vocais ampliados virtuosistas, semi-improvisados e tudo
menos minimalistas (STRICKLAND, 1993: 252, tradução minha).
Não é apenas o aspecto formal que distancia Monk do projeto
minimalista: vários elementos explorados em sua obra não encontram eco
entre os compositores geralmente associados a esta estética. Como exemplo,
posso citar a preocupação com a ritualidade e a ancestralidade como um traço
marcante em toda a obra de Monk. As características apontadas por Strickland
podem ser facilmente percebidas em Our Lady of Late: ausência de coreografia
e acompanhamento instrumental mínimo criando uma base sobre a qual vai
atuar a voz, elemento central da composição. Na oitava de suas “notas sobre a
voz”, Monk escreve sobre o papel do som contínuo produzido pela taça de
vinho cheia d'água:
Trabalhando com um companheiro (o instrumento acompanhante:
órgão, piano, taça etc.): padrões repetidos ou ruído contínuo criando
um tapete, uma tapeçaria de som para que a voz possa correr sobre,
voar por cima, deslizar por baixo, prender-se e entrelaçar-se (MONK,
1976ª: 13, tradução minha).
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Podemos dizer que esta obra é um exemplo típico do estilo de
composição que Monk vem consolidando ao longo dos anos. Outro aspecto
típico deste estilo é a abertura para variações e improvisos prevista na própria
estrutura da obra.
Voltando ao Óbvio: Voz é Corpo
O radicalismo das experiências iniciais de Meredith Monk com a voz tem
como um dos principais efeitos a exposição do corpo que a produz. Isto fica
claro em Our Lady of Late, sobretudo quando a artista utiliza tipos de emissão
vocal que estão tradicionalmente associados a ruídos indesejáveis: como
exemplos, podemos citar o som resultante do atrito do ar da respiração com o
trato vocal (podendo ter como efeito sons arfantes ou guturais) ou a exploração
das regiões de mudança de registro de vocal (causando no ouvinte a sensação
de uma “quebra” na voz, observada tipicamente no canto tradicional tirolês
conhecido como Yodl ou Jodl). Sabendo que a descrição verbal destas
qualidades vocais é absolutamente insatisfatória, recomendo a audição do
fonograma disponível para consulta na internet contendo uma performance
completa desta obra (MONK, 1975).
Ouvindo as vocalizações de Monk, podemos dizer que sua voz dança,
não em uma acepção mais próxima do senso comum segundo a qual
percebem-se os movimentos da linha melódica traçada pela voz, mas porque a
própria qualidade da voz aponta para seu modo de produção, ou seja, a voz
chama a atenção do ouvinte para a maneira pela qual o ar é esculpido pelo
corpo enquanto vai sendo transformado em som.
Provisoriamente, tenho feito referência a esta característica estilística da
vocalidade de Monk como uma ênfase na “corporeidade da voz”. Facilmente
percebe-se que esta ênfase é algo que não condiz com o universo estético do
bel canto: os cantores virtuosi, ao aproximarem-se do divino, com seu
desempenho vocal, afastam-se do plano do humano, do corpo, e de suas
expressões mais concretas. A voz da diva ou prima donna das óperas
europeias tradicionais não desceria de seu pedestal para demonstrar a própria
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humanidade audível nos sinais de sua gênese corpórea, pelo contrário, estas
vozes são exaustivamente treinadas para escamotear estes indícios corporais
e exibir resultados sonoros dignos de um ser que o ouvinte tem dificuldade em
classificar como humano.
O caminho de Monk parece ser o oposto: revelar, desnudar, expor esta
corporeidade da voz. Além do próprio trabalho de pesquisa vocal, a estratégia
mais aparente para alcançar este objetivo é sua manipulação da proposta
cênica da performance, claramente perceptível na radical economia de
recursos: não há cenários, o figurino é neutro, e os poucos objetos presentes
em cena são estritamente necessários à execução das ações sonoras (banco
para sentar e pequena mesa para apoiar a taça). Não há coreografia em um
sentido mais tradicional, muito embora seja possível falar em uma
característica coreográfica do uso da voz a partir dos argumentos que já
apresentei até este ponto. Uma simples imagem e a gravação em áudio são
suficientes para que se possa ter uma ideia muito nítida de como Monk
conduzia esta performance, esforçando-se em estabelecer a voz e seus
movimentos como foco exclusivo de atenção do público, da mesma forma
como é muito provável que a artista tenha procedido ao elaborar a composição.
Em seus trabalhos posteriores, Monk conseguiu ao mesmo tempo
aprofundar e ampliar seu projeto de poética vocal. Songs from the Hill, obra
imediatamente subsequente a Our Lady of Late, é ainda mais extrema ao
propor trabalhar a voz “totalmente sozinha, sem acompanhamentos, sem
adornos” (MONK, 1976a: 14, tradução minha). As criações de Meredith Monk
continuam reverberando na criação contemporânea e permanecem um
exemplo único no que diz respeito à investigação da potencialidade da voz
humana.
Referências
AU, Susan. Ballet and Modern Dance. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2002.
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Conrado Falbo
Performer, pesquisador e professor. Doutorando em Teoria da Literatura pela UFPE e mestre
em Teoria da Literatura pela mesma instituição (2009). Desde 2008 vem trabalhando com
orientação vocal/musical dirigida a profissionais das artes cênicas. É artista ocupante do
Coletivo Lugar Comum desde 2011 e professor substituto dos cursos de Licenciatura em
Teatro e Licenciatura em Dança na UFPE a cargo do grupo de disciplinas "Voz e Movimento"
desde Janeiro de 2013. Email: [email protected]
http://portalanda.org.br/index.php/anais
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