Câmbio e poupança externa Luiz Carlos Bresser-Pereira, Nelson Marconi e José Luís Oreiro Capítulo 7 de Structuralist Development Macroeconomics, Londres: Routledge, a ser publicado. No Capítulo 3 vimos que o desenvolvimento econômico é puxado pela demanda, mais especificamente pela demanda autônoma, que, em uma economia aberta, sem moeda conversível, é constituída pela demanda externa, cujo acesso depende da taxa de câmbio. Em relação ao papel chave da demanda e do acesso à demanda na determinação do investimento, vimos que este se ajusta ao crescimento da demanda agregada, desde que a taxa esperada de retorno do capital supere, por uma certa margem, o custo de oportunidade do capital. Por seu turno, as expectativas a respeito do retorno do capital dependem do crescimento esperado das suas vendas – o que depende do próprio crescimento da demanda autônoma – e da margem esperada de lucro. A taxa real de câmbio afeta tanto o crescimento esperado das vendas como a margem esperada de lucro porque determina o grau de acesso das empresas nacionais aos mercados mundiais. É, portanto, uma variável de importância fundamental no processo de ajustamento do investimento ao crescimento da demanda autônoma. Dessa forma, a taxa real de câmbio torna-­‐se o preço macroeconômico mais estratégico para o desenvolvimento econômico. Um país de renda média é um país industrializado, ou seja, um país que tem, em princípio, capacidade técnica em alguns setores industriais, de forma que as empresas que nesses setores tiverem tecnologia no estado da arte mundial poderão exportar. Entretanto, se a taxa de câmbio estiver cronicamente sobreapreciada, como argumentamos no Capítulo 5 ela tende a estar nos países em desenvolvimento que não administram sua taxa de câmbio, essas empresas estarão desconectadas de toda a demanda mundial. Pior do que isso, essas empresas estarão sujeitas à concorrência dentro de seu país de empresas exportadoras de outros países cuja tecnologia pode ser igual ou mesmo inferior à sua. Por isso dizemos que o papel da taxa de câmbio é o de um interruptor de luz que liga ou desliga as empresas competentes de um país aos mercados externos. Vimos também no Capítulo 3 que a teoria convencional rejeita a teoria de crescimento puxado pela demanda com base no argumento de que o investimento requer poupança prévia. Assim, dada uma política de aumento da taxa de investimento visando mudar o patamar de crescimento da economia, esse aumento visando ajustar a expansão da capacidade produtiva ao crescimento da demanda agregada autônoma só pode ser realizado se a sociedade (setor privado e/ou governo) estiver disposta a aumentar a sua poupança ou a captar essa poupança no exterior (poupança externa). É a hipótese da poupança prévia. Argumentamos anteriormente que essa tese desconsidera o papel do sistema bancário como criador de liquidez e, portanto, como elemento que proporciona o financiamento requerido para a realização dos projetos de investimento desejados pelos empresários. Na verdade, como ensinou Keynes, é o investimento devidamente financiado que determina a poupança, e não o inverso. Quanto à restrição externa, veremos no próximo capítulo ela deixa de ser relevante, que o conjunto restrição externa-­‐financiamento externo não faz sentido no momento em que verificamos que conceito de restrição externa desconsidera os efeitos de longo prazo de variações da taxa real de câmbio sobre a estrutura produtiva da economia e, portanto, sobre o valor das elasticidades renda das exportações e das importações. Considerada essa dependência, verificamos que elasticidade-­‐renda das exportações e das importações variam com respeito a taxa real de câmbio. O que é relevante é a tendência da taxa de câmbio nos países em desenvolvimento a estar cronicamente sobreapreciada. Neste capítulo avançaremos na crítica às hipóteses da poupança prévia e da existência de restrição externa, argumentando que a poupança externa não é complementar à poupança doméstica, como defende a ortodoxia convencional, mas que a poupança externa e a poupança doméstica são substitutas uma da outra. A substituição entre poupança externa e poupança doméstica decorre do fato de que o recurso à poupança externa (ao financiamento externo para financiar o correspondente déficit em conta corrente) envolve necessariamente uma apreciação da taxa real de câmbio, a qual termina por reduzir a poupança doméstica, em função do efeito que a apreciação cambial tem sobre o nível de salário real e sobre os gastos de consumo. Mais amplamente, argumentaremos que o capital se faz em casa. Que o recurso ao financiamento externo segue um percurso perverso cujo primeiro capítulo é a substituição da poupança interna pela externa, o segundo, o aumento da fragilidade ou da vulnerabilidade externa do país, e o terceiro, a crise de balanço de pagamentos. Discutiremos, primeiro, o conceito de poupança externa, segundo, seu efeito sobre a taxa de câmbio, terceiro, a substituição da poupança externa pela interna, e as variáveis que determinam essa taxa. Poupança externa Em termos de contabilidade nacional, pressupondo-­‐se para simplificar uma economia sem Estado, o PIB é a soma de investimento, consumo e exportações menos importações; e a renda nacional é a renda bruta menos os rendimentos do capital enviados ao exterior; e o investimento é igual à poupança interna somado à poupança externa ou déficit em conta corrente. Esses são todos conceitos ex post; são meras identidades contábeis e não relações econômicas. A poupança externa é igual ao déficit em conta corrente que, por sua vez, corresponde à balança comercial mais os rendimentos líquidos enviados ao exterior. Como as exportações dependem da taxa de câmbio, quanto mais apreciada ela for, menores as exportações totais e maiores as importações totais, pouco importando se essas importações são de bens de capital ou de bens de consumo. Não há, portanto, relação direta entre poupança externa e investimento adicional, não obstante a expressão “poupança” externa induza esse pensamento. Si + Sx = I [5.1] Embora, em alguns breves momentos, a poupança externa possa promover o desenvolvimento econômico, a experiência histórica mostra que todos os países hoje desenvolvidos alcançaram o desenvolvimento graças a sua própria poupança interna. Ou, nas clássicas palavras de Ragnar Nurkse, um dos fundadores da teoria estruturalista do desenvolvimento, “o capital se faz em casa”. Mas essa observação empírica carecia de uma explicação teórica. É mais fácil, naturalmente, pensar em termos lineares e entender que a poupança externa se soma à interna e aumenta a taxa de investimento do país. O que, aliás, é consistente com a identidade contábil básica do investimento com a soma da poupança interna e externa acima referida. Entretanto é preciso ter cuidado com o senso comum. A ciência avança quando vai contra esse senso comum. Se a coisa fosse tão simples como a identidade contábil sugere, estaria descoberta a fórmula mágica para os países em desenvolvimento crescerem. Bastaria obter a poupança externa dos países ricos, bastaria incorrer em déficit em conta corrente e financiá-­‐ lo seja com empréstimo ou com investimento direto. É isso, aliás, o que ensina a teoria econômica convencional. Porque é uma tese simples e aparentemente óbvia, e porque interessa aos países desenvolvidos fazer empréstimos e investimentos nos países em desenvolvimento, no primeiro caso se remunerando com elevadas taxas de juro, no segundo, se apropriando do mercado interno do país em desenvolvimento e nele auferindo lucros, sem que esse país possa, em reciprocidade, ocupar o mercado interno do país rico. Embora o endividamento externo seja um problema antigo, a política de crescimento com poupança externa, que implica endividamento financeiro ou patrimonial,i passou a fazer parte fundamental do conjunto de políticas recomendadas pelos países ricos aos países em desenvolvimento nos anos 1990. Ela foi então acompanhada pela abertura financeira dos países em desenvolvimento e por um grande aumento dos fluxos de capitais para esses países para financiar os déficits em conta corrente – a almejada “poupança externa” – que, entretanto, não promoveu o crescimento dos países, mas o aumento do consumo e o endividamento externo. ii O pressuposto era que os “países ricos em capital deveriam transferir seu capital para os países pobres”, de forma que se admitia a utilidade da poupança externa para os países em desenvolvimento. A literatura econômica enfatizava apenas os problemas ligados à abertura da conta capital, como a alta volatilidade dos fluxos de capitais. E deu um passo à frente ao desenvolver o conceito de “pecado original”, isto é, o fato de os países em desenvolvimento não poderem tomar emprestado em sua própria moeda, ficando, assim, sujeitos a crises de balanço de pagamentos ou currency crises.iii “Poupança externa” é uma expressão enganadora, que é utilizada pela teoria econômica convencional de forma a induzir a ideia de que ela tem a mesma natureza da poupança interna e que, portanto, se soma a ela para determinar o investimento. Na verdade, poupança externa é déficit em conta corrente que precisa ser financiado com recursos externos, que se soma, portanto, à dívida externa do país. Não há nenhuma razão para que o déficit em conta corrente ou a poupança externa se transforme em investimento: o recurso externo pode ser tanto aplicado em investimento quanto em consumo. Mesmo que o financiamento do déficit em conta corrente seja feito por investimento direto nada assegura que o investimento total do país será acrescido do valor desse investimento financeiro . Mas a expressão “poupança externa” sugere que ela vai financiar o investimento, e, por isso, é muito atrativa para os interessados em legitimar o endividamento do país. Poupança externa e apreciação cambial Por que a poupança externa não se transforma inteiramente em investimento? O que determina que uma parte dela ou mesmo toda ela – todo o déficit em conta corrente – seja transformada em consumo? Para responder a essa pergunta é necessário, primeiro, entender qual a consequência do déficit em conta corrente sobre a taxa de câmbio. Porque é preciso diferenciar muito claramente o financiamento externo do interno. No financiamento interno, feito em moeda do próprio país, embora o dinheiro seja fungível, se o empréstimo for feito para financiar investimento, ele se transformará em investimento adicional. Já no financiamento externo – o financiamento feito em moeda estrangeira (é essa nossa definição de financiamento externo) – essa garantia não existe, porque entre o empréstimo e o uso do recurso existe um elemento intermediário fundamental, a taxa de câmbio. A teoria financeira diferencia com clareza o financiamento externo do interno, porque o primeiro apresenta um risco adicional – o risco de câmbio. E por isso recomenda que as instituições financeiras façam operações em moeda estrangeira “casadas”. O descasamento de moedas é um perigo, mas esse não é o nosso argumento. Do ponto de vista da macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, o que importa é o fato de que o endividamento externo implica entradas de capitais e, portanto, aumento da oferta de moeda estrangeira que causa a apreciação cambial, além de produzir endividamento em uma moeda que o país não pode emitir. Assim, quando um país decide crescer com poupança externa, ele está ao mesmo tempo decidindo apreciar sua moeda, e está pondo em risco sua soberania, porque está se endividando em uma moeda que não é a sua. A tentativa de crescer com poupança externa implica, portanto, apreciação cambial. A taxa de câmbio torna-­‐se, assim, a variável endógena resultante da decisão de se tentar crescer com déficit em conta corrente e financiamento externo. Quando um país decide por essa via, está decidindo a ter sua taxa de câmbio cronicamente sobreapreciada, porque a taxa de câmbio que “equilibra” um déficit em conta corrente é mais apreciada do que aquela que existe quando a conta corrente está zerada, e mais ainda do que quando um país tem um superávit em conta corrente. A teoria econômica convencional não se preocupa com o fato de que as entradas de capitais para financiar um déficit em conta corrente crônico porque, muito convenientemente para os países ricos que querem investir e financiar os países em desenvolvimento, para ela o “equilíbrio” da taxa de câmbio pressupõe um determinado nível déficit em conta corrente. Não se preocupa, também, porque supõe que esse nível será adequadamente garantido pelas forças do mercado internacional. A única fonte de alguma preocupação são desvios ou “desalinhamentos” de curto prazo, que podem ocorrer tanto para apreciar quanto para depreciar taxa de câmbio. De acordo com essa perspectiva, a única coisa que os formuladores de políticas econômicas podem fazer é escolher entre o regime de câmbio fixo e o regime de flutuação cambial; escolher entre “fix or float”. Na verdade, essa é uma falsa alternativa, porque há muitos pontos intermediários entre o fix e o float. É igualmente falsa a ideia de que, a longo prazo, a taxa de câmbio real não pode ser administrada. Na prática, dentro de certos limites, todos países administram suas taxas de câmbio de forma efetiva, podendo afetar tanto o seu valor quanto o seu preço de mercado. iv A administração da taxa de câmbio pelos países começa, paradoxalmente em relação à teoria econômica convencional, quando seus adeptos defendem a tese de que o país em desenvolvimento deve “crescer com poupança externa”. Nesse momento, se o país aceita essa recomendação, ele estará aceitando apreciar sua moeda. Do lado oposto, quando um país cresce com poupança externa negativa, como é caso mais comum entre os países asiáticos dinâmicos, quando o país cresce com um superávit em conta corrente, ele estará administrando sua taxa de câmbio de modo a mantê-­‐la competitiva. Nos dois casos, a variável exógena, de política econômica é a decisão de buscar financiamento externo para investimentos ou não buscá-­‐lo, ou, em outras palavras, é a decisão de adotar uma política de crescimento com poupança externa e, portanto, de incorrer em déficits em conta corrente, ou de, ao invés, buscar superávit ou, pelo menos, equilíbrio em sua conta corrente. E a variável endógena é a taxa de câmbio. É verdade que os países que aceitam a política de crescimento com poupança externa geralmente não percebem que ela implica uma taxa de câmbio valorizada, mas essa falta de percepção não muda o fato de eles estarem administrando suas taxas de câmbio para baixo ao aceitarem o financiamento em moeda estrangeira. A apreciação cambial ocorrerá sempre que o país estiver em déficit em conta corrente financiado por entradas de capitais? Sim, é isso o que nos diz o mercado. A sobreapreciação só não ocorrerá se o país tem doença holandesa e a neutralizou através de imposto de exportação. Nesse caso, o país realizará superávits em conta corrente que lhe permitirão acumular grandes reservas internacionais e a criar um grande fundo soberano, e, assim, tornar sua taxa de câmbio fixa e relativamente desconectada do mercado, como é o caso de alguns países produtores de petróleo, especialmente os Emirados Árabes. Suposta a neutralização plena da doença holandesa, como parece o caso desse país, superávit em conta corrente será tanto mais elevado quanto mais grave for a doença holandesa . Um déficit em conta corrente pode ser compatível com o desenvolvimento se esse déficit for relativamente pequeno, inferior à taxa de crescimento das exportações e do PIB do país, de forma que o déficit em conta corrente não aumenta nem a relação dívida externa / exportações, nem a relação dívida externa / PIB. Nesse caso, embora haja alguma apreciação da taxa de câmbio, essa apreciação poderá ser suficientemente pequena para não afetar a capacidade exportadora de manufaturados do país, e será, portanto, consistente com o crescimento econômico. Foi o que aconteceu nos anos 1970 com a Coreia do Sul. De quanto será a apreciação causada pela decisão de adotar uma política de crescimento com poupança ? Isto dependerá fundamentalmente da elasticidade da taxa de câmbio em relação às entradas de capitais destinadas a financiar o déficit em conta corrente, elSx, em que e é a taxa de câmbio, l, a elasticidade, e Sx, a poupança externa? Quão elevada será essa elasticidade? Ela será diferente de país para país. Em geral, ela será tanto maior quanto maior for a propensão a consumir nesse país. Mas procuraremos dar uma resposta mais precisa a essa pergunta mais adiante. Apreciacão cambial e substituição da poupança interna pela externa Qual a consequência da apreciação do câmbio causada pela política de crescimento com poupança externa? A consequência fundamental é a de que essa poupança externa não se soma à poupança interna, mas em grande parte a substitui, na medida em que boa parte dela se transforma em consumo, não em investimento, verificando-­‐se, portanto, uma elevada taxa de substituição da poupança interna pela externa. Podemos ver essa substituição tanto em termos de renda quando em termos de demanda. Em termos de renda, a substituição ocorre porque a apreciação cambial causa o aumento artificial dos salários. Quanto mais apreciada for a moeda nacional, maiores serão os salários reais, porque, com a apreciação, o preço dos bens e serviços comercializáveis internacionalmente diminui em relação ao preço dos bens e serviços não-­‐comercializáveis, entre os quais o mais importante é o salário. Em consequência, os lucros dos capitalistas cairão, seja porque, do lado da renda, salários e ordenados aumentaram, seja porque, do lado da demanda, os capitalistas nacionais estariam exportando e investindo menos. De quanto será o aumento dos salários em consequência da apreciação? Cada economia terá uma elasticidade dos salários em relação à taxa de câmbio, wle, em que w é a taxa de salários. Essa segunda elasticidade será tanto maior quanto maior for a propensão a consumir média da economia. Como a primeira, essa segunda elasticidade é relativamente estável, só se alterando no longo prazo. Já em termos de demanda a substituição da poupança interna pela externa ocorre porque cai o investimento voltado para as exportações, na medida em que as expectativas de lucro ou as oportunidades de investimentos lucrativos para os empresários diminuem em função da apreciação cambial. Sabemos que os lucros dependem dos investimentos que, por sua vez, dependerem da taxa de lucro esperada dada a taxa de juros. A taxa de lucro esperada, por sua vez, depende do grau de acesso das empresas tanto ao mercado interno quanto aos mercados externos. A qual, finalmente, depende da taxa de câmbio. Dada a apreciação causada pela poupança externa, os lucros diminuem, tanto porque os salários cresceram e estrangularam os lucros, quanto porque a falta de acesso aos mercados diminui as oportunidades de investimentos lucrativos. Nos dois casos, tanto pelo lado da renda quanto pelo lado da demanda, a consequência da apreciação é o aumento dos salários reais e, portanto, do consumo. Pelo lado da renda, este fato provoca diretamente a diminuição da poupança interna; pelo lado da demanda, a poupança cai porque além de caírem os lucros, cai a expectativa de lucro dos empresários, e, por isso, cai o investimento e a poupança, que dependem do diferencial entre a taxa de juros e a taxa de lucro esperada. O consumo varia de acordo com a variação dos salários e a variação dos lucros, e o investimento varia inversamente ao diferencial entre a taxa de lucro esperada e a taxa de juros ou custo do capital. Essa taxa de lucro esperada cai na medida em que, do lado da renda, aumentam os salários, e na medida em que, do lado da demanda, as oportunidades de investimentos lucrativos voltados para as exportações caem. Portanto, os dois processos de apreciação cambial, um pelo lado da renda, o outro, pelo lado da demanda se convalidam mutuamente, causam a sobreapreciação cambial, e resultam em redução dos investimentos. Apenas no curto prazo, temos o processo inverso: o aumento dos salários reais causado pela apreciação aumenta o consumo interno e estimula as empresas nacionais voltadas para ele a investir. Mas esse estímulo é passageiro, e dificilmente os empresários se enganarão a respeito. Logo as importações de empresas eventualmente menos eficientes do que as nacionais começam a penetrar no mercado interno, e o estímulo ao investimento ocorrido no curto prazo se transforma rapidamente em desestímulo. A médio prazo, o aumento artificial dos salários não é sustentável, e resultará em inflação de custos, em aumento da fragilidade externa do país, e, finalmente, em crise de balanço de pagamentos que se encarregarão de fazer os salários retornarem para o equilíbrio. De que “equilíbrio” estamos falando? Da relação lucros / salários que garante uma taxa de lucro “satisfatória” (satisfying) em termos do conceito de Herbert Simon, ou seja, uma taxa de lucro suficiente para estimular os empresários ou capitalistas ativos a investir. Quando os salários estão artificialmente elevados, ou seja, quando aumentaram acima do aumento da produtividade em razão da apreciação cambial, a taxa de lucro deixa de ser satisfatória. Estamos assumindo que os trabalhadores recebem um salário nominal e adquirem bens comercializáveis e bens não comercializáveis, o custo de vida dos trabalhadores dependerá da taxa de câmbio nominal e da parcela de bens comercializáveis em sua cesta de consumo. Assumindo-se também que os preços são formados na economia segundo a conhecida regra de Kalecki que relaciona o nível de preços ao salário nominal, ao nível de produtividade e ao markup, o salário real será função da produtividade, da taxa de câmbio real e do markup ou padrão de distribuição de renda. Uma desvalorização da taxa de câmbio real ao implicar o aumento do preço dos bens comercializáveis em relação ao salário nominal significará uma queda no salário real, uma vez que a cesta de consumo dos trabalhadores se tornará mais cara. A restrição fundamental a uma desvalorização real, nos termos do modelo de Bhaduri e Marglin (1990) ou de Simonsen e Cysne (1995), é que o possível aumento dos salários nominais resultante da desvalorização nominal não deve exceder o aumento da taxa de câmbio nominal, dado o nível de preços. Isso só acontecerá se os preços dos bens não comercializáveis, especialmente salários nominais, permanecerem constantes ou se alterarem menos do que proporcionalmente à variação cambial (Corden 1981: 31– 32). Caso contrário não haveria a desvalorização que tornaria a economia nacional mais competitiva. Estamos, portanto, pressupondo aqui uma relativa rigidez para baixo dos salários nominais e uma flexibilidade dos salários reais, em lugar de uma flexibilidade dos salários nominais e uma rigidez dos salários reais. Em suma, nosso modelo, os salários e os lucros dependem da taxa de câmbio, além de dependerem do nível de produtividade da economia e de seu padrão institucional de distribuição da renda salários e lucros, e dos investimentos realizados que determinam o emprego e a renda. Mas é preciso não esquecer que esses investimentos realizados dependem da taxa esperada de lucro, que depende, fundamentalmente, da taxa de câmbio. Taxa de substituição da poupança externa pela interna Até agora vimos que a decisão de tentar crescer com poupança externa, de procurar aumentar a taxa de investimento somando o déficit em conta corrente ou poupança externa à interna, não implica automaticamente o aumento da taxa de investimento, mas tem sempre como resultado a apreciação cambial. Esta, por sua vez, tem o efeito principal de diminuir o investimento financiado por moeda interna ou doméstica, de forma que mesmo quando o recurso externo assume a forma de investimento direto não há qualquer garantia que seu valor se some ao investimento Haverá sempre substituição da poupança interna pela externa - e essa substituição tenderá a ser elevada – mas não será necessariamente total, de 100%. Alguma parte da poupança externa deverá acabar resultando em aumento dos investimentos, mas esse aumento será muito menor do que a suposta substituição zero implícita na política de crescimento com poupança externa. Podemos definir a taxa de substituição da poupança interna pela externa como sendo a variação da poupança interna dividida pela variação da poupança externav: zt = -­‐dSi / dSix [5.2] A taxa de substituição, z, no período t, é, portanto, negativa, já que o que se está comparando é uma diminuição com um aumento. Para medirmos a taxa de substituição da poupança interna pela externa é preciso definir o período considerado relevante e o valor da variação da poupança externa e da interna. Se no período escolhido a poupança externa aumentar R$ 1.000 bilhões (cobertos por entradas de capital nesse montante) e a poupança interna diminuir em R$800 bilhões, a taxa de substituição será de 80%, porque dessa poupança externa apenas R$200 bilhões terse-ão somado ao total de investimento, os restantes R$ 800 bilhões tendo se transformado em consumo. Grande parte da poupança externa, portanto, acabou por financiar não o investimento mas o consumo. Qual é o sentido, na prática, da taxa de substituição da poupança interna pela poupança externa? Ignorando o sinal, se a taxa for igual a 100%, significa que o aumento da poupança externa corresponde a uma diminuição do mesmo valor da poupança interna – nesse caso há uma substituição total. Se for 0 , não há substituição de poupança. No primeiro caso, a poupança externa adicional não causa nenhum aumento da taxa de investimento; no segundo, toda ela é transformada em aumento do investimento e, portanto, da taxa de investimento. Nos casos intermediários, parte da poupança externa será canalizada para o consumo e parte para o investimento. Se for igual a 50%, e se o retorno sobre os investimentos alcançado pelas entradas de capital for de 15%, os investidores estrangeiros terão esse retorno, mas o país estará pagando um retorno de 30%, já que apenas a metade da poupança externa se transformou em investimento. De que depende a taxa de substituição da poupança interna pela externa? Qual será a variação da poupança interna em razão da apreciação da moeda do país que decide receber a poupança externa teoricamente para investir mais, mas na prática, para consumir mais? Dada uma variação positiva de 100 da poupança externa, que é aqui a variável exógena, porque é o resultado da decisão do governo de “crescer com poupança externa”, de quanto será a variação negativa da poupança interna? Isto depende da sensibilidade da poupança interna em relação à taxa de câmbio, Sile, e da sensibilidade da taxa de câmbio com relação à poupança externa, elSx.. A sensibilidade da poupança interna em relação à taxa de câmbio depende da variação dos salários em relação à apreciação da taxa de câmbio (quanto maior a variação, maior tenderá a ser a substituição), da variação dos lucros esperados dos investimentos orientados para a exportação em relação à taxa de câmbio, da propensão a consumir e do diferencial entre a taxa de juros e a taxa de lucros esperada, ou seja, das oportunidades de investimento. A mais relevante dessas variações é a variação das oportunidades de investimento porque, ao contrário das outras, ela varia fortemente. Se o país estiver crescendo muito rapidamente, estiver, por exemplo, passando por um “milagre”, e houver grandes oportunidades de lucro, a classe capitalista usará uma parcela maior de sua renda esperada e auferida para investir, aumentando sua propensão marginal a investir. Além disso, dados os aumentos dos salários (wages) e (especialmente) dos ordenados (salaries), os trabalhadores e a classe média profissional também aumentarão sua propensão marginal a investir, possivelmente anulando os incentivos ao aumento do consumo. Em consequência, a taxa de substituição da poupança interna pela externa cairá. Do lado da demanda, a taxa de substituição da poupança interna pela poupança externa será tanto maior quanto maior for a sensibilidade das exportações em relação à variação da taxa de câmbio e quanto maior for a sensibilidade dos investimentos às exportações e, portanto, quanto maior for a reação dos investimentos à variação da taxa de câmbio. A demanda e a oferta operam, portanto, na mesma direção: do lado da demanda, a apreciação da taxa de câmbio desencadeia sucessivamente uma diminuição das exportações, dos investimentos destinados à exportação e da poupança aqui entendida como resíduo do investimento; do lado da oferta, a diminuição dos investimentos é sancionada pela diminuição direta da poupança interna causada pelo aumento dos salários e ordenados reais causado pela mesma apreciação da taxa de câmbio. A taxa de substituição da poupança interna pela poupança externa será particularmente maior quanto menor for o diferencial entre a taxa de lucro esperada e a taxa de juros, isto é, quanto menores forem as oportunidades de investimento. Nesse caso, além do fato de os trabalhadores demonstrarem uma alta propensão a consumir, a classe média também tenderá a consumir quase todo o aumento de seus ordenados, e nem mesmo os capitalistas que enfrentam lucros declinantes reduzirão significativamente seu consumo. Assim, se o diferencial entre juros e lucros for pequeno, teremos oportunidades de investimento “normais”, que nem estimularão a classe média a transferir parte de seus aumentos salariais para o investimento nem convencerão os capitalistas a consumir menos. Consequentemente, o ingresso de poupança externa será fortemente compensado pela diminuição da poupança interna decorrente do aumento do consumo. Além disso, os próprios lucros e seu reinvestimento serão modestos. O resultado desses dois fatos é que não haverá novos investimentos, apesar da entrada de poupança externa. No outro extremo, se o diferencial entre a taxa de lucro e a de juros for grande e a variação do consumo for pequena, uma parte substancial do aumento dos salários e ordenados será dirigida não para o consumo mas para o investimento. Em condições normais, a taxa de substituição da poupança interna pela poupança externa tende a ser alta. Ela se aproximará de 100% quando os déficits em conta corrente ocorrerem sem nenhuma vinculação com os investimentos e prevalecer um processo de crescimento particularmente lento, como aconteceu na América Latina na década de 1990. Sabemos porém, histórica ou empiricamente, que, sob certas circunstâncias, alguns países se desenvolveram com poupança externa. Qual é a condição para que isso ocorra, ou seja, para que a substituição da poupança externa pela interna permaneça próxima de zero? Para que a taxa de substituição seja inferior a 50% ou, melhor ainda, que fique próxima de 0, seria necessário que uma combinação favorável de externalidades e de aumento da demanda desse origem a grandes oportunidades de investimentos lucrativos que se expressassem em altas taxas de lucro esperadas, sempre combinadas com elevadas taxas de crescimento do PIB. É importante observar que, da mesma forma que há uma substituição da poupança interna pela poupança externa quando aumenta o déficit em conta corrente, pode ocorrer o inverso, isto é, a substituição da poupança externa pela poupança interna quando o déficit em conta corrente ou a poupança externa estiverem diminuindo. Nesse caso, do lado da oferta, os salários e ordenados cairão; do lado da demanda, as exportações e os investimentos aumentarão, causando a substituição inversa. Em síntese Vimos neste capítulo que a poupança externa, ou seja, o déficit em conta corrente financiado por empréstimos ou por investimentos diretos, não se soma simplesmente à poupança interna como a nomenclatura sugere e, assim, aumenta o investimento, mas, em grande parte, substitui a poupança interna, resultando, portanto, em aumento do consumo. Isto ocorre porque a decisão de adotar a política de crescimento com poupança externa é uma decisão de apreciar a taxa de câmbio, dado que para cada nível de déficit ou superávit da conta corrente há uma correspondente taxa de câmbio. Quanto maior for o déficit em conta corrente decorrente da política de crescimento com poupança externa, mais apreciada será a taxa de câmbio. Ora, ao apreciar-­‐se, a taxa de câmbio, do lado da renda, causa o aumento dos salários reais, do consumo, e a diminuição da poupança interna; do lado da demanda, causa a diminuição das oportunidades de investimentos lucrativos, a diminuição dos investimentos decididos internamente, e, portanto, a diminuição da poupança interna. A taxa de substituição da poupança interna pela externa depende, em primeiro lugar, da elasticidade da taxa de câmbio em relação ao déficit em conta corrente. Quanto maior for essa elasticidade, mais se apreciará a taxa de câmbio. Essa elasticidade varia de país para país, e de momento para momento, não havendo, porém, uma variável que determine seu tamanho. O ideal é simplesmente supor que a apreciação ocorre. Dada essa apreciação, de que depende a taxa de substituição da poupança interna pela externa? Essencialmente, da propensão marginal a consumir existente no país, que geralmente é alta, e, por isso, tende a ser alta a taxa de substituição. Mas essa propensão não é invariável. Quando o país cresce rapidamente, e as oportunidades de investimentos lucrativos tornam-­‐se particularmente atrativas para os empresários, essa propensão diminui, a taxa de substituição da poupança interna pela externa diminui, e, naquele período, a poupança externa tem um efeito positivo substancial sobre o investimento. i Entendemos por endividamento "financeiro" o endividamento que resulta de empréstimos externos, e endividamento "patrimonial" aquele que resulta de investimentos diretos. ii Foi esse fato que levou Bresser-Pereira (2002) a afirmar que nos anos 1990 formou-se o “segundo Consenso de Washington”. O primeiro consenso, que John Williamson (1990) resumiu no final dos anos 1980, não continha a abertura da conta financeira do país e a política de crescimento com poupança externa. iii Dessa vasta literatura, mencionamos aqui somente Calvo, Leiderman e Reinhart (1995), Rodrik (1998), Eichengreen e Leblang (2002) e Eichengreen (2003). iv A ideia de que a taxa de câmbio real não pode ser administrada a longo prazo é verdadeira somente se o intervalo de tempo implícito nesse "longo prazo" for muito amplo – acima de 20 anos – mas nesse caso a restrição se torna irrelevante. O que é importante é administrar a taxa de câmbio por um período razoável, que ficaria relativamente sob controle do formulador de políticas econômicas. v A taxa de substituição pode também ser expressa da seguinte forma: 𝑧! = !!! /!" !"!! /!" !!! !"!! = !!! !" !" !"!! = . Em palavras, a taxa de substituição pode ser expressa como a razão entre a sensibilidade da poupança interna com relação a taxa real de câmbio e a sensibilidade da poupança externa com relação a taxa real de câmbio.