O Alienista: crônica de uma revolução burguesa no Brasil

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VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
20 a 24 de setembro de 2010
O ALIENISTA: CRÔNICA DE UMA REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL
Caio Souto1
Elementos que comprovam que O Alienista de Machado de Assis é uma paródia
do que poderia ser uma cópia de Revolução Francesa no Brasil não faltam. O texto foi
escrito entre 1881-1882, portanto sete anos antes da Proclamação da República pelos
militares e seis antes da Lei Áurea. O tráfico externo de escravos já havia se tornado
ilícito, por força de determinações estrangeiras, mas o tráfico interno subsistia; a Lei do
Ventre Livre tornava anunciada a abolição. Os ideais que norteavam os interessados no
fim da monarquia, a exemplo do que ocorrera na França revolucionária, eram burgueses
e pretensamente científicos. O racismo científico, repudiado por Machado de Assis,
aliava-se ao determinismo geográfico dos positivistas, que diziam ser a raça branca
superior à negra, e os habitantes de países onde havia mais calor e sol intenso mais
preguiçosos.
A burguesia nacional em ascensão, notadamente a cafeeira dos Estados do Sul e
Sudeste, organizava-se cautelosamente para adaptar as condições políticas a seus
interesses econômicos, com os olhos voltados ao que ocorria nos outros países do
mundo. Clarificava-se dia após dia a necessidade de um regime “republicano” (nos
moldes que viríamos a conhecer), quanto mais após as conseqüências da Guerra do
Paraguai. Em 1882, Machado de Assis, atento a essas intenções das classes dirigentes, e
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Mestrando em Filosofia pela UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail: <[email protected]>
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aos acontecimentos políticos que ocorriam, escreveu uma paródia do que seria uma
revolução burguesa baseada em ideais científicos em terras tupiniquins, o conhecido
conto O Alienista. Numa cidade interiorana, de nome Itaguaí, um médico logra criar um
asilo para loucos, onde acaba por trancafiar quase toda a cidade, servindo-se de critérios
pretensamente científicos. O capítulo V do conto, intitulado “Terror”, é clara alusão ao
período da Revolução Francesa, que ficou conhecido pela mesma denominação, em que
qualquer cidadão poderia ser preso e condenado à guilhotina por motivo de ser contrário
aos interesses revolucionários. No conto, o médico Simão Bacamarte (nome que ressoa
com o de Napoleão Bonaparte), responsável pelas internações, corresponde à comissão,
igualmente arbitrária, dos que decidiam sumariamente pelas vidas da população
francesa.
Mas por se tratar de uma paródia, O Alienista revela as frustrações e disparates
do que seria revolução desse signo no Brasil. Tudo se passa de maneira cômica, a
começar pela crítica aos demasiados impostos que já caracterizava o regime tributário
brasileiro à época imperial. Para arrecadar fundos destinados à instauração da Casa
Verde, nome popular com o qual ficou conhecido o asilo, os governantes instituíram
novo imposto sobre a utilização de penachos nos cavalos nos cortejos funerários, pois já
estava de resto quase tudo tributado na cidade. De quebra, os mais abastados restariam
gratos pois poderiam demonstrar sua riqueza tão simplesmente pela quantidade de
penachos com que adornavam os cavalos na cerimônia do morto que estariam a enterrar.
Aliada a uma crítica aos ideais científicos em geral, o conto elabora um diagnóstico das
condições para uma revolução burguesa no Brasil, com humor e ironia, malgrado tenha
sido a Proclamação da República realizada de fato alguns anos depois.
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Outro índice alusivo aos acontecimentos da Revolução Francesa é a fala do
barbeiro Porfírio, outro personagem central no conto, que vem a dizer ser a Casa Verde
uma verdadeira “bastilha da razão humana”. Nesse capítulo, “A rebelião”, ensaia-se a
ideia de uma revolta popular, que a história revela terem sido sempre avassaladoramente
reprimidas no Brasil. A esposa do médico, representante de uma pequena-burguesia
fútil, não se dá por si e perde seu tempo cuidando de suas vestimentas enquanto o povo
vai às ruas insurgir-se contra o poderio simbolizado pela Casa Verde. Já aqui se entrevê
a ironia com que trabalha o autor no conto, a mostrar que uma revolução no Brasil
jamais poderia ter curso similar à da França, justamente porque a burguesia nacional
não era similar à francesa. Aqui, um país ainda escravista, os burgueses compartilhavam
de benefícios muito próximos da nobreza que, compreenda-se, não possuía de longe o
mesmo status da nobreza imperial européia. A divisão de classes no Brasil não se
assemelhava à da França de cem anos antes, jamais haveria uma aliança, ainda que
passageira, entre o povo e a burguesia para derrubar a monarquia.
Além disso, os nomes ridiculamente solenes elegidos para designar, por
exemplo, aquela rebelião popular contra a Casa Verde, “Revolta dos Canjicas”, um
ensaio de revolução a ocorrer numa pacata cidade provinciana, que contaria com não
mais do que trezentos revoltados, pode ser interpretado como indicativo de sarcasmo,
aos fatos históricos do Brasil. E é com grandioso humor também que as expectativas do
leitos são frustradas no momento em que a repressão policial à sublevação popular é
interrompida, inesperadamente, como anuncia o título do capítulo VII “O inesperado”,
quando parte dos soldados adere à rebelião. Quando um mote assim aconteceria em solo
pátrio? Mas eis que, com a adesão dos tenentes, teve-se eleito até um Robespierre:
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Porfírio Caetano das Neves, o barbeiro Canjica (sic). Vale frisar que canjica é um milho
de pior qualidade que não pode ser comido senão após várias horas de cozimento.
Até uma adesão por parte do clero o conto parodia. O padre Lopes responde
solenemente que “o governo não tem inimigos”, optando por não alistar-se
contrariamente aos interesses “revolucionários”. O clero que, historicamente, sempre se
aliou ao lado dos que detiveram o poder.
E de fato um governo provisório se estabeleceu, sob as ordens do barbeiro
Porfírio. Este foi ter com o alienista, propondo-lhe houvesse um alvitre médio
alternativo à destruição da Casa Verde. Nesse momento, exibindo sua fraqueza, prostrase o líder do “novo governo” aos pés da ciência, dizendo que a revolução pode acabar
com hospício, porém não com a loucura, que deverá permanecer como questão de
ciência. Mas pede ao alienista que tolere e retire da casa dos loucos os que já estiverem
curados ou os doentes inexpressivos, oferecendo ao alienista essa oportunidade de
aliança, que iria assomar a um nível de maior confiança o “novo governo” perante as
autoridades do reino. Começaram a se delinear os primeiros traços de traição e de
oportunismo por parte do representante à frente da revolução e do povo que lhe confiou
poder. Tal fato é logo evidenciado, quando em poucos dias o alienista encarcera alguns
aliados da revolução. Surge outro líder que contesta a atuação de Porfírio, logo seguido
pelos do povo, desconfiados com a temerária atuação do primeiro. Nomeiam-no novo
líder, mas a poderio do levante popular já está se exaurindo e as tropas de el-rei rápido
reasseguram o domínio sobre a cidade. Simão Bacamarte, com redobrado poder sobre a
população, mandou encarcerar Porfírio e tantos outros, episódio denominado
“Restauração”, em nova alusão aos períodos históricos da Revolução Francesa.
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Tamanhos os efeitos daquele episódio, e tendo o alienista utilizado seu poder de
internação sobre a população, escorada em seu balizado conhecimento científico
distinto, terminou por encarcerar tantos indivíduos que pôs a si mesmo e à sua teoria
sob suspeita. Mandou fossem libertos a todos, sem exceção, e determinou, a bem da
ciência, fosse revertida sua teoria, para que todo aquele que gozasse plenamente de suas
faculdades mentais fosse internado. Obstinado nesse empenho, o alienista criou um
método de cura que consistia em ensandecer os internados um por um até que,
declarados doentes, seriam declarados sãos. Mas ao libertar o último deles, após
constatá-lo como curado segundo seu novo método, o ímpeto científico do médico o
conduzia a uma última guinada em sua elaborada teoria. E absorto na ideia de que
reunia em si todos os caracteres da mais perfeita consciência e do pleno exercício de
todas as faculdades mentais, o que comprovou por uma pesquisa feita entre moradores
da cidade e amigos mais próximos, reconheceu que ele, a própria encarnação da razão e
do ideal científico, era quem devia ser guardado na Casa Verde, entregando-se ao
recolhimento, “ao estudo e à cura de si mesmo”.
Paródia satírica do advento dos novos ideais científico-positivistas no Brasil, o
conto se encerra de maneira tragicômica. O protagonista, agora desferindo contra si
próprio o golpe arbitrário de seu idealismo científico apaixonado, simboliza a risível
seriedade da qual são acometidos os representantes oficiais no Brasil do modelo
civilizatório messiânico europeu. Incutida na narrativa uma crônica do que seria uma
revolução nessas terras de ideais estrangeiros, a narrativa ganha envergadura históricocrítica, acertadamente tendo antecipado a Proclamação da República que era iminente,
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outro episódio caricato em nossa história, atestando não só que toda ciência é humana,
mas que toda tentativa de revolução no Brasil tenderá a ter um caráter burlesco.
Referências Bibliográficas:
MACHADO DE ASSIS. O Alienista. Porto Alegre: L&PM, 1998.
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