IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 A PERDA DA IDENTIDADE DOCENTE NO TELENSINO CEARENSE Ingrid Louback de Castro Moura1 Universidade Federal do Ceará (UFC) [email protected] RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar a perda da identidade docente durante o período de utilização do sistema de telensino no Ceará, haja vista que a adoção dessa prática como padrão durante muitos anos na educação cearense trouxe consequências tanto para a qualidade do ensino ofertado, quanto para o trabalho do professor, que viu sua identidade profissional sendo perdida. Atualmente, o sistema não é mais utilizado nas escolas do Ceará, contudo, sua utilização deixou marcas na educação cearense e provocou prejuízos para muitos dos professores que trabalharam com esse sistema. Os resultados permitiram concluir que no sistema de telensino, o que houve foi uma troca do professor pelo aparelho de televisão, tornando o docente um operador da máquina e trazendo como consequência a perda da identidade desse profissional. Palavras-Chaves: Telensino, Precarização do Trabalho, Identidade Docente. RÉSUMÉ Cette étude a eu comme but analyser l’utilisation de l’enseignement par télévision et son rapport avec la perte d’identité des professeurs. L’enseignement par télévision a été utilisé comme un système standard pendant des années dans le système éducatif de l’Etat du Ceará. A présent, ce système n’est plus utilisé par les établissements scolaires au Ceará, pourtant son utilisation a laissé ses marques dans l’Éducation de l’État et a rendu des préjudices à beaucoup de professeurs qui ont travaillé avec lui. Au long de cette recheche, nous avons interviewé des professeurs qui ont travaillé avec ce système et nous avons constaté des sentiments qui montrent la dévalorisation, l’angoisse et l’épuisement physique et psychologique des enseignants, fait qui indique la précarisation dans leur travail. Mots-clés: Enseignement par télévision, précarisation du travail, identité des enseignants. 1 Mestre em Educação. Professora Substituta do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da Universidade Federal do Ceará. IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 Introdução O sistema de telensino foi implantado no Estado do Ceará em 1974. Com a universalização desse sistema, em 1993, o telensino passou a ser obrigatório em todas as instituições de 1º grau da rede estadual, revertendo a situação anterior em que as maiores usuárias do sistema eram as escolas municipais e substituindo o ensino convencional. O presente trabalho analisa o telensino e seus impactos sobre a perda da identidade docente, tendo em vista que esse sistema foi utilizado como padrão durante muitos anos na educação do Estado do Ceará e trouxe consequências tanto para a qualidade do ensino ofertado, quanto para o trabalho do professor. A exposição desse estudo será apresentada em dois tópicos: Os profissionais do telensino cearense e Evidências da perda da identidade docente no telensino. Os profissionais do telensino O sistema de telensino no Ceará foi implantado no ano 1974, seguindo uma tendência que já se manifestava em outros Estados do país, como São Paulo, que implantou a TV educativa em 1967; Pernambuco, em 1968; Maranhão, em 1969 e Amazonas, que passou a utilizar a TV na Educação a partir de 1971 (VIEIRA, 2002). Sua implantação, na década de 1970, refletiu o momento de efervescência das ideias tecnicistas, as quais têm por base os princípios da racionalidade técnica e da eficiência produtiva segundo os moldes capitalistas (BRANDÃO, 2003 p. 41). Sob essa ótica, o planejamento e a execução da Educação eram realizados por pessoas diferentes, em momentos distintos, deixando o professor excluído desse processo. Para a execução dessa prática educativa havia, em sala de aula, um profissional que não se caracterizava por ser um professor, visto que dele não se exigia a formação profissional e o conhecimento dos conteúdos compatíveis com as áreas em que estaria atuando (BARRETO, 2002). Era o Orientador de Aprendizagem (OA), cuja função era “enriquecer e facilitar as trocas” (CAMPOS, 1983, p. 58). Essa compreensão de que o profissional que se encontrava em sala de aula não estava ali para ensinar, pois estes conteúdos eram transmitidos pela televisão, coloca o Orientador de Aprendizagem na condição de um mero operador do aparelho de TV, atribuição que o tornava o docente do telensino. 2 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 O sistema de telensino dispunha de uma equipe composta por profissionais das áreas de comunicação e Educação. Os responsáveis pela elaboração dos módulos a serem transmitidos via televisão e também pelos materiais impressos (Manuais de Apoio e Caderno de Atividades) eram os chamados professores-autores ou professorprodutor, com quem, segundo Barreto (2002, p. 37) ficava “toda a responsabilidade pelo domínio dos conteúdos que chegavam à sala de aula”. De acordo com Rubens Linhares da Páscoa, que nessa época era membro da equipe diretora da TV Educativa, em entrevista ao Jornal Tribuna do Ceará publicada na edição do dia 21 de fevereiro de 1979, esses membros da equipe pedagógica da TV Educativa, ao elaborarem os manuais, módulos e aulas integradas estavam “procurando atender as necessidades regionais e uma tecnologia educacional a serviço do aprimoramento da relação ensino-aprendizagem”. A função de transmitir a mensagem produzida pelo professor-produtor era do apresentador. Sobre a escolha desse profissional, Campos (1983, p. 57) afirma que: Na experiência da TV do Ceará, se procurou com cuidado, para apresentadores, pessoas que fossem comunicadoras com qualidades estéticas, artísticas e didáticas, boa dicção e que soubessem melhor que ninguém, embrulhar em papel de presente, o conteúdo às vezes difícil, [grifo nosso] que iria ser recebido e discutido pelo aluno com o orientador de aprendizagem na telessala. A citação acima traz a referência de que o apresentador deveria “embrulhar em papel de presente” o conteúdo para que não parecesse tão difícil, na tentativa de tornar a exibição destes mais atraentes. Esta afirmação evidencia, no entanto, uma preocupação maior com a estética do que com a compreensão efetiva dos conteúdos que seriam apresentados aos educandos. De acordo com um documento publicado pela Fundação Getúlio Vargas em convênio com o PRONTEL (1978), o apresentador da teleaula tinha como objetivos em sua ocupação: Introduzir os tópicos principais do conteúdo dos programas; discorrer sobre os respectivos tópicos; estimular o debate dos assuntos em foco; dinamizar o espetáculo; improvisar situações, sempre que necessário; participar de programas como entrevistador. Em sala de aula, havia um profissional que não se caracterizava por ser um professor, visto que dele não se exigia a formação profissional e o conhecimento dos 3 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 conteúdos compatíveis com as áreas em que estaria atuando (BARRETO, 2002). Era o Orientador de Aprendizagem (OA), cuja função era “enriquecer e facilitar as trocas” (CAMPOS, 1983, p. 58). Esse profissional é definido por Campos (1983, p. 57) como: O orientador de aprendizagem coordena o trabalho da recepção com os alunos. Ele não é uma máquina de dar aulas, mas um elemento que cria condições adequadas para que o telealuno queira algo, compreenda, faça algo e tenha resultados. É o profissional que orienta, dinamiza e acompanha a aprendizagem na recepção. O orientador de aprendizagem presente à sala de aula, catalisador como regente de orquestra e consciente como um educador que sabe e não sabe, e jamais como um instrutor polivalente que sabe tudo, não permitirá que se caia numa espécie de espontaneísmo pedagógico a que o ensino pela televisão como muitos pensam conduz necessariamente. Diante de tal definição feita por Campos (1983), para o Orientador de Aprendizagem percebe-se o excesso de responsabilidade desse profissional em sala de aula. O professor do sistema de telensino era mais um trabalhador que em seu local de trabalho desempenhava inúmeras funções para que a programação seguisse de acordo com o planejado e fornecesse os frutos desejados. No Caderno de Capacitação do Telecurso 2000, encontramos listadas as funções do profissional que se encontrava na telessala. De acordo com esse documento, o professor tinha como deveres: • Conhecer o conteúdo e o material de todo curso e de cada aula; • Planejar as atividades que vão ajudar o aluno a aprender o conteúdo das aulas; • Organizar e planejar semanalmente as suas aulas, de modo que a elas possam ser incorporadas novas situações e as avaliações feitas no dia-a-dia; • Adequar os conteúdos trabalhados no material didático ao cotidiano do aluno e complementar sempre que possível; • Aplicar, periodicamente, instrumentos de avaliação; • Identificar necessidades de correção e reforço (FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO, 1999, p. 20). Além de desempenhar essas funções, segundo o Caderno de Capacitação do Telecurso 2000, o professor presente na telessala deveria apresentar características como: pontualidade, assiduidade, interesse, perseverança, aceitar desafios e formas 4 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 alternativas de Educação, além de estar disponível para participar de capacitações, reciclagens e reuniões. O que novamente constitui a exemplificação de cobranças por atributos subjetivos e por competências múltiplas a esse profissional. No edital de seleção para contratação de Orientador de Aprendizagem para a TV Educativa, publicado na edição do dia 23 de janeiro de 1974 do Jornal Tribuna do Ceará e assinado pelo então Secretário de Educação Murilo Walderk Menezes de Serpa, foram ofertadas 125 vagas, sendo 60 para Fortaleza e 65 para cidades do interior (Maranguape, Beberibe, Cascavel, São Gonçalo, Paracuru, Aquiraz, Caucaia e Pacajus). Para tornar-se um Orientador de Aprendizagem, o candidato deveria ter no mínimo 18 e no máximo 35 anos. Além disso, o candidato selecionado na primeira fase deveria, obrigatoriamente, participar do treinamento com frequência mínima de 90%. A respeito dos cursos de formação, Braga (1997, p. 11), ao participar de um, anota o fato de que: A equipe responsável pelo curso afirmava que o orientador de aprendizagem não iria dar aulas e sim orientá-las, pois a aula seria dada pela TV; portanto, ele não precisaria ter conhecimentos em todas as disciplinas e que cada sala deveria estar equipada para que a aula se realizasse de acordo com a metodologia do telensino. Segundo o edital divulgado do concurso, dos 300 participantes apenas 195 seriam aproveitados: 125 para a rede estadual e 70 para a Fundação Educacional de Fortaleza. Como critérios de seleção, deveria ser analisada a pontuação adquirida em atividades de classe; o interesse e a sensibilidade pelo trabalho que seria executado pela TV Educativa. Contudo, ao final do treinamento realizado no Colégio João Piamarta da Avenida Aguanambi, em Fortaleza, todos os 300 participantes do treinamento para Orientadores de Aprendizagem foram aproveitados pela Secretaria de Educação do Estado e do Município. No entanto, apenas a quantidade divulgada no edital foi aproveitada no primeiro semestre, ficando o restante para contratação à medida que novas salas de aula da TVE fossem instaladas. Entre a equipe responsável pela produção das aulas e material de apoio e o Orientador de Aprendizagem estava o supervisor. Esse profissional, segundo Campos (1983, p. 58-59), realizava um trabalho que: ocupando os espaços vazios numa comunhão de colaboração para que todos os envolvidos no processo se sintam realmente sujeitos, 5 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 participando, criticando ou recriando. (...) Na busca constante de abrir espaços para educar sujeitos, o seu trabalho consiste, prioritariamente, não em fiscalizar colegas, mas em ser traço de união entre o complexo receptor e os complexos comunicador e comunicante, de modo que todos se motivem para a ampliação do debate. De acordo com uma declaração da presidente da Fundação Educacional do Ceará na época, Antonieta Cals, publicada na edição do dia 29 de janeiro de 1974 do Jornal Tribuna do Ceará, a grande preocupação que envolvia a filosofia de Educação com a TV Educativa era “a utilização de um instrumento de massa, sem a massificação daqueles que serão por ele atingidos”. Seu surgimento no Ceará justificava-se pelo objetivo de desenvolver os programas educacionais, marcando de maneira decisiva o aumento da escolarização do Estado. Para Maria Edilma Vieira de Alexandria, supervisora, no ano de 1979, da Escola Vicente Fialho, também em entrevista ao Jornal Tribuna do Ceará, o objetivo da teleducação era “ter um sistema de ensino para suprir a carência de pessoal especializado, ter ensino de melhor qualidade, didaticamente falando e ter um ensino cujas despesas fossem menores”. Declaração que deixa clara, mais uma vez, a intenção de reduzir os custos com a Educação, com a implantação do sistema de telensino no estado do Ceará. Evidências da perda da identidade docente no telensino Durante esse estudo, a partir da análise do conteúdo das entrevistas realizadas com os professores que trabalharam no sistema de telensino, pudemos verificar diversos elementos que evidenciam a precarização do trabalho docente nesse sistema. Entre estes fatores, a perda da identidade docente foi evidenciada em muitos relatos. Para melhor compreensão, discutiremos a perda da identidade docente através da exposição de alguns relatos dos sujeitos entrevistados e lembramos que todos os nomes utilizados são fictícios. Durante a realização dessa prática educativa a atividade docente foi marcada por características específicas. A primeira delas era a presença do aparelho de televisão como encarregado pela transmissão dos conteúdos curriculares. A segunda era a presença na telessala do Professor Orientador da Aprendizagem como profissional 6 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 polivalente, responsável pela orientação de todos os conteúdos, de diferentes disciplinas, apresentados pela televisão, independente de sua formação. A polivalência compulsória no sistema de telensino provocou uma sensação de estresse e desconforto entre os profissionais atingidos, haja vista que essa imposição fez com que os docentes fossem obrigados a trabalhar com disciplinas que não se identificavam e tampouco dominavam. Dificuldade relatada no depoimento abaixo: É porque você... eu passei a vida inteira, já tava com 14 anos que trabalhava dando aula de ciências, aí de repente eu tinha que dar aula de matemática, tinha que dar aula de português, redação, essas coisas, como dizer, ficou muito difícil pra gente lidar com todas as disciplinas (Roberta). Ante tal realidade, os professores se viram obrigados a enfrentar o desafio de esclarecer dúvidas e orientar a aprendizagem de disciplinas jamais estudadas, sem receber nenhum tipo de preparação. Essa situação, além de caracterizar a perda de identidade docente, obrigou o educador a desenvolver estratégias de enfrentamento das dificuldades vivenciadas. Situação revelada nos depoimentos das professoras Roberta, Vanessa e Marisa. Eu cansei de pagar professores para resolver minhas aulas de matemática, pra mim poder repassar para meus alunos. Cansei de fazer isso e muitas vezes eu chamei professor pra vir dar aula por mim, porque eu não sabia dar aula que realmente tinha quer dar para os alunos e minha consciência pesava de eu ver que não estava repassando que eles necessitavam. Paguei pra trabalhar, paguei do meu bolso, tanto pra resolver os exercícios quando eu tinha muita dificuldade ou pagava o professor pra vir dar aula por mim. Foi uma situação difícil! (Roberta). E o pior era o Inglês! Que eu sabia só o “I love you” e olhe! Que que eu fazia? Pegava o caderno e ia para a casa de uma sobrinha que sabia inglês e eu dizia: minha filha, pelo amor de Deus, como é isso aqui? Aí em cima eu copiava a pronúncia. E aí, eu chegava em sala de aula e ia ensinar a pronúncia que a minha sobrinha tinha me ensinado. Porque treinamento nenhum eu tive (Vanessa). Eu ficava até depois da aula. Aí, me juntava, esperava o pessoal da tarde chegar, antes de começarem as aulas da tarde, a gente conversava, né? Aí aquele pessoal da tarde tinha gente que dominava mais matemática, dominava mais português e já tinha dificuldades em geografia e história, ai a gente procurava tirar, a gente procurava fazer tipo um intercâmbio, né? (Marisa). Sabemos que a sala de aula é cheia de eventualidades, o que torna o ensino uma atividade complexa e “uma prática social concreta, dinâmica, multidimensional, 7 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 interativa, sempre inédita e imprevisível. É um processo que sofre influências de aspectos econômicos, psicológicos, técnicos, culturais, éticos, políticos, institucionais, afetivos, estéticos” (PASSOS, 2000, p. 1). Essas características tornam o planejamento extremamente importante para que o professor possa adaptar sua atividade às características de seus alunos. Além disso, como destacado por Libâneo (1992), planejar tem um sentido político e o professor que não planeja suas aulas fica entregue aos caminhos estabelecidos pelas classes dominantes. O planejamento é um processo de racionalização, organização e coordenação da ação docente, articulando a atividade escolar e a problemática do contexto social. A escola, os professores e os alunos são integrantes da dinâmica das relações sociais; tudo o que acontece no meio escolar está atravessado por influências econômicas, políticas e culturais que caracterizam a sociedade de classes. Isso significa que os elementos do planejamento escolar – objetivos, conteúdos, métodos – estão recheados de implicações sociais, têm um significado genuinamente político. Por essa razão, o planejamento é uma atividade de reflexão acerca das nossas opções e ações; se não pensarmos detidamente sobre o rumo que devemos dar ao nosso trabalho, ficaremos entregues aos rumos estabelecidos pelos interesses dominantes na sociedade (P. 222). Destacamos a importância do planejamento para a prática educativa porque outra característica que asseverou a perda da identidade docente no sistema de telensino foi, justamente, o fato de que, no telensino, não era o professor, neste caso o Orientador de Aprendizagem, que planejava as aulas ministradas em sua classe. Esse planejamento era realizado por uma equipe técnica, já vinha pronto e aos docentes cabia apenas a tarefa de executá-lo, “roubando dos professores das classes a autonomia que precisam ter para poder adequar conteúdos e métodos às necessidades e possibilidades das comunidades em que atuam” (BODIÃO, 2000, p. 13). Essa imposição no jeito de ministrar as aulas foi questionada pelo professor Fernando ao asseverar que: O problema maior estava aí, não é? Por outro lado, também, a gente não pode fugir, fugir da tecnologia, né? Nós temos que usar a máquina, a televisão e outras coisa, mas como complemento ao ensino-aprendizagem, não é? E não ela como ponto de partida, que era como tava usando, né, ela comandava tudo.Não, se for como complemento, como nós hoje usamos a internet, porque o aluno usa, né? Tudo bem, é a tecnologia, nós temos que aprovar isso, é o avanço, entendeu? Nós queremos também, eu acho que, que esse tipo 8 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 de aprendizado, acho que ele bitola muito o professor e o aluno.Ele bitola muito o professor e o aluno, não é? Por causa desse, desse, dessa rigidez nesse... na apresentação dessas aulas. Naquele dia, tem que ser daquele jeito e não há uma abertura para que você possa fazer algo diferente. Se os alunos apresentam dúvida em algum conteúdo, é fundamental, para que haja aprendizagem, que o professor estabeleça estratégias para esclarecê-las. Essas estratégias são previstas e estabelecidas no momento do planejamento e quando, obviamente, o professor domina o assunto trabalhado. No sistema de telensino, contudo, de acordo com os depoimentos recolhidos, isso não era possível, devido o planejamento extremamente rígido e, até mesmo, “bitolado”, com aulas extremamente conteudistas, como elucidado pelo professor Fernando: Porque é o seguinte, ele é só conteúdo, empurra conteúdo, empurra conteúdo aí não dá, o espaço que tem entre uma aula e outra não dá você, principalmente as ciências exatas, não dá para que você possa fazer com que a matéria chegue até o aluno e ele possa aprender (Fernando). As aulas ministradas pela televisão foram classificadas como de qualidade por alguns dos professores entrevistados, pois exibiam ilustrações e imagens atraentes, em especial, como citado por alguns docentes, nas aulas de Ciências. Entretanto, de acordo com esses profissionais, as explicações eram muito rápidas, impossibilitando que o aluno compreendesse completamente os conteúdos trabalhados. O tempo não dá. Na hora que vai entrar outra aula você tem que parar. Aí outra aula já é outro espaço, tem que explicar outra coisa. No dia seguinte, geralmente é outra matéria, aquela, que ficou em dúvida, ficou pra trás. Entendeu? Não dá, não dá, assim, não dá tempo pra que a gente possa é... colocar o aluno num patamar que ele aprendeu ou tudo ou mais ou menos. Entendeu? Então o aluno vai ficando com dúvidas direto.Se a matéria é fácil ele pega alguma coisa, se não, vai acumulando, vai acumulando e o aprendizado acaba ficando atrasado (Fernando). Esta dificuldade para administrar o tempo das aulas no sistema de telensino também foi observada por Bodião (2000, p. 02) em seus estudos. O autor assevera que: O acompanhamento das salas de aula da escola pesquisada, bem como a ressonância que tal tema encontrava junto a outros orientadores de aprendizagem da mesma região administrativa, 9 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 evidenciavam que estava sendo impossível cumprir as agendas propostas, uma vez que as atividades de cada uma das aulas demandavam, sempre, mais tempo do que o que lhes era oferecido. Nesses casos, os excedentes eram deixados como tarefas para casa, não havendo nenhuma garantia de que seriam abordados nas aulas seguintes, uma vez que para estas sempre havia programações de novos conteúdos. A rigidez do sistema, descrita pelos professores, impossibilitava que esses profissionais trabalhassem os conteúdos de forma diferente, tornando as aulas, muitas vezes, monótonas e desestimulantes. Por causa desse, desse, dessa rigidez nesse... na apresentação dessas aulas. Naquele dia, tem que ser daquele jeito e não há uma abertura para que você possa fazer algo diferente, algo novo. Não existe o tempo que, por exemplo, que você possa, porque o conteúdo não para a televisão não para, que você possa parar o aluno, poder ouvir, fazer uma feira de ciências, fazer uma oficina de matemática, uma oficina de língua portuguesa, entendeu? Pra você trabalhar mais o aluno, levar ele a pensar mais, ele trabalhar mais sozinho, na sua casa, nos seus locais. Fazer algo diferente que não seja só o conteúdo, né! Porque aí você estimula o aluno, você fazer coisas diferentes! Você ficar só naquela rotina do dia a dia, não acontecer mudança, não tem quem aguente, né? Então uma das coisas que, que eu não concordava no telensino era isso, que bitolava o professor e do aluno. Só naquela parte, pronto, que aquilo era do começo até o fim, do começo do ano até o final do ano, só aquilo ali e pronto (Fernando). Ademais, essa rigidez e falta de tempo para trabalhar os conteúdos propostos, além de dificultarem o trabalho do professor, prejudicavam a aprendizagem dos alunos e o cumprimentos dos objetivos propostos. Regidos pela inflexível minutagem televisiva, os OAs. eram interrompidos ao ritmo do cronômetro das emissões; essa característica, inerente à lógica operacionalmente centralizadora da proposta, se não impedia a consecução dos seus próprios objetivos, criava-lhes enormes entraves (BODIÃO, 2000, p. 03). Problemas como este de excesso de conteúdos “jogados” em um curto espaço de tempo pela televisão para os alunos, em uma sala de aula que, em muitas situações, o próprio Orientador de Aprendizagem também não compreendia o que estava sendo “ensinado”, ilustram a fragilidade do sistema naquilo que deveria ser seu objetivo maior, a aprendizagem de seus usuários. 10 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 Além disso, de acordo com os profissionais entrevistados a demora na entrega dos materiais e os problemas de emissão eram comuns no sistema de telensino. Esses imprevistos são destacados pelos professores em seus depoimentos. É mais muitos imprevistos, muito imprevistos, acontecia muito de quebrar a TV, material sempre atrasava, manual de apoio que nós tínhamos sempre chegava atrasado (Marisa). Entretanto, para um dos professores entrevistados, esses imprevistos eram vistos com bons olhos, pois era nesse momento que ele podia trabalhar com autonomia em sala de aula, explicando os conteúdos com mais calma e tentando esclarecer as dúvidas dos alunos. Quando não entrava no ar, a gente usava o manual! Ficava usando o manual normal. Aí, por exemplo, se naquele dia tinha aula de matemática, a gente levava três, quatro aulas só na matemática, só tirando as dúvidas dos meninos. Se tivesse faltando energia, porque aí o comando era nosso, não era da máquina (Fernando). Verificamos no relato do professor Fernando estratégias de enfrentamento, na tentativa de recuperar sua autonomia em sala de aula. A busca pela recuperação da identidade profissional do professor no sistema de telensino também foi observada por Santos (2001, p. 129), que, em seus estudos, constatou que: Face ao hiato que se impõe entre a normatividade do telensino e as condições matérias para sua operacionalização, os docentes necessitam tomar decisões para viabilizar seu trabalho e torná-lo eficaz. Desse modo, estes sujeitos “reinventam” o telensino através de diversas estratégias e fazem valer sua autonomia, aspecto central da sua identidade profissional. Apesar de considerar os momentos de falha do sistema como possibilidade para ter atitudes de autonomia, como um verdadeiro professor, a falta de conhecimento em todos os conteúdos trabalhados fazia que o professor utilizasse esses instantes para trabalhar a disciplina pertencente a sua área de formação. Mesmo com as atitudes de enfrentamento adotadas na busca de autonomia, os atrasos nas entregas dos materiais, em especial o manual do professor, dificultaram o trabalho de muitos professores e revelam uma falta de organização dos idealizadores do sistema. Dessa forma, percebe-se que este fato pode configurar um indicador para a precarização do labor do orientador de aprendizagem. 11 IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657 Considerações finais As situações relatadas durante as entrevistas comprovam uma situação de desconforto, excesso de cobranças – sem, no entanto, oferecer o tão necessário apoio pedagógico – desvalorização profissional, estresse, sobrecarga de trabalho e perda de identidade profissional. Esses fatores, como observamos em nossos estudos, fundamentados por diversos autores que pesquisam o tema da precarização docente, são indicadores da precarização do labor dos Orientadores da Aprendizagem no sistema de telensino. Não queremos negar a utilidade da tecnologia no processo de ensino aprendizagem. Percebemos que ferramentas como computadores, aparelhos de data show, DVDs e a própria televisão podem auxiliar o trabalho do professor e tornar as aulas mais dinâmicas e criativas, chamando a atenção dos discentes e proporcionando situações de aprendizagens significativas. Entretanto, este estudo constatou que, no sistema de telensino, o que houve foi uma troca do professor pelo aparelho de televisão, tornando o docente um operador da máquina e controlador da disciplina em sala de aula. Numa visão equivocada de orientação de aprendizagem, pois tal orientação não necessitava de fundamentação e domínio dos conteúdos a serem orientados. Está clara a perda de identidade do professor nesse sistema e a sua submissão à máquina que, na maioria dos casos relatados durante as entrevistas, funcionou como um elemento que, ao invés de colaborar com o labor docente, colocou o profissional em uma situação de desconforto que sinaliza para a precarização de seu trabalho. Referências Bibliográficas BARRETO, Marcília Chagas. Análise do Nível de Raciocínio Matemático e da Conceitualização de Conteúdos Aritméticos e Algébricos no Ensino Fundamental: Considerações Acerca de Alunos do Sistema Telensino Cearense. Tese de Doutorado. Fortaleza: UFC, 2002. BODIÃO, I da S. O telensino: que didática é essa? Anais da 23ª Reunião Anual da ANPED. Caxambu, Minas Gerais, 2000. BRAGA, Kátia Regina Rodrigues. A "universalização” do telensino nas escolas públicas estaduais de 1º grau e a democratização do saber: o caso de Camocim. Dissertação de Mestrado. 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