30. A CRISE DE PERTO

Propaganda
Observatório da Imprensa - Jul.’16
A crise de perto
Joca Souza Leão
[email protected]
Anos 50. O cronista Rubem Braga liga para o também cronista Otto Lara
Resende e o convida para “ver a crise de perto”. Vão a um bar da Cinelândia, no centro
do Rio. Tomam chope, comem salsichão com muita mostarda e dão a crise por vista.
Por essa época, no Recife, meu pai tinha o que ele, bacharel em Direito,
chamava de “crise de coceira”, que não era outra coisa senão uma coceira danada nas
mãos. “Histamina”, dizia ele sem medo de errar, apesar de a medicina nunca ter tido a
chance de confirmar seu diagnóstico nem os anti-histamínicos, receitados por ele
próprio, davam conta do recado. O jeito era coçar. E ele coçava com vigor com uma
escova de cabelo que tinha sido de minha mãe, há muito tempo transformada em
“escova-de-coçar”.
Contei essa historinha, caro leitor, apenas para dizer que a palavra crise me é
familiar desde que me entendo por gente. E que esta grande, enorme e profunda crise
em que o Brasil se vê mergulhado foi, para mim, uma crise anunciada. Literalmente
anunciada. Tanto quanto as crises do meu pai.
Há três anos, duas palavras foram introduzidas nos manuais de redação e
jornalismo dos veículos de comunicação de massa e, pela lei da gravidade, foram
descendo e assentando nas redes sociais: “confiança” e “credibilidade”. Coisas do tipo:
“resta saber se o governo tem credibilidade para implantar as medidas anunciadas” ou
“no entanto, carece da necessária confiança dos agentes financeiros” ou “será que a
categoria confia na proposta governamental?”. (Esses três fragmentos foram pinçados
de dois noticiários de TV e um comentário de emissora de rádio.)
A cobertura do Mensalão e, na sequência, da Lava Jato, veio para engrossar e
dar consistência ao caldo que, agora, já tinha nome e sobrenome: “crise de confiança”.
A grande imprensa nunca questionou o fato de o Mensalão Mineiro, do PSDB,
o pai dos mensalões, por exemplo, ter sido anterior, muito anterior ao do PT e, enquanto
um dava cadeia, julgamento e condenação, o outro não saia do lugar. No You Tube, um
delator premiado disse (e repetiu) com todas as letras como funcionava o esquema de
corrupção em Furnas, envolvendo os Neves (Aécio, mãe e irmã). “Não foi isso que lhe
perguntei”, interrompeu a procuradora. “Eu perguntei sobre as relações do Sr. José
Dirceu com a Petrobras.” Alguém viu isso no Jornal Nacional ou, mesmo, no noticiário
da TV Gazeta (com todo o respeito) às 7 da manhã? Claro que não.
Caixa dois, financiamento de campanha, contribuição partidária, corrupção
mesmo (com dinheiro vivo no bolso do pilantra) são velhos, velhíssimos conhecidos da
política e do sistema eleitoral brasileiro. “Assassinaram meu antecessor. Escolheram-
me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defu ntos votando,
e fiquei vinte e sete meses na prefeitura.” Sabe quem disse isso? O homem mais
honesto e rigoroso do mundo: Graciliano Ramos, prefeito de Palmeira dos Índios
(AL).
Quisessem a imprensa e a justiça acabar de uma vez por todas com a
esculhambação no sistema eleitoral brasileiro – e não apenas derrubar uma
presidenta e aniquilar um partido –, teriam conseguido. A hora era essa. Com os
esquemas das empreiteiras descobertos e escancarados, expostos à execração
pública, não haveria quem tivesse peito para ficar contra as reformas políticas e
eleitorais. Mas, como no verso de Camões, agora, Inês é morta.
Enquanto os peritos do Senado concluem que a presidenta não pedalou
coisíssima nenhuma (quer dizer, nada além das pedaladas em sua bicicleta, nas
cercanias do Alvorada), os senhores senadores repetem o que dizem os meios de
comunicação: a questão não é mais se houve ou não “crime de responsabilidade”, mas a
“falta de confiança” num governo do PT.
Todos os índices econômicos que deveriam ter subido a semana passada caíram;
e todos que deveriam ter caído subiram. “Mas a credibilidade da população no governo
e a confiança dos investidores privados continuam em alta”, diz um Bonner qualquer,
em rede nacional.
O diabo é quem confia!
Joca Souza Leão é cronista da revista Algomais e do Jornal do Commercio, Recife.
Download