Aos que lutam contra o “desencantamento do mundo”. Queria falar da exclusão, dos crédulos e dos laicos, dos ingênuos e dos mágicos, dos pobres sempre trágicos. Queria falar da terra, da liberdade de expressão, do homem subjugado, do processo de alienação. Queria falar do domínio, da externalização da natureza, dos sonhos e esperanças, contrapondo a correnteza. 1 CONTRA A CORRENTEZA Valter Casseti 2 SUMÁRIO 1. A NATUREZA EXTERNALIZADA Desencantamento do mundo O conceito faustiano da cultura ocidental e a doutrina utilitarista A ciência no contexto da externalização da natureza A ciência no contexto do desencantamento do mundo A natureza externalizada na geografia A geografia e o desencantamento do mundo O relevo no contexto ideológico da natureza externalizada A ciência como força produtiva 2. A DIALÉTICA DA NATUREZA A reflexão dialética A relação natureza e sociedade na dialética materialista As leis da dialética Os processos evidenciados na natureza e na sociedade A dialética da natureza O materialismo da natureza A dialeticidade da relação homem e natureza 3. A GEOGRAFIA DA NATUREZA A dialética da natureza como instrumento transformador Pensar de outra maneira A dialética da natureza na geografia Pressupostos para a compreensão das relações processuais A necessária interdisciplinaridade O fim das verdades acabadas A prática social na geografia 3 NOTAS PRELIMINARES Este trabalho foi originalmente impresso pela Editora Kelps, em Goiânia, em 1999. Foi nossa primeira e última experiência em publicação independente, dada a falta de estrutura para a divulgação e distribuição, tornando-o praticamente restrito ao círculo interno da instituição (Universidade Federal de Goiás). Dez anos depois de sua elaboração, resolvemos disponibilizá-lo na Internet, considerando os bons resultados obtidos com a divulgação de outro trabalho de nossa autoria, intitulado “Geomorfologia”, através da página da FUNAPE (www.funape.org.br/geomorfologia). Antes de apresentá-lo para uso, considerações e críticas, fizemos uma rápida revisão do texto, procurando suprimir ou adicionar alguns parágrafos, sem a incorporação de novas pesquisas bibliográficas. Mantivemos, contudo, a insistência em retomar constantemente os princípios que constituem o núcleo central da análise. Abaixo disponibilizamos nosso endereço eletrônico para troca de informações, envio de sugestões, críticas ou possíveis esclarecimentos. O Autor Agradecimentos: À Professora Carmem Nunes Guimarães Leite pela revisão de português. À Professora Maria Amélia Nunes Guimarães Leite pelas sugestões. Para citação deste texto: CASSETI, Valter. Contra a Correnteza. em: <http://www.funape.org.br/contracorrenteza/>. Acesso em: .... [S.l.]: [2009]. Disponível Para críticas e sujestões: [email protected] 4 APRESENTAÇÃO “A ciência é o reflexo do homem no espelho da natureza”. Pauli O objetivo deste trabalho é o de resgatar o conceito de natureza dialética na concepção engelsiana, que considera o homem como resultado do processo histórico de sua evolução. Esta afirmativa deveria ser evidente por si mesma, não fossem mais de três séculos de natureza externalizada pelo homem. A externalização da natureza se dá pela sua conversão de sujeito, intrínseca ao homem, em objeto de apropriação, incorporado a categoria dos meio de produção. Esse processo assume relevância com a perspectiva utilitarista que se constitui em componente básico do sistema de produção capitalista. Ao discutir tais conceitos, procura-se evidenciar as particularidades das leis que regem os processos da natureza e da sociedade, que se articulam com base no princípio da dialética. Tais relações, entre natureza e sociedade, são fundamentadas, na presente abordagem, nas categorias do materialismo dialético, uma vez que evidenciam as estratégias ideológicas que explicam a externalização da natureza: apropriação privada dos meios de produção legitimada pela reprodução ampliada do capital. Nesse sentido tem-se como resultado a apropriação espontaneísta da natureza, que levou a cultura ocidental à ideologização do “desencantamento do mundo” induzido pela ciência. O resultado é materializado pelo antagonismo de classes sociais, impactos ambientais e insustentabilidade do processo produtivo imposto pelo sistema hegemônico do modelo de desenvolvimento. A ideia, embora não seja nova, visa a uma pretensa contribuição centrada na sistematização dos argumentos do materialismo dialético, na visão engelsiana, tendo como elemento de crítica o “desencantamento” cartesiano. A discussão sempre será oportuna, principalmente no momento atual, quando novos paradigmas são postos como conduta ao pensamento hegemônico. O novo modelo de desenvolvimento produtivista e a revolução científico-tecnológica dos meios de produção fundamentam-se na perspectiva de sustentação do sistema de produção capitalista: os investimentos em uma base material orgânicorenovável com a reedição ideológica do racionalismo teleológico, implica maior reflexão e necessidade de encontrar uma nova forma de pensar, contrapondo a correnteza. Nesse contexto insere-se a Geografia enquanto disciplina, apropriando-se de tendências, como a de 5 base fenomenológica, que busca através do “imaginário social” a compreensão das relações espaciais, em detrimento da “cultura material”, valorizada pela corrente crítica. Partindo do princípio de que a concepção externalizada da natureza tenha levado à apropriação privada dos meios de produção -insiste-se propositalmente em tal argumento-, e seus males resultantes (antagonismo de classes sociais, reprodução permanente da alienação, problemas ambientais, entre tantos outros), é que se procura resgatar o conceito de “dialética da natureza” preconizado por Engels. Torna-se assim imprescindível a “internalização” da natureza como forma de recuperação da essência do homem enquanto sujeito intrínseco à natureza, o que representa questionar as razões das diferenças socioeconômicas, das imposições jurídico-políticas, da apropriação espontaneísta dos recursos, da subjugação de povos e nações, enfim, de todo o processo de dominação. Ao evidenciar a participação da Geografia nesse contexto, alerta-se para a necessidade de se buscar uma nova prática social da Geografia enquanto formadora da consciência social. A tese central do presente trabalho fundamenta-se nos seguintes pressupostos: a) a "externalização" da natureza constitui argumento ideológico ao promover a apropriação privada dos meios de produção e por conseguinte de si mesma; b) a apropriação privada da natureza, aliada ao processo produtivista, estimula o espontaneísmo que implica antagonismo de classes sociais, sob a égide da alienação, e conseqüentes impactos ambientais. Para buscar respostas a tais argumentos estruturou-se o presente trabalho em três partes assim constituídas: 1. A Natureza Externalizada: onde se procura explicar, a partir do método gnosiológico, o processo de externalização da natureza, corroborado pelo conceito faustiano da cultura ocidental e pela ideologia do utilitarismo. Nesse momento procura-se evidenciar a participação da ciência, fundamentada na externalização da natureza, no processo de alienação resultante e na investigação incessante dos recursos naturais como forma de sustentação do sistema de produção capitalista. Procura-se resgatar a particularidade da Geografia nesse processo de alienação e apropriação, finalizando o tópico com a inserção da ciência no desenvolvimento tecnológico e sua implicação ideológica. 2. A Dialética da Natureza: é colocada como perspectiva para compreender a unicidade existente entre natureza e sociedade. Para tanto recorre-se aos conceitos e categorias do materialismo dialético, seguidos dos argumentos da “dialética da natureza” concebidos por Engels. 3. A Geografia da Natureza: São apresentadas algumas questões consideradas relevantes para a Geografia, tanto no sentido de se resgatar a unicidade de seu 6 objeto, como no de insistir na recuperação das categorias do materialismo dialético em sua fundamentação teórico-metodológica. A abordagem pretendida parte da necessidade de se agir de outra forma (nível ontológico), resgatando os princípios teórico-metodológicos do materialismo dialético (nível gnosiológico e epistemológico), concluindo com a questão da prática social (nível da práxis) do geógrafo. Como foi observado inicialmente, não há aqui qualquer pretensão de inovar, mas de insistir na necessidade de se pensar de maneira diferente, como forma de superação da apropriação privada da natureza e seus desdobramentos. 7 PARTE I A NATUREZA EXTERNALIZADA “O ser humano não pode mover montanhas sem primeiro emitir um título de propriedade” Isaiar Browman 8 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO1 “Por que o ópio nos faz dormir?”, pergunta o médico ao candidato em O Doente de Moliére (1673). “Porque tem a virtude soporífera e possui um determinado componente entorpecedor”, responde. Ao tentar compreender o processo de ideologização da natureza, forma de alienação imprescindível à legitimação da apropriação privada dos meios de produção, necessariamente recorre-se a Descartes, que é consagrado como precursor da filosofia moderna e idealizador das condições necessárias ao “desencantamento do mundo”. Cria o método da ciência moderna baseado na dedução usual da matemática, promovendo o desenvolvimento da razão instrumental. Descartes utiliza o método gnosiológico da modernidade2 para se despojar de “todos os vestígios naturais” (Adorno e Horkheimer, 1986)3, estabelecendo a cisão corpo e alma, no intuito de dominar o mundo, transformando-o em “objeto interno do pensamento, na forma de sua abstração – as ideias claras e distintas” (Matos, 1990)4. A cisão corpo e alma têm por fim a dominação da natureza interna do homem como forma de dominação da natureza externa. Descartes aprofunda as relações entre o corpo e a alma em “As Paixões da Alma” (1987)5, onde o corpo é representado como objeto de dominação do pensamento. A noção de “corpo-máquina” pode ser constatada em seu Tratado do Homem, obra póstuma: “o corpo não é outra coisa senão uma estátua ou máquina da terra, formada propositalmente por Deus”. A “medicina-ficção” de Descartes é percebida ao comparar o organismo como uma grande caldeira que move a corrente sangüínea: “as partes mais vivas, mais fortes e mais sutis do sangue dirigem-se ao cérebro para nele introduzirem um determinado sopro muito sutil, ou melhor, uma chama bem viva e bem pura chamada de espíritos animais. (...) Os pequenos filetes que constituem a medula dos nervos são puxados com bastante força para se romperem; o movimento causado no cérebro provoca na Alma, a interessada em conservar a morada do cérebro, um sentimento de dor”. Para Descartes a alma se relaciona com o corpo, 1 Texto parcialmente extraído do artigo do autor “A Ideologia da Modernidade e o Meio Ambiente”. Bol. Goiano de Geografia, Goiânia, 15(1):17-34, jan/dez, 1995. 2 O empirismo, e portanto, o positivismo, se limita ao primeiro passo: fazer ciência é conhecer o particular para se chegar a conceitos gerais. 3 Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. R.Janeiro: Zahar, 1989. 4 Matos, Olgária C.F. Desejo de Evidência, Desejo de Vidência. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 284. 5 Descartes, René. As Paixões da Alma. S. Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 223-306 (Os Pensadores). 9 ou este com a alma, por intermédio da glândula pinel, localizada no cérebro, caracterizando assim o contato entre o físico e o espiritual. Com relação ao pensamento, Descartes o divide em dois tipos: as “ações da alma” e as “paixões da alma”. As “ações da alma” correspondem às vontades: as que nascem na alma e terminam na alma e as que nascem na alma e terminam no corpo. As “paixões da alma” correspondem às percepções ou conhecimentos: as que têm a alma como causa e as que têm o corpo como causa. Ora são imaginações produzidas pelo curso fortuito dos “espíritos animais” (sonhos, devaneios...), ora são percepções dependentes de tais imaginações com causas próximas desconhecidas. Descartes (1987)6 considera o amor como “uma emoção da alma causada pelos movimentos dos espíritos animais” que a incitam a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes. A definição de amor pela ciência cartesiana não desagradaria aos personagens libertinos de Sade, que, ao contrário, não conseguem atuar como sujeitos. “Suas práticas libertinas, nas quais mostram o máximo autodomínio e desencantamento do corpo e alma, coadunável com a ciência cartesiana, não os colocam como plenamente emancipados e livres. Já não são criaturas que vivem, mas apenas sobrevivem. Não se pode dizer que estiveram como sujeitos mesmo quando conseguiram o domínio das paixões” (Ghiraldelli, 1994)7. Para Descartes é imprescindível vencer as paixões diferenciando assim a “alma forte” da “alma fraca”. Tal argumento tende a induzir o homem ao desencantamento do corpo e por conseguinte, da alma, o que levou Descartes a se vangloriar de que “os homens não teriam nada mais a admirar nos céus após suas pesquisas astronômicas e muito menos nas suas almas e corpos após suas pesquisas psicológicas e fisiológicas” (apud Matos, 1990)8. A separação entre uma substância (res) pensante (cogito) e uma substância (res) que possui corpo, matéria (extensas), ao revelar o desencantamento do corpo, revela também desencantamento da alma, iniciando o processo de dissolução do sujeito. O corpo, uma vez isolado, mostra uma identidade duvidosa: a unidade da vida individual, na qual se baseia a subjetividade. Assim se tem a “feliz apatia” que Adorno e Horkheimer (1986)9 entendem como a dominação da natureza interna em prol da dominação da natureza externa. A paixão da justiça que surge com o homem ao longo da história tem seus princípios pervertidos através do processo de ideologização produzido pelo conceito de modernidade do iluminismo. 6 Descartes, op. cit. Ghiraldelli Jr. Paulo. Arrancar o Véu. Seminário Nacional “Licenciaturas - O Desafio da Integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão”. Curitiba, 1994, p. 14. 8 Matos, op. cit. 9 Adorno e Horkheimer, op. cit. P.62 7 10 Conforme Peres (1994)10, “desencantar o homem” não significa desacreditá-lo. Pelo contrário, os homens desencantados seriam aqueles aptos a buscar para si o compromisso com a sua própria história, com um conhecimento racional liberto de princípios e verdades preexistentes. Para o autor, a perspectiva da sociedade moderna estava fundamentada nos seguintes princípios: a) a racionalidade como guia da conduta humana, alterando a influência e o controle da religião e de seus dogmas, levando à valorização da natureza e das chamadas leis naturais; b) a fé incontestável no programa da humanidade, associando-a a toda filosofia da história, concebendo-a como tendência linear e automática; c) a crença no indivíduo, exaltando o seu papel ativo em favor de seus semelhantes como ”valor moral racional” e possibilitando a conciliação de interesses individuais com o interesse coletivo (visão antropocêntrica do universo, tendo o homem como objeto da ciência). Colocar o homem como “senhor e possuidor da natureza” configura o núcleo do programa do iluminismo e da modernidade. Adorno e Horkheimer (1986)11 observam que “todo esclarecimento burguês está de acordo na exigência de sobriedade, realismo e avaliação correta das relações de força; o desejo não deve ser o pai do pensamento”. No limite, é preciso alcançar a “feliz apatia”. “Está em jogo o processo de desencantamento do mundo, o poder de expulsar o elemento mítico e a esfera da imaginação (...) para, por meio de um percurso sem barreiras, fundar o saber, vencendo a superstição e tudo o mais que possa debilitar a atividade do entendimento” (Fabri, 1994)12. Para Bacon, saber e poder coincidem, o que leva à superação de uma passividade contemplativa do homem em relação à natureza, utilizando-se do argumento de “natureza hostil”. “A natureza não é objeto passivo, mas matéria que resiste à nossa consideração e que, portanto, necessita ser dominada e submetida” (Bacon, 1983) 13 . O saber é, portanto, uma ação prática e o verdadeiro fim da ciência não é um passatempo qualquer, mas sua utilidade. “O que importa não é aquela satisfação que para o homem se chama verdade, mas a operation, o procedimento eficaz”. (Adorno e Horkheimer, 1986)14 10 Peres, Maria Thereza M. A Modernidade na Marcha da Emancipação do Homem. Impulso, Piracicaba, 7 (14):2754, 1994. 11 Adorno & Horkheimer, op. cit, p. 62. 12 Fabri, Marcelo. Francis Bacon - Patologia dos Erros e Crítica do Saber Tradicional. Impulso, Piracicaba, 7 (14):115-132, 1994. 13 Bacon, Francis. Novum Organum. S. Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores). 14 Adorno e Horkheimer, op. cit, p. 103. 11 O homem moderno é o Aufklärung na concepção de Weber15, que Ghiraldelli (1994)16 menciona como “silhueta que abriga um misto de cientista cartesiano e libertino altivo”. Ele quer, como meio e meta, ou melhor, como meio que é meta, a “feliz apatia”. A analogia do professor ao Aufklärung feita por Ghiraldelli é, no sentido de que este, o professor, ilumina, esclarece, sem, contudo provocar a necessária desmitologização. Adorno e Horkheimer (1986) alertam que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por remeter à mitologia”. Em um jogo de espelhos, o homem esclarecido, autônomo, aparece como elemento da massa, que aceita a dominação e só se rebela no sentido de continuar sua implementação. “A modernidade que produz a apatia precisa criar mecanismos para, pelo menos por alguns momentos, reavivar esse homem, para que a sociedade, ou melhor, o aglomerado de seres, continue a existir” (Ghiraldelli, 1994)17. Resumindo, o que o iluminismo e o programa de modernidade querem é a substituição da imaginação pelo saber e por isso não há espaço para a identificação. Não há espaço para qualquer processo de empatia que possa levar um homem a mudar seus planos na medida em que se coloca imaginativamente no lugar de outrem. Não há espaço para o processo de empatia, não há espaço para a compaixão (Adorno; Horkheimer, 1986)18. Para Adorno e Horkheimer (1986)19, o “desencantamento do mundo” não é um simples processo de desmitologização: ”O fato de que ele tem origem no próprio mito e encontra seu termo atual na mitologização do esclarecimento, sob a forma de ciência positiva, reflete o fato de que o conhecimento pela dominação da natureza tem lugar pela assimilação dos processos de conhecimento e controle dos processos naturais, e explica por que esse processo de dominação da natureza pode resultar paradoxalmente numa mais completa naturalização do homem totalmente civilizado”. Fazendo um breve retrospecto com relação à ideia de natureza no iluminismo, percebe-se nitidamente a influência das grandes descobertas da época como subsídio ideológico a uma tendência de concepção externalizada da natureza: da concepção fisicista à influência do darwinismo social; do conceito de natureza humana à concepção faustiana de progresso dos economistas. Ainda, ou enaltecendo a natureza e suas relações como forma de subjugação do homem, ou atribuindo à natureza um caráter hostil, como forma de legitimação do processo de dominação20 partindo do princípio de que o homem é filho de si próprio, desconectado do processo de evolução da natureza. 15 Para Weber (1997), Aufklãrung refere-se ao tipo de comportamento que se alastra por todas as esferas da sociedade, gerando o “desencantamento do mundo”. 16 Ghiraldelli, op. cit, p. 18. 17 Ghiraldelli, op. cit., p. 19. 18 Adorno e Horkheimer, op. cit, p. 62 19 Adorno & Horkheimer, op. cit, p. 8. 20 Natureza produzida no dizer de Smith, ao contestar o conceito de “dominação” empregado pela escola frankfurtiana. 12 A tradição naturalista da ciência nos dois séculos precedentes ao atual, além de tratar a natureza de forma diferente e contraditória, reforçou a reprodução ideológica necessária ao processo de desenvolvimento econômico do sistema de produção, amparado pelo utilitarismo. A externalização da natureza ou externalização do homem em relação à natureza é vista por Holbach (1723-1789), em Sistema da Natureza (1770), como a causa da infelicidade humana. “O homem é obra da natureza, existe na natureza, está submetido às suas leis, não pode libertar-se; não pode, nem sequer no pensamento, dela sair. Inutilmente o seu espírito quer lançar-se para lá dos limites do mundo visível (...). Todos os atos que fazemos para modificar o nosso ser não podem ser considerados senão como uma longa série de causas e efeitos, que não são mais do que os desenvolvimentos dos primeiros impulsos que a natureza nos deu”. Lia Formigari (1981)21 mostra que “esta moral da felicidade e da tolerância está diretamente ligada à nova visão laica da ciência, isto é, liberta de todo o condicionamento teológico; uma ciência que se mantém nos limites da experiência e que não pretende ultrapassá-los”. Holbach22 considera ainda que todas as desgraças do homem derivam do fato de ele “ter querido fazer-se metafísico antes de se fazer físico”, ter desprezado as coisas reais para se ocupar com seres imaginários. A destituição do papel privilegiado de “filho de Deus”, assegurado ao homem pela tradição religiosa, acaba se constituindo no principal fundamento de sua externalização em relação à natureza. O homem não é mais filho de Deus; com certeza é filho de si próprio. A teoria do progresso que o iluminismo transmitirá às filosofias do século seguinte nasce desse processo de desdeificação da natureza. Em As Ruinas, de Volney, (1791) que teve larga repercussão na época, o homem é tido como criador de si próprio e do ambiente que o circunda, além de criador do próprio Deus. A concepção do homem originário de si próprio passa historicamente por certo processo de transformação gradativa, como constatado na História Natural de Buffon (1766) quando esclarece que “o homem em suma é tal como é por que soube unir-se ao homem” ou, na interpretação do estado pré-social do homem em Rosseau: “juntamente com o estado social, pensamento e palavra são aquilo que na verdade distingue o homem dos seus parentes animais (...)” 23. Como argumento para uma cisão do homem como “obra da natureza” travam-se ainda discussões sobre a negação da existência de princípios inatos (anti-inatismo), inicialmente 21 Formigari, Lia. O Mundo depois de Copérnico. Lisboa: 70, 1981, p. 43. Holbach, Paul Henri T. Sistema da Natureza. Textos Escolhidos, 1940 (Os Grandes Clássicos do Povo). 23 Citado por Formigari, op. cit, p. 52-53. 22 13 defendido por John Locke (1690), criando-se o conceito de natureza humana. O anti-inatismo tem em suma uma premissa teórica indispensável para se começar a considerar a constituição intelectual e normal dos homens como produto de acumulação de cultura. Tem-se assim a compreensão de duas naturezas no homem: a natureza primária, animal, e a natureza secundária, adquirida. A linguagem e o pensamento pertencem, de modo particular, à natureza adquirida pelo homem; não são atributos originários. Considerando o homem como ser “progressivo” (conceito de Ferguson, 1792), devido a sua capacidade de acumular cultura, é que se tem a legitimação de sua propriedade de acumular riqueza, “um instinto fundamental e distintivo do homem entre todos os animais”. Para Formigari (1981)24, “não é por acaso que, precisamente na Grã-Bretanha, onde o desenvolvimento da economia burguesa estava mais avançado, os filósofos, para explicar a natureza específica do homem, chamam mais freqüentemente à colocação fatores ligados à atividade produtiva”. Cita Adam Smith (1776)25, que se tornou um clássico da economia política, que considerava a especificidade do homem (burguês europeu) como a capacidade de troca. Assim, o relativismo cultural, a consciência já adquirida pelos intelectuais europeus da existência de uma multiplicidade de culturas diferentes, convivem perfeitamente com a concepção eurocêntrica, com a ideia do centralismo da civilização européia. A concepção faustiana de progresso, beleza e poder, embora anterior à discussão filosófica acesa no iluminismo, assume a partir de então, a legitimidade social aliada à implantação do sistema de produção capitalista. Para Berman (1986)26 Fausto tornou-se o símbolo do excesso, da insatisfação e do inconformismo humano diante de sua “submissão” frente à magnitude das forças da natureza. Representa o protótipo do homem moderno e de sua sociedade a quem “promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”. O divórcio do homem em relação à natureza e conseqüente desfiliação divina levou-o, como criador de si próprio e do ambiente, ao desenvolvimento de uma postura faustiana, fundamentada na cultura da dominação, com forte tendência individualista, contribuindo enormemente para o desenvolvimento do processo de alienação: alienação em relação à natureza e à força de trabalho e em relação ao processo de produção, estiolando a possibilidade da formação de uma consciência crítica e consequentemente de consciência de classe social. A “desnaturalização” do homem levou ainda à ideologização do conceito de natureza como forma de legitimação de ideias imprescindíveis à preservação dos interesses das relações de produção ou de domínio hegemônico. Tal argumento pode ser constatado na 24 Formigari, op. cit, p. 69. Smith, Adam. Riqueza das Nações. S. Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores). 26 Bergman, Maschall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:Cia das Letras, 1986, p.15. 25 14 concepção ideológico-racial de Schelling, numa perspectiva eurocentrista, ou da “seleção natural” difundida por Malthus, adotada por Rockfeller na perspectiva do darwinismo social. Como se sabe, a lógica malthusiana fundamenta-se em controle populacional ”positivo”, considerando o elevado índice de natalidade atribuída aos pobres, onde a seleção ”natural” se constitui em argumento de triagem: “(...) se quisermos agir corretamente, devemos facilitar a ação da natureza que produz a mortalidade, ao invés de nos esforçarmos inútil e totalmente por impedi-la”. Enfatiza Malthus (1971)27 que “(...) em nossas cidades, deveríamos construir as ruas mais estreitas, apinhar mais gente no interior das casas e provocar o retorno das pragas. No campo deveríamos construir aldeias perto de poços de água estagnada, e sobretudo, encorajar o estabelecimento de colônias em terrenos pantanosos e insalubres (...)”. Também há uma evidente carga ideológica no discurso de John Davidson Rockfeller (1839-1937), vinculado ao conceito de ’seleção natural’ como comprovação da “necessidade” da acumulação do capital28:“O crescimento de uma grande empresa é pura e simplesmente um caso de sobrevivência do mais capaz (...). A rosa da variedade American Beauty só pode ser obtida com todo o esplendor e a fragrância que alegram quem a olha, sacrificando os botões precoces que crescem à sua volta. Não se trata de uma tendência pérfida do mundo dos negócios. Trata-se, pura e simplesmente, da aplicação de uma lei da natureza e de uma lei divina”. Ressalta-se aqui que, embora externalizada, a natureza se constitui em argumento de legitimação dos interesses das relações sociais de produção, numa perspectiva determinista. Estas palavras expressam muito bem as razões que justificaram os domínios imperiais e hegemônicos, as guerras, a submissão de raças e nações, além de constituírem pressuposto básico para a legitimação do novo modelo de desenvolvimento. Formigari (1983)29 fala ainda da variante psicobiológica do darwinismo, como aconteceu na Inglaterra e nos Estados Unidos, com relação a demonstrações “científicas” da inferioridade de certos grupos étnicos e da “naturalidade” da divisão da sociedade em classes. O Conceito Faustiano da Cultura Ocidental e a Doutrina Utilitarista Embora a ideologização do conceito de natureza externalizada tenha assumido maior relevância no iluminismo, considerando o estágio inicial de desenvolvimento capitalista, a concepção faustiana assimilada pela civilização ocidental parece retroagir à antiguidade. Basta considerar o espírito bélico que norteou Esparta e Roma na construção do império, numa perspectiva de dominação. 27 Malthus, Thomas Robert. Essay on the Principle of population. New York: Dutton, 1961. Citado por Formigari, op. cit, p. 109. 29 Formigari, op. cit. 28 15 Falando da Geografia na Grécia antiga, Sodré (1984)30evidencia que “a justificação do regime, no nível ideológico, conduzia necessariamente, a uma concepção determinista e natural das desigualdades sociais, como a expansão mercantil militar despertava a necessidade de legitimar a dominação e exploração. As contradições da sociedade grega levaram, finalmente, ao declínio e à submissão ao domínio romano”. Lembra Topolski (1986)31 que os ingleses tiveram êxito como piratas contra os espanhóis: queimaram muitos católicos nas fogueiras e patrocinaram as peças de Shakespeare. O conceito faustiano aqui empregado apoia-se no romance-drama de Goethe32. Para Barrento (1989)33, a história de Fausto é uma história que impõe respeito: primeiro pela antiguidade do mito e segundo pelo número de pensadores que lhe têm feito referência. Fausto surge no seio da sociedade feudal em decomposição, que tinha como sustentáculo os valores da tradição, da linhagem e do sangue, e que reprimia toda e qualquer iniciativa individual e coletiva de desenvolvimento. No início da segunda parte do romance-tragédia de Goethe34, Fausto, depois da morte de Gretchem, sentado no alto de uma montanha ao lado de Mefistófeles, olha o vazio e contempla a natureza. Nesse momento onírico-contemplativo Fausto começa a mudar sua atitude, influenciado por Mefistófeles, que não pára de provocar seu espírito aventureiro e empreendedor. De uma visão contemplativa passa a uma postura enraivecida contra a natureza, questionando o potencial nela contido e que não é utilizado para nenhum fim prático: “porque os homens têm que deixar as coisas serem como sempre têm sido? Não é já o momento de o Homem afirmar-se contra a arrogante tirania da natureza. De enfrentar as forças naturais em nome do livre espírito que protege todos os direitos?”. Observando o mar abaixo da montanha, continua de forma ainda mais irritada: “É um absurdo que, despendendo toda esta energia, o mar apenas se mova, para frente e para trás, interminavelmente, sem nada realizar”. Para Weber (1987)35 essa indignação se alastra por todas as esferas da sociedade, culminando no que denominou de “desencantamento do mundo” (Aufklãrung). Fausto representa, portanto, “o homem ocidental por excelência, o que há de mais específico nele, os seus encantos, as suas desilusões, as suas ansiedades, as suas angústias, a sua vontade de agir, o seu universalismo, enfim, o que há de mais representativo na tradição ocidental” (Barrento, 1989, p.200-201). Como diz Dabezies (1967, p.515)36 “sem dúvida veremos mais uma vez, Fausto surgir entre nós, sob uma máscara cada vez mais 30 Sodré, Nelson Werneck. Introdução à Geografia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 17. Topolski, Jerzy. Metodologia de la História. Madrid: Cátedra, 1985, 519 p. 32 Goethe, Johan Wolfgang Von. Fausto, Belo Horizonte:Itatiaia, 1987. 33 Barrento, João. Fausto, a ideologia fáustica e o homem fáustico. Fausto na literatura européia. Lisboa:Apáginastantas, 1989. 34 Toethe, Jonhann Wolfgang Von. Fausto. Belo Horizonte:Itatiaia, 1987. 35 Weber, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:Pioneira, 1996, p.131. 36 Debezies, André, visages de Faust aux XX Siècle, Paris:PUF, 1967. 31 16 atual, para nos lembrar que é dado ao homem o poder de escolher a sua vida, de ser, com o seu deus ou com o seu demônio, criador de si próprio; reside ai a sua grandeza – o seu drama”. A implementação do capitalismo fortaleceu e disseminou a ideologia faustiana como cultura de progresso. Ferguson (1792) conceitua o homem como progressivo, incentivando-o à apropriação dos recursos naturais e acumulação das riquezas, o que o distingue dos demais animais. Enquanto Marx via a distinção do homem em relação aos demais animais pela capacidade do trabalho, Ferguson os diferencia pela capacidade de acumular riquezas. A ideologia faustiana, ao mesmo tempo em que estimula o domínio dos povos ou nações, legitima o desenvolvimento das classes sociais e consequentemente dos detentores dos meios de produção. O grau de apropriação é consagrado por diferentes argumentos ideológicos, que vão desde os culturais, raciais, até a suposta atividade produtiva representada pela acumulação do excedente e como resultado a produção da mais-valia. Os novos argumentos ideológicos fundamentaram o processo de dominação do hemisfério sul pelo faustianismo eurocêntrico. Já dizia Mackinder (1915)37 que a base da divisão espacial encontrava-se fundamentada na dominação: “quem dominar a Europa Oriental dominará o coração continental; quem dominar o coração continental controlará a ilha-mundo; quem dominar a ilha-mundo controlará o mundo”. Darcy Ribeiro38 ressalta que “a história humana nesses últimos séculos tem sido principalmente a história da expansão da Europa Ocidental que, formando o núcleo de um novo processo civilizatório, lançou-se sobre todos os povos em sucessivas ondas de violência, cupidez e opressão. Esse movimento convulsionou e reordenou o mundo inteiro de acordo com os planos europeus e em conformidade com os interesses europeus. Cada povo, até mesmo cada ser humano, foi afetado e envolvido pelo sistema econômico europeu ou pelos seus ideais de riqueza, poder, justiça e saúde”. Como se sabe, diferenças culturais e determinismo ambiental se constituíram em fortes argumentos para a expansão e domínio europeus, subtraindo os recursos proporcionados pela natureza, subjugando os povos com vistas ao domínio hegemônico do capitalismo mercantil. A ampliação do domínio hegemônico americano a partir da Segunda Guerra Mundial reflete mais uma vez a concepção ideológica do faustianismo, que passa a presidir os organismos de consulta e regulação econômica internacionais, apropriando-se inclusive do direito de veto sobre as grandes questões mundiais. É nesse contexto que a concepção faustiana apropria-se da natureza e dos povos, subsidiada pela herança cultural que exalta o poder, a beleza, a riqueza e o saber, argumentos ideológicos imprescindíveis para a sustentação do domínio de nações e consequentemente dos detentores dos meios de 37 38 Mackinder, H.J. Britain and the British Seas. Oxford, 1915. Ribeiro, Darcy. The Americas and Civilization. N. York, 1971. 17 produção. No contexto da natureza, o faustianismo, ao mesmo tempo em que areforça a ideologia da dominação, legitima consequentemente o direito de propriedade. Serres 1990)39, ao discutir o direito de propriedade, utiliza-se do conceito de ”limites”, ratificando a externalização da natureza contemplada pelo capitalismo: “a decisão a respeito dos limites e fronteiras parece original; sem ela, não há oásis separado do deserto, e nem abrindo clareiras na floresta onde os camponeses se entregam ao trabalho da agricultura (...)”. Observa ainda que “a determinação de limites interrompe as contendas entre vizinhos; é o direito de propriedade, o de cercar precisamente um terreno e de atribuí-lo, é o direito civil e privado". Turner (1990)40 apresenta importante tese de que o mito – medo ou humildade e submissão ao mistério incompreensível da vida – em seu estado mais primitivo, “é a prova de que o homem já rompeu com o resto da criação; que sua capacidade de simbolização e conceituar animais e outras formas de vida (embora estas estejam curiosamente ausentes na arte parietal do paleolítico), até a concepção integral da vida, indicam que a unidade primal tão ardentemente desejada foi perdida”41. Essa perspectiva leva à conclusão de que os homens desejam controlar o mundo natural; alguns conseguiram desenvolver meios eficientes e sofisticados para tal. Para o autor “o grau de impulso tecnológico não é diferente entre o primitivo e o civilizado, pois ele é tão inerente à espécie humana quanto a capacidade de fabricar símbolos”. Para mostrar as investidas exploratórias do ocidente além de suas fronteiras geográficas no século XV, Turner (1990) observa que “a civilização estava dominada por atitudes profundamente enraizadas e muito antigas em relação à natureza indomada (...)”42. A atitude herdada do mundo natural tem suas raízes no antigo Oriente Médio – os israelitas compartilharam com sumérios, babilônios, caanitas e hititas um meio ambiente bastante parecido e os desafios que lhes eram inerentes. “A principal via de transmissão dessas atitudes para a civilização do oeste foi a história sagrada dos antigos israelitas, a matriz espiritual da qual saiu o cristianismo e que acabou se transformando na primeira metade do texto sagrado de toda civilização ocidental”. O efeito espiritual cumulativo dos excedentes sempre maiores responde pela conexão entre as civilizações antigas em relação ao ocidente. “Cada nova proteção contra o mundo natural ajuda um pouco a construir a ilusão de independência da natureza, que com o tempo ajuda a erigir a maior das ilusões: a onipotência do homem”43. 39 Serres, Michel. O Contrato Natural. R. Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 67-68. Turner, Frederick.O espírito ocidental contra a natureza. R. de Janeiro: Campus, 1990. Trad. José Ajugusto Drummond. 41 Turner, F. op. cit., p. 21. 42 Turner, F. op. cit, p. 22. 43 Turner, F. op. cit., p. 26. 40 18 Ao evidenciar a influência do texto sagrado na herança de um conceito de natureza dominada, Turner (op. cit.) ressalta a valorização de tais atitudes pelo Ocidente, expresso em uma das regras mais candentes: Crescei e multiplicai-vos, e renovai e conquistai a terra; e dominai os peixes do mar, as aves do ar e todas as coisas vivas que se movem na superfície da terra. Utilizando da ambivalência entre a concepção de Paraíso e Inferno, resgata o conceito de castigo como forma de superação das restrições impostas pela natureza: “amaldiçoado, o homem foi lançado num mundo de terras selvagens e rompeu para sempre com a natureza que se tornou um adversário maldito, eternamente hostil aos esforços humanos para sobreviver. Seu destino agora inclui também ser inimigo dos animais, de modo que sua vida nesse mundo vira uma luta implacável contra a natureza, dentro da qual ele trabalha duramente para cumprir a ordem divina de dominar a terra cheia de espinhos e ervas, e de conquistá-la”44. Para Pedersen45: “Jeová se colocava fora e acima da vida comum, separado da natureza, e ele não precisava ser radicalmente renovado. Assim, a criação ocorrida em tempos remotos não se torna expressão mítica do que é repetido anualmente no culto; ela se torna um evento colocado no tempo, que ocorreu no seu início. Aqui há o germe de uma mudança na antiga maneira de encarar o tempo”. Turner conclui que o efeito cumulativo de tudo isso é o de enfatizar os aspectos destrutivos da natureza e de reforçar a atitude antropocêntrica e belicosa em relação ao mundo natural anunciado no mito do paraíso. “Essa intenção antinatureza, conforme foi destacado por Baron, Weber e Johannes Pedersen, se reflete no grande evento do compromisso com Deus no monte Sinai, tanto no caráter especificamente histórico da religião ali definida quanto no monoteísmo que a distingue dos politeísmos naturalistas de todos os outros povos – na verdade, ela não apenas é diferente, ela é contrária às outras religiões, numa luta mortal”46. A Doutrina Utilitarista John Stuart Mill (1806-1873) sistematizou a doutrina utilitarista47 em uma série de obras. O utilitarismo é visto no sentido filosófico e ético, tendo a felicidade como princípio de moral, condutor da vida humana. Procura apresentar na utilidade universal um princípio que move a formação de juízos morais sobre as ações morais, e não sobre seus autores. Jeremy Berthan (1748-1832) enumera todas as origens da doutrina utilitarista, desde John Locke, passando por David Hume, até os seus contemporâneos como Alaude-Adrien 44 Turner, F. op. cit., p. 39, interpretando Genesis, 9:2. Apud Turner, F., op. cit., p. 44. 46 Turner, F. op. cit., p. 42. 47 Doutrina que coloca a utilidade ou o interesse como valor supremo da ação moral, admitindo como útil tudo que serve à vida e à sua conservação, mediante um acréscimo de felicidade e bem-estar 45 19 Helvétius (1715-1771) e Cesar Beccaria (1738-1794). Hume entende que o “princípio da utilidade” deve ser para a filosofia moral o que é o princípio da atração universal para o mundo físico. Helvétius defende uma ciência moral nos moldes da física experimental. Embora o conceito de J.S. Mill se aproxime de um suposto socialismo reformista48, o utilitarismo passa a ser caracterizado como uma ideologia da alienação. A economia utilitarista treinou a humanidade para pensar que a terra e o capital produzem mercadorias da mesma forma que o trabalho, e que diante disso, os proprietários da terra e os capitalistas merecem receber o equivalente ao produto de seus fatores, da mesma forma que os trabalhadores merecem seus salários. Para Hunt (1989)49, “a visão utilitarista obscurece totalmente o fato, evidente por si só, de que a produção nada mais é do que um processo de trabalho humano que transforma a crosta da terra, antes inútil, em produto capaz de sustentar a humanidade e proporcionar prazer”. O caráter obscuro mencionado por Hunt refere-se ao rebaixamento do trabalho humano à condição de mercadoria na sociedade capitalista. Como se sabe, o aparecimento do capital como relação social exigiu uma divisão do trabalho bastante generalizada, negando ao trabalhador a capacidade de produzir para si, o que dá ao capitalista o poder de extorquir parte do que é produzido. “Quase todas as rendas de uma sociedade capitalista classificadas como lucros, juros ou aluguéis, são simplesmente frutos desta extorsão” (Hunt). Marx descreveu o processo de industrialização capitalista como responsável por mudança historicamente drástica da natureza da divisão do trabalho na produção. Antes do capitalismo, divisão do trabalho correspondia às habilidades e aos conhecimentos necessários à produção, o que foi rapidamente transformado com a separação entre o trabalho mental e o físico. O trabalho repetitivo, desprovido de imaginação, era duplamente benéfico ao sistema: ao mesmo tempo em que impunha uma disciplina severa: retirava os conhecimentos e habilidades dos trabalhadores, reforçando sua dependência em relação aos detentores dos meios de produção. Enquanto essa dependência é mantida, o trabalhador trava uma luta interna que acaba se manifestando como resultado inevitável da “condição humana”, uma luta individual e não uma luta de classe, o que reforça a alienação em relação ao processo produtivo. A negação sistemática das necessidades humanas leva à repressão psíquica, extremamente útil ao capitalismo, necessária à manutenção da fachada institucional e ideológica de democracia, obscurecendo o funcionamento coercitivo e autoritário do sistema. Alguns teóricos marxistas das décadas de 60 e 70 foram além da abordagem de Reich50, procurando mostrar que muitos aspectos dos costumes culturais dominantes que governam a 48 Um social-democrata, uma vez que rejeitava o comunismo, pregando uma série de reformas e de medidas concretas para a sociedade do seu tempo, visando indivíduos mais livres e sociais e economicamente iguais. 49 Hunt, E.K. História do Pensamento Econômico. R. Janeiro: Campus, 1989, p. 503. 50 Para Reich, a forma mais essencial de repressão era a sexual, responsável pela criação de um tipo passivo e submisso de personalidade 20 vida familiar em uma sociedade capitalista, “tendem a criar uma personalidade alienada, passiva e submissa, que é essencial para o funcionamento dos processos de produção capitalista” (Brow)51. Igualmente importante à manutenção do domínio capitalista na formação de atitudes são os meios de comunicação de massa, manipulando a opinião pública. Aronson (1970)52 e Cirino (1971)53 são exemplos de trabalho que enfocam tais questões. Para Hunt (1989)54, “a psicologia e a ética utilitarista se adaptam bem à tarefa de proporcionar uma ideologia conservadora ao capitalismo”, observando historicamente o enorme aumento do domínio do homem sobre a natureza, revolucionando a produção humana, criando a possibilidade, pela primeira vez na história da humanidade, de todos poderem viver com conforto e segurança material. Essa defesa intelectual idealizada pelo utilitarismo tem duas razões: uma em que os sentimentos, as emoções, as ideias, os padrões de comportamento e os desejos individuais são considerados como metafisicamente dados, ficando fora de qualquer análise baseada na psicologia e na ética utilitarista; outra em que os desejos humanos são vistos como independentes da interação social, identificando o bemestar humano como a satisfação desses desejos entendidos como o consumo de mercadorias. A crítica ao utilitarismo apresentada por Hunt (1989)55 baseou-se na opinião de que “os desejos humanos são, em grande parte, socialmente determinados e como tal, sua satisfação pode ou não aumentar o bem-estar humano, e que a produção humana é um fenômeno social, no qual nenhum indivíduo (e muito menos um objeto inanimado, como um terreno ou uma máquina) pode ser julgado como sendo o único responsável por uma determinada quantidade do que é produzido, e no qual o destino e o uso dos frutos da produção são socialmente determinados, podendo ser benéficos ou prejudiciais ao bem-estar humano”. 51 Brow, Bruce. Marx, Freud, and the Critique of Everday Life. N. York, Monthly Review Press, 1973, p. 56. Aronson, James. The Press and the Cold War. Indianapolis: Bobbs-Merrell, 1970. 53 Cirino, Robert. Don’t Blame the people. N. York: Vintage, 1971. 54 Hunt, op. cit, p. 513. 55 Hunt, op. cit, p. 513. 52 21 A CIÊNCIA NO CONTEXTO DA EXTERNALIZAÇÃO DA NATUREZA “A ciência é o reflexo do homem no espelho da natureza”. Pauli Pode parecer improvável qualquer relação sobre a responsabilidade da ciência para com a externalização da natureza. Contudo, ao se procurar compreender o significado da ciência como processo de alienação e o grau de subjugação desta aos interesses da superestrutura ideológica, observar-se-á que tais relações não poderão jamais serem refutadas. Sabe-se que o processo de alienação como argumento de manutenção de determinadas estruturas antecede à sistematização do conhecimento científico. Mas por outro lado, sabe-se também, que através da sistematização é que se legitimou a referida “externalização”, o que pode ser comprovado através do princípio baconiano de “conhecer a natureza para dominá-la”. Em tais princípios estão contidos dois aspectos fundamentais, impostos pelo sistema de produção capitalista: o de promover o desenvolvimento do “conhecimento” sobre a natureza para atender os interesses econômicos vigentes e o de “dominação” como forma de se legitimar a apropriação e utilização intensiva da natureza e dos respectivos meios de produção. Deve-se observar ainda que a sistematização do conhecimento implicou especialização do conhecimento, também com duplo aspecto: separar o homem da natureza e atender os interesses da divisão do trabalho nos diferentes níveis. A separação do homem em relação à natureza é reforçada, se constituindo em estratégia ideológica para o processo de alienação, que além de legitimar a apropriação privada da natureza como objeto de produção, exclui, com o apoio da superestrutura, a participação da força de trabalho no resultado do processo produtivo. Como se sabe, o homem tem sua condição de vida determinada pelo modo de produção, que para sobreviver como tal, recorre a argumentos ideológicos reprodutores da alienação em diferentes níveis: (i) do produto do trabalho, (ii) da atividade de produção, (iii) de sua própria e inerente “espécie” e (iv) de si próprio. No primeiro nível, quando assume a “externalização” da natureza, momento em que esta passa a se caracterizar como simples objeto universal do trabalho, portanto suscetível aos desejos insaciáveis dos que detêm os meios de produção. No segundo nível, relativo às forças produtivas, quando legitima o direito de propriedade dos meios de produção,sendo a força de trabalho um instrumento de maisvalia. No terceiro nível, quando os seres humanos estão dissociados da natureza, detentores 22 de uma natureza própria, a natureza humana. Por último, quando se dá a alienação de si mesmo, ao se constituir em regulador das condições impostas pelas relações de produção e pelo próprio Estado, através da legislação, se submetendo às determinações salariais ou compondo o exército de reserva que controla a própria condição do trabalho humano. Assim, a ciência passa a se caracterizar como instrumento de legitimação do sistema vigente, uma vez que se estrutura numa filosofia idealista, onde o positivismo e suas derivações respondem pela articulação de uma lógica formal, responsável pela formação de uma consciência social alienada. Exemplo pode ser constatado com relação à própria ciência geográfica, que nasce de uma visão epistemológica dual, patrocinada pela desarticulação dos componentes naturais (relevo, clima, vegetação,...) e sociais (população, circulação, economia, ...). Nesse momento, a Geografia acadêmica assume a roupagem da neutralidade científica, desconsiderando os dois caminhos da lógica, a formal e a dialética, para utilizar-se de uma suposta terceira via, procurando mascarar a subjugação imposta pelo Estado, sob os auspícios das relações sociais de produção. Ainda, a ciência, ao “externalizar” a natureza, permite a discriminação dual entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais: a) a “natureza” é estudada exclusivamente pelas ciências naturais, enquanto as ciências sociais preocupa-se exclusivamente com a sociedade, a qual não tem nada a ver com a natureza; b) a “natureza” nas ciências naturais é supostamente independente das atividades humanas, enquanto a “natureza” das ciências sociais é vista como criada socialmente. Permanece, portanto, uma contradição da natureza real que incorpora a separação entre o humano e o não-humano. Tal subjugação acaba manifestada principalmente em outras ciências consideradas “nobres”, através da pesquisa, diferenciando assim o trabalho intelectual, que discute “como fazer”, do trabalho manual que materializa a produção. Mais uma vez, tem-se a pesquisa subjugada aos interesses do capital, muitas vezes financiada pelas próprias relações de produção ou até mesmo pela superestrutura (Estado), que mantém estreita relação de interdependência com as relações de produção. Isso pode ser explicado através da priorização na formação de centros de excelência ou mesmo de linhas de pesquisas impostas por programas institucionais das agências de fomento. Partindo do princípio de que a produção do conhecimento encontra-se subjugada aos interesses do sistema de produção, o repasse do conhecimento, que nem sempre é o produzido, também se encontra subordinado ao mesmo processo. Sabe-se que as ciências sociais possuem um papel fundamental na estrutura vigente, uma vez que respondem pela formação da consciência social. Para cumprir as determinações do sistema, transferem, através do ensino formal, um conhecimento fragmentado, fundamentado apenas na aparência, o que implica alienação em detrimento da formação de 23 uma consciência crítica. Assim, mantém-se a “ordem social” e a consequente subjugação, sobretudo das forças-de-trabalho, às determinações das relações de produção. Acredita-se que com tais argumentos não restam dúvidas quanto a responsabilidade da ciência como instrumento de alienação, assim como não resta dúvida em sua subjugação aos interesses da superestrutura (Estado), com consequente vinculação às relações sociais de produção. Como se sabe, o Estado, através das suas relações jurídico-políticas e ideológicoculturais, ao mesmo tempo em que emancipa o homem, subjuga-o de acordo com os interesses do modo de produção. Vale lembrar o Art. 27 da Declaração dos Direitos Humanos: “Todo ser humano tem o direito de participar da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. A Ciência no Contexto do “Desencantamento do Mundo”56 Até aqui se constatou que a alienação do homem pela ciência, tem por objetivo prescípuo, legitimar a separação do homem em relação à natureza, utilizando-se das atribuições determinadas pelo Estado, caracterizadas pelas relações ideológico-culturais. Também se constatou que essa estratégia fundamenta-se na necessidade de legitimar a apropriação privada da natureza, com consequente subjugação da força-de-trabalho, recorrendo o Estado às relações jurídico-políticas na pacificação dos conflitos. O princípio baconiano de “conhecer a natureza para dominá-la”, induz, ideologicamente, ao entendimento de uma natureza “hostil”, o que legitima a apropriação intensiva antes comentada. Tal fato encoraja o processo de ocupação de espaços até então desconhecidos, motivando diagnóstico dos recursos disponíveis pelas diferentes áreas do conhecimento científico. Não resta dúvida que tal estratégia implicou evolução do conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico, embora tanto um como o outro sempre estivesse subjugado aos interesses do capital. Ainda, a conquista de novos espaços motivou a apropriação da natureza e seus recursos pelos detentores dos meios de produção, não deixando de se apropriar também da própria ciência. Observa-se aqui a consagração da ideia cartesiana do homem como algo que se introjeta para alterar a natureza e ao mesmo tempo do homem que se apropria, entra e participa da história da natureza. A produção da natureza através da conversão dos recursos naturais em mercadoria se constitui em consequência natural da apropriação, fundamentada na lógica capitalista, caracterizada pelo valor-de-troca. A partir de então, tem-se a apropriação intensiva e indiscriminada da natureza, que vem respondendo pela crescente degradação do 56 Texto parcialmente extraído do artigo do autor “Ciência e Ambiente”. Boletim Goiano de Geografia, Goiânia, 13(1):1-10, jan/dez, 1993. 24 ambiente. Esse fato faz com que a humanidade procure se situar diante da natureza, sobretudo a partir do final do século passado, assim como aconteceu no século XVIII, com questões relacionadas à esfera política ou no século XIX, com uma maior preocupação social (Serge Moscovici)57. Deve-se considerar que a ostensividade das contradições produzidas pelo sistema não puderam ser desconsideradas nem mesmo pelas relações de produção, responsáveis direta pela forma dilapidante da natureza. Portanto, a “externalização” da natureza legitimada pela ciência, “desnaturalizou” o homem (homem abstrato), que passa a ver e ter a natureza como “algo” a ser vencido, já que a ideologia da hostilidade estava presente. Para Gerd Bornhein58, a vontade de dominação histórica justifica o seu conceito de que “o homem não é um ser natural”. Diante disso, ao legitimar a “dominação” da natureza, o homem está legitimando sua própria dominação pelo sistema de produção, aceitando e se convertendo em mercadoria ao vender sua força de trabalho, sem questionar o significado da natureza quanto à sua própria existência; sem questionar a sua participação na produção resultante de seu próprio trabalho. Essa atitude assemelha-se o mito de Sísifo que foi condenado a eternamente empurrar pela encosta de uma montanha uma rocha que sempre caia antes de chegar ao cume. A ideologia da natureza hostil, sistematizada no século XVII, não poderia continuar mantendo essa postura contraditória ao lado da dinâmica da reprodução ampliada do capital, principalmente a partir da crescente manifestação resultante da ostensividade responsável pela amplitude intensiva e extensiva dos problemas ambientais. Como se sabe, toda dominação é destruidora, o que justifica a possibilidade de ultrapassar os limites indispensáveis à própria sobrevivência. É assim que a natureza passa a ser virtualizada, sem deixar de ser externalizada. Como se viu, a ciência moderna se sistematiza a partir do programa iluminista de “desencantamento do mundo” e por sua vez, do programa global de produção. Portanto, a ideologia reproduzida pela ciência passa a ter um duplo objetivo: disseminar a alienação como forma de legitimação da apropriação privada da natureza e produzir conhecimento voltado aos interesses do sistema capitalista, tendo a hostilização da natureza como argumento de dominação. O racionalismo teleológico se aprofunda à medida que o capitalismo se associa à ciência moderna e, principalmente à técnica, que passa a impulsionar a produção e ser por esta impulsionada (Weber, 1987)59. Weber60 ressalta o desencantamento do mundo como autonomia das esferas de valor, estando a racionalidade reduzida à esfera do conhecimento, 57 Moscovici, Serge. Essai sur l’Histoire Humaine de la Nature. Paris: Flammarion, 1968. Bornhein, Gerd. O Homem não é um ser Natural. Revista Ambiente, S. Paulo 4(1): 7-12, Cetesb, 1990. 59 Weber, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. S. Paulo: Pioneira, 1987. 60 Weber, Max. A ciência como vocação. In. Ensaios de sociologia . Trad. De Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1982. 58 25 ficando a moral e a estética no campo do não-racional: “O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento do mundo”. A nova Física, por sua vez, tem um significado filosófico que interpreta a natureza e a sociedade em complementaridade com a Ciência Natural, promovendo a imagem mecanicista do mundo do século XVII. O direito natural moderno torna-se o fundamento das relações burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX, destruindo as antigas legitimações e dominações por novos argumentos ideológicos. Habermas (1968)61 observa que o capitalismo define-se por um modo de produção que oferece uma legitimação da dominação “que já não desce do céu da tradição cultural, mas que surge da base do trabalho social”. Constata ainda a instituição do mercado em proprietários privados, que trocam mercadorias, ao lado de pessoas privadas e sem propriedades que trocam a sua força-de-trabalho como mercadoria. Esse fato promove a justiça da equivalência nas relações de troca: “(...) a dominação política pode doravante legitimar-se ‘a partir de baixo’, em vez de ‘a partir de cima’, apelando para a tradição cultural” (Habermas, op.cit). A perspectiva de uma “ordem natural”, distinta da “ordem divina”, também foi contemplada por Adam Smith (1723-1790), tendo por base a divisão social do trabalho. Numa posição liberal trata a divisão de trabalho como uma “consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de certa tendência ou propensão existente na natureza humana...” (Smith, 1983)62. A concepção de natureza como “ordem” é o grande paradigma que presidirá todo o desenvolvimento da ciência moderna (Copérnico, Kepler, Ticho, Bruno). A “ordem única” (Galileu) implica princípio de estabilidade, conforme expressou Bernard Tocanne63 : “o pensamento antigo fez da natureza o elemento imutável no seio do devir; é o fundo que permanece sob a superfície móvel dos fenômenos e produz a ordem imutável das coisas. Princípio de produção e de fecundidade, a natureza antiga é imutável nas suas operações, repete-se e não inventa. [...] o devir cósmico é um perpétuo recomeço, à imagem do ciclo da vida”. Em meados do Século XIX, “o modo de produção capitalista tinha se imposto de tal modo na Inglaterra e França que Marx pode reconhecer o marco institucional da sociedade das relações de produção e, ao mesmo tempo, criticar o fundamento próprio da troca de equivalentes” (Habermas, 1968)64, o que o levou à crítica da ideologia burguesa na forma de Economia Política. 61 Habermas, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: 70, 1968. P. Smith, Op. cit. 63 Tocane, Bernard. L’ idée de Nature en France dans la Seconde Moitié du XVIIe, p. 9-11. 64 Habermas, op. cit. P. 67 62 26 Essa racionalização penetra nas mais diversas instituições, como o Estado que gradativamente vai intervindo no sistema. Já no último quartel do Século XIX observam-se nos países de capitalismo avançado, duas tendências racionalistas (Habermas, 1968)65: a) incremento da atividade intervencionista do Estado como forma de estabilização do sistema; b) crescente interdependência da investigação científica que transforma as ciências na primeira força produtiva: a cientificação da técnica. Além do significado econômico produzido com a “cientificação da técnica”, a ciência continua promovendo a legitimação da dominação, utilizando-se de estratégias ideológicas dissimuladas - a retórica do “tecnológico sublime” de Leo Marx66. Para Habermas (1968)67, “a consciência tecnocrática é menos ideológica que todas as ideologias precedentes, uma vez que não tem o poder opaco de uma ofuscação que surge apenas na realização dos interesses. Justifica o interesse parcial da dominação de uma determinada classe e reprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra classe”. Afeta, portanto, o interesse emancipador do gênero humano, “vinculado às funções de um suposto sistema de ação racional dirigida a fins”: o racionalismo teleológico. Portanto, a despolitização das massas legitimada pela ideologia tecnocrática é uma autoprojeção dos homens em categorias. As bases técnicas e a divisão do trabalho no processo produtivo promoveram a criação do excedente de bens e sua distribuição desigual, legitimada pelos interesses ideológicos do sistema, tendo a ciência como instrumento de alienação. Genro Filho (1986)68 observa que “as pregações de retrocesso nos mecanismos responsáveis pela mediação entre o homem e o mundo precisam ser substituídos pela busca de qualificação das forças produtivas e pela crítica teórica e prática às objetivações técnicas e científicas que expressam o particularismo histórico do modo de produção capitalista”. A ciência “feitiço”, tecnificada, disseminará assim uma “ideologia de compensação”, fundamentada na eliminação das diferenças entre práxis e técnica. “Eis a grande tarefa do iluminismo: fazer o balanço e a divulgação dos enormes progressos já alcançados pela razão teórica e prática (as ciências e as técnicas) e empreender a investigação das leis que dizem respeito diretamente ao homem – individual e social” (Falcon, 1986)69. Assim são produzidas as modificações na sociedade capitalista que Habermas (1968)70 exemplifica através de duas das categorias centrais da teoria “marxiana”: 65 Habermas, op. cit, p. 68. Marx, Leo. The Machine in the Garden. New York, 1964. 67 Habermas, op. cit. P. 80. 68 Genro Filho, Adelmo. Marxismo e ecologismo: dois pesos e duas medidas. In. Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre: Tchê, 1986, p. 76. 69 Falcon, Francisco J. Calazans. O Iluminismo. S. Paulo: Ática, 1986. 70 Habermas, op. cit, p. 72-73. 66 27 a) a cientificação da técnica como primeira força produtiva, minimizando a importância da teoria do valor-trabalho: “a força de trabalho dos produtos imediatos tem cada vez menos importância”(Lobl, 1968)71; b) a cientificação da técnica, ao produzir uma “ideologia de compensação”, promove a pacificação dos conflitos de classe. As contradições existentes não podem ser interpretadas como antagonismos de classes, mas como resultado de revalorização do capital. Para Claus Offe72, “os interesses predominantes são aqueles que, em virtude da mecânica estabelecida pela economia capitalista, estão na situação de reagir à violação das condições de estabilidade com a geração de riscos relevantes”. A NATUREZA EXTERNALIZADA NA GEOGRAFIA A Geografia, no curto espaço de tempo de sua existência, tem estado susceptível às influências filosóficas e ideológicas que marcaram o pensamento científico, chegando a imprimir tendências epistemológicas que macularam sua história. Como exemplo, o “racionalismo ilustrado” e o “romantismo” de Goethe (1749-1832) difundido por Humboldt; o “formalismo neoplatônico” de Ritter; o “positivismo” de Comte (1758-1857) na sua concepção orgânica (Darwinismo Social) apropriado por Ratzel; o “funcionalismo” de la Blache; o “intuicionismo” de Bergson; o “positivismo lógico” da Nova Geografia de Schaefer e Bunge; a abordagem marxista no pós-guerra preconizada por Pierre George (materialismo histórico, entendido como “estruturalismo marxista” - Dosse, 199473) e seus seguidores como Kayser e Lacoste. Não que a Geografia seja a única ciência que tenha sofrido tais influências, embora se torne necessário reconhecer sua maior suscetibilidade por tratar de conteúdos relativos às ditas ciências naturais e sociais. Esse motivo acaba implicando dificuldades quanto a questão epistemológica, sobretudo considerando a carga ideológica iluminista imposta à externalização da natureza em relação ao homem. Com relação ao processo de externalização da natureza, Moreira (1994)74 observa que “ao importar os fundamentos epistemológicos do sistema de ideias dominantes no mundo da ciência, a Geografia passou a ver o mundo como uma dissociação orgânica do homem em relação à natureza, da natureza em relação ao espaço e do espaço em relação ao tempo, impossibilitando-se de ter unidade dentro de si mesma. Refletiu para dentro e para fora a noção de que o homem não é natureza e sim que está na natureza; de que a natureza não é 71 Löbl, E. Geistige arrbeit - die wahre Quelle des Reschtums. Citado por Habermas, op. cit.p. 73. Offe, Claus, citado por Habermas, op. cit. P. 70-71. 73 Dosse, François. História do Estruturalismo-2. S. Paulo: Ensaio, 1994, p. 355. . 74 Moreira, Ruy. Um Mundo Experimentado por Inteiro. Anais do 5. Congresso Brasileiro de Geógrafos. Curitiba, p. 571-578, 1994. 72 28 tempo e espaço e sim que está no tempo e no espaço, e de que a sociedade não é natureza, espaço e tempo e sim que está na natureza, no espaço e no tempo. Uma concepção desorgânica de tudo”. A Geografia, que tem como objeto a relação homem-natureza, já nasce fragmentada, tendo de um lado Humboldt (1769-1859), como precursor da Geografia Física, e de outro Ritter (1779-1859), idealizador da Geografia Humana, que “se empenham em construir uma descrição sistemática da superfície do globo, como repositório de valores de uso exploráveis (tanto naturais como humanos) e como o locus de formas diferenciadas de reprodução econômica e social” (Harvey, 1983)75. Como já foi mencionada, a desumanização da natureza, ou sua “externalização”, se constitui em argumento ideológico do sistema de produção capitalista, como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, cuja reprodução implica antagonismo de classes sociais. Portanto, a ideologia da dominação da natureza legitima sua apropriação intensiva e extensiva, sob os auspícios da ciência, que além de proporcionar a evolução dos conhecimentos concernentes aos necessários recursos naturais, se constitui em importante instrumento de alienação, oferecendo subsídios ao processo de subjugação do homem em nome do desenvolvimento. É nesse panorama que a Geografia se constitui em instrumento ideológico da superestrutura, contribuindo para a formação de uma consciência social alienada. Basta rever a influência do darwinismo social na geopolítica ratzeliana, da suposta neutralidade científica no possibilismo lablacheano, do neopositivismo da quantificação na lógica bergsoniana, e a tendência atual fundamentada na fenomenologia frankfurtiana. Com relação ao dualismo geográfico derivado do processo de externalização da natureza, Lacoste76 observa que “enquanto proclamam quase unanimemente que a razão de ser da Geografia é o estudo das interações entre ‘fatos físicos’ e ‘fatos humanos’, em sua prática os Geógrafos não parecem preocupados com tais interações: uns só se preocupam com a Geografia Física (...), enquanto outros se preocupam essencialmente com a Geografia Humana. A prática da maioria dos Geógrafos aparece, pois, como a negação dos princípios que eles afirmam”. A Geografia, como as demais ciências, passa pelas diferentes etapas de reflexão epistemológica conduzida pela própria evolução do pensamento, vinculado ao desenvolvimento econômico e social. Como pode se constatar em muitos manuais, na primeira metade do Século XIX, a Geografia encontrava-se no estágio de uma reflexão genética, onde a teoria da descrição, fundamentada em observações empíricas, assume total relevância. Com isso obteve 75 76 Harvey, David. Geografia. R. Janeiro: Zahar, 1983, p. 162-165 (Dicionário do Pensamento Marxista). Lacoste, Yves, Geografia do Subdesenvolvimento. S. Paulo, 1986. 29 importante contribuição para o estabelecimento de um modelo erudito e genético de literatura geográfica, constatando-se a influência etnocentrista, na definição conceitual de termos geográficos instituídos na época como nação, povo, classe social e luta de classe. A base “científica” era fundamentada nas leis da natureza ou forças “obscuras”, refletindo o caráter metafísico que marcava o conhecimento da época. A separação das ciências naturais e ciências sociais legitimou o caráter dual na Geografia, refletindo o efeito da doutrina externalizante, difundida pelo Iluminismo. Na segunda metade do Século XIX, uma série de mudanças ocorreu na Geografia, como a ação política dos geógrafos, sob a influência predominante do Positivismo, representado por duas principais versões: rechaçamento do idealismo e tratamento desapaixonado dos fatos de natureza geográfica, a exemplo da Geopolítica de Ratzel. A tendência positivista na filosofia e na ciência se inicia com Auguste Comte (17981857) através de seu Cours de Phylosophie Positive (1830-1842), que se converte em ponto de partida da escola positivista francesa. Na mesma época surge o Positivismo Empírico Inglês, formulado de maneira plena por J.S. Mill (1806-1873), pai do utilitarismo, em que rechaça todas as premissas e afirma a existência somente de fatos isolados ou individuais: o indutivo precede o dedutivo. Comte considera ainda que apenas os objetos e fatos empíricos podem ser matéria da ciência. A natureza neutralizada, senão dominada, torna-se subsidiária, transformada em farrapos pelo positivismo científico, como em la Blache, onde a “fisionomia” das combinações é explicada pelas partes, constatando-se a persistência do espírito cartesiano. Com a revolução ocorrida nas ciências naturais promovida por Darwin (1809-1882) nasce o evolucionismo positivista, tendo Spencer (1820-1903) como precursor, onde a sociedade é vista como organismo. O método dialético e a Economia Política de Marx desempenham na época papel muito pequeno em relação ao domínio da doutrina positivista. No início do Século XX tem-se o desenvolvimento da reflexão estrutural que se caracteriza pela metodologia antipositivista e a negação do excepticismo77, ou seja, ideias nascidas das dúvidas sobre os valores cognoscitivos, resultantes da acumulação indutiva dos fatos: processo cognoscitivo analítico. Foi principalmente a Filosofia que no final do Século XIX proporcionou o “renascer” da gnosiologia e da metodologia como forma de contestação do modelo das ciências naturais, de cunho positivista. Ao mesmo tempo em que a gnosiologia propunha o conhecimento intuitivo em substituição ao empirismo indutivo (ideia desenvolvida pelo fenomenologista E. Husserl – 1859-1939, como reflexão lógica antiempirista), H. Bergson (1859-1942) desempenha 77 O excepticismo fundamenta-se no estudo da evolução constante dos valores intelectuais e morais dos homens, seguindo supostamente as leis naturais do progresso. Assim, ao mesmo tempo em que a natureza é imposta pela externalização, recorre-se com frequência às leis da natureza para justificar as relações sociais, como estratégia ideológica para a reprodução da alienação, conforme se exemplificou através do malthusianismo. 30 importante papel apresentando o entendimento do mundo em sua totalidade, ao contrário dos pressupostos fragmentários da doutrina positivista. Embora as novas concepções antipositivistas sejam aceitas pela comunidade científica, as técnicas de investigação tiveram muito pouca influência, o que pode ser justificado pelo baixo nível de formação teórica e atmosfera política da época. Percebe-se, contudo, um aprofundamento da iniciativa analítica, de uma melhor tomada de consciência dos fenômenos biofísicos e de um desejo crescente de intervenção voluntária do homem sobre a natureza. A partir da década de 50 do século passado, as questões ontológicas e epistemológicas que até então despertavam maior interesse passam por um processo denominado de reflexão lógica, preparada ou favorecida pelo próprio estruturalismo. Alguns autores, como Amorim Filho78, que utilizam o conceito demarcatório de Kuhn para ciência, entendem que até a década de 50 a Geografia se caracterizava por uma epistemologia não explícita, fundamentada claramente no empirismo. O momento é o de proporcionar informações sobre o estado real da ciência, utilizandose das bases lógicas da matemática. Nascem assim novas disciplinas como teoria da informação, cibernética, teoria do jogo e da decisão, semiótica, que têm por objetivo subsidiar a ciência para uma nova realidade, caracterizada por metodologia moderna e purificação da linguagem científica. Na Geografia a influência lógica é conhecida como a Nova Geografia, de cunho neopositivista, tendo a quantificação e a teoria geral dos sistemas como base de sustentação metodológica, recuperando a “neutralidade científica” lablachiana. Tem-se como consequência a incorporação dos positivistas lógicos, como M. Schilick (1882-1936), fundador do Círculo de Viena, que tomou como ponto inicial os postulados mal formulados por L. Wittgenstein em seu Tractatus Logicus Phylosophicus, 1922. Essa tendência elimina toda a metafísica da filosofia. Entendem a totalidade das afirmações como resultado de informações de natureza teórica ou de observações, cuja construção deve fundamentar-se numa análise lógica da linguagem da ciência: análise das relações entre as afirmações. A existência da comprovação ou busca de uma confirmação completa, baseada na observação ou nas afirmações teóricas, tem sido acompanhada da exigência do “falseamento” proposta por K. Popper79. Ao invés de se construir novos paradigmas a partir de hipóteses consagradas, os investigadores deveriam falsear as hipóteses, com o intuito de se obter novos conhecimentos. Tais princípios se fundamentam em relações positivistas por dois motivos: 78 Amorim Filho, Oswaldo B. Las más recientes reflexiones sobre la evolución del pensamiento Geográfico. Cad. Geografia, B. Horizonte, 7(9): 5-17, jul, 1997. 79 Popper, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. S. Paulo: Cultrix/Edusp, 1972. 31 emprego de bases metodológicas da natureza para a compreensão das relações sociais e a obsessão por leis, mesmo que entendidas como verdades transitórias. Essa política, fundamentada na “neutralidade científica”, evidencia o grau de alienação até a década de 70 do século passado, após ter participado da “administração racional”, em atividades de planejamento urbano e regional, dirigido para o controle social, mantido pelos interesses capitalistas. Na segunda metade dos anos 70 do Século XX, uma nova revolução é sentida na Geografia, fundamentada em novo paradigma, de base marxista, que se poderia denominar de reflexão dialética. Lacoste (1973)80, tendo como alvo a Geografia Universitária, torna visível “as estratégias ocultas que têm o espaço”, proporcionando a dimensão política até então escondida. Assim, a partir dos anos 70, com o “retorno à natureza” e a “redescoberta do marxismo” é que se presencia certa mutação epistemológica na Geografia, embora insuficiente para combater o enigma cartesiano e positivista. Para Amorim Filho81, a adesão ao movimento radical” foi muito menos unânime e massivo do que a mobilização constatada alguns anos antes com a Nova Geografia. Da mesma forma a unidade do movimento não se consolida por surgirem consideráveis debates e divisões internas que caracterizam a existência de propostas de difícil consolidação. Diante disso surgem novas tendências, podendo-se perceber claramente a influência da fenomenologia, quando se insiste no imaginário social como pressuposto para o entendimento das relações espaciais, em detrimento da “cultura material” amplamente valorizada na Geografia “marxista”. Epistemologicamente parece ter lugar suficiente para várias tendências no novo movimento humanístico, sem, contudo, buscar uma tendência consistente. Conforme o próprio autor, Amorim Filho afirma, assiste-se inclusive a uma evidente recuperação de base neopositivista na Geografia, com características muito mais flexíveis, explorando o potencial riquíssimo da informática e da teoria dos sistemas, como pode ser constatado através de propostas ligadas a conceituados epistemologistas, a exemplo de Mário Bunge. Para Bunge (1983)82, a epistemologia é considerada “uma combinação de filosofia, psicologia e sociologia: ela descreve e analisa as várias facetas dos processos da cognição humana, sucedidos ou não, que estejam ou não relacionados com questões contraditórias”. Portanto, a Geografia neopositivista não está morta, sabendo os doutrinários superar as críticas e promover reformulações atrativas, sem, contudo, alterar seus princípios filosóficos ou objetivos básicos. 80 Lacoste, Yves. Le Géographie. Paris: Hachette, 1973 (Histoire de la Philosophie - La Philosophie des Sciences Sociales). 81 Amorim Filho, op. cit. 82 Bunge, Mario. Treatise on Basic Philosophy. Dordrecht: Reidel, 1983. 32 As Relações da Geografia com o Sistema de Produção A Geografia, desde sua concepção genética, assume um caráter dual, fruto do processo de externalização da natureza, configurando o núcleo do programa iluminista e da modernidade. Nesse contexto a Geografia acadêmica estrutura suas bases epistemológicas no positivismo, subordinada ao princípio baconiano de “conhecer a natureza para dominá-la”, o que induz, ideologicamente, ao entendimento de uma natureza hostil, legitimando a apropriação privada da natureza e, consequentemente, dos meios de produção. Ao mesmo tempo em que legitima o processo de externalização da natureza, utiliza suas leis para tentar demonstrar as relações sociais numa perspectiva positivista, tendo por objetivo promover a ideologização e alienação da consciência social. É nesse contexto que surge o determinismo ambiental da Geopolítica de Ratzel ou a neutralidade científica de la Blache, que tinha por princípio refutar a estratégia da dominação estatal contida no primeiro. Embora o estruturalismo anteceda a reflexão lógica na evolução do pensamento científico, na Geografia surge tardiamente, quase concomitante à influência neopositivista da Nova Geografia, assessorado pela quantificação. Mais uma vez a Geografia privilegia o idealismo em detrimento do dialético. Nos três séculos precedentes se constatou na ciência uma tradição naturalista, em que pese um tratamento diferenciado e contraditório: o darwinismo, o organicismo, o romantismo, o positivismo... No século atual a natureza parece se “apagar”. Bertrand (1978)83 analisa esse reflexo como consequência da “fase triunfalista e agressiva de uma expansão técnicoeconômica aparentemente generalizada, benéfica e ilimitada. Neutralizada, senão dominada, a natureza tornou-se então subsidiária, transparente, quase desprezível”. Considera ainda que no pensamento idealista dos economistas liberais, os fatos naturais são subjugados ao espontaneísmo da livre empresa humana. Hoje, o retorno à natureza toma a forma revolucionária de uma contracultura, embora ideologizada pela “virtuosidade”, procurando resgatar o pressuposto materialista de que o homem está na natureza, oportunizando importante reflexão sobre o lugar e o papel da Geografia. É nesta perspectiva que Bertrand (1978) lamenta o silêncio dos Geógrafos face à emergência da natureza e à expansão do desenvolvimento sócioambiental: “trata-se de uma recusa científica motivada por desinteresse epistemológico ou incapacidade metodológica?”. O resgate à dialética da natureza engelsiana, sem sombra de dúvidas, oferece respostas para que a Geografia recupere o tempo perdido, tendo como prática a justiça social. 83 Bertrand, Georges. La Géographie Physique contre Nature? Herodote n. 26, Paris: François-Masperó, 1978. 33 Com a reflexão dialética, sobretudo nas ciências sociais, a partir da década de 70 a Geografia passa por uma verdadeira ruptura epistemológica, tendo o materialismo dialético como sustentação científica. Acredita-se que o baixo nível de formação teórica, a atmosfera política criada com o fim do socialismo de estado soviético e a instituição do projeto produtivista liberal implicaram diretamente na deficiência das técnicas de investigação e consequentemente na produção de novos conhecimentos científicos. Com o advento do novo modelo de desenvolvimento – produtivismo liberal – a Geografia de base marxista perde espaço e busca novas alternativas paradigmáticas, quando poderia estar se opondo principalmente às novas estratégias ideológicas responsáveis pela pacificação dos conflitos, decorrentes da revolução científico-tecnológica assistida nas forças produtivas. Embora mantendo a estrutura arcaica das relações sociais de produção, a superestrutura ideológica assume uma forte tendência de dominação, em nome de um modelo de desenvolvimento supostamente sustentável. A participação da Geografia como instrumento ideológico da superestrutura dominante parece ter sido mais eficiente que nas forças produtivas, onde a tecnificação foi mediada pelo trabalho. A Geografia deixa assim de se caracterizou como “ciência tecnológica”, como têm sido atribuído as engenharias e mais recentemente a biologia genética, sem, contudo participar do processo: a Geografia Física, através de conteúdos especializados, tem tido uma participação cada vez maior na prestação de serviços, destituída de uma crítica social. A “administração racional” da década de 60, relacionada a projetos de planejamento, atualmente encontra-se centrada nas questões ambientais. A participação do geógrafo em estudos ambientais acabou sofrendo as consequências dos interesses empresariais na prestação de serviços, aqui sintetizados (Casseti, 1991)84: (a) a proliferação indiscriminada de empresas de prestação de serviços ambientais para atender exigências legais quanto a concessões de licenças implicou regime concorrencial e consequente degradação da própria qualidade dos trabalhos. Tais empresas assumiram uma função cartorial, tendo por objetivo a intermediação junto aos órgãos licenciadores; (b) limitações dos órgãos fiscalizadores quanto ao cumprimento das exigências contidas nos referidos instrumentos, por carência de pessoal especializado e equipamentos indispensáveis. Esse fato justifica o caráter emblemático do órgão, que carece de maior autonomia financeira e política, o que não é desejo do sistema, ou mais especificamente da superestrutura, por envolver interesses das relações de produção; (c) os interesses estratégicos do Estado, como as questões energéticas, fazem dos órgãos de defesa ambiental simples licenciadores desprovidos de instrumentos de contestação, reforçando o argumento emblemático mencionado. 84 Casseti, Valter. A Essência da Questão Ambiental. Bol. Goiano de Geografia, Goiânia, 13 (1) p. 14, 1991. 34 Embora discordando do tratamento diferencial apresentado por Joly (1978)85 ao falar da questão relacionada ao mercado profissionalizante e “especializações necessárias”, o perfil profissional descrito pelo autor merece consideração: “... seu senso geográfico da repartição e das interações entre os fenômenos é um precioso trunfo que não possui sempre seus difamadores, os mais arrogantes. Suas tradições naturalistas de observação e de análise, na sua prática da cartografia e da teledetecção lhes fornecem um instrumento perfeitamente adaptado às finalidades geotectônicas. A dimensão ecológica de seus conhecimentos, seu interesse permanente de integrar o homem e suas atividades na compreensão do meio natural satisfazem, justificando sua participação em equipes mistas encarregadas dos planos de ocupação e de valorização”. Independentemente do grau do aproveitamento profissional do Geógrafo no desenvolvimento das forças produtivas é imprescindível avaliar a prática social desempenhada nos últimos anos, da mesma forma que se refuta a prática historicamente marcada pela alienação. A Geografia e o desencantamento do mundo Assim sendo, a Geografia sistematiza-se a partir da concepção físico-mecanicista da natureza, fundamentada no programa de modernidade afeito ao projeto de desencantamento do mundo. Ao longo de praticamente um século, a Geografia “preservou um misto de cartesianismo (a natureza como sucessão de corpos geométricos), fisicismo (a natureza limitada às leis do movimento mecânico), evolucionismo (a natureza reduzida a fator de produção) e geopoliticismo (a natureza circunscrita à base territorial da história)” (Moreira, 1991)86. Considera-se acima de tudo, o efeito do desencantamento e a feliz apatia, condição na qual a “natureza interna do homem está dominada em prol da dominação da natureza externa” (Horkeimer, op.cit). Acrescentam-se ainda os efeitos do positivismo com a extensão dos métodos científicos das Ciências Naturais nos estudos da sociedade, também conhecido como darwinismo social. Embora a tendência produzida pela escola germânica tenha promovido o desenvolvimento de uma linhagem geoecológica, via Haeckel (1843-1916), a concepção naturalista reforça essa externalização, contribuindo para o dualismo histórico. Também a teologia de Ritter revive o racionalismo cartesiano ao tratar as manifestações humanas de 85 Joly, Fernand. La Geographie n’est-elle qu’une Science Humaine? Herodote n. 12, Paris: François-Masperó, 1978, p. 129-158. 86 Moreira, Ruy. O Conceito de Natureza na Geografia Física. Cad. Prudentino de Geografia. Presidente Prudente, (13): 67-113, 1994. 35 forma subjetiva. Reflexos das referidas tendências promoveram o paradoxo entre forma e conteúdo, manifesto tanto nas obras de Vidal de la Blache, como de Emmanuel De Martonne. A partir da década de 60 do século passado, o retorno à natureza estimulado pela intensa degradação processada pelo espontaneísmo, levou a uma rediscussão da temática ambiental, que ocupou destaque no final deste século. Ainda deve-se ressaltar a redescoberta do marxismo, que começa a tomar forma na ciência geográfica no início dos anos 70. Conforme manifestou Soja (1990)87, “ao longo da década de 1970, a Geografia Marxista continuou periférica ao marxismo ocidental, quase que inteiramente construída num fluxo de ideias de sentido único, numa crescente marxificação da análise e da explicação geográficas”. Apesar da origem naturalista da Geografia Física de tendência germanofônica e de certa mutação epistemológica constatada no período, a Geografia não chegou a produzir avanços. O combate aos enigmas cartesiano e positivista, sem apresentar alternativas, levou Bertrand (1978)88 a evidenciar “a falta de um projeto físico global, tornando a natureza incompreensível, ‘sonsa’ e transparente, contribuído para evacuar a natureza da Geografia e das Ciências Sociais”. Apesar da longa ruptura epistemológica em que se encontra a Geografia, a temática ambiental deveria se constituir no viés imprescindível a uma rediscussão epistemológica, restabelecendo a necessária unificação da relação homem e natureza. Assim, a Geografia Física poderia produzir importante contribuição não pela herança ecológica da escola germânica, mas por ter tido a histórica oportunidade de discutir a natureza e compreender as suas facetas ideológicas. Portanto, a estratégia epistemológica seria a de discutir a questão ambiental, que transcende os limites físicos, ou melhor, resulta da produção do espaço nos diferentes modos de produção, a partir do conceito de natureza. Assim é possível buscar as razões ideológicas da externalização da natureza produzidas pelo programa de modernidade do iluminismo; passar pelas dissimulações ideológicas do domínio da cientificação da técnica, até as novas estratégias ideológicas elaboradas a partir da década de 70, momento em que a natureza se caracteriza pela virtuosidade, sem, contudo, deixar de legitimar os interesses das relações de produção. Com relação à referida mutação Smith (1988)89 observa que a Geografia serviu apenas para legitimar ainda mais a ideologia do processo de apropriação. Nesse momento o autor utiliza da imagem da mulher para fazer analogia entre as diferentes formas de concepção externalizada da natureza: “as mulheres são postas em pedestais somente quando a sua dominação social está garantida; precisamente como se faz com relação à natureza; a romantização é aí uma forma de controle. Mas as mulheres não podem nunca ser completamente exteriores, uma vez que nelas reside a fertilidade e os meios 87 Soja, Edward. W. Geografias Pós-Modernas. R. Janeiro:J.Zahar, 1993. Bertrand, Op. cit. 89 Smith, Neil. Desenvolvimento Desigual. R. Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 43. 88 36 biológicos de produção. Neste sentido, elas se tornam elementos de natureza universal, mães e nutrizes, possuidoras de uma misteriosa intuição feminina”. Qualquer iniciativa que tenha por objetivo promover as transformações desejadas deve romper com o conceito ideológico da “externalização”, responsável pela legitimação da apropriação privada da natureza e dos meios de produção. Tal estratégia tem por objetivo apropriar-se de uma função que se pode qualificar de dialética, no sentido lato do termo, no momento em que a natureza deixa de se constituir puro objeto universal dos meios de produção. Quando o homem for entendido como natureza, esta se converterá em sujeito e objeto ao mesmo tempo, numa estreita relação dialética e numa perspectiva histórica, onde o modo de produção e suas contradições respondem pela sucessão de novo equilíbrio. Para isso, torna-se imprescindível compreender que é o sistema de produção e as forças produtivas que dão à natureza sua existência social. Parece não haver dúvida quanto aos requisitos da Geografia para tratar as questões ambientais em uma nova perspectiva. Lembrando Guerasimov (1983)90, a Geografia contemporânea está mais preparada que as outras ciências para assumir os estudos ecológicos, uma vez que “dispõe dos métodos necessários e, o que é mais importante, possui uma imensa formação científica sobre o meio natural e seus recursos, assim como o grau e as formas de sua potenciação e aproveitamento econômico”. Acrescenta-se ao dizer do autor, que a Geografia possui os instrumentos que permitem a compreensão das categorias e articulações que compõem as relações de produção e a superestrutura ideológica, as quais se apropriam dos meios de produção e subjugam a força de trabalho aos interesses espontaneístas. A partir do momento em que forem superadas as limitações epistemológicas produzidas pela ideologia do desencantamento do mundo, o que será possível através da compreensão da natureza numa perspectiva dialética, estarão rompidas as amarras da alienação. Será compreendido o significado da base técnica e de processos produtivos na divisão do trabalho, na produção do excedente como fator de distribuição desigual, responsável pela legitimação do antagonismo de classes sociais: de um lado os proprietários dos meios de produção, e de outro, os mercadores da própria força de trabalho. Tudo isso sem desconhecer as formas ideológicas dissimuladas pela cientificação da técnica, responsável pela redução do significado da força de trabalho com consequente pacificação de conflitos de classes. “Descobrir os mecanismos pelos quais se relacionam é decifrar os elos da desalienação e fazer com que o homem deixe de ser vítima do real, para transformá-lo à sua imagem e semelhança, para humanizar o mundo” (Sader, 2008)91. 90 Guerasimov, I. Problemas Metodológicos de la Ecologizacion de la Ciencia Contemporánea. Moscou: Progresso, 1983, p. 57-74 (La Sociedad y el Medio Natural). 91 Emir Sader. Pensar para transformar o mundo. Caros Amigos, dez, 2008. 37 92 O relevo no contexto ideológico da natureza externalizada * A ideologização da natureza é tão antiga quanto a própria história, o que implica conceito dual, fundamentado em filosofias artificialistas e naturalistas, as quais contêm em si linhagens contraditórias, como as diferentes formas místicas naturalistas da falsificação, da repressão e da transgressão (Rosset, 1973)93. Duarte (1986)94, ao discutir o conceito de natureza, apresenta um retrospecto histórico, partindo da concepção mágica de natureza como consequência da fragilidade da consciência mítica. Para Lévi-Strauss, citado pelo autor, “o homem atribui à natureza traços humanos, para poder se revestir, ainda que ilusoriamente, das forças da natureza. Na cosmologia grega, o mundo é dotado de uma hierarquia funcional que o torna semelhante ao organismo biológico”. Para Collingwood (1949)95, somente com a proposição copernicana da excentricidade do universo é que a concepção organicista será abandonada pelo mecanicismo, onde a natureza é, antes de mais nada, ‘ser-outro’. Portanto, com a revolução mecanicista dos séculos XVII-XVIII, o conceito de natureza passa por uma mutação radical, correlativa às grandes mudanças que se deram na própria evolução do conhecimento. Nesse momento, com a sistematização do conhecimento científico, a natureza assume uma característica própria de externalização, fundamentada na afirmação do poder humano sobre a natureza. Francis Bacon, ao considerar o domínio da natureza como tarefa básica da ciência, assume a condição de profeta dos novos tempos. Observa-se que o determinismo ambiental apresentou função ideológica relevante como reação à natureza mecanicista, à qual se atribuía inclusive participação no aprimoramento das raças. Até mesmo na literatura clássica brasileira o determinismo pôde ser evidenciado, como em Os Sertões, de Euclídes da Cunha, onde se destina um tópico específico sobre a “ação do meio na característica fisionômica das raças”. Reiterando mais uma vez, a proposta de natureza externalizada se constitui no argumento ideológico utilizado pelo sistema de produção capitalista que tem por objetivo legitimar a apropriação intensiva e extensiva da natureza pelos detentores dos meios de produção. Assim, além de legitimar a apropriação privada da natureza, ainda se constitui em argumento de alienação, indispensável à manutenção do antagonismo de classes sociais e consequentes impactos ambientais, tido como preço do desenvolvimento. 92 Texto parcialmente extraído do artigo do autor, “O Relevo no Contexto Ideológico da Natureza: Uma Nota. B.Goiano de Geogrrafia, Goiânia, 14(1):103-115, jan/dez, 1994. 93 Rosset, Clément. A Anti-Natureza. R. Janeiro: Espaço e Tempo, 1973. Duarte, Rodrigo A de Paiva. Marx e a Natureza em “O Capital”. S.Paulo: Loyola, 1986. 95 Collingwood, R.G. The idea of Nature. Oxford: Clarendon Press, 1949. 94 38 Nesse contexto a Geografia acadêmica estrutura suas bases epistemológicas positivistas. A concepção dualista da natureza vai influenciar todo o pensamento geográfico: de um lado, a natureza externa, realidade não humana, dada por Deus; de outro, a natureza mais abstrata, incorporando tanto a esfera da realidade humana como não humana. Portanto, a natureza concebida pela Geografia Física é o mundo das coisas inorgânicas, expressas numa linguagem geométrico-materialista. Ao mesmo tempo em que reflete a concepção mecanicista da natureza, tem por objetivo atender aos interesses do sistema de produção capitalista, subjugando a força de trabalho às diferentes formas de alienação e legitimando a apropriação privada dos meios de produção. Assim, os componentes da natureza física constituem uma cadeia lógica da sucessão causal, assumindo conteúdos da base territorial: a geologia como substrato do substrato; o clima como a alma da natureza; a bacia fluvial como artéria do corpo territorial; o solo como útero da terra, e o relevo como a própria base territorial (Moreira, 1991)96. O relevo, como componente do quadro natural, assume expressividade como base territorial, uma vez que se confunde com a base topográfica, considerado por De Martonne como o “palco do desenvolver da história”. A preocupação com o relevo nesse momento procura evidenciar o significado ideológico, tanto pelo caráter geopolítico historicamente assumido, como pela condição externalizada que o individualiza na abordagem positivista da teoria dos azares. O Significado Geopolítico do Relevo O conceito geopolítico do relevo, como base topográfica, já se constituía em preocupação há mais de 2.500 anos, quando Sun Tzu escreveu a Arte da Guerra. Um capítulo específico sobre o terreno compõe os treze artifícios tratados pelo autor, que os analisa como estratégia de guerra. Define seis tipos de terreno: o acessível, o complicado, o retardado, os desfiladeiros, os cumes escarpados e posições a grande distância dos inimigos. Com relação ao acessível, observa que pode ser livremente atravessado de qualquer lado. “Em terreno assim, derrota-se o inimigo pelo sol e protege-se cuidadosamente nossa linha de abastecimento. Então, está-se em condições de combater com vantagem”. O terreno complicado pode ser abandonado, mas é difícil de ser reocupado. “De uma posição dessas, se o inimigo estiver despreparado para a nossa chegada, podemos investir e derrotá-lo”. No terreno retardado, no sentido de chegada, é aconselhável não avançar e, sim, recuar, atraindo por sua vez o inimigo. Nos desfiladeiros “torna-se possível a investida se o inimigo estiver desguarnecido”. Quanto aos picos escarpados, “se precedermos nossos adversários, devemos ocupar os locais claros e altos e esperar que eles cheguem”. No tocante à posição a 96 Moreira, op. cit. P. 71.76. 39 grande distância do inimigo, “se as forças dos dois exércitos forem iguais, não será fácil provocar um combate. E lutar será desvantajoso”. Tzu97 atribui ao terreno importância fundamental na arte da guerra: “a formação natural da região é o melhor aliado do soldado”, observando, contudo que “às vezes, um exército fica exposto a calamidades não decorrentes de causas naturais, mas de erros pelos quais o general é responsável”. Conclui que “se você conhece o céu e a terra, pode torná-la completa”, referindo-se à vitória. Também com relação à importância bélica do relevo, Tricart (1957)98 ressalta o significado das pesquisas sobre os aplainamentos que dominaram as preocupações geomorfológicas durante as duas grandes guerras: implantação de aeroportos. Para Moreira (1991)99, o primado do relevo no processo de organização do espaço deuse ao cunho geopolítico, “fundamentado numa concepção teleológica da presença da natureza no mundo, cuja origem é a escola alemã, onde la Blache foi beber seus conhecimentos, via Durkhein”. Observa o autor que a origem e significado geopolítico do relevo podem ser conferidos no dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, que o caracteriza como “aquilo que sobressai por formar saliência sobre qualquer superfície relativamente plana”, ou “o conjunto das diferenças de nível da superfície terrestre”. A noção de acidente, implícita na primeira definição, relaciona-se à noção medieval de revanche da natureza; a segunda, noção equivocada, advinda da primeira, o relevo se caracteriza como “altimetria”, popularizado pelo ensino escolar, cujo propósito é o da utilização do relevo como critério de demarcação das fronteiras territoriais. Portanto, o relevo se define pelos critérios de acidentes e altimetrias, não passando de uma deformação matemática do fenômeno geomorfológico, “fruto da confusão que nos leva a fazer sobre a origem geopolítica da Geografia Física... “(Moreira, 1991)100. Observa o autor que a definição dos diferentes compartimentos (planalto, planície, depressão) e respectivas relações processuais (erosão, sedimentação) encontram-se subordinadas aos princípios mecanicistas unificados na lei da gravidade. A concepção mecanicista da natureza começa com a revolução copernicana (Séc. XVI) em detrimento do geocentrismo aristotélico-ptolomaico, oferecendo sustentação às ideias de Descartes (Séc. XVII) que separa o mundo do homem em res-extensa (o mundo dos corpos externos) e res-cogitans (o mundo interno do ser pensante). Com a descoberta da lei da gravidade por Newton (Séc. XVIII), o processo se completa “uma vez que a unidade matemática do mundo agora se explicita no conteúdo de uma lei única regendo todos os corpos do universo” (Moreira, 1991)101. Nasce nesse instante o 97 Tzu, Sun. A Arte da Guerra. S. Paulo: Record, 1983. Tricart, Jean. Mise en point: L’evolution des Versants. L’Information Geographique, Paris (21):108-115, 1957. 99 Moreira, Op. cit. p. 69 100 Moreira, op. cit, p. 69 ss. 101 Moreira, op. cit, p. 79 ss. 98 40 ‘mundo-máquina’ que substitui o ‘mundo-Deus’ da concepção medieval. “Nasce uma natureza que, por ser mensurável e quantitativa, podemos conhecer e controlar”. Nasce, portanto, uma nova dicotomia, onde a natureza é dessacralizada, excluindo assim o homem do mundo físico. Essa externalização tem por fim legitimar o processo de dominação da natureza pelo homem, ao mesmo tempo em que “o homem submete-se a esta lei externa aos corpos, pulverizandose também nessa individualidade radial das coisas do seu mundo” (Moreira, 1991). Externalizando a natureza, o homem, enquanto força de trabalho, também se externaliza do processo produtivo, ao mesmo tempo em que legitima a apropriação privada dos meios de produção, se constituindo a natureza em objeto da base econômica. O comprometimento da ciência moderna com o projeto histórico de construção técnica do capitalismo, responde pela transferência de um conhecimento ideologizado, fundamentado numa filosofia positivista, que tem por objetivo produzir a necessária alienação. É a fusão da física com a fábrica, considerada por Moreira (1991)102. Nos dois momentos anotados anteriormente, constata-se que o relevo apresenta a função de ‘palco’, cujas características, sobretudo geométricas (Descartes), resultantes de atividades gravitacionais (Newton), definem a estratégia apropriada ou proporcionam as condições indispensáveis à determinação das fronteiras territoriais, evidenciando o caráter geopolítico (Durkhein). Assim, ao mesmo tempo em que o relevo assume uma importância geopolítica, constitui-se também em objeto universal de trabalho, necessário ao processo de dominação. Reforça o argumento de legitimação do próprio direito de propriedade, tendo a guerra como forma de dominação territorial (direitos estatais sobre territórios) ou a “acidentes” geográficos como forma de demarcação desse domínio. Com a formulação positivista-evolucionista darwiniana na contestação do modelo mecanicista, o que se observou foi a simples mudança da estratégia ideológica capitalista. Na Geomorfologia, a influência do evolucionismo darwiniano aconteceu com Davis (1909, 1912), que atribui ao relevo uma evolução antropomórfica. Na segunda metade do Séc. XIX essa influência é marcada nos esquemas clássicos de erosão torrencial de A. Surell, nos estudos de morfologia glacial de J. L. Agassiz, no traçado dos rios de W.Jukes e no cálculo de arraste e sedimentação dos materiais de J. Powell & C. Dutton. O excesso metafísico, a discutível generalização do ciclo geomorfológico e a limitação temporal da geodinâmica, responsável pelo estado final do equilíbrio hidrológico, se constituíram nos pressupostos básicos da teoria davisiana, implicando uma concepção orgânica do relevo (modelo antropomórfico) e, ao mesmo tempo, um reducionismo epistemológico. O método dedutivo e a prática desligada do resto da Geografia são contestados pela corrente naturalista da escola alemã que se fundamenta no método indutivo e na sua conexão com a Geografia. 102 Moreira, op. cit. P. 87. 41 O Relevo no Âmbito da Teoria dos “Azares” Partindo do princípio de que o acaso, representado pela inércia absoluta, o artifício, que qualifica a quase totalidade das ações do homem, e a natureza, que designa um conjunto de atuações que transcende a inércia material, Rosset (1973), em sua abordagem ontológica, conhecida desde Platão e Aristóteles, define a natureza como instância alheia, tanto à arte (artifício) como ao acaso. Ao defender essa concepção naturalista, Rosset (1973) 103 procura estigmatizar o preconceito naturalista, afirmando que “é na natureza que o artifício retira sua força” e que “a única autonomia que se reconhece na arte, com relação à instância natural, é o poder de transgressão e degradação”. Apesar de lúcida, a concepção retomada pelo autor não deixa de “tricotomizar” as relações ontológicas, o que se constitui em importante argumento diante da lógica capitalista e, por conseguinte, subsídio fértil à pesquisa do azar natural. Tais considerações se aproximam dos argumentos dos defensores da Escola de Frankfurt, que se apropriam do conceito de dominação da natureza, unidimensional e livre de contradições, atribuindo à condição humana a responsabilidade pelos problemas ambientais. Portanto, está implícito o conceito de ‘revanche, como resposta da natureza aos efeitos do artifício. O acaso (a matéria), intrínseco às leis da natureza (lei da gravidade, relatividade generalizada), passa a se constituir em aliado da revanche, numa estreita relação de causalidade. Smith & O’Keefe (1980)104 definem os três principais caminhos da pesquisa dos azares, fundamentados na concepção positivista de natureza: o evento do azar como processo natural, a vulnerabilidade do homem frente aos eventos externos e a dissolução do homem na natureza externa. Em todas as posturas consideradas, a revanche prevalece; ou o artifício, também externalizado, se subjuga ao poder da natureza, que tem como interface o acaso. As linhagens relativas à pesquisa dos azares se manifestam da seguinte forma: Na primeira abordagem, assim como nas demais, o paradigma da Geografia Física “julga a natureza como totalmente separada da atividade humana”. No evento do azar, o resultado do processo é essencialmente natural (processos físicos internos), portanto, além do domínio do homem (artifício), sendo caracterizado como “ato de Deus”. Como exemplo geomorfológico pode-se considerar os deslizamentos de massa e as enchentes, dissociados de uma intervenção do homem. Existem possibilidades de tais episódios, em condições de biostasia, serem determinados exclusivamente pelas características intrínsecas aos compartimentos, associados a anomalias pluviométricas. Contudo, deve-se observar a maior possibilidade de tais eventos em condições resistásicas, ou seja, relacionados a intervenções antropogênicas, que vão desde as disritmias pluviométricas até instabilidades de vertentes 103 104 Rosset, op. cit. Smith, Neil & O’Keefe, Phil. Geography, Marx and the concept of Nature. Antipode V. 12, p. 30-39, 1980. 42 (cortes de taludes naturais) ou assoreamento de canais fluviais. Portanto, a ocupação de áreas de risco pode implicar desastres, vinculados a derivações produzidas pelo homem, mesmo que estes sejam alheios à sua vontade. A segunda abordagem dos azares naturais, da mesma forma que a anterior, sustenta a separação dos eventos naturais e sociais. “Entende a ocorrência dos desastres como uma interface entre uma população vulnerável e um evento externo” (Smith & O’Keefe, 1980)105. Aqui a vulnerabilidade ao desastre é vista como se a natureza fosse neutra, evidenciando que o meio é ‘azarado’ somente quando “intersecta-se com o povo” (Burton et alii, 1978)106. Tal conceito parece implícito na noção da trilogia ontológica comentada anteriormente, onde o acaso, pela condição e inércia que possui, constitui-se no elemento de neutralidade. Tal argumento difere do anterior ao se considerar o movimento de massa a partir da instabilidade de talude. Dependendo do poder aquisitivo de quem ocupa as áreas de risco, os efeitos são diferenciados: alternativas técnicas podem controlar os ditos azares naturais, o que caracteriza a extensão da dominação humana (artifício) sobre a natureza, supostamente externa. Contudo, a possibilidade de se romper o limiar de segurança poderá fazer com que o componente da neutralidade (acaso) implique revanche, subjugando-se às relações processuais da natureza. Normalmente as ocupações de áreas de risco são clandestinas ou consensuais, por pessoas desprovidas de recursos, o que multiplica exponencialmente os efeitos do desastre, considerando a precariedade das edificações. Com o desmatamento das vertentes, cortes de taludes e aterros para a ocupação, têm-se uma mudança substancial nas relações processuais, constatando-se além do domínio da componente paralela (escoamento) em detrimento da perpendicular (infiltração), a instabilidade dos depósitos de cobertura com consequente cisalhamento. A subordinação da população aos ditos azares naturais é argumento fundamentado na suposição da autonomia da natureza, explicação plausível e despolitizada para a compreensão dos efeitos dos desastres. A natureza passa a ser hostil principalmente com os desapropriados. A terceira abordagem dos azares equivale à “dissolução da natureza humana dentro da natureza externa”. Para os autores (Smith & O’Keefe, 1980)107 essa abordagem apresenta uma perspectiva virtualmente malthusiana, evidenciando que “o pobre é o mais afetado na maioria dos desastres”. Atribui-se a isto não somente à falta de recursos, mas especialmente pela tendência de o pobre contribuir significativamente com o aumento do índice de natalidade. A lógica malthusiana, ao considerar importante o controle populacional positivo, a seleção ‘natural’ passa a se constituir argumento de triagem. Para Malthus (1961) “(...) se quisermos agir corretamente, devemos facilitar a ação da natureza que produz a mortalidade, ao invés de 105 Smith & O’Keefe, op. cit, p. 36. Burton, I. Kate, R.W. & White, G.F. The Environmentas Hazard. N. York: Oxford University, 1978. 107 Smith & O’Keefe, op. cit, p. 37. 106 43 nos esforçarmos inútil e totalmente por impedi-la”108. Assim, a vulnerabilidade ao desastre’ é, conforme a própria abordagem malthusiana reconhece, uma relação de classe: “a natureza não produz num lado proprietários do dinheiro ou de mercadorias, e, no outro, homens que não possuem nada senão sua própria força de trabalho” (Marx,1967)109. Portanto, a apropriação diferencial da natureza propicia a vulnerabilidade dos despossuídos aos azares, onde “as vítimas devem ser socorridas depois do evento”. Ao mesmo tempo em que a natureza é externalizada, se constitui em recurso ideológico para justificar os “desastres” associados à ocupação diferencial do espaço. Atribui-se, portanto à natureza, a responsabilidade dos efeitos catastróficos a que fica susceptível a população que ocupa áreas de risco, legitimando o “natural” antagonismo de classes sociais e consequente acesso diferencial do espaço de morada. Menciona-se aqui, ainda, o argumento da natureza humana utilizado pelos defensores de uma natureza universal, preconizada no positivismo, como um dos mais lucrativos investimentos da ideologia burguesa. Mantém a externalização de uma natureza virtuosa em detrimento de uma natureza hostil, conceito superado pela negação da negação. 108 109 Malthus, op. cit. Marx, Karl. Capital. N. York: International Publishers, 1967, v. 1, p. 169. 44 CIÊNCIA COMO FORÇAS PRODUTIVAS “Negar o que se vê porque o que se vê não está de acordo com o que se pensa é tapar os olhos” Hubert Reeves Sob a lógica da externalização da natureza que nasce no iluminismo, apesar de dissimulada pela cientificação da técnica, constata-se a crescente apropriação intensiva e extensiva dos recursos, promovendo a acumulação ampliada dos problemas ambientais. O espontaneísmo de tais relações implica dilapidação das riquezas da natureza, culminando com o domínio hegemônico do capitalismo muito bem representado pelo fordismo. A lógica do fordismo, “mesmo infletida por preocupações ecológicas é implacável: mais vale trabalhar para consertar e fazer consumir o conserto do que se abster de poluir e deixar as pessoas respirarem gratuitamente o ar puro” (Lipietz, 1991)110. Contudo, o custo da despoluição acrescido à produção agrava a crise da oferta, produzindo o dilema imbecil: o emprego ou a ecologia, divisão que favorece o produtivismo liberal. “Na realidade, o produtivismo que, por imitação ou sob pressão da dívida, difundiu-se por todo o planeta, saturou nosso ecossistema e encurtou prodigiosamente o tempo disponível para adaptação aos desajustamentos que nós mesmos provocamos” (Lipietz, 1991)111. Com o fim do welfare-state uma nova estratégia de desenvolvimento é articulada pela hegemonia do capital, com o intuito de pacificar os conflitos de classe, restringindo as concessões do passado: esvaziar o poder econômico do Estado, que havia sido acumulado nas últimas décadas e reestruturar a ordem mundial a partir da extinção das fronteiras ideológicas. Praticamente em poucas décadas o novo liberalismo, iniciado na Inglaterra e nos Estados Unidos, triunfa em todos os organismos de consulta e de regulação econômica internacional (OCDE, FMI, Bird). Estende-se por todo o espaço geográfico, imposto pelo poder hegemônico do capital, permitindo o aparecimento do esboço de um verdadeiro modelo de desenvolvimento a partir dos anos 80 do século passado. O discurso do produtivismo liberal, em linhas gerais, procura livrar-se dos excessos praticados pelo Estado e Sindicatos (desenvolvimento das empresas. Como se sabe, os problemas com as grandes empresas legislação social, o Estado-providência, as normas antipoluição...) bem como o bloqueio ao livre começaram no final do século XIX nos Estados 110 111 Lipietz, Alain. Audácia: Uma Alternativa para o Século 21. S. Paulo: Nobel, 1991, p. 79. Lipietz, Op. cit, p. 81. 45 Unidos, com a lei anti-trust. “É somente com o advento do New Deal de Roosevelt e os contratos coletivos conquistados pelos sindicatos nos anos 30 é que o poder das grandes organizações parecia ter encontrado seus limites. Contornando as restrições impostas pela lei e procurando formas mais adequada de capitalização capaz de diminuir os ressentimentos da opinião pública e dos consumidores, surgiu em meados deste século a ‘democratização do capital’, que transformaria todos em acionistas-proprietários e, destarte, declarou-se a obsolescência da luta de classes”. (Rattner, 1995)112. A dispersão do capital e o controle de conglomerados gigantescos via holdings imprimiram uma nova dinâmica, em que algumas milhares de grandes organizações passaram a dominar mais da metade da produção e do comércio mundial. Com relação ao modelo em questão, Lipietz (1991)113 ironiza da seguinte forma: “deixemos de subvencionar os claudicantes, os serviços públicos burocratizados e ineficazes, imponhamos uma alta taxa de juros para dissuadir as atividades não-rentáveis. Assim, o livre jogo do mercado ditará automaticamente um novo modelo de desenvolvimento compatível com as novas tecnologias. Aliás, não são elas por essência ‘flexíveis’ por sua maleabilidade de utilização? Não é sua vocação satisfazer uma demanda diversificada, individualizada, impossível de ser enquadrada pelo Estado? . Não exigem elas, pela amplidão dos investimentos em jogo, uma extensão diretamente mundial e, por isso, ingerenciável pelos Estados, por maiores que sejam?” (Lipietz, 1991). Ao mesmo tempo em que o Estado dispõe do patrimônio acumulado nas últimas décadas do século XX, o que foi feito para atender os interesses hegemônicos internacionais, constata-se a concentração-centralização do capital, fundamentada em padrões transnacionais de organizações econômicas e sociais; o desenvolvimento dos meios de comunicação e o despertar da consciência sobre o destino comum da humanidade. Para Rattner (1996)114, “a atuação de conglomerados e empresas transnacionais não se limita às esferas econômico-financeiras apenas. Suas decisões de investir e desinvestir afetam em última análise, a prosperidade ou decadência das cidades e regiões, e o peso de seus recursos econômico-financeiros influencia na composição e no funcionamento da estrutura e das instituições públicas”. Como estratégia operacional tem-se o fim das reservas de mercado e a alteração no tratamento discriminatório do capital estrangeiro. As transformações dos meios de produção determinadas pelo fortalecimento das relações de produção e inovações tecnológicas, alteraram a relação valor-trabalho, implicando pacificação dos conflitos de classes, agravada com a síndrome do desemprego. Portanto, a 112 Rattner, Henrique. Globalização: Em direção a “um só mundo”?. Simp. Internacional “O Desafio do Desenvolvimento Sustentável e a Geografia Política. R. Janeiro: UFRJ, 1995, p. 43. 113 Lipietz, op. cit, p. 82. 114 Rattner, Henrique. A Globalização e a situação da Indústria e Tecnologia no Brasil. Teleconferência Engenheiro 2001. R. Janeiro, 1996. 46 revolução científico-tecnológica determina uma nova divisão internacional do trabalho, com forte reflexo social nas regiões em desenvolvimento, reformulando sutilmente as subjugações do passado. Com o fim do mundo bipolar renovam se os argumentos ideológicos sob o manto da globalização. Conceitos como soberania nacional, burguesia, proletariado, socialismo, revolução, reserva de mercado, além de outros, são banalizados e indexados em compêndios “jurássicos”. Uma nova forma de pensar é imposta pelo produtivismo liberal como estratégia de manutenção dos interesses da globalização social. Interesses como a remodelação do poder hegemônico a partir de novas bases materiais, sob o argumento da sustentabilidade ambiental, são alguns dos requisitos utilizados pelo produtivismo liberal, legitimado por mecanismos, como a Lei de Patentes Brasileira (Lei 9.279/96), decorrente do acordo Trips – Trade Related Aspects of Intelecltual Property Right. A estratégia da política de desenvolvimento sustentável afeita aos interesses do Banco Mundial evidencia nítida intenção de apropriação de novas bases econômicas em nome da defesa ambiental. Com relação à Amazônia Brasileira constata-se, nos últimos anos, um interesse especial dissimulado pelo propalado efeito-estufa. Um verdadeiro paradoxo entre as práticas do passado, adotadas pelo Banco Mundial com relação à região Amazônica (caso do Polonoroeste na década de 70) em vista da política de desenvolvimento sustentado (A Partnership of Environmental Progress). Ao mesmo tempo em que financia projetos de preservação para a Amazônia Brasileira, estimula a ocupação do Cerrado. Essa mudança de estratégia precisa ser analisada no contexto da revalorização do capital, considerando a necessária busca de alternativas para uma tendência decrescente das bases materiais convencionais, fundamentadas nos recursos inorgânicos não-renováveis. Como se sabe, a Amazônia se caracteriza pela valiosa extensão de biodiversidade remanescente, constituindo importante banco genético estratégico, capaz de permitir a longevidade esperada pelo sistema a partir de novas bases tecnológicas. Tal fato justifica a verdadeira revolução científico-tecnológica em transição, cujo centro das atenções fundamenta-se na biotecnologia e na engenharia genética, hoje em franco desenvolvimento na farmacologia, agricultura e alimentação – a biodiversidade como base econômica orgânica renovável (Casseti, 1995)115. Embora o estágio atual de desenvolvimento parece se caracterizar pela inovação, fundamenta-se na lógica da repetição como forma de organização e controle do processo produzido frente às diferentes relações de classe. Necessário se faz observar que as repetições nunca se dão nas mesmas condições. “Nossa ordem econômica é repetitiva para 115 Casseti, Valter. A Ideologia da Modernidade e o Meio Ambiente. Bol.Goiano de Geografia, Goiânia, 15(1):3031, jan/dez, 1995. 47 que a produção e a competição possam interagir: o mercado possa organizar a produção e a produção regular-se pelo fundamento da ordem econômico-social capitalista” (Moreira, 1993)116. É nesse contexto das contradições e repetições que se busca um novo paradigma. Até os anos 80 o problema da crise paradigmática foi atribuído às questões ambientais, reforçado pelo desencantamento do ‘socialismo real’, levando os intelectuais a deslocarem suas ações para o campo da denúncia ecológica. O capitalismo apropria-se dessa temática e em nome da preservação ambiental busca alternativas para uma nova base material, até então concebida pelo campo físico-mecânico, para o campo aberto da biologia. Se a princípio parecia uma contestação ao padrão, “a redescoberta da diversidade aparece não mais como uma reinvenção da repetição para sob outras formas realizar os mesmos fins de padronização e acumulação capitalista” (Moreira, op.Cit). Conclui o autor que o ponto de partida da recriação da base material do capitalismo é o deslocamento do paradigma técnico-científico, dos velhos conceitos físico-mecânicos para os novos conceitos de repetição e diversidade, advindos do universo da Biologia, com o fito de reinventar a relação técnica do trabalho. Portanto, o novo modelo de desenvolvimento, compatível com as novas tecnologias, implica nova divisão territorial do trabalho: redução da força de trabalho com consequente exigência de especialização motivada pelas inovações tecnológicas. Esse fato responde pelo enfraquecimento das organizações sindicais que passam a adotar uma política de resultados como forma de manutenção do emprego. Chega-se ao ridículo dilema entre “ou emprego ou os problemas ambientais”; “ou o emprego ou a política salarial”; “ou o emprego ou a manutenção das conquistas trabalhistas obtidas no welfare-state”... Em síntese tem-se a implementação dos objetivos estabelecidos no produtivismo liberal, orquestrado pela superestrutura ideológica. O poder executivo torna-se absolutista, impondo através de atos ditos provisórios, respaldados pelas relações jurídico-políticas, medidas privatizantes dos bens públicos, determinados, em última análise, pela hegemonia do capital e seus organismos de regulação econômica internacional. Conforme Rattner (1995)117, os agentes mais dinâmicos da globalização não são os governos nem os representantes parlamentares dos países que formaram mercados comuns à procura de integração econômica. “As forças mais ativas e poderosas no processo de globalização são os conglomerados e as empresas transnacionais que dominam e controlam efetivamente a maior parte da produção, do comércio, da tecnologia e das finanças internacionais”. Se por um lado é praticamente impossível retornar ao passado, considerando, sobretudo os avanços científicos, tecnológicos e informacionais obtidos nos últimos anos, por outro, “a irracionalidade do sistema de competição selvagem aniquila os indivíduos e o 116 117 Moreira, Ruy. O Círculo e a Espiral. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1990.p. 125. Rattner, op. cit, p. 41-42. 48 convívio social” (Rattner, op. Cit), parecendo não oferecer qualquer perspectiva histórica à tendência teleológica de um destino comum da humanidade. O argumento teleológico de “fim comum da humanidade” sugere um futuro sombrio, unidimensional e isento de contradições, o que se caracteriza como mais uma categoria ideológica da subjugação, legitimando o modelo em desenvolvimento como única alternativa. Essa perspectiva leva Rattner (1995)118 a questionar se “entre o paroquialismo local primitivo e a acumulação poderosa em escala global não existiriam outros valores capazes de mobilizar e motivar os membros da sociedade - elites e massas - para humanizar as condições de existência para todos e, assim, restaurar a dignidade e o sentido da vida, da superação do antagonismo entre cooperação e competição; entre o nacionalismo e o capitalismo, instituições que garantam e ameaçam ao mesmo tempo, a sobrevivência da espécie humana?”. Como resposta é preciso compreender que “o mundo de hoje não é mais que um momento ao longo do desenvolvimento histórico” (Sartre, 1980)119, o que sugere um futuro determinado pelos eventos e forças políticas baseadas numa função econômica e social. Um futuro fundamentado na contradição dialética, que implica superação de toda e qualquer perspectiva mecanicista, ou até mesmo idealista, como estratégia de dominação. Com base em tal possibilidade é que se entende oportuna a ideia de se pensar o mundo de forma diferente da herança promovida pelo racionalismo iluminista. Insiste-se no argumento de que o processo de desenvolvimento da humanidade, fundamentado numa perspectiva externalizada da natureza, sobretudo a partir do século XVII, respondeu pela apropriação privada dos meios de produção, pelo antagonismo de classes e pelo uso espontaneísta dos recursos da natureza, implicando degradação ambiental. Se a legitimação da apropriação privada fundamentou-se na externalização da natureza, nada mais evidente que rediscutir o conceito de natureza numa perspectiva dialética - natureza e sociedade - o que leva, até por princípio, à retomada do conceito de “dialética da natureza” na visão engelsiana. 118 119 Rattner, op. cit, p. 47. Entrevista ao jornal Le Nouvel Observateur de Paris em 1980. 49 PARTE II A DIALÉTICA DA NATUREZA “Para a dialética, não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado...”. Engels (LF) 50 A REFLEXÃO DIALÉTICA A vida é uma flutuação da matéria, no interior dessa flutuação, você tem outras flutuações. Ilya Prigogine Para Engels (1976)120, “muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava dialeticamente, da mesma forma que antes da existência da palavra escrita, ele já falava”. Portanto, G.W. Hegel (1770-1831), nada mais fez que formular ou sistematizar nitidamente pela primeira vez o entendimento da dialética, que adquire sua forma plena através das obras de Karl Marx e Friedrich Engels. Hegel121 parte do princípio de que o desenvolvimento histórico é o desenvolvimento do pensamento, o desenvolvimento da ideia absoluta, e não uma coleção de fatos casuais. Ao indicar o caminho para a busca de solução para o desenvolvimento em curso, não deixou de considerar o conceito metafísico de espírito absoluto. Sua tese principal dessa lógica era o princípio dialético que estabelece que “toda premissa verdadeira tem como correspondente sua não menos verdadeira, a negação (...) A natureza é assim também, alienação do conceito ou da razão, no sentido em que nela o conceito está como simples essência, e a razão como simples entendimento; quer dizer, sob a forma de negação de si. A natureza é, por essa negatividade dialética, o processo da contradição de si. Contradição essa que não pode ser resolvida na natureza como natureza, já que o próprio da natureza é ser essa contradição; só pode ser resolvido na negação da natureza”]122.Hegel, embora entenda a natureza como processo contraditório, coloca a ideia do conceito como espírito, numa perspectiva idealista. A maioria dos princípios da dialética foi apresentada por Hegel, se constituindo em uma série de regras metodológicas: o tratamento do todo como unidade dos contrários; a relação mútua dos elementos de um mesmo todo e de diferentes todos; a aceitação das contradições internas de um todo como fonte do movimento autodinâmico; a consideração do movimento e o desenvolvimento como processo não contínuo, nas quais as mudanças quantitativas produzem novas qualidades (Topolski, 1973)123. 120 Engels, Friedrich. Anti-Düring, p. 121. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: 1830. I A Ciência da Lógica. S. Paulo: Loyola, 1995. 122 B. Bourgeois. Apresentação na edição francesa da obra de G.W.F. Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas. I-A Ciência da Lógica, reproduzida sob a forma de apêndice na edição brasileira, p. 421-422. 123 Topolski, Jerzy. Metodologia de la História. Madrid: Cátedra, 1985, 519 p. 121 51 Como se mencionou anteriormente foram Marx e Engels que transformaram a dialética idealista de Hegel em dialética materialista. Para Hegel, o universo é a ideia materializada, e, antes do universo existe primeiramente o espírito, subordinando assim a dialética ao idealismo. “Deste modo a própria dialética dos conceitos se converteu simplesmente no reflexo consciente do movimento dialético do mundo real, e assim a dialética de Hegel se situou em sua cabeça; ou melhor, desviou da cabeça sobre a qual se apoiava e se colocou sobre seus pés” (Engels, 1949)124. Ao propor uma concepção materialista à dialética idealista hegeliana, Marx e Engels necessitaram também rever o ponto de vista epistemológico do materialismo mecanicista, que na realidade era mais primitivo que o idealismo dialético, uma vez que interpretava o mundo de forma passiva, sem assumir o papel ativo da matéria cognoscitiva. Ao criticar o materialismo de Feuerbach, Marx (1949)125 escreveu que “o principal defeito de todo materialismo existente até agora – inclusive o de Feuerbach – é que a realidade, sensualidade, só é concebida em forma de objeto ou de contemplação, porém, não como atividade sensível humana, não subjetivamente. Assim ocorria que o lado ativo, em contraposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – porém só de forma abstrata, pois que, desde logo, o idealismo não conhece a atividade real, sensível como tal”. Para Engels, não se podia aceitar essa percepção do mundo como algo ossificado, imutável, ou como sistema imóvel de corpos em movimento (DN). Repudia-se então qualquer versão teleológica para a explicação da realidade objetiva, evidenciando as duas grandes características do mecanicismo: o antifinalismo e o determinismo. O antifinalismo deve ser abandonado por ser inútil e destituído de sentido; quanto ao determinismo observa-se que Engels não o nega porque conscientemente não o pretende negar; nega sim a forma linear e unidimensional de entender a causalidade. Assim, o materialismo dialético, ao unir integralmente o materialismo com a dialética, uniu em um mesmo sistema a tese sobre a realidade material, como objeto do conhecimento. A tese sobre o papel da realidade material cognoscitiva “configura” o objeto de conhecimento no curso do processo cognoscitivo (Topolski, 1973)126. Para ilustrar o processo em questão recorre-se à concepção sistêmica apresentada por Mao Tsé-Tung, Sobre a Prática, resgatado por Oliveira (1985)127, onde esquematicamente demonstra que enquanto para o idealismo o conhecimento é elaborado pelo pensamento (o que explica o artifício obscurantista), no materialismo dialético a prática é que condiciona o pensamento, o qual elabora o conhecimento. 124 Engels, Friedrich. Selected Works V. II, 1949, p. 350. Marx, Karl. Selected Works, V.II, 1949, p. 352. 126 Topolski, op. Cit, p. 164. 127 Oliveira,Ariovaldo Umbelino. “Na prática a teoria é outra... in Seleção de Textos – Teoria e Método n. 11, AGB, S. Paulo, ago 1985. 125 52 Elabora Pensamento Condiciona Conhecimento Informa IDEALISMO Prática Elabora Pensamento Dirige Conhecimento Informa MATERIALISMO DIALÉTICO Para o materialismo dialético o conhecimento é um processo permeado por contradições constantes entre o sujeito e o objeto, contradições que são a fonte do desenvolvimento do processo cognitivo. Portanto, o conhecimento da realidade objetiva em um dado momento é um estímulo para empreender uma atividade cognoscitiva, se constituindo, por conseguinte, em critério sobre a validade dos atos de conhecimentos anteriores. Tal fato demonstra a inexistência das verdades absolutas, decretando o fim das certezas. Para Topolski (1973)128, a ideia dialética da superação das contradições, como fonte de movimento e desenvolvimento tem permitido, no nível ontológico, “mudar totalmente o modelo de explicação da história como resultado de uma nova interpretação dos fatos passados e assim explicar o enígma do desenvolvimento”. No nível epistemológico tem permitido “evitar os erros do inducionismo mecanicista e do deducionismo à priori, preparando assim o caminho para uma aproximação integral que combine a indução com a dedução”. Como consequência o nível prático é marcado pela ação transformadora do homem na reprodução das forças sociais. Também o materialismo dialético tem estabelecido laços entre as relações entre natureza e sociedade o que pode ser buscado em Engels (1976) quando das críticas a Dühring: uma visão uniforme do desenvolvimento da natureza e da sociedade ao longo do processo histórico. “Quando submetemos ao exame do pensamento, a natureza ou a história da humanidade, ou a nossa própria atividade mental, o que nos oferece, em primeiro lugar, é o quadro de uma confusão infinita de relações, de ações e reações, onde nada permanece o que era, onde era, como era, onde tudo se move, se transforma, vem a ser e passa”129. Portanto, o que se vê na natureza, na história, no pensamento, é a mudança e o movimento. 128 129 Topolski, Op. Cit, p. 164. Engels, Friedrich. Anti-Dühring. R. Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 52. 53 A Relação Natureza e Sociedade na Dialética Materialista A relação entre natureza e sociedade em Marx e Engels fundamenta-se no princípio materialista dialético, onde os homens aparecem como resultado material do processo evolutivo da natureza. Quanto mais se afastam dos animais, mais se afastam da natureza, sem, contudo se “desnaturalizarem”, por ser esta a base de sustentação de suas necessidades. Portanto, existe uma permanente contradição que se materializa em realidade objetiva ao longo do processo histórico. Engels (1979)130, no prefácio de sua obra Dialética da Natureza, apresenta importante retrospecto da moderna investigação da natureza, que sem dúvida teria fundamentado o seu trabalho. Ao demonstrar através da ciência a vinculação do homem com a natureza, reportase ao desenvolvimento da Química, a partir de Lavoisier e Dalton, quando a Física, até meados do Século XVIII, assumia domínio absoluto com relação às concepções sobre a natureza. A Química transpõe em grande parte o abismo que existia entre a natureza orgânica e inorgânica, proporcionando com isso os sensíveis avanços da investigação biológica através do método comparativo. Observa Engels131 o importante papel desempenhado pela Geografia Física no estudo comparativo entre as condições de vida “das diferentes floras e faunas”. “A nova concepção de Natureza ficava assim configurada em suas linhas gerais: tudo aquilo que se considerava rígido havia se tornado flexível; tudo quanto era fixo foi posto em movimento; tudo quanto era tido por eterno tornou-se transitório; ficara comprovado que toda a Natureza se movia num eterno fluxo e permanente circulação” (Engels, 1979)132. Recupera, portanto, as concepções dos grandes fundadores da filosofia grega: “em toda Natureza, desde o menor ao maior, do grão de areia aos sóis; dos protistas ao homem, há um eterno vir a ser e desaparecer, numa corrente incessante, num incansável movimento de transformação”. Após ter se tornado diferente do “mono”, desenvolvido a linguagem articulada e obtido a formidável expansão do cérebro, o homem imprime seu “selo” sobre a natureza, “não só transladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de seu lugar de habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado grau que as consequências de sua atividade só poderão desaparecer com a morte da esfera terrestre” (Engels, 1979)133. Continuando, Engels (1979)134 evidencia que, “com o homem entramos na história (...) quanto mais se afastam do animal, entendido limitadamente, tanto mais fazem eles próprios sua 130 Engels, F. Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Engels, DN, p. 22. 132 Engels, DN, p. 23. 133 Engels, DN, p. 23. 134 Engels, DN, p. 26. 131 54 história, correspondendo, cada vez com maior exatidão, o resultado histórico aos objetivos previamente estabelecidos”. A relação dialética entre o homem e a natureza é tratada também por Marx e Engels (1991)135 em vários momentos, como ao contestarem Bruno136 ao considerar “as oposições entre natureza e história (...) como se as duas ‘coisas’ fossem separadas uma da outra; como se o homem não se encontrasse sempre em face de uma natureza histórica e de uma natureza natural”. Essa relação dialética é expressa ainda da seguinte forma (Marx e Engels, 1991)137: “A relação limitada dos homens com a natureza condiciona a relação limitada dos homens entre si, e a relação limitada dos homens entre si condiciona a relação limitada dos homens com a natureza”. Esse fato leva Marx e Engels a entenderem a existência de uma única ciência: “a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente (...)”. Mais à frente observam que “toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de sua modificação no curso da história pela ação dos homens”. Para Moreira (1994)138 o homem se vincula à natureza por ser esta vital, “e se a vida é o elo que liga o homem à natureza, é impossível dissociar a história da vida do homem da história da natureza”. Conforme Engels (1976)139, “o que é certo na natureza (...) é certo do mesmo modo na história da sociedade em todos seus ramos (...) A história do desenvolvimento da humanidade demonstra ser essencialmente diferente da história da natureza. Na natureza – na medida em que ignoramos a reação do homem sobre a natureza – só há agentes cegos, inconsistentes, atuando um sobre o outro, com uma lei geral que opera fora de sua interação. Nada de tudo que ocorre – seja nos inumeráveis acidentes aparentes que podemos observar na superfície ou nos resultados finais que confirmam a regularidade inerente a estes acidentes – ocorre como um objetivo desejado conscientemente. Na história da sociedade, pelo contrário, os atores estão todos dotados de consciência; são homens que atuam com deliberação ou com paixão, trabalhando para conseguir metas definidas; nada ocorre sem um propósito consciente, sem um objetivo projetado. Porém esta distinção, sendo importante para a investigação histórica, particularmente sobre fatos e épocas particulares, não pode alterar o fato de que o curso da história está governado por leis internas gerais”. Embora a natureza 135 Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. S. Paulo: Hucitec, 1991. P. 68. Bauer, Bruno. Charakteristik Ludwing Feuerbachs, p. 110. 137 Marx & Engels, IA, p. 44. 138 Moreira, Op. Cit, p. 574. 139 Engels, AD, p. 17 ss. 136 55 apresente uma dinâmica regida por processos próprios, ela é produzida socialmente, considerando os interesses do sistema vigente. Como observou Engels (1981)140 “os homens fazem a sua história, seja qual for o caminho que tome, perseguindo cada um os seus próprios fins, conscientemente desejados, e são, precisamente, os resultados dessas numerosas vontades, atuando em sentidos diferentes, e as suas variadas repercussões sobre o mundo exterior que constituem a história. Trata-se, também por conseguinte, do que querem os numerosos indivíduos, tomados isoladamente. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão... Mas, as alavancas que, por sua vez, determinam diretamente a paixão ou reflexão, são de natureza muito diversa... Ainda pode perguntar-se quais as causas históricas que, nos cérebros dos homens que agem, se transformam nesses motivos”. De acordo com os princípios da dialética, a história da sociedade é considerada, em última instância, como a história da natureza. Com relação à ideia, Topolski (1973)141 considera que os métodos de estudar a história da sociedade não necessitam diferir essencialmente dos que se utilizam para estudar a natureza, evidenciando os ensinamentos de Marx (1955)142 de que “no futuro, a ciência natural absorverá a ciência humana do mesmo modo que a ciência humana absorverá a ciência natural: se converterão em uma só disciplina”. As obras dos fundadores do materialismo dialético mostram que o que é novo na teoria e no método da dialética é a solução do problema do movimento e desenvolvimento. Isto significa que o princípio do autodinamismo, que diz que o movimento e o desenvolvimento têm lugar através das contradições, e o princípio do holismo saltam ao primeiro plano (Lenin, 1958)143. Os princípios do autodinamismo e do holismo, estreitamente relacionados, mostram que “o todo” se move e desenvolve como resultado de contradições internas, partindo do princípio de que “o todo” contém “partes” contraditórias (subsistemas, elementos), que se condicionam reciprocamente à existência. Tais contradições causam o movimento e o desenvolvimento, processo esse considerado como unidade dos contrários. Para Topolski (1973)144, os princípios do autodinamismo e do holismo dão lugar diretamente a outro princípio, que no curso do movimento e desenvolvimento as mudanças quantitativas produzem mudanças qualitativas, ou seja, a origem de novas qualidades. “Se aceitamos o autodesenvolvimento como princípio, assumimos que os fenômenos nascem, tomam forma e se desvanecem; portanto, assumimos que em certo momento um fenômeno que toma forma 140 Engels, Friedrich. Ludwig Feuerbach et la Fin de la Philosophie Classique Allemande. Paris: Éd. Sociales, 1946, p. 38-39. 141 Topolski, op. Cit. 142 Marx, Karl. Kleine ökonomische Scriften. Berlin, 1955, p. 38. 143 Lenin, Vladimir I. Filosofkie tetradi. Moscú: Socinenya, 1958, V. 38. 144 Topolski, op. Cit, p. 161. 56 alcança um estado em que é totalmente formado e aparece como uma nova qualidade”. Essa nova qualidade pode ser a negação da qualidade anterior e a negação dessa nova qualidade pode conter, de algum modo, a qualidade anterior. As Leis da Dialética As leis da dialética fundamentam-se no princípio da contradição da matéria, discutida por Engels (1976) 145 ao refutar Dühring, apresentando a primeira e mais importante das teses sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser: a “exclusão da contradição”. “Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma contradição”. Continuando, constata que “a vida não é, pois, por si mesma mais que uma contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que se está produzindo e resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e sobrevém a morte”. Necessário se faz observar aqui que a vida implica todos os níveis da realidade, o que leva a admitir que a morte (indizível na concepção de Bobbio, 1997) 146 , nada mais é que um estágio da transformação (recorrendo ao princípio materialista lavoisieriano). Essa observação fica implícita um pouco mais à frente, na obra de Engels (1976)147, quando refere-se à negação da negação: a vida como negação da morte e vice-versa. Ou ainda com relação a vida e a morte, quando Politzer (1986)148 demonstra que “as coisas não só se transformam uma nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela própria, mas outra que é a sua contrária, porque cada coisa contém a sua contrária”. As reflexões apresentadas constituem as três grandes leis da dialética desenvolvidas por Hegel, à sua maneira idealista, que para ele eram puras leis do pensamento. Com a apropriação materialista das leis da dialética, foi possível a compreensão da unidade do real. São as seguintes: 1. lei da passagem de quantidade à qualidade; 2. lei da interpenetração dos contrários; 3. lei da negação da negação. A primeira lei estabelece mudança proclamando que o transitório se estende a tudo o que existe por tudo estar sujeito ao processo ininterrupto do vir a ser (Engels, 1949)149. Em 145 Engels, AD p. 102 e109. Bobbio, Norberto. O tempo da Memória. R. Janeiro: Campus, p. 38. 147 Engels, AD, p. 116 e 153. 148 Politzer, Georges, Princípios Elementares de Filosofia. S. Paulo: Moraes, 1986, p. 150. 149 Engels, LF, p. 35. 146 57 Dialética da Natureza, Engels assim se expressa com relação a esta lei: “nós podemos, no quadro do nosso objetivo, exprimir esta lei dizendo que na natureza, de uma maneira claramente determinada para cada caso particular, as transformações qualitativas só podem ter lugar por adição ou subtração quantitativas de matéria ou de movimento (a chamada energia)”. Tais transformações podem ser exemplificadas tanto nas leis da natureza como da sociedade: a adição de umidade absoluta para uma determinada temperatura ou a redução da temperatura para uma determinada umidade absoluta (quantidade) podem responder pela saturação e consequente precipitação pluviométrica (qualidade); a ação prolongada de deficiência hídrica e grande amplitude térmica (quantidade), como nos climas semiáridos, implica desagregação mecânica com consequente recuo paralelo das vertentes (modelado de relevo), com tendência à pediplanação (qualidade); o desmatamento progressivo de determinada área (quantidade) implica alteração ambiental (qualidade); ou ainda, a concentração de edificações em determinado espaço (quantidade) responde pelo processo de urbanização e suas consequências, como derivações ambientais, conforto térmico, fluxo concentrado de veículos... (qualidade de vida). Portanto, a evolução das coisas não pode ser indefinidamente quantitativa; transformando-se sofrem uma mudança qualitativa. Embora toda transformação qualitativa represente saltos na história (o que a referida lei denomina também de “progresso por saltos”), na realidade resulta da adição ou subtração de elementos quantitativos do movimento da matéria. Engels150, ao criticar Dühring, observa que a quantidade como elemento de transformação em qualidade expressa por Marx 151 (com relação à “mais-valia”), não se refere necessariamente a uma “quantidade aumentada” qualquer, “quando na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário”. Branco (1989)152, ao tratar da segunda lei da dialética refere-se à importância da ação recíproca no encadeamento dos processos, ressaltando a inexistência de fenômenos absolutamente isolados na natureza. “Nisto se fundamenta a unidade das ciências como corolário da unidade estrutural dos fenômenos naturais”. Em Geomorfologia percebe-se claramente a interpenetração dos contrários: utilizando como exemplo as implicações climáticas na elaboração do relevo: nos climas secos a desagregação mecânica, num tempo geológico prolongado, tende a elaborar extensos pediplanos (horizontalização dos modelados), ao passo que no clima úmido, com a reorganização da drenagem fluvial, a incisão dos talvegues responderá pela dissecação do relevo (verticalização dos modelados). O resultado pode ser observado na natureza através da associação de formas, com clara tendência de destruição das produzidas em condições preexistentes, sabendo que a mudança 150 Engels, AD, p. 106. Karl Marx. O Capital I 152 Branco, João Maria de Freitas. Dialéctica, Ciência e Natureza. Lisboa: Caminho, 1989, p. 92. 151 58 climática futura implicará destruição gradativa das formas atuais, sobretudo se comandada por processos morfogenéticos opostos. Com relação à questão socioeconômica, Politzer (1986)153 dá como exemplo o proletariado que se contrapõe ao capitalismo, sabendo ser este fruto do próprio sistema econômico que leva à divisão da sociedade em classes. Finalmente, a terceira lei refere-se à importância da contradição existente das coisas, que constantemente se apresenta e se resolve na generalidade dos fenômenos da natureza e da vida (Engels, 1976)154. Continuando o exemplo do relevo, determinada forma “nega” a outra, em função das novas relações processuais, sem, contudo destruir por completo a “forma negada”, ou seja, a nova forma contém parte de forma antiga. Na história, Politzer (1986)155 lembra que o feudalismo foi a negação do escravagismo e o capitalismo a negação do feudalismo (negação da negação), contudo, alguns aspectos, mesmo que de natureza arquitetônica, permanecem ou continuam incorporando a paisagem. “Para resumir, e como conclusão teórica, as coisas mudam, porque encerram uma contradição interna (elas próprias e as suas contrárias); as contrárias estão em conflito, e as mudanças nascem desses conflitos; assim a mudança é a ‘solução’ do conflito”. Politzer (1989)156 trata da mudança e da ação recíproca como primeira e segunda leis da dialética, considerando-as pré-requisitos para a compreensão das leis da contradição. Na lei do movimento dialético é mostrada a importância do processo como fator de transformação, resgatando o autodinamismo como essência. Engels (LF), ao refutar o mecanismo teleológico, evidencia que “para a dialética não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado...”. A ação recíproca é tratada na perspectiva do encadeamento de processos, onde tudo influi sobre tudo, o que rechaça todo e qualquer argumento metafísico. Em síntese, o conceito de contradição é a chave para a compreensão da unidade do real, bem como do movimento. Tal fato remete à necessidade de se rever o conceito de “equilíbrio”, que para os ecologistas ortodoxos seria representado com a manutenção das relações processuais em sua essência. Tragtenberg (1982)157 desperta para a necessidade de se compreender que não há equilíbrio natural, uma vez que todos os elementos da natureza foram reciclados pelo trabalho. É necessário situar que cada modo de produção assenta-se numa forma de equilibração. Da mesma maneira que a ação humana destrói um equilíbrio, ela cria novas formas de equilíbrio. Portanto, é necessário compreender que a relação homem e natureza é histórica e que “cada novo equilíbrio resulta da organização das contradições sociais internas, inerentes aos modos de produção fundantes de estruturas de classes”. 153 Politizer, op. Cit., p. 151-152.. Engels, AD p. 111 ss. 155 Politizer, Op. Cit, p. 160. 156 Politzer, op. Cit, p. 129-144. 157 Tragtenberg, N. Ecologia e Desenvolvimeno. S. Paulo: Cortez, 1982. 154 59 Mesmo com a degradação ambiental, novos equilíbrios podem ser produzidos, acrescentando-se aqui alguns exemplos de degradação assistidas na atualidade, que implicam ação de processos que, embora entendidos como destrutivos, podem corresponder à recuperação de um novo equilíbrio. Em ambiente antropo-resistásico158 constata-se com frequência problemas erosivos de grande intensidade, decorrentes do desmatamento ou ocupação de áreas de risco, como encostas ou áreas de alta susceptibilidade erosiva. O desenvolvimento de processos erosivos, que normalmente culminam em boçorocamentos ou deslizamentos de massa, indica reação às rupturas de equilíbrio pré-atuais, que tem por objetivo buscar um novo equilíbrio, determinado pelas novas condições impostas pela ação do homem. Esse novo equilíbrio tende a ser alterado por novas intervenções com respostas processuais que novamente alteram a configuração apresentada. Neste exemplo ficam contempladas as três leis da dialética onde a intensidade pluviométrica em condições resistásicas implica mudanças na paisagem (passagem da quantidade em qualidade), buscando o “equilíbrio” resultante de novos processos, sem deixar de manter formas pré-atuais (a interpenetração dos contrários). Uma nova mudança tende a “negar” a situação anterior, que havia alterado a antecedente (negação da negação). O referido estágio apresenta estreita analogia com a teoria do “atualismo” de Hutton (1797), em que “o presente é a chave do passado”, partindo do princípio de que conhecendo as relações processuais evidenciadas nos diferentes ambientes, torna-se possível entender as condições, como as climáticas, em que foram originados determinados depósitos correlativos, preservados na morfologia atual. Com o advento de novas relações processuais, a configuração atual será alterada, deixando marcas que denunciam a sua existência ao longo do tempo. Os Processos Evidenciados na Natureza e na Sociedade Partindo do princípio engelsiano de que “a história do desenvolvimento da humanidade demonstra ser essencialmente diferente da história do desenvolvimento da natureza”, torna-se plausível admitir a existência de processos ou leis distintas que explicam o estágio de desenvolvimento da realidade objetiva. O conceito de estágio aqui empregado refere-se ao instante que ‘não é mais do que um momento no longo desenvolvimento histórico’, seja da natureza, seja da sociedade. Caso não tratadas como processos distintos, implicariam um modo de pensar positivista. Uma primeira diferença reside na própria escala do tempo: enquanto na natureza as transformações resultantes das relações processuais são 158 Conceito proposto por Erhart (1956) para designar a retirada da cobertura vegetal preexistente, permitindo a ação direta dos processos morfogenéticos sobre o solo. Embora utilizado como modificação comandada por mecanismos naturais, tem sido adotado para alterações de natureza antropogênica. 60 evidenciadas numa escala de tempo geológico, as transformações na sociedade são praticamente instantâneas, numa escala de tempo histórico, principalmente a partir das grandes revoluções científico-tecnológicas. Esse descompasso normalmente promove um evidente retardo nas reações da natureza, considerando a diferença temporal entre a velocidade das transformações produzidas pelo homem, o que seria justificado pelo tempo necessário para a incorporação desses novos atributos nas ditas relações processuais e os ajustamentos ou respostas promovidas pela natureza (regularidades diacrônicas)159. Diante disso, ao mesmo tempo em que as transformações produzidas pela sociedade aparentemente não afetam as relações processuais da natureza, constata-se, com frequência, a presença de determinados espasmos ou episódios entendidos como essencialmente naturais, em parte não contestados em função das limitações dos conhecimentos científicos. Tal relação pode ser exemplificada de diferentes formas, como os efeitos na destruição da denominada “camada de ozônio”, pela emissão dos clorofluorcarbonos cuja constatação se deu principalmente a partir da década de 80, embora os referidos gases têm sido lançados na atmosfera desde a década de 30; ou ainda, numa relação temporal mais próxima, a ocupação de encostas, desmatamentos e cortes de taludes, que podem desencadear deslizamentos de massa alguns anos depois das derivações antropogênicas, uma vez que dependerá das condições apropriadas para o cisalhamento em questão. Também os componentes dos processos evidenciados na natureza e na sociedade devem ser conhecidos independentemente, mesmo considerando a dialeticidade entre ambas, evidenciada por interações e contradições que resultam mudanças, sobretudo de qualidade. Os Processos Naturais Com o intuito de se demonstrar o significado das leis da dialética nos processos da natureza, fundamentadas nos princípios da mudança, da ação recíproca, da contradição e da transformação, utilizar-se-á da sistematização apresentada por S.V. Kalesnick, denominada de leis da landschaft-esfera. Kalesnick (1958)160, ao procurar definir o objeto da Geografia como o estudo da Landschaft-esfera, apresenta as “leis” características da sua existência e evolução, assim enumeradas: da integridade da Landschaft-esfera, dos processos circulares da matéria, dos fenômenos rítmicos, da zonalidade e da continuidade da evolução. 1. Com relação à integridade da Landschaft-esfera, o autor observa que os componentes da natureza estão sujeitos às suas próprias leis. Como exemplo, “as 159 Regularidades diacrônicas referem-se ao espaço de tempo necessário para que chegue um estímulo de um elemento ou sistema, provocando uma resposta a outro elemento ou sistema. 160 Kalesnick, S.V. La Géographie Physique comme Science e les lois Géographiques Génerales de la Terre. Na. Géographie, Paris, 67 (363):385-403, sept/oct, 1958. 61 (leis) da formação do solo não são as mesmas dos processos climáticos, as leis do desenvolvimento da matéria inorgânica diferem das do mundo orgânico”, mas a interação dos diferentes componentes determina a existência de um sistema único e integral. A referência do clima no seu conjunto ou em seus diversos elementos permite compreender as relações evidenciadas entre o clima e o relevo, o clima e a formação dos solos, o clima e o mundo orgânico, assim como o mundo orgânico ou o relevo sobre o próprio clima... Exemplo de evidentes transformações num tempo relativamente curto, considerando que a escala do tempo geológico pode ser observada com as oscilações climáticas registradas no pleistoceno, ou seja, entre 2 milhões a 13 mil anos antes do presente, que coincide com o aparecimento do homo-sapiens: enquanto o clima semiárido da fase glacial implicava domínio da vegetação xeromórfica sobre a tropófita, desagregação mecânica, dessoloagem e recuo paralelo das vertentes, promovendo tendência localizada de horizontalização do relevo, o clima úmido da fase interglacial alterou as relações processuais proporcionando uma nova estruturação da paisagem: predomínio da vegetação tropófita sobre a xeromórfica, entalhamento de talvegues pela reorganização do sistema hidrográfico, desenvolvimento de solos... Tudo isso relacionado ao aquecimento ou resfriamento hemisférico, com formação ou fusão das calotas polares e consequentes efeitos de regressão ou transgressão marinha, sem falar das implicações de natureza eustáticas. 2. Quanto aos processos “circulares” da matéria, observa Kalesnick (1958)161 que os componentes da Landschaft-esfera apresentam movimentos que obedecem ao princípio da circularidade. Basta lembrar os processos circulares das massas de ar, entre o Equador e os trópicos, o efeito de Coriolis na deflexão dos ventos alísios, ou o processo convectivo de natureza termal que explica a formação de nuvens e ocorrências pluviométricas. O mesmo fenômeno é observado no ciclo hidrológico, no processo de aquecimento das águas pela radiação solar, nos movimentos circulares do manto da terra, que embora vinculados a uma escala de tempo geológico, implicam compensação isostásica, emanações magmáticas e efeitos tectônicos. Observa ainda Kalesnick (1958)162 que “os processos circulares existentes por toda a parte da Landschaft-esfera” são facilmente observados “tanto no metabolismo quanto na interação dos solos e das plantas, bem como em mil outros processos". Embora aparentemente fechados, os processos circulares são abertos, contrariando a concepção mecanicista. “Seria preferível representá-los simbolicamente como 161 162 Kalesnick, op. Cit, p. 397. Kalesnick, op. Cit. P. 398. 62 uma curva traçada em pontos da circunferência de uma roda que gira em linha reta”. Como exemplo, a translação feita pela terra, “não voltará ao mesmo lugar em que havia iniciado a rotação anual, porque todo o sistema solar se move no espaço com a velocidade de vinte quilômetros por segundo, em direção a um ponto que se situa entre a constelação de Hércules e da Lira”. Conforme Engels (1976)163, “mesmo quando ocorrem as repetições, não se dão nunca exatamente nas mesmas condições”, o que já havia sido observado por Heráclito (540-470 aC)164. 3. A Landschaft-esfera também é representada por diversas transformações rítmicas como as diferenças internas das paisagens durante as diversas horas do dia e da noite, das variações sazonais que implicam alterações nas biocenoses, no regime dos rios e mesmo no regime dos mares. O ritmo pode ser constatado com relação ao processo de decomposição das rochas e consequente formação dos solos, além das reações adaptativas do zooplancton, que também apresentam um ritmo em função das faixas de concentração de nutrientes pelo efeito da luz. Mesmo admitindo certa linha de continuidade na interação dos componentes, que se exerce e se organiza no tempo, o ritmo, embora imperceptível, também se distingue por seus resultados, o que pode ser explicado pelas particularidades da Landschaftesfera. 4. Como se sabe, a terra é representada por parâmetros zonais determinados pela própria forma em relação ao sol, que se caracteriza como determinante do poder radiante. Contudo, “a natureza não se parece com as matemáticas” (Kalesnick, 1958), o que explica a existência de diferentes domínios nas diferentes zonas bem como em uma mesma faixa zonal, determinados pelas mais diversas implicações geográficas, como efeitos das correntes marítimas, continentalidade 165 maritimidade, posição altimétrica, dentre outras. Para Kalesnick ou “os componentes da Landschaft-esfera movimentam-se em altitude e em latitude, segundo um ritmo diferente”, admitindo que a graduação vertical é mais especial que a zonalidade. Esclarece que “os degraus verticais não são cópia das zonas latitudinais que lhes correspondem, não sendo sequer as variantes particulares destas últimas, porque temos causas diferentes na origem dos degraus verticais e horizontais”. (Lembrese aqui Pedelaborde, 1972166, ao afirmar que a altitude corrige a latitude). Conclui o autor dizendo que a zonalidade não faz sentido em toda espessura da Landschaftesfera, o que pode ser comprovado nas profundidades oceânicas, nas camadas superiores da troposfera ou nas camadas internas da terra, onde a zonalidade “é 163 Engels, AD, p. 75. “Nenhum homem toma banho duas vezes em um mesmo rio.” 165 Kalesnick, op. Ci, p. 400. 166 Pedelaborde, Pierre. Introduction à l’étude scienifique du climat, Paris, CDU, 1959. 164 63 criada pela reação da superfície terrestre, por sua estrutura, por sua rigidez, ou por sua maleabilidade...”. 5. Na continuidade da evolução, Kalesnick (1958)167 mostra que “a íntima unidade, o intricamento profundo e estreito das partes componentes da Landschaft-esfera fazem com que ela se desenvolva como formação integralmente unida”. Diante disso conclui que o processo de evolução da Landschaft-esfera é um processo complexo e internamente contraditório, numa perspectiva dialética, onde a evolução parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a evolução de todas as outras partes integrantes do conjunto. Assim, a continuidade é revelada pela inexistência do isolamento absoluto entre os componentes da Landschaft-esfera, constatando-se a existência permanente de um elo de ligação espacial e outro de ligação temporal. Conclui Kalesnick (op.Cit) que “a Landschaft-esfera desenvolve-se pela força de suas contradições internas”, o que pode ser constatado nos diferentes exemplos relativos às leis da dialética, como as formas diferenciais vinculadas a processos morfogenéticos opostos, que embora contraditórios, se interpenetram na composição da paisagem . Embora se torne evidente que o desenvolvimento da sociedade fundamenta-se em leis próprias, deve-se, contudo ressaltar a necessidade de se conhecer melhor os processos específicos da natureza. Deve ser lembrado aqui que o conhecimento humano das leis da natureza é que permitiu o desenvolvimento da própria história da sociedade, resgatando-se o conceito de segunda natureza preconizada por Marx e Engels. Engels (1979)168, ao demonstrar a diferença entre o animal e o homem em relação à natureza, observa que aquele a utiliza, enquanto este a domina. O processo de dominação, muitas vezes entendido como vitória sobre a natureza, deve ser visto com certa preocupação: cada uma (dessas vitórias, “na verdade, produz em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências”. Embora Engels, na referida passagem, valorize a questão ambiental, sua obra Dialética da Natureza procura resgatar o homem como ser natural, como forma de superação da subjugação de classe imposta pelo sistema de produção capitalista. Ao citar o exemplo dos agricultores espanhóis, estabelecidos em Cuba, que queimaram as matas das encostas das montanhas para obter melhores lucros com a plantação do café, independentemente dos impactos erosivos dos solos que mais tarde aconteceriam, expressou-se da seguinte forma: “Em face da natureza, como em face da 167 168 Kalesnick, op. Cit, p. 401. Engels, DN, p. 223-224. 64 sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável...”.”169. Acredita-se, portanto, que na medida em que o homem produz matéria e energia no interior desse amplo sistema, e esse produto deixa de ser incorporado ou reciclado, surgem as formas de degradação que são lembradas por Souza e Amaral (1984)170: • se produzem em oposição às leis do sistema, no que tange à reciclagem; sua ação é deletéria, perversa, enfim, biocida. “Devemos, pois, adotar uma posição contrária a tudo o que nos tem sido ensinado, fundamentalmente desde há dois séculos: o culto pelo progresso científico, a crença nas vantagens da urbanização e o fervor pelo progresso industrial”; • se produzem com pleno conhecimento das inter-relações do sistema biosfera, no que se refere à reciclagem e seu equilíbrio. “A noção de poluição transformase, passa a ser a noção de algo fora de lugar”. Tais considerações resumem-se nas seguintes contradições apresentadas pelos autores: a) do homem em relação à biosfera. Por um lado se reconhece que estes estejam inseridos nela por serem seres vivos; por outro, quando visto como um sistema em funcionamento, “dela são excluídos, justamente por que podem agir em oposição a ela”; b) da ação do homem em oposição à biosfera, “considera-se implicitamente a práxis produtiva humana, o conhecimento humano, a ciência, abordagem muito coerente com a concepção da queda do pecado capital”; c) da separação absoluta entre a natureza e o homem, vendo-se a parceria como uma categoria em si, como se a natureza existisse à margem do homem ou como se o conhecimento humano existisse à margem da natureza; Para Marx171 “a natureza, tal como se forma na história humana, é a natureza real do homem; daí que a natureza, ao ser formada pela indústria, ainda que seja em sua forma alienada, é a verdadeira natureza antropológica”. A natureza sem a presença do homem não é nada para ele, reforçando o argumento de que é o sistema de produção e as forças produtivas que dão à natureza sua existência social. A terra poderia muito bem existir sem o homem, contudo não existiria quem a concebesse enquanto tal. A partir do momento em que o homem integra a natureza ao seu mundo, acaba por dar um sentido humano a esta, a partir do qual se revela sua prioridade ontológica. 169 Engels, DN, p. 226. Souza, Ailton B. de & Vieira, R.A Amaral. Poluição alienação ideologia. R. Janeiro: Achiamé, 1984, p. 22-23. 171 Marx, Karl. Manuscrios de 1844. 170 65 As Categorias do Desenvolvimento Social Topolski (1976) 172 , analisando o mundo real como um todo, entende que na relação natureza e sociedade pode-se conservar o conceito de “autodinamismo”, onde todo o sistema trabalha “independentemente”. O desenvolvimento da sociedade através das contradições só pode ter lugar em condições naturais específicas: embora não sejam constantes, estão em processo constante de movimento e desenvolvimento; processo que neste caso também tem lugar pela superação das contradições. Para Marx e Engels, o todo compreendido pelas relações entre a natureza e a sociedade encontra-se mutuamente integrado. Junto com a soma das contradições que “põem a natureza em movimento”, e a soma das contradições que “põem a sociedade em movimento” deve haver um ponto de contato desses dois subsistemas que se constitui no estímulo básico da história da humanidade. Ainda Topolski (1972) observa que “a principal contradição que condiciona o desenvolvimento social está situada justamente no limite entre a natureza e a sociedade. É a contradição entre o homem e a natureza a solução que dá lugar ao desenvolvimento das forças produtivas”, assim esquematizada por ele. Natureza Desenvolvimento das Forças Produtivas Homem Marx173 explica o processo de trabalho (a atividade do homem) como, em primeiro lugar, um processo em que participam tanto o homem como a natureza, no qual o homem, por sua própria decisão, descobre, regula e controla as reações materiais entre ele e a natureza. Enfrenta a natureza com uma força pertencente a ela, colocando em movimento braços e pernas, cabeça e mãos e as forças naturais de seu corpo, para utilizar o produto da natureza de uma forma adequada aos seus próprios desejos. Com essa atuação sobre o mundo externo e transformado, muda ao mesmo tempo sua própria natureza. “Desenvolve seus poderes adormecidos e os obriga a atuar obedecendo a seu poder”. A contradição resultante da relação homem e a natureza é dinâmica, tendo como resultado as forças produtivas responsáveis pelo desenvolvimento continuado. A segunda contradição que justifica o desenvolvimento social encontra-se dialeticamente vinculada à primeira, correspondendo às relações entre as forças produtivas e as relações de produção. Para Marx174 “na produção social os homens entram em relações 172 Topolski, op. Cit, p. 169. Marx, Karl, O Capial I. 174 Marx, SW. 173 66 definidas que são indispensáveis e independentes de seu desejo; relações de produção que correspondem a um estado definido de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”. Dessa relação surge uma contradição entre as forças produtivas, que são mais dinâmicas, e as relações de produção, que são mais inertes, uma vez que são representadas por aqueles que se apropriam dos meios de produção, determinando assim a natureza da referida produção. Topolski (1973)175 ressalta que a superação dessa contradição dá lugar ao desenvolvimento das relações de produção (I) que, ao se adequar ao nível das forças produtivas, se convertem em novas relações de produção (II), conforme esquema apresentado por ele. Forças Produtivas Relações de Produção (I) Relações de Produção (II) Como se sabe, as relações de produção referem-se às relações produzidas pelos próprios homens, considerando o sistema de produção. Nas relações de produção são definidas, a partir de um determinado modo de produção, as formas de apropriação da natureza/meios de produção, as relações de trabalho e a distribuição e troca dos produtos, o que implica diretamente no comportamento das forças produtivas. Como se sabe, o sistema de produção capitalista é caracterizado pela apropriação privada da natureza/meios de produção e por uma relação de trabalho assalariada, estrutura essa que permite a acumulação progressiva da mais-valia e consequente antagonismo das classes sociais. É evidente que a estrutura das 176 antropossocial, relações de produção encontra-se amparada pela megamáquina ou superestrutura ideológica, com a qual se dá a terceira contradição desse macrossistema. A superestrutura é representada pelo Estado, onde as relações jurídico-políticas e ideológico-culturais respondem pela ordem legal e política que induzem à formação da consciência social. Marx (1944)177 escreveu que o estado das instituições, opiniões e ideias, tal como existe em uma sociedade dada, ou estado da consciência humana, “deve explicar-se mais pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”. Topolski (1973)178 discorre sobre as mudanças nas relações de produção que dão lugar a mudanças de adaptação na superestrutura, “porque a 175 Topolski, Op. Cit, p. 170. Conceito empregado por Morin (MORIN, E. O Método: a vida da vida. Portugal: Publicações Europa-América, 1980) em analogia ao conceito marxista de Superestrutura Ideológica. 177 Marx, SW 178 Topolski, op. Cit, p. 170-171. 176 67 velha superestrutura (I) impede as transformações das relações de produção. Assim há um conflito em nível superestrutural, entre os que se servem das relações de produção existentes e aqueles que favorecem as mudanças. Isto dá lugar à formação de uma nova superestrutura (II), que, sem dúvida, conserva muitos elementos da velha”. Tais relações são expressas da seguinte forma: Relações de Produção Superestrutura (I) Superestrutura (II) Estas três contradições podem ser interpretadas como as leis básicas do desenvolvimento social, considerando o intento de tratá-las numa perspectiva metodológica, dada a abrangência explicativa para a compreensão da realidade objetiva, resultado das relações entre a natureza e a sociedade. A ciência geográfica se caracterizou, sobretudo a partir da década de setenta do século passado, por um movimento identificado como “Geografia Crítica”, em oposição ao paradigma neopositivista dos teóricos quantitativos, tendo como princípio os fundamentos filosóficos marxistas. Contudo, divergência entre intelectuais tem dificultado a consolidação de uma perspectiva radical como novo paradigma da Geografia, o que de certa forma tem contribuído para o desenvolvimento de uma tendência humanista, de base fenomenológica, fundada no imaginário social. A tendência crítica à ortodoxia marxista, principalmente em relação à cultura material, tem implicado certo desprezo ao significado das leis da dialética, bem como das categorias do desenvolvimento social. Esse fato torna-se mais grave quando se trata da Geografia, que tem como objeto as relações entre a natureza e a sociedade. Hoje, mais do que nunca, é imprescindível a compreensão dessas contradições para a formação de uma consciência crítica. Como se procurou demonstrar, o novo modelo de desenvolvimento produtivista, ao mesmo tempo em que leva à privatização do público, reduz o relativo poder da força de trabalho, obtido no welfare state, através da imposição tecnológica. Esse fato reforça o significado ideológico da ciência, que ao promover o desenvolvimento tecnológico, ofereceu ao Estado as bases para a pacificação dos conflitos, levando o trabalhador ao risco iminente e ao dilema absurdo de submeter-se ao jogo de interesses dos detentores dos meios de produção, em troca da manutenção do emprego. Assim a ciência assume cada vez mais uma maior vinculação com as forças produtivas, desconsiderando o papel que apresenta como componente da superestrutura ideológica, reforçando a histórica alienação. A nova revolução científico-tecnológica nas forças produtivas, embora mantendo a velha estrutura das relações de produção (apropriação privada dos meios de produção e preservação da mais-valia com 68 base de sustentação), conta com os auspícios da superestrutura ideológica através da flexibilização da legislação trabalhista, da política permanente de privatização do público e da manipulação de índices de desenvolvimento, dentre outros. É nesse contexto que se espera resgatar as categorias do desenvolvimento social como alternativa imprescindível à compreensão do espaço em sua essência, fazendo da Geografia um conhecimento mais do que necessário para a superação da alienação; tratando a existência humana como consequência do processo histórico da natureza, questionando a apropriação privada da terra e consequentemente dos meios de produção. Como se viu até aqui, o que a ciência moderna continua querendo, através do “desencantamento do mundo”, é a teorização sobre as regras de conduta, as construções pedagógicas e políticas, as construções normativas, cujo objetivo é tornar o homem eficaz e eficiente. Repetindo, “o homem moderno, o cidadão, é, portanto, o Aufklärer, silhueta que abriga um misto de cientista cartesiano e libertino altivo. Ele quer, como meio e meta, ou melhor, como meio que é meta, a ‘feliz apatia” (Ghiraldelli, 1994)179. Para o autor, “também o professor deve arrancar o véu. Ele deve descortinar, desnudar, desmitologizar, desideologizar, desanalfabetizar, desinfantilizar, desencantar. Deve averiguar, experimentar (no sentido de experimento, e não de experiência), nominar, educar (que de certo modo é ‘puxar para cima’, pelos cabelos! )... profanar. Deve fazer intervir o logos, a palavra, a palavra que enumera, que classifica, que logiciza, que racionaliza, que quebra o ritmo do corpo de modo a impedir os fluxos normais que possam dar continuidade à imaginação”. A analogia do professor ao Aufklärer, feita por Ghiraldelli (1994) é no sentido de que esse ilumina, esclarece sem, contudo, provocar a necessária desmitologização. Adorno e Horkheimer (1986)180 observam que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por remeter à mitologia”. Em um jogo de espelhos, o homem esclarecido, autônomo, o cidadão aparece como elemento da massa, que aceita a dominação e só se rebela no sentido de continuar sua implementação. “A modernidade que produz a apatia, precisa criar mecanismos para, pelo menos por alguns momentos, reavivar esse homem para que a sociedade, ou melhor, o aglomerado de seres, continue a existir” (Ghiraldelli, 1994)181. Tal fato leva a concluir que a educação só tem sentido ao proporcionar a autorreflexão crítica, embora sabendo que as diversas forças – como o produtivismo lilberal – jamais patrocinarão qualquer crítica. Só resta a expectativa apontada por Adorno e Horkheimer (1986)182, de que embora o sistema procure “proteger pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não consegue distorcer as consequências do esclarecimento, o que justifica a necessária insistência de “proferir 179 Ghiraldelli, op. Cit, p. 18. Adorno & Horkheimer, op. Ci. 181 Ghiraldelli, op. Cit, p. 15. 182 Adorno & Horkheimer, op. Cit p. 111. 180 69 brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente abalada pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo que possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato, transformando-o em verdadeiro cidadão. Assumindo a Geografia uma nova postura epistemológica, fundamentada na dialeticidade da natureza, ao mesmo tempo em que deixará de tratar o espaço como soma de conteúdos distintos, aparentemente desconexos, assumirá efetivamente uma postura política, capaz de oferecer a formação de uma consciência crítica, imprescindível a uma nova prática social, produzindo uma geografia que “desvende o véu”. A DIALÉTICA DA NATUREZA João Maria de Freitas Branco183, em Dialética, Ciência e Natureza, procura “provar a justeza de uma intuição de Engels que se pode traduzir na seguinte asserção: para as ciências da natureza a dialética é a mais importante forma de pensamento”. O trabalho busca com isso pôr em evidência, no quadro atual do pensamento científico, a necessidade de recuperar uma concepção de natureza nas próprias ciências. “O grande dilema que a nova ciência nos coloca é o da necessidade de pensar de outra maneira”, o que justifica o enorme valor dessa obra que propõe a concepção do mundo de forma analítica e de o pensar dialeticamente. A intenção aqui é a de seguir, mesmo que de longe, os passos dados por Branco (1989), considerando a dimensão de sua obra, procurando num primeiro momento apresentar o significado da concepção dialética da natureza, para posteriormente apresentar os pressupostos materialistas como alternativa ontológica e epistemológica para a Geografia. A intenção de Engels foi o de cooperar na reificação do corpo teórico do marxismo, uma vez que Marx nunca teria a disponibilidade de tempo suficiente para se ocupar das implicações teóricas da sua obra e do seu pensamento nos mais diversos domínios do saber humano. A intenção inicial de Engels foi a de realizar uma crítica ao materialismo vulgar de Büchner, considerando a dialética como “a forma mais importante do pensamento para a moderna ciência da natureza, já que é a única que nos oferece o “análogo” (analogon), portanto, o método para explicar os processos de desenvolvimento da natureza, as conexões nos seus traços gerais, as transições de um domínio e outro” (MEW 20, 330-31)184. Engels é claro na declaração de intenções para o seu projeto de apresentar “uma concepção da natureza ao mesmo tempo dialética e materialista”. Branco (1989)185 observa que a referida 183 Branco, DCN, p. 35. Citado por Branco, DCN, p. 54. 185 Branco, DCN p. 55. 184 70 passagem permite concluir que “ser dialética significa deixar de ser não-dialética: e ser materialista significa não ser idealista”, expressão esta que se manifesta numa dupla oposição: a) o antiIídealismo, ou seja, a ideia exteriorizada que se impõe à mesma: e b) o antimecanicismo que se refere ao combate crítico ao materialismo vulgar (metafísica) presente no interior das ciências exatas. Em síntese, a intenção é a de superar as contradições entre ciência e filosofia da natureza. O projeto engelsiano fundamenta-se nas “três grandes descobertas” da época que são: 1. a transformação da energia (R. Mayer, Joule e Colding), um verdadeiro golpe aplicado no espírito metafísico; 2. a descoberta da célula orgânica (Schwann e Schleiden), superando o “fixismo” como base do raciocínio; 3. a descoberta da teoria da evolução (Charles Darwin), onde todos os produtos da natureza (inclusive o próprio homem), resultam de um longo processo de desenvolvimento, tendo como origem a célula. Portanto, tais descobertas representam novas concepções científicas que se revelam incompatíveis com as categorias metafísicas, impondo a necessidade de um método de pensamento diferente: o dialético. Às três descobertas, Engels acrescenta uma quarta: “Assim como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução da história humana” (MEW 19, 335)186. Após introduzir a noção de tempo na natureza, Engels (DN) concebe-a como processo, em última instância dialético, como pode ser observado em sua crítica a Bacon e Locke: “(a ciência natural provou) que a natureza, em última instância, as coisas se processam dialética e não metafisicamente, que ela não se move na monotonia eterna de um ciclo permanentemente repetido, que passa, antes, por uma verdadeira história...”(SU, MEW, 19, 205)187. Portanto, a natureza entendida como processo, compreendendo-o como conjunto contínuo de mudanças no tempo, oferece a ideia central e revolucionária da passagem da história natural à história da natureza, onde se dá a incorporação do homem como consequência do processo evolutivo. Para Engels188, “nada na história da natureza ocorre isoladamente”. É nessa trajetória que Engels (DN) enuncia as três leis da dialética desenvolvidas por Hegel, que eram apenas do pensamento, para uma dialética da natureza numa perspectiva materialista. 186 Citado por Branco, DCN p. 57, referindo-se ao discurso de Engels junto ao túmulo de Marx. Citado por Branco, DCN p. 85. 188 Engels, DN p. 20. 187 71 Para Politzer (1989)189 deve-se insistir que “a ciência, a natureza e a sociedade devem ser vistas como um encadeamento de processos, e o motor que trabalha para desenvolver tal encadeamento é o autodinamismo” Engels (DN), ao mencionar que “nas ciências da natureza, através do seu próprio desenvolvimento, tornou-se impossível a concepção metafísica”, faz-se acompanhar da convicção de abandonar o horizonte do idealismo em detrimento do materialismo filosófico, abreviando o regresso à concepção materialista da natureza (Branco, 1989)190. O Materialismo da Natureza Branco (1989)191, ao tratar da questão ontológica no materialismo da natureza, recorre ao conceito de unidade do real, utilizado por Hegel, resgatado de Spinoza: “A asserção fundamental que se pretende justificar é a da unidade imanente do próprio ser”. Se para Hegel o fundamento da unidade do real é a matéria como “criação do pensamento e pura abstração”, em Engels (DN), fica clara a necessidade da “unidade matéria-forma no plano da existência sensível”. A matéria deixa de ser entendida como conjunto de propriedades imóveis, absolutas e finitas, da concepção materialista mecanicista, assim como substrato, matéria universal constitutiva dos seres particulares, para se tornar o “real objetivo que se dá através da aparelhagem sensitiva, existindo independentemente da nossa consciência, e neste sentido identifica-se com a própria natureza” (Branco, 1989)192. Lenin (1962)193 evidenciou que “a noção de matéria exprime apenas a realidade objetiva que nos é dada pela sensação”. . Conclui-se que o conceito de natureza se identifica integralmente com os conceitos de “matéria” e de “realidade objetiva, o que leva a admitir que a natureza em sua integridade, representada pela categoria da matéria, compreende não apenas os fenômenos da natureza, mas também os da sociedade (o ser social).Trata-se aqui da categoria filosófica de matéria e não do conceito científico da matéria. Constata-se ainda, que a matéria entendida em sua dialeticidade, é essencialmente móvel e dinâmica, o que leva a concluir que “a matéria, sendo o fundamento da unidade do real, é consequentemente o fundamento ontológico da dialética”, numa posição monista194. “A natureza, entendida como sinônimo de realidade objetiva precede a atividade cognitiva: nisto consiste o primado do ser em relação ao pensar”. Com esse parágrafo, Branco 189 Politzer, op. Cit., p. 141. Branco, DCN p. 131. 191 Branco, DCN p. 132 ss. 192 Branco, DCN p. 136. 193 Lenin, Vladimir I. Matérialisme et Empiriocriticisme. Paris: Éd.Sociales, 1962, p. 230 (Oeuvres, T.14). 194 A palavra "monismo" é usada para indicar toda doutrina ou sistema de pensamento que afirme certa unidade de explicação (redução a um só princípio, a uma só causa, a uma só tendência ou direção) para um domínio limitado de ideias ou de fatos (JACOB, 1990). 190 72 (1989)195 consegue demonstrar que é através da existência da matéria, enquanto realidade objetiva, constatada através dos órgãos sensitivos e independentemente da nossa consciência, que se elabora o conhecimento, ao contrário da concepção idealista, onde a matéria é concebida no pensamento, independentemente de ser sentida como realidade objetiva. Acrescente-se que a matéria só é cognoscível através do movimento, portanto torna-se necessário entendê-la também na sua dialeticidade, ou seja, por essência, não-repetitiva. Nega-se ainda a finitude do conhecimento, acompanhando o desenvolvimento da própria ciência da natureza. ”Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento” (Engels, 1976)196. Aristóteles, nos Livros II e III da Física já considerava o movimento como princípio intrínseco à matéria, dando a ela uma existência infinita. Engels (1976)197 afirma que a unidade do real consiste na sua materialidade, tem-se, então, a prova de que essa materialidade é dada pelo progresso do conhecimento vulgar e do conhecimento científico, em particular.Toda discussão fundamenta-se no primado da natureza, na preexistência da natureza (da realidade material objetiva) em relação ao pensamento humano, o que levou a pensar que o desenvolvimento da vida biológica apresenta-se como um fenômeno moderno, portanto, uma fração de tempo ao longo da história da natureza. Essa relação é discutida também por H. Reeves, 1986198 . A ciência moderna tem proporcionado evidências sobre a existência de uma base molecular e química que viabilize o pensar, o que torna mais clara a unidade homem-natureza na óptica de Engels (DN), provando a impossibilidade de se estabelecer qualquer tipo de oposição entre espírito e matéria. Assim sendo, “o conhecimento é um processo de assimilação (termo biológico) e não de transposição; processo dialético e não mecânico” (Branco, 1989),199 ou melhor, não-idealista. O reconhecimento de que a prática humana sensível é a base do processo cognitivo, contido nas concepções de Engels (DN), é a clara negação da clássica dicotomia conhecimento-atividade prática. “A instauração da Práxis como elemento mediador inviabiliza a oposição sujeito-objeto, sendo aquele entendido em todas as circunstâncias como transindividualidade dinâmica”. Torna-se ainda necessário compreender que se a matéria existe fora da consciência humana, o que refuta a concepção idealista da matéria e consequentemente da realidade objetiva, necessariamente ela existe no tempo e no espaço. Enquanto os idealistas pensam que o tempo e o espaço são ideias nascidas no espírito do homem, defendida por Kant, os 195 Branco, DCN p. 141. Engels, AD, p. 51. 197 Engels, AD p. 52 ss. 198 Reeves, Huber. Um Pouco mais de Azul. S. Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 99ss. 199 Branco, DCN p. 145. 196 73 materialistas afirmam o contrário, ou seja, que o homem está contido no espaço e que o tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da própria vida. Conforme Engels (1976)200 “... as formas fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do tempo é um absurdo tão grande como um ser fora do espaço”. Conclui-se, portanto, que não há uma realidade independente da consciência. Mesmo antes de o ser humano existir o mundo ou a natureza já existia. Mesmo não conhecendo ou não pensando em determinado lugar, ele não deixa de existir. Para Lenin (1962)201 “as ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu em estados tais que nem o homem, nem nenhum ser vivo a habitava, nem podia habitar. A matéria orgânica é um fenômeno tardio, o produto de uma evolução muito longa”. A Dialeticidade da Relação Homem e Natureza Ao entender o homem como resultado do processo evolutivo da natureza, torna-se evidente, e ao mesmo tempo banal, afirmar que este não deixa de ser natureza, mesmo considerando as diferenças entre ambos. Embora trivial, essa afirmação tem se constituído em objeto de críticas e discussões que passam a ser brevemente apresentadas. Com relação à crítica à Dialética da Natureza engelsiana, a posição de Schmidt em relação à noção de natureza, contida na referida obra, é simplesmente incompatível com o marxismo. Diz Schmid (1978)202 que “em Engels, a natureza e o homem não se unem primariamente através da práxis histórica; o homem aparece apenas como produto evolutivo e espelho passivo do processo da natureza, não como força de produção”. Também Lukács (apud Prestipino, 1977) contesta o conceito de natureza engelsiano como realidade. Para Lukács (1979)203 considera dois tipos distintos de dialética: a primeira posta e objetivada pelo ser genérico social e a segunda independentemente deste, correspondente ao próprio movimento da natureza. Assim como há dois movimentos da dialética, há também dois movimentos de objetivação: o movimento do ser social e o movimento da natureza. Apesar de serem movimentos dialéticos de objetivações distintas, pode-se notar uma conexão, uma relação umbilical entre ser social e inorgânico. Essa interpretação subverte o pensamento engelsiano, ficando claro que falar de dialética da natureza significa, entre outras coisas, a associação da história à natureza, estando o homem sempre associado a esta pelo processo social do trabalho. Conforme 200 Engels, AD p. 84. Lenin, op. Cit, p. 52. 202 Schmidt, Alfred. Der Begriff der naur inder Lehre von Marx. Frankfurt: Basis, 1978, p. 51. 203 Lukács, Gyorgy. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Trad.Carlos Nelson Coutinho. São Paulo:Ciências Humanas, 1979. 201 74 Branco (1989)204, “há uma relação ela própria dialética entre o mundo natural e o históricohumano. É isso mesmo que o conceito-chave de produção nos dá a conhecer. A natureza énos apresentada invariavelmente como a base real da história. Mas o fato de se considerar que natureza e história se unem numa totalidade não significa que se estabeleça uma completa indiferenciação entre ambas. A unidade dialética reafirmada a cada passo não quer dizer que os dois elementos se confundem”. Conclui dizendo que “em face desses abusos interpretativos não será demais voltar a repetir que no plano gnosiológico, o sujeito do conhecimento não é nunca entendido como ‘espelho passivo’. Ao contrário do que Alfred Schmidt afirma, o pensar não se esgota no reflexo do factual”. Ao demonstrar a “dialeticidade” da natureza, Schmidt (1978)205 apresenta o homem como sujeito transformador. Observa Branco (1989)206que na concepção não-engelsiana” de Schmidt, a dialética da natureza passa a ser “mera consequência da interação do homem (...) É o homem que introduz a dialética na natureza” deixando de ser da natureza, perdendo seu fundamento objetivo, ficando a um passo da separação dialética e materialismo. Mais à frente (Branco, 1989)207, rebatendo as críticas de Sartre208, que qualifica a dialética da natureza como “hipótese metafísica”, conclui que a razão dialética se fundamenta em si própria: “Não encontramos na natureza senão a dialética que aí introduzimos”, o que mostra que “a objetividade da dialética só é passível de percepção em termos corretos se conseguirmos compreender que a afirmação – aliás não discutida – da unidade do homem com a natureza é conducente à tese fundamental de que o processo do pensamento é ele próprio elemento da natureza, processo natural. Por isso o movimento do pensamento não está isolado do movimento da matéria”. Acrescenta ainda que no quadro da dialética, o subjetivo e o objetivo não são passíveis de separação, razão pela qual a dialética não se resume à função de método, ganhando uma concepção gnosiológica materialista. Assim, a dialética da natureza ao mesmo tempo em que traz consigo uma profunda crítica à filosofia como domínio reservado, exclusiva do “pensamento”209, reveste-se de um caráter científico, proporcionando a possibilidade de diálogo com as ciências da natureza. As ciências da natureza apresentam a interdisciplinaridade como necessária, partindo do princípio da inexistência de sistemas absolutamente isolados, o que requer, portanto, o diálogo entre as ciências e cada uma delas com a filosofia, o que pode ser resumido por Morin (1986)210: “de 204 Branco, DCN, p. 261. Shmidt, Op. Ci, p. 58. 206 Branco, DCN p. 263. 207 Branco, DCN, p. 265. 208 Sartre, Jean Paul. Critique de la Raison Dialecique. Paris: Gallémard, 1968, p. 127-129. 209 Conforme Hyppolite (1972)209, sempre houve entre os filósofos o desejo de que a filosofia se tornasse “saber do saber científico, a sua consciência em si” 210 Morin, Edgar. O Méodo III. Portugal: Publ. Europa-América, 1986, p. 23-24. 205 75 fato as grandes questões científicas tornaram-se filosóficas porque as grandes questões filosóficas tornaram-se científicas”. A dialética da natureza leva ainda a ausência de um sistema doutrinário, pondo fim “a todas as ideias de uma verdade absoluta e definitiva, e a um consequente estágio absoluto da humanidade. Diante dela nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que há de transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vir-a-ser e do perecer, uma ascensão infinita do inferior para o superior cujo reflexo no cérebro pensante é esta própria filosofia (...). O conservantismo desta concepção é relativo; o seu caráter revolucionário é absoluto – o único absoluto que ela deixa de pé” (LF, MEW 2l, 267-268)211. Embora aparentemente absolutista, a dialética se caracteriza pela inexistência de conceitos ou verdades acabadas, de uma natureza portadora de uma ordem variante. A razão dialética demonstra a insuficiência do senso cartesiano face a um inimigo que não pode mais ser descrito como um gigantesco relógio funcionando de forma regular, “o discurso entusiástico anunciador do fim da história converteu-se na declaração de que atravessamos ainda uma fase pré-histórica” (Branco, 1989)212. O exercício de definir conceitos, leis, é relegado para um plano de menor relevância científica. “Falar de dialética envolve pensar no movimento, na contradição e na sua integração numa totalidade. A sua autêntica vocação é a de ser instrumento para um diálogo sempre aberto com o real (...). O pensamento dialético materialista recusa por princípio a atitude de se munir de uma cartilha estabelecida a priori para encetar o diálogo com a natureza” (Branco, 1989213). Para Reeves (1986)214, “a natureza não tem de se adaptar à nossa maneira de pensar. É a nós que cabe mudar a maneira de pensar para que ela se adapte à natureza”. “O imperativo que nos coloca não é, portanto, o de ‘mudar de mundo’, como diz Edgard Morin (‘il nous faut changer de monde’) , mas sim o de mudar a maneira de pensar o mundo, de forma a ajustá-lo às novas faixas do real...”(Branco, 1989215). Portanto, a concepção dialética implica contradição das relações processuais que integram a natureza, imprescindível à compreensão da unidade do real, ou seja, “pensar a contradição como passo para a intelecção dos processos do universo” (Lenin, 1976)216. Nesse contexto incorpora-se o conceito de matéria e movimento como interdependência absoluta, partindo do princípio de que “na natureza o movimento é sempre movimento de alguma coisa, 211 Citado por Branco, DCN p. 271. Branco, DCN p. 279. 213 Branco, DCN, p. 273-274. 214 Reeves, Op. Cit, p. 161. 215 Branco, DCN p. 276. 216 Lenin, Vladimir I. Sur la quesion de la dialeique. Cahiers Philosophiques. Ouvres. 38. Paris: Sociales, 1976 p. 343-344. 212 76 e não há fenômenos naturais observados que nos revelem uma matéria isenta de movimento” (Branco, 1989)217. Branco (1989)218 retoma a discussão do em si ao para nós contida em Kant, numa perspectiva materialista, como vital para a inteligibilidade do pensamento engelsiano. Nesse sentido busca explicar que a expressão “dialética da natureza” não exclui o caráter subjetivo do reflexo constitutivo do conhecimento, estando, portanto, bem patenteado no imperativo da transposição do em si no para nós. “Este considerar da ligação cognoscitiva entre o ‘subjetivo’ e o ‘objetivo’ afigura-se condição necessária para a correta compreensão do sentido preciso da expressão dialética da natureza” (1989)219. Quando se fala da natureza e se diz que a dialética é da natureza, torna-se evidente em Engels (DN) de que natureza está se falando: realidade objetiva, refletida pela consciência humana já que o reflexo cognitivo está objetivamente limitado pela situação histórica, resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza. Embora “o projeto da dialética da natureza tenha permanecido inconcluso, sou tentado a supor que se pretendeu ter em consideração essa dupla manifestação do Natural”, afirma Branco (1989)220. Essa intenção, ainda que não tratada de forma evidente, parece estar clara em Engels (1979)221 quando diz que “é precisamente a transformação da natureza pelo homem e não apenas a natureza enquanto tal, que constitui o mais essencial e direito fundamento do pensamento humano”. Engels deixa claro que “o principal fundamento objetivo da nossa consciência não é apenas a natureza em si, mas uma natureza transformada e a própria ação transformadora que sobre ela se exerce” (Branco,1989)222, tornando absurda a ideia da dicotomia entre pensamento humano e o real, entre o espírito e a matéria, e em última instância, entre a natureza e a sociedade. Portanto, a dialética da natureza implica apropriação ou reapropriação das forças produtivas (Badaloni, 1976)223 ao estabelecer uma relação entre a prática social e o trabalho prático das ciências. “Se a ação prática transformadora da natureza fundamenta o próprio pensar, este, por sua vez, viabiliza novas formas de intervenção do homem junto à natureza, e desse modo a ciência pode concorrer para uma definição contínua da relação do homem com o mundo” (Branco, 1989)224. Para compreender tal relação, Engels (DN) aponta para a impossibilidade de basear o momento do pensamento apenas no interior do próprio pensar. O fundamento não se encontra 217 Branco, DCN, p. 100. Branco, DCN p. 102-107. 219 Branco. DCN, p. 107. 220 Branco. DCN p. 109. 221 Engels, DN, p. 20. 222 Branco, DCN, p. 110. 223 Badaloni, Nicola. Sulla Dialettica della Natura di Engels e sull’aualià di una Dialeica Materialista. Annali V.XVII. Milano: Feltrinelli, 1976, p. 53. 224 Branco, DCN, p. 111. 218 77 só no plano interno, ou seja, nas leis do pensamento, mas na necessidade de se externalizar, situando-se também nas leis da natureza. Tal fato demonstra que a atividade prática humana através da qual transforma a natureza é que constitui o fundamento do pensar, e não apenas a natureza intransformada. Essa reflexão evidencia que é através da prática que se condiciona o pensamento, o qual elabora o conhecimento, e não partindo do pensamento em si, conforme concebe o idealismo. A propugnação feita por Engels da dialética da natureza como ciência das conexões, o velho princípio da estabilidade e o conhecimento da natureza como algo de separado (em si) são banidos, observando que “enquanto houver homens a história da natureza permanecerá inseparável da história desses mesmos homens, dado que se condicionam mutuamente” (Marx & Engels, 199)225. Ao entender o homem como natureza, esta passa a caracterizar-se ao mesmo tempo como sujeito e objeto, sem implicar necessariamente que as realidades naturais, enquanto tais sejam consideradas puramente “recursos humanos”. Torna-se aqui imprescindível apresentar, mesmo que de forma sintética, os diferentes planos filosóficos que implicam necessária compreensão da importância da dialética da natureza, numa perspectiva engelsiana. No plano ontológico a unidade do real consiste em sua materialidade. A dialética da natureza implica conceito de matéria ontologicamente aberta, partindo do princípio de que a realidade objetiva existe independentemente da consciência que a reflete, onde “a categoria da matéria abarca não apenas os fenômenos naturais (fenômenos da natureza, o ser físico), mas também o ser social, aspecto fundamental que exprime a originalidade contida nesta definição categorial” (Branco, 1989)226. Propõe o retorno à evidência, à compreensão da natureza tal qual se apresenta, pondo fim aos sucessivos idealismos vividos ao longo dos dois milênios. No plano gnosiológico a natureza é entendida como sinônimo de realidade objetiva, precedendo a atividade cognitiva: o primado do ser em relação ao pensar, ou seja, apenas se pode conhecer o que existe. Assim, o conhecimento se caracteriza também como um fenômeno aberto, não limitado, que além de refutar os caracteres da metafísica, contrapõe-se à concepção de verdades acabadas. Conforme Engels (1976)227, se a unidade do real consiste na sua materialidade, a prova dessa materialidade é dada pelo progresso do conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular. Portanto, ao mesmo tempo em que o sujeito busca a compreensão da realidade objetiva, que se converte em conhecimento, também se constitui objeto desse complexo processo natural. Isto quer dizer que “a estrutura do sujeito é inseparável, desde a sua origem, da realidade objetiva. O sujeito 225 Marx, Karl & Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). S. Paulo: Hucitec, 1991, p. 27. Branco, DCN, p. 138. 227 Engels, AD. 226 78 do conhecimento integra essa própria objetividade de que pretende dar conta” (Branco, 1989)228. Afirma Piaget (1969)229 que “... não há mais um direito de fronteira entre o sujeito e o objeto”. A ruptura das concepções duais implica a urgência da transdisciplinaridade como progresso do conhecimento da realidade objetiva. No plano da práxis tem-se a prática social, que constitui a base do processo cognitivo, negando a clássica dicotomia entre conhecimento e atividade prática. A instauração da práxis como elemento mediador se caracteriza como atividade transformadora do mundo natural e social, ou seja, da realidade objetiva. Com base em tais pressupostos, torna-se possível superar a concepção externalizada da natureza (plano gnosiológico) e entender a materialidade da realidade objetiva, desprovidas das tradições mistificadoras, expressas tanto pelo idealismo quanto pela metafísica (plano gnosiológico e, por conseguinte, epistemológico), para, através da prática social, tendo a práxis como mediadora, proporcionar a necessária transformação com vistas a uma apropriação social da natureza, em busca da justiça social. 228 Branco, DCN, p. 144. Piaget, Jean. Logique et Connaissance Scientifique. Paris: Gallimard, 1969, p. 1244 (Enciclopedie de la Pleiade n. 22). 229 79 PARTE III A GEOGRAFIA DA NATUREZA “Os homens sempre elaboraram falsas concepções de si mesmos, daquilo que fazem daquilo que devem fazer e do mundo em que vivem”. Marx e Engels (IA) 80 A DIALÉTICA DA NATUREZA COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR “O mundo natural é anterior e casualmente independente de qualquer forma de espírito ou de consciência, mas não o inverso”. Engels Como se pôde ver anteriormente, o sistema de produção capitalista, ao longo da sua história evolutiva, tem se utilizado estrategicamente de argumentos ideológicos com o objetivo de manter a própria existência, o que pode ser lembrado desde a externalização da natureza como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, passando pela concepção positivista de sociedade, deslocando a ciência do âmbito da superestrutura para as forças produtivas (dando a ela um sentido tecnológico), deslocando o limite da natureza do campo físico-mecanicista para o biológico como estratégia de sustentação da base material (do inorgânico não renovável para o orgânico renovável)... Assim o sistema tem se caracterizado: pela lógica da repetição como forma de organização e controle do processo produzido, hoje de âmbito globalizado. Nesse contexto de contradições e repetições é que se inserem as ciências que, ao serem cada vez mais empurradas para as forças produtivas, deixam de discutir as questões de natureza epistemológica e ontológica, para produzir uma natureza cada vez mais tecnificada e reproduzir a alienação desejada pelo sistema de produção. Assim, as ciências, embora tendam a modernizar seus discursos teóricos e tecnificar suas bases metodológicas, pouco tem feito para mudar a forma de pensar. Consequentemente, a ciência, da mesma forma que o sistema, passa a se caracterizar pela lógica da repetição sob os auspícios da neutralidade, sabendo que as repetições nunca se dão nas mesmas condições. . Também nesse contexto a Geografia tem se caracterizado por uma tendência de contradições e repetições, bastando observar as transformações ocorridas a partir da Segunda Guerra Mundial, quando se propõe a questionar a Geografia Tradicional sem, contudo mudar a forma de pensá-la. A Nova Geografia resgata o positivismo a partir da década de 60 do século passado, utilizando uma roupagem modernizada, caracterizada pela teoria dos modelos e da quantificação, subsidiada pelos recursos informacionais. A partir da década de 70, aproveitando-se da tendência de pacificação do mundo – enfraquecimento do macartismo – a Geografia e as demais ciências sociais “redescobrem” o marxismo, apresentando uma proposta revolucionária no sentido de repensar o mundo, privilegiando as relações sociais. Contudo, a nova crise paradigmática dos anos 80, marcada pelo 81 desencantamento do “socialismo real”, a nova revolução científico-tecnológica nas forças produtivas e a massificação do modelo produtivista liberal como fim comum enfraqueceram o corpo teórico-metodológico da Geografia Crítica. Esse fato levou ao desenvolvimento de várias tendências, dentre as quais se destaca a de cunho fenomenológico que promoveu uma apologia ao “imaginário social” em detrimento da “cultura materialista”. Mais uma vez percebese o rondar do neopositivismo, aproveitando a crise das ciências sociais, com nova roupagem. Como se pode perceber, ao longo da trajetória do capitalismo a ciência sempre se constituiu numa aliada do sistema, seja como instrumento da superestrutura, reproduzindo a desejada alienação, se caracterizando assim como instrumento ideológico na formação da consciência social, seja como suporte às forças produtivas, através da cientificação da técnica, contribuindo para o desenvolvimento da sua base econômica. Ainda hoje se constata uma forte tendência de a ciência se voltar cada vez mais aos interesses econômicos do sistema de produção, sem deixar de exercer o “dever” ideológico, aproveitando-se do respeito que lhe foi confiado. Este fato pode muito bem ser exemplificado através dos avanços tecnológicos proporcionados pela ciência, que no momento atual promove uma verdadeira revolução nas forças produtivas, utilizada pelo produtivismo liberal como forma de “pacificação de conflitos” da classe trabalhadora. Assim subjuga o trabalhador aos interesses das relações sociais de produção, utilizando como “arma” a tecnificação dos instrumentos de trabalho, capaz de substituir, tanto em nível de eficiência quanto em custo operacional, a força de trabalho. Pensar de Outra Maneira Embora não desconhecendo o suposto cunho utópico que a proposta de se “pensar de outra maneira” implica (a visão teleológica destrói o mito da utopia) e sabendo que as forças econômicas jamais patrocinarão qualquer crítica ao sistema, resta a expectativa apontada por Adorno e Horkheimer (1986)230 de que apesar de o sistema “procurar proteger pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não consegue distorcer as consequências do esclarecimento, sendo necessário insistir e “proferir brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente abalada pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo que possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato em verdadeiro cidadão. É oportuno lembrar mais uma vez a entrevista de Sartre (1980) ao Nouvel Observateur de Paris, demonstrando o sentimento de angústia diante da crise mundial: “eu resisto e sei que morrerei na esperança, mas essa esperança temos de fundá-la. É preciso tentar explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, não é mais do que um momento no longo desenvolvimento 230 Adorno & Horkheimer, op. Cit. P. 111. 82 histórico; que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das resoluções e das insurreições. Eu sinto ainda profundamente a esperança como minha concepção do futuro”. Torna-se um dever das ciências, sobretudo as que possuem compromisso com a formação da consciência social, onde se inclui a Geografia, promover uma ampla discussão no sentido de pensar de outra maneira. Conforme Morin (apud Branco, 1989)231, pensar de outra maneira não significa mudar o mundo, mas sim pensar o mundo. Nessa afirmação encontra-se contida a grande premissa: o reassumir da responsabilidade científica com o intuito de proporcionar o desenvolvimento de uma consciência social crítica, desvendando a essência da realidade objetiva como alternativa de mudança do mundo. Embora o pensar o mundo não signifique necessariamente ‘mudar o mundo’, não deixa de oferecer a expectativa histórica para que tal aconteça. Essa perspectiva se constitui no objetivo maior do materialismo dialético, que aplicado à “dialética da natureza”, no conceito engelsiano, deverá promover uma nova visão geográfica de pensar o mundo, promovendo a revolução epistemológica desejada. Embora a dialética da natureza tenha sido pensada no contexto das ciências naturais, parte-se do princípio de que sendo o homem parte dessa natureza, uma vez que resulta do seu processo evolutivo, se insere nesse contexto. Não se trata de resgatar o neopositivismo como fez o darwinismo social. A dialética incorpora a necessidade do tratamento diferenciado entre as relações sociais e naturais. Assim, natureza deve ser entendida ou associada à história, estando o homem associado a esta pelo processo social do trabalho. Citando Heisenberg232, “a ciência da natureza não pode falar simplesmente da natureza ‘em si’. A ciência da natureza pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer o que disse Bohr233, que no espetáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também, constantemente, actores”. Trata-se de resgatar o conceito de physis dos pré-socráticos, assim definida por Bornheim234: “(...) é a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza: neste sentido, se comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não designa principalmente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se secundariamente ao extra natural”. 231 Branco, DCN p. 276. Heisenberg, Werner. A imagem da natureza na física moderna. Lisboa:Livros do Brasil, 1980, p. 14. 233 Referência a Niels Henrick David Bohr, físico dinamarquês, cujos trabalhos contribuíram decisivamente para a compreensão da estrutura atômica e da física quântica. 234 Bornheim, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:Cultrix, 1982. 232 83 Reafirmando as palavras de Branco (1989)235, no plano gnosiológico o sujeito do conhecimento não é nunca entendido como “espelho passivo” (crítica à referência feita por Schmidt ao conceito de dialética da natureza de Engels), observando que “o pensar não se esgota no reflexo do factual”. Entendendo a natureza associada à história, estiola-se ou se contrapõe à perspectiva da divisão clássica das ciências estabelecida pelo positivismo. Partindo do princípio de que a Geografia tem como objeto de estudo as relações entre a natureza e a sociedade, numa perspectiva histórica, imprescindível ao entendimento do espaço em sua integridade, e considerando os desvios interpretativos e desagregadores promovidos fundamentalmente pelo positivismo, a dialética da natureza aparece como alternativa máxima, na busca da esperada unificação. O pressuposto a ser combatido fundamenta-se no princípio da externalização da natureza, desenvolvido no iluminismo, como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, base de sustentação econômica do sistema capitalista. Se a externalização levou ao desenvolvimento de uma Geografia dual – a Geografia Física e a Geografia Humana - parece mais que plausível rever o conceito de natureza e utilizá-lo como elemento unificador. É nessa perspectiva que se propõe o resgate do conceito de dialética da natureza, numa visão engelsiana, como fundamento para a compreensão das relações sociais de produção da natureza: a natureza como realidade objetiva, refletida pela consciência, resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza: uma dupla manifestação da natureza. Assumindo a dialética da natureza como pressuposto teórico para o novo pensar da Geografia, acredita-se na possibilidade de se resgatar a dialeticidade entre natureza e sociedade, pondo fim à externalização da natureza em relação ao homem, que na verdade refere-se à externalização da natureza para muitos, em detrimento de uma apropriação espontaneísta desta, por poucos, apropriação essa representada por aqueles que detêm a privatização dos meios de produção e consequentemente da própria natureza. É evidente que assumindo a dialética da natureza como pressuposto epistemológico e ontológico, a Geografia estará também se apropriando dos fundamentos do materialismo dialético, aqui sintetizados: a) o materialismo em oposição ao idealismo, partindo do princípio de que o conceito de natureza identifica-se em absoluto com os conceitos de “matéria” e “realidade objetiva”. Assim, torna-se necessário compreender a natureza como matéria em sua integridade, não apenas como os fenômenos da natureza, mas também os da sociedade, resgatando-se o conceito filosófico da “matéria” e não o conceito “científico”, embora este, cada vez mais se aproxime do filosófico. Se o orgânico é “matéria”, consequentemente o pensamento, como resultado deste, também é. Torna235 Branco, DCN, p. 261. 84 se claro, através do materialismo na sua concepção dialética, que o conhecimento resulta da assimilação da realidade objetiva, tendo a prática humana sensível como a base do processo cognitivo. A natureza enquanto sinônimo de realidade objetiva precede a atividade cognitiva, que consiste no primado do ser em relação ao pensar: o primado da natureza em relação ao pensamento humano. Portanto, o conhecimento resulta da prática, ou seja, da assimilação da existência da matéria pelos órgãos sensitivos, de onde se conclui que o conhecimento só é possível a partir da existência da “matéria”, que por sua vez justifica a existência da “realidade objetiva”. Sem a prática percepcional da matéria não existe conhecimento, o que leva a refutar a existência de supostos conhecimentos ou fatos de natureza obscurantista, como as explicações extrassensoriais ou não possíveis de serem materializadas. Tanto a natureza quanto a sociedade devem ser vistas pela Geografia como matérias constitutivas da realidade objetiva, cujo conhecimento produzido deve fundamentar-se nessa essência material, contribuindo para a formação de uma consciência social isenta de explicações obscurantes, disseminadas pelo idealismo, utilizado como instrumento ideológico para a reprodução da alienação e consequente subjugação do homem pelo capital. b) a dialética, em oposição à metafísica, tem por princípio a não existência da matéria desprovida de movimento (princípio da identidade), movimento esse por essência, não repetitivo, contestando a interpretação dos movimentos circulares permanentemente cíclicos ou fechados da matéria e energia. Contrapõe-se de forma veemente o “isolamento das coisas”, partindo do princípio de que há uma dialeticidade imanente, a unidade é indeclinável. Refuta as “divisões eternas e intransponíveis”, considerando a historicidade da matéria, ao mesmo tempo em que se opõe ao “horror da contradição”, admitindo a existência dos contrários como resultado do processo. Nega-se ainda a finitude do conhecimento; resgatando mais uma vez Engels (AD) ao afirmar que a unidade do real consiste na sua materialidade, cuja prova é dada pelo progresso do conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular. Engels (1976)236, ao demonstrar que “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”, refuta a metafísica em tais dimensões. A concepção metafísica da natureza é de que esta se caracteriza como um conjunto de coisas definitivamente fixas, sendo o movimento entendido como “ilusão dos sentidos”. Embora admitindo que a natureza se mova, a metafísica afirma que se encontra animada por um movimento mecânico. “... admitir o movimento (da terra), 236 Engels, AD, p. 172. 85 mas fazer dele um puro movimento mecânico é uma concepção metafísica, porque este não tem história” (Politzer, 1986)237. A concepção metafísica da sociedade, da mesma forma que da natureza, admite mudanças em nível de produção, sucessão de governos, sem, contudo alterar o regime capitalista (manutenção das relações sociais de produção, do antagonismo de classes, privilégios...). Parte do princípio que a história é uma contínua repetição, embora não se negue o movimento, falsifique-o, transforme-o em simples mecanismo. Por último, a concepção metafísica do pensamento parte do princípio de que este não evolui, deixando de oferecer qualquer perspectiva histórica. A sociedade não pode ter outra base senão o enriquecimento individual e egoísta. “... esta maneira de pensar, que nos parece, à primeira vista, extremamente plausível, porque é a do que se chama o senso comum” (Engels238]. Conforme Politzer (1986)239, “chamamos à maneira como vemos o universo de uma concepção; a maneira como procuramos as explicações de um método. (...) a concepção inspira e determina o método muito evidentemente; uma vez inspirado pela concepção, o método reage sobre esta, dirigindo-a, guiando-a”. Com base em tais pressupostos, a dialética da natureza (método), entendida como integridade das relações da natureza e da sociedade, proporciona a superação da relação dual mantida na Geografia (concepção), deixando a natureza de ser compreendida como puro objeto universal do trabalho, para ser compreendida ao mesmo tempo como sujeito e objeto. A instauração da práxis como elemento mediador inviabiliza a oposição sujeito-objeto, pondo fim não apenas à clássica dicotomia conhecimento-atividade prática (Engels), mas também a do homem em relação à natureza em suas derivações deterministas, mantida como forma de legitimação dos interesses do sistema de produção. Não se pode excluir o cognoscente do seu próprio conhecimento, uma vez que o seu próprio objeto emana de um sujeito. Conforme Morin (1986)240, é necessário “reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências (sujeitovivo) e da maior parte das epistemologias, e enfrentar, sobretudo aqui, o problema a nosso ver incontornável da relação sujeito/objeto”. Trata-se de “enfrentar esse problema complexo em que o sujeito cognoscente se torna objeto do seu conhecimento ao mesmo tempo em que permanece sujeito”. 237 Politzer, op. Cit, p. 107-108. Engels, AD, p. 53. 239 Politzer, op. Cit. P. 110. 240 Morin, op. Cit, p. 25. 238 86 A DIALÉTICA DA NATUREZA NA GEOGRAFIA Habermas (1968)241 reconhece a emergência de uma solução sobre a reestruturação do Estado e da sociedade sobre outras faces, diante das crises atuais de racionalidade e legitimação. Rouanet (1989)242, quando se aproxima da realidade nacional, destaca o populismo espelhado na condução política do Brasil, onde as ideias desenvolvimentistas a partir dos anos 50, abrem espaços cada vez maiores para a tecnocracia, aliada aos interesses empresariais, estimulando a modernização desejada pelas oligarquias socioeconômicas – denominada pelo autor de “atitudes irracionalistas”. Nesse contexto a ciência precisa livrar-se dos discursos irracionais, em nome da eficiência e da modernização, captando a dimensão histórica das sociedades em busca da liberdade do homem. Como ponto de partida para uma discussão epistemológica na Geografia, é imprescindível romper com a alienação patológica resultante do modelo de racionalidade do pensamento iluminista, insistindo na necessidade de: a) romper o antinaturalismo, fundamentado na ideologia do “desencantamento do mundo”, que tem por objetivo a substituição da compaixão pelo saber, da “externalização” da natureza interna e externa do homem como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção. Necessário se faz considerar que quanto mais o homem se afasta da natureza, mais longe fica de sua essência, reforçando sua própria alienação; b) utilizar o “viés” ambientalista como estratégia epistemológica, proporcionando a necessária rediscussão do conceito de natureza, apropriando-se de uma função que se possa qualificar de dialética. Nessa perspectiva as relações processuais da natureza devem ser entendidas numa relação dialética, onde as relações sociais de produção e respectiva superestrutura ideológica legitimam a apropriação privada da natureza, produzindo o antagonismo de classes em nome do “desenvolvimento”. É preciso compreender que é o sistema de produção e as forças produtivas que dão à natureza sua existência social. A Geografia, em sua nova postura epistemológica, ao buscar a compreensão dialética da natureza (natureza-sociedade), procura superar todas as formas de determinismo e consequentes relações duais. Assim agindo, resgata não apenas o valor científico 241 242 Habermas, op. Cit., p. Rouanet, S.P. As razões do Iluminismo. S. Paulo: Cia. das Letras, 1989. 87 fundamentado nos postulados histórico-materialistas, como a participação política, negada até então pela roupagem da neutralidade científica, que tem sido indispensável ao processo de desalienação do homem abstrato. Portanto, levar o homem à compreensão de que é um ser natural permitir-lhe-á ao mesmo tempo entender que a natureza lhe pertence, não apenas como substrato material, mas, sobretudo como recurso necessário à sua sobrevivência. Assim, contestar-se-ão todas as formas de alienação, o que sem dúvida implicará rediscussão do conceito de propriedade dos meios de produção, estiolando o crescente antagonismo de classes, buscando a desejada justiça social e levando à necessária compreensão da essência ambiental. Pressupostos para a Compreensão das Relações Processuais A dialética é representada por leis gerais sistematizadas por Hegel, que foram apropriadas e compreendidas numa concepção materialista por Marx e Engels. As três leis anteriormente apresentadas são aqui retomadas, com o intuito de se demonstrar os seus significados para a Geografia: - lei da passagem da quantidade em qualidade - lei da interpenetração dos contrários - lei da negação da negação Tais leis assumem importância fundamental, tanto para a compreensão das relações processuais na natureza como na sociedade, devendo ser entendidas na perspectiva da unidade do real. Alguns exemplos geográficos foram anteriormente apresentados, devendo-se destacar aqui a evolução qualitativa da matéria e sua passagem quantitativa, ou vice-versa, evidenciada ao longo da evolução histórica da natureza, como a própria mutação biológica e origem do novo ser, ou das transformações processadas no tempo e espaço, como resultado do trabalho ininterrupto dos processos modeladores. As mudanças dos componentes do potencial ecológico e consequentemente da exploração biológica, hoje são percebidas mais rapidamente, com a presença do homem motivada pelo processo de ideologização representado pela “dominação da natureza”. Nessa mesma linha tem-se a interpenetração dos contrários. Partindo do princípio de que o movimento da matéria é por essência não-repetitivo, é natural que apresente alternâncias de natureza quantitativa, e, por conseguinte, qualitativas. Nesse contexto as diferenças quantitativas se caracterizam como forças contrárias, que ao longo do tempo se interpenetram, gerando novos equilíbrios transitórios ou “equilíbrios dinâmicos” no 88 conceito de Hack (1960)243. As forças contrárias, responsáveis pelas transformações, não deixam de contemplar as marcas do passado. Isso pode ser observado na natureza, entre os processos endógenos e exógenos da terra, que explicam a evolução dos modelados, ou na sociedade, onde as forças produtivas implicam alterações nas relações de produção com consequentes reflexos na superestrutura ideológica. Portanto, as mudanças qualitativas resultam de ações processuais quantitativas para gerar mudanças, as quais não deixarão de preservar parte do que foi mudado, prova da interpenetração dos contrários. Na natureza, tais alterações se dão ao longo do processo geológico, comandado pelo jogo de forças contrárias: endógenas e exógenas. Na sociedade tais alterações ocorrem ao longo do processo histórico. Nesse caso, sobretudo a partir do Século XVII, as mudanças têm sido muito mais na aparência (paisagem) que em sua essência (espaço). Constata-se a importância da contradição existente das coisas, manifesta na terceira lei, que segundo Engels (AD) constantemente se apresenta e resolve a generalidade dos fenômenos da natureza e da vida. Retomando Politzer (1986)244, com relação à negação da negação “as coisas mudam porque encerram uma contradição interna (elas próprias e suas contrárias); as contrárias estão em conflito e as mudanças nascem desses conflitos; assim a mudança é a ‘solução’ do conflito”. Marx, em relação à negação da negação afirma que no regime capitalista “a propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista surge dela própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da negação”. Ao encarar tal fenômeno como um caso de negação da negação, Marx não tem em mente demonstrá-lo como um fenômeno de necessidade histórica, “pelo contrário; somente depois de haver provocado historicamente o fenômeno (...) que terá necessariamente que se desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a uma determinada lei dialética” (Engels, 1976)245. Conforme Politzer (1986)246, para se compreender as leis das contradições torna-se necessário entender o princípio da mudança dialética e da ação recíproca. O primeiro refere-se à força que move a matéria, o que se denomina de movimento dialético. O segundo princípio caracteriza-se pelo encadeamento dos processos, o que permite compreender o desenvolvimento histórico movido pelo autodinamismo, o que oferece uma perspectiva de evolução continuada. Tais princípios rechaçam os argumentos da metafísica, fundamentados no caráter da “identidade”, marcado pelo imobilismo, e pela “oposição às contrárias”, afirmando que duas coisas contrárias não podem existir ao mesmo tempo. 243 Hack, J.T. Interpretation of Erosional Topography in Humid-Temperate Regions. Amer. Journ. Sci. New Haven, 258-A, 1960, p. 80-97. 244 Politzer, op. Cit, p. 160. 245 Engels, AD, p. 115. 246 Politzer, op. Cit, 89 Reafirma-se aqui a dimensão da importância das referidas leis, sistematizadas por Engels (1976)247 da seguinte forma: “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”. Fica demonstrada, portanto, a imprescindibilidade que apresentam como pressupostos teóricometodológicos para a compreensão dos fenômenos geográficos. Partindo dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo dialético, Joly (1968)248 apresenta os grandes avanços da Geografia Física em relação aos princípios mecanicistas: a) dos processos circulares aos espirais, o que rompe a concepção de eventos repetitivos, não-diferenciados, oferecendo a necessária perspectiva histórica da mudança, contidas nas leis da dialética; b) dos movimentos lineares aos dinâmicos, estiolando a rigidez causal e seus argumentos teleológicos (observa Joly que os argumentos teleológicos ainda rondam os princípios da Geografia Física, ressaltando sua negatividade); c) a função como pressuposto da estrutura, momento em que as relações processuais assumem importância para a compreensão dos fenômenos da natureza; e d) a concepção do movimento no tempo e espaço, que ao serem relativizados, rompem a rigidez das relações causa-efeito. Neste momento torna-se imprescindível chamar atenção para a importância da lei da macroestrutura desenvolvida por Marx e Engels, que Topolski (1973)249 incorpora nas regularidades sincrônicas do método histórico. A discussão que se trava ao conceber as categorias do modo de produção ou da formação econômico-social vinculada ao materialismo histórico parece desnecessária, uma vez que o conceito de materialismo dialético fundamentase no processo histórico. Branco (1989)250 ao criticar Stalin com relação ao tratamento diferencial entre “materialismo histórico” e “materialismo dialético” observa que parece indiscutível que “o materialismo é histórico por ser dialético e é dialético por ser histórico”. A lei da macroestrutura refere-se ao sistema mais amplo, tendo os seguintes elementos: as forças produtivas, as relações de produção e a superestrutura ideológica, já considerados anteriormente. Enquanto as forças produtivas têm a materialização do processo produtivo através do trabalho, as relações de produção (relações dos homens entre si) determinam as formas das relações entre o homem e a natureza (forças produtivas) caracterizadas pela cooperação ou divisão do trabalho, forma de propriedade, forma de distribuição e troca dos produtos... A necessária coexistência das forças produtivas e as relações de produção se refletem na categoria do modo de produção introduzida por Marx251. Observa-se que a Geografia, enquanto paisagem (aparência) se preocupou por um bom tempo exclusivamente com as relações homem e natureza, representadas pelas 247 Engels, AD, p. 172. Joly, op. Cit. 249 Topolski, op. Cit. P. 250 Branco, DCN, p. 262. 251 Marx, SW p. 329 (Contribuição à Crítica da Economia Política). 248 90 forças produtivas, desconsiderando que tais relações estivessem vinculadas ou determinadas pelas relações de produção, e consequentemente amparadas pela superestrutura ideológica. [veja esquema adiante]. A superestrutura é concebida como o próprio Estado, que apresenta papel fundamental no sistema de produção, funcionando como regulador das relações sociais, conservando a ordem social que por sua vez encontra-se definida pelos interesses das classes dominantes. Representa, portanto, a ordem legal e política, bem como ideológica e social, as quais formam a consciência social. Observa-se assim o significado ideológico representado pela educação, pela mídia, pela religião e pela própria ciência, na formação da consciência social. Tais componentes apresentam importante papel na manutenção de interesses ou valores a serem apreciados, sejam eles de caráter econômico, legal, filosófico, religioso, artístico... Nesse contexto é que se entende a função ideológica da ciência e do valor que apresenta como maneira de pensar o mundo para transformá-lo. SUPERESTRUTURA Ideologia Instituições aparte do Estado Estado (fator regulador) RELAÇÕES DE PRODUÇÃO Classe dos Proprietários dos Meios de Produção FORÇAS PRODUTIVAS Classe Exporada Modo de Produção Luta de Classes Formação Econômico-Social Ciência Homem Natureza 91 É nesse sentido que se conclama para um novo pensar da Geografia, fundamentado na dialética da natureza, pondo fim ao processo de externalização da natureza e do próprio homem, proporcionando a formação de uma consciência social crítica, que supere o jugo da dominação, o peso da alienação. Portanto, a Geografia, entendida em sua essência, ou a natureza entendida em sua integridade, carece de fundamentar o conceito de paisagem, materializado nas forças produtivas, considerando o papel determinante das relações sociais de produção e consequentemente da superestrutura, que além de legitimar o processo de dominação, apropria-se dos instrumentos ideológicos para exercer a pacificação dos conflitos sociais. Em síntese pode-se afirmar que nenhum elemento da macroestrutura pode existir independentemente, o que justifica o conceito de regularidades sincrônicas empregado por Topolski. A RELAÇÃO TEMPO E ESPAÇO Necessário se faz ainda considerar a questão do tempo e espaço252. Conforme demonstrou Reeves (1986)253, “o tempo e o espaço são quadros inertes e independentes, que se preenchem em uma dada ordem. Seu único vínculo com os conteúdos (as coisas, os acontecimentos) é (...) o fato de os conterem”. Portanto, “o espaço não está em nós, nós é que estamos nele”, e (...) “o tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da nossa vida (...), por conseqüência, o tempo e o espaço são inseparáveis do que existe fora de nós, isto é, da matéria” (Politzer, 1989)254. Engels (1976)255 observa ainda que “(...) as formas fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do tempo é um absurdo tão grande como um ser fora do espaço”. Engels (1976)256, ao refutar a concepção de tempo e espaço utilizada por Dühring, apropriada de Kant (a antinomia de Kant sustenta que o mundo não tem começo no tempo nem limite no espaço: eternidade no tempo e infinidade no espaço), apresenta a tese de que “o mundo teve um começo no tempo”, sustentada pelo seguinte argumento: “admitamos, com efeito, que o mundo não tem começo no tempo, uma eternidade se teria escoado até chegar a um momento dado, fluindo portanto, no mundo, uma série infinita de estados de coisas sucedidos uns aos outros”. Tal fato demonstra que a infinidade de uma série não pode ser entendida sem que tenha um começo. Portanto, um começo para o mundo é uma condição necessária para a compreensão da sua existência. 252 Não se refere aqui ao conceito de “espaço geográfico”. Hubert Reeves. Um Pouco mais de Azul. São Paulo:Martins Fontes, 1986, p.149-150. 254 Politzer, op.Cit, p.66. 255 Engels, AD, p.84. 256 Engels, AD, p.42-43. 253 92 Na Geografia, a história da natureza começa com a origem da terra, sem desconsiderar que esta integra o movimento de expansão que vem ocorrendo no universo há cerca de quinze bilhões de anos. É nessa dimensão que aparece o homem como resultado do processo evolutivo da natureza – da origem das células à grande árvore darwiniana. Sabe-se que o mundo, no seu estado atual, é o resultado do processo histórico evolutivo. “O universo é apenas matéria em movimento, e esta matéria em movimento só se pode mover no espaço e no tempo” (Lênin, 1962)257. A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA A conversão da natureza em propriedade pelo homem, implicou reificação que consiste nas relações e ações de coisas produzidas por ele, que se tornaram independentes dele, e governam sua vida. A tarefa consiste em “saber administrar essa sujeição”, que na concepção dialética da natureza implica destruição do modo de produção capitalista, como única forma de defender o desenvolvimento das forças produtivas. Para tal, torna-se imprescindível superar as contradições manifestas no tempo entre as relações de produção e as forças produtivas. “Encerra-se assim todo um vasto programa que aponta para a reconciliação da humanidade com a natureza (expressão usada pelo jovem Engels) em consequência da reconciliação do homem com o próprio homem” (Prestipino, 1977) . Para Gurvitch (1977) , afirmar a possibilidade de reconciliação da humanidade consigo mesma e apresentar a via de sua concretização histórica não é o mesmo que dizer ser essa a função da dialética. “Não me parece difícil concluir que a visão dialética da natureza significa a destruição da dicotomia natureza/cultura, e do mesmo passo a recusa de qualquer tipo de sociologismo, biologismo ou antropologismo” (Branco, 1989) . Partindo do princípio de que toda produção marxista fundamenta-se na preocupação em determinar as condições de liberdade real do homem, tem-se a Dialética da Natureza como pano de fundo para o projeto da emancipação humana. “Se a humanidade do homem, como diz Heidegger, ‘repousa em sua essência’, então, no quadro da dialética da natureza entronca o projeto humanista de melhorar o conjunto das relações sociais” (Branco 1989). A Necessária Interdisciplinaridade Ao entender a dialeticidade entre o mundo natural e o mundo histórico-humano, a 257 Lênin, op.Cit, p. 145.. Prestipino, op. Cit. P. 155. 259 Gurvitche, G. Dialectique e Sociologie. Paris: Flammarion, 1977, p. 201. 260 Branco, DCN, p. 124. 258 93 dialética da natureza, pela própria necessidade de conhecer a realidade objetiva em sua integridade, aproxima os diferentes ramos do conhecimento humano, divididos arbitrariamente pela metafísica e também utilizada pela doutrina positivista, proporcionando a verdadeira interdisciplinaridade. É claro que a especialidade deve ser entendida como uma necessidade de evolução do próprio conhecimento, mas sem perder a perspectiva de estar contextualizada, o que com certeza promoverá uma maior responsabilidade da ciência com o novo pensar e consequentemente com uma prática comprometida com os interesses da sociedade. A dialética visa portanto, uma maior justiça social a partir da libertação do homem da alienação, imposta como forma de dominação ou legitimação de “verdades” que interessam exclusivamente aos detentores dos meios de produção. É nesta perspectiva que se reafirma a importância de repensar o mundo como maneira de mudar o mundo, princípio primeiro da dialética da natureza. Marx (1981) afirma que “... não devemos apenas explicar o mundo, mas transformá-lo”. Conforme Morin (1986) , “a rarefação das comunicações entre ciências naturais e ciências humanas, a disciplinaridade fechada (pouco ou nada corrigida pela insuficiente interdisciplinaridade), o crescimento exponencial dos saberes separados, fazem com que cada qual, especialistas ou não-especialistas, se torne cada vez mais ignorante do saber existente. O mais grave é que tal estado parece evidente e natural”, o que foi denominado de “patologia do saber” por Gusdorf (1960)262. Com relação à Geografia, só a integração entre as disciplinas que compõem os conteúdos físicos e humanos já responderia por um salto de qualidade que com certeza, além de superar as expectativas, ofereceria um sentido crítico à formação da consciência social. Com relação a esse aspecto, Casseti em 1993 procurou demonstrar a importância de um novo pensar da Geografia Física numa perspectiva dialética, e em 1996 apresentou as perspectivas para uma Geomorfologia integrativa, ultrapassando a transdisciplinaridade da visão holística, na busca da dialeticidade da natureza.. “[...]. A partir do momento em que a Geografia Física abandonar gradativamente a roupagem positivista e buscar a compreensão dialética da natureza, tende a se aproximar cada vez mais do objetivo de converter a Geografia em uma única ciência”. Assim sendo, ao mesmo tempo em que materializa, através da compreensão da produção da natureza, o conceito de espaço resolve o nó górdio do dualismo histórico, resgatando a necessária postura política em detrimento da ‘neutralidade’, corroborando assim para uma prática social transformadora. Portanto, parece estar mais afeto 261 Morin, Op. Cit. P. 16. Gusdorf, G. Tratado de metafísica. S. Paulo: Cia.Ed.Nacional, 1960. 263 Casseti, Valter. A Geografia ainda “Física” e a Prática Social. Anais do V Simpósio de Geografia Física Aplicada. S. Paulo, USP, 1993, p. 9-12. 264 Casseti, Valter. Abordagem sobre os Estudos do Relevo e suas Perspectivas (Notas Preliminares). I Simpósio Nacional de Geomorfologia.Uberlândia. Sociedade & Natureza, 3(15):37-43, 1996. 262 94 à Geografia Física a possibilidade de uma articulação integral entre os componentes antropossociais e os naturais, principalmente a partir do momento que as preocupações ambientais desse final de século implicam retomada do conceito de natureza, o qual, em sua essência, leva à necessária busca da compreensão dialética. Entende-se que o estágio atual se diferencia fundamentalmente da concepção de ‘ecologia humana’ apropriada pela Geografia no século XIX, ou do caráter positivista da Nova Geografia, levando-a a aceitar que as regularidades que existem na natureza física se encontravam também na realidade social. A Geografia, ainda que ‘física’ num primeiro momento, aos poucos vai encontrando seu caminho, partindo do princípio de que as relações de produção e a respectiva superestrutura, incorporando as forças produtivas, é que dão à natureza sua existência social. A partir da compreensão dialética da natureza (natureza-sociedade), a natureza deixa de ser considerada objeto universal dos meios de produção para assumir, reciprocamente, a condição de sujeito, o que sem dúvida implicará maiores reflexões quanto á apropriação privada, responsável pelo antagonismo de classes, e que até então tem respondido pela forma dilapidante da produção. “O ‘viés’ ambientalista se constitui na estratégia indispensável à verdadeira revolução epistemológica, necessária a uma prática social que resgate os erros do passado” (Casseti, 1993) . Sobre a abordagem da Geomorfologia o autor considera: “partindo do princípio de que a base de sustentação teórica para a necessária abordagem ambiental fundamenta-se na dialeticidade da natureza, fica claro que a Geomorfologia, ao mesmo tempo em que deve se preocupar com a própria fundamentação teórica (a Geomorfologia em si) carece de uma rediscussão epistemológica em busca de uma ‘Geografia Global’”266”. Conforme Branco (1989), “torna imperativo pensar dialeticamente para apreender as novas paisagens da fisis (objetos disciplinares unidos por um traço comum: a dialeticidade). Essa compreensão só se torna possível ao resgatar o conceito de natureza. (...) Compreender a dialeticidade da natureza significa compreender a unidade entre processo histórico natural e a história do homem, o que permite concluir que o processo do pensamento é, ele próprio, elemento da natureza: o movimento do pensamento não está isolado do movimento da matéria, o que se contrapõe ao dualismo psico-físico descarteano – substância pensante e substância meramente extensa – que fundamentou o princípio de que a natureza interna está dominada em pról da dominação da natureza externa.” Assim sendo, preocupar-se com a perspectiva ambiental da Geomorfologia implica preocupar-se com a compreensão dialética da natureza, numa visão engelsiana, o que demonstra ser responsabilidade de todos, em busca da ‘unidade dialética’, que tem sido parcialmente entendida. 265 Casseti, op. Cit nota 169, p. 11. Conceito apropriado de HAMELIN, L.E. Géomorphologie. Géographie Globale – Géographie Totale. Cahiers de Géographie de Québec, 8 (16):199-218, 1964. 266 95 A tendência ambiental da Geomorfologia267, conforme se tentou demonstrar ao buscar a necessária visão holística, pode subsidiar-se metodologicamente dos recursos oferecidos pela transdisciplinaridade, ao mesmo tempo em que se deve repensá-la epistemologicamente, numa perspectiva dialética. “Assim, acredita-se não apenas no necessário avanço da Geomorfologia em si, como também na sua participação para a compreensão da natureza em sua integridade, caracterizando-a como uma Geomorfologia para nós” (Casseti, 1996) . Ao se promover o diálogo entre as ciências na perspectiva da dialética da natureza, torna-se evidente e natural a aproximação cada vez maior das questões científicas às questões filosóficas. Para Morin (1986) , “a crise dos fundamentos do conhecimento científico liga-se à crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, convergindo uma e outra na crise ontológica do Real”, para nos confrontar com “o problema dos problemas [...] o da crise dos fundamentos do pensamento” (Pierre Cornaire citado por Morin, 1986). Observa o autor que sempre houve uma reflexão filosófica sobre a ciência “(...) há, no estado atual, insuficiência da filosofia sozinha, insuficiência da ciência sozinha para conhecer o conhecimento” . Embora sem a pretensão de entender a dialética da natureza como fundamento da epistemologia ou hermenêutica271, torna-se possível entendê-la como imprescindível à necessária integração entre ciência e filosofia, partindo do princípio de que “falar de dialética envolve pensar no movimento, na contradição e na sua integração numa totalidade” (Branco, 1989) ; portanto implica partir de pressupostos filosóficos para entender a materialidade do conhecimento científico em sua essência. Entende-se que a partir do momento em que a dialética da natureza passar a induzir a nova maneira de pensar na Geografia, sem dúvida já se estará aproximando dos conhecimentos científicos produzidos ao longo dos anos em suas diferentes especialidades, tendo as concepções filosóficas representadas pela categoria espaço e consequentemente natureza. O Fim das Verdades Acabadas Partindo do princípio de que o conhecimento é infinito, uma vez que o movimento da 267 Utiliza-se constantemente a Geomorfologia como exemplo, pela especialidade do autor. Casseti, Op. Cit, p. 42-43. 269 Morin, op. Cit, p. 19. 270 Morin, op. Cit, p. 24. 271 Com relação à discussão entre epistemologia e hermenêutica, Rorty apresenta algumas considerações interessantes. Após estabelecer diferenças básicas entre as mesmas – “A hermenêutica encara as relações entre discursos variados como as relações entre partes integrantes de uma conversação possível, uma conversação que não pressupõe nenhuma matriz disciplinar que una os interlocutores, mas onde a esperança de concordância nunca é perdida enquanto dure a conversação (...). A epistemologia vê a esperança de concordância como um sinal da existência de um terreno comum que, talvez desconhecido para os interlocutores, os une numa racionalidade comum” (Rorty, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. RJaneiro:Relume-Dumará, 1995. 272 Branco, DCN p. 273. 268 96 matéria não é repetitivo em sua essência, conclui-se não existem verdades absolutas ou definitivas. Este princípio parece ter norteado a concepção popperiana de ciência, sem considerar aqui as ligações de Popper com as concepções positivistas, que busca através do falseamento de hipóteses a obtenção de novos conhecimentos.. Mesmo se admitindo sazonalidade na natureza ou comportamentos supostamente repetitivos na sociedade, sempre se constatará alguma mudança (primeira lei da dialética), partindo do princípio de que, por ser dialético, o movimento da matéria nunca representará estágio idêntico num determinado percurso, respeitando-se as diferenças temporais que respondem pelo processo evolutivo da natureza e da sociedade. Lembre-se aqui as palavras de Heráclito: “não podemos tomar banho duas vezes no mesmo rio”. Tal fato demonstra que o consenso científico de certa verdade no presente momento não significa a sua permanência enquanto tal ao longo da existência. Observa Engels (1976) , que “desse modo, quem sair por esses domínios à caça de verdades definitivas e em última instância, de autênticas verdades verdadeiramente imutáveis, não conseguirá reunir grandes despojos, desde que não se contente com vulgaridades a lugares comuns da pior espécie, como, por exemplo, o de que os homens não podem viver, em geral, sem trabalhar, o de que os homens, até a nossa época, têm estado divididos, quase sempre em dominantes e dominados (...)”. Politzer (1986) chama atenção para “não considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a ignorância”, o que nos faz lembrar das discussões sobre o “o fim das certezas” em Prigogine275. Em transcrição do programa “Noms de Dieux”276, Prigogine retoma o conceito bergsoniano277 de tempo (a flecha do tempo) e faz esclarecimentos sobre as estruturas dissipativas: “a vida é uma ‘flutuação’ da matéria e, no interior dessa flutuação, você tem outras flutuações”, contestando as concepções deterministas e atemporais da física newtoniana e do universo estático da física quântica. Existem, portanto, verdades relativas mais ou menos duráveis, de acordo com a velocidade das mudanças decorrentes do movimento da matéria, o que implica refutação de verdades absolutas e definitivas, ao mesmo tempo em que implica infinitude tanto do conhecimento quanto dos processos que integram a realidade objetiva. Nesse contexto aproveita-se para considerar a perspectiva histórica proporcionada pela dialética, o que justifica o caráter não finalisticamente utópico da presente proposta. Já que o antifinalismo por ser histórico é dialético oferece uma perspectiva de mudança; ratifica-se a expectativa de pensar o mundo de maneira diferente como forma de mudá-lo. 273 Engels, AD p. 75. Politzer, op. Cit, p. 159. 275 Prigogine, I. O fim das certezas, Tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo:Editora UNESP, 1996. 276 Prigogine, Ilya. Do ser ao devir. Pará:Ed.UNESP-UEPA, 2002. 277 H. Bergson, "Durée et Simultaneité. À propos de la theéorie d'Einstein", Paris, 1922. 274 97 A Geografia, ao apresentar como objeto de estudo as relações entre a natureza e a sociedade, trabalha com uma perspectiva temporal diferenciada, o que permite inclusive. melhor entendimento das transformações produzidas ao longo da história da natureza. Este fato, por si só, oferece a perspectiva de um melhor entendimento da dialética da natureza e da infinitude processual. Com relação à perspectiva temporal, o simples entendimento da evolução da terra, da evolução da potencialidade biológica e da exploração biológica (conceitos de Bertrand, 1978) , do surgimento do homem como resultado desse processo histórico, demonstra a estreita relação entre o mundo natural e o histórico-humano que fundamenta a concepção da dialética na natureza. Com relação à realidade objetiva, concluise que o estágio atual de desenvolvimento da natureza (no conceito dialético) resulta de uma série de transformações fundamentadas em processos complexos e internamente contraditórios, onde a evolução parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a evolução de todas as outras partes integrantes. Como exemplo, os dobramentos modernos resultaram de intenso processo de sedimentação em depressões oceânicas, soerguidas por colisão de placas. Da mesma forma, o intenso processo de colmatação em espaços oceânicos, resultante em grande parte de atividades erosivas dos dobramentos modernos, deverão, num futuro geológico, representar novos dobramentos, com certeza, diferentes dos anteriores. Assim, ao mesmo tempo em que se contrapõe ao finalismo mecanicista, se demonstra a infinitude oferecida pela perspectiva histórica, o que destrói o “mito da utopia”. Lembrando Branco (1989) , “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos saltando da ‘fé’ em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos perfeito para o reino da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a viver nesse imenso heteróclito abandonado por Deus”. A Prática Social da Geografia Como se observou em outro momento, a Geografia nasce dualizada, sob a ideologização do conceito de uma natureza externalizada de interesse capitalista, reproduzindo a alienação ao legitimar a apropriação privada dos meios de produção. Portanto, a Geografia sempre colaborou com esse sistema de produção, exercendo importância fundamental na formação da consciência social, ligada diretamente à superestrutura como instrumento de ideologização. Harvey (1988)280 ao falar da Geografia “burguesa” enquanto campo formal de conhecimento, cita Alexandre von Humboldt (1769-1859) e Carl Ritter (17791859) que, trabalhando na tradição da filosofia natural, “empenham-se em construir uma 278 Bertrand, Georges. La Géographie Physique Contre Nature?. Herodote 26. Paris: François Maspero, 1978. Branco, DCN p. 287. 280 Harvey, David, Geografia. R. de Janeiro:Jorge Zahar, 1988, p. 162 (Dicionário do Pensamento Marxista) 279 98 descrição sintética da superfície do globo como repositório de valores de uso exploráveis (tanto naturais como humanos) e como o ‘locus” de formas diferenciadas de reprodução econômica e social”. Mostra ainda o engajamento da prática do pensamento geográfico em fins do Século XIX no processo de exploração de oportunidades comerciais na perspectiva da acumulação primitiva do capital e de mobilização de reservas de forças de trabalho. Na divisão do mundo em potências imperialistas, a perspectiva geopolítica, tendo F. Ratzel (1844-1904) e H. Mackinder (1861-1947) como precursores, procurou evidenciar a necessária luta pelo controle do espaço, o acesso às matérias primas, ao abastecimento de mão-de-obra e à conquista de mercados, em termos diretos de controle geográfico”. A Geografia não deixou também de prestar importante colaboração ao sistema como força produtiva, ao integrar a “administração racional” (racional quase sempre do ponto de vista da acumulação), participando do planejamento territorial, ao apropriar-se de modelos externos e recursos informacionais, que lhe deu, supostamente, o status sonhado, oferecido pela lógica formal. Se a postura crítica dos anos 70 do século passado “nublou” as expectativas de um engajamento à lógica do mercado, por outro, as perspectivas do produtivismo liberal, decorrentes do desencantamento do “socialismo real”, levaram os geógrafos para o campo das questões ambientais, hoje mais uma vez assumindo funções análogas à da “administração racional” da década de 60, emblematizadas nos zoneamentos ecológico-econômicos e outros instrumentos relacionados à concessão de licenças ambientais. Portanto, há uma tendência cada vez maior na ciência, que também se manifesta na Geografia, de deslocar a prática científica, que antes se fundamentava na formação da consciência social, vinculada à superestrutura, para uma inserção maior no rol das forças produtivas, através da geração de conhecimentos, sobretudo tecnológicos, como forma de desenvolvimento dos meios de produção. Assim, contribui-se para a subjugação da força de trabalho aos interesses do capital: ao mesmo tempo em que estimula o desenvolvimento de novas tecnologias, não deixa de exercer a influência ideológica necessária para a pacificação dos conflitos de classes, não apenas como forma de elaboração do pensamento, mas materializada pelos novos argumentos incorporados às forças produtivas. Para Habermas (1968)281, a cientificação da técnica se dá a partir do último quartel do Século XIX, com a intervenção gradativa do Estado na economia, como forma de estabilização do sistema. Desta feita, a crescente interdependência da investigação científica transforma as ciências na “primeira força produtiva”. Ao mesmo tempo em que enfraquece a teoria do valor-trabalho, uma vez que a força de trabalho vai perdendo sua importância, a cientificação da técnica reproduz a “ideologia da compensação”, promovendo a pacificação dos conflitos de classes, decorrente da revalorização privada do capital. 281 Habermans, op.cit. 99 Conforme Prestipino (1977)282, até que não se solucione o desequilíbrio promovido pelas relações de produção em relação às forças produtivas, as ciências humanas, reguladoras das relações com a natureza, será uma fonte de miséria para o homem, em particular para o trabalhador. Para Engels, “nas atuais relações, também a ciência está dirigida contra o trabalho”. Marx preocupa-se mais com a ciência enquanto força produtiva e como meio de controle da força de trabalho: “as ciências naturais penetram de forma prática na vida humana por meio da indústria e, com isso, transformaram a vida humana (...)”283.. Observa-se com clareza o status das ciências na prestação de relevantes serviços às forças produtivas através do desenvolvimento tecnológico. Hoje, com a ideologização da sustentabilidade, tendo como perspectiva a substituição da base material inorgânica, valorizase a Biologia (Biotecnologia) com o intuito de reinventar a relação técnica do trabalho. Com isso, a ciência de base físico-mecanicista, que ofereceu a sustentação tecnológica (base inorgânica não-renovável) ao desenvolvimento do sistema, se sente cada vez mais ameaçada, uma vez que não tem muito mais o que oferecer na mudança do paradigma técnico-científico fundamentado na diversidade biológica (base material orgânica-renovável). Sem desconsiderar a participação da ciência como suporte ao desenvolvimento das forças produtivas, torna-se necessário evidenciar o compromisso que deve assumir na formação da consciência social. E é com tal expectativa que se insiste na mudança do pensar, sob as novas bases filosóficas da dialética na natureza, como alternativa de mudança das próprias relações sociais de produção, e consequentemente, da superestrutura ideológica. Sabe-se das dificuldades de se conciliar essa prática com os interesses do sistema, o que implica consequências em relação ao mercado de trabalho. Contudo, torna-se imprescindível manter o espírito crítico voltado às possibilidades de transformações, partindo do pressuposto de que as mudanças qualitativas implicam luta de forças opostas (luta das contrárias), resultantes por transformações quantitativas ao longo do processo histórico. O ‘Entrecrise’ e a Razão Dialética284 “Vivemos no interior de um universo paradoxal, espaço de saberes múltiplos, de verdades relativas, de indeterminações, nebulosidades, ambivalências e contradições multimodais (...). O desafio parece ser imenso. É deste convívio com o mundo real, que até aqui sempre nos tenha parecido impossível – irreal, fabuloso, fictício – que nasce o homem moderno, que é, por excelência, o ente em crise. O ‘homem novo’ tão apregoado ao longo de várias gerações, é afinal um ser mergulhado em profundo estado de crise; não por acidente, 282 Prestipino, op.cit, p. 156. Manuscritos econômicos e filosóficos, Terceiro manuscrito. 284 Branco, DCN, in Conclusão, p. 283-287. 283 100 mas por essência” (Branco, 1989)285. É o ‘entrecrise’ em duplo sentido; negativo e positivo. O ‘entrecrise’ negativo, decorrente do desmonte irracional, associado ao desequilíbrio psíquico e o ‘entrecrise’ positivo que assume a própria existência da crise através do recurso de um pensar diferente. “Para que possamos aceitar o pensar em nosso existir moderno como crise, torna-se indispensável alterar o estilo arquitetônico do nosso intelecto” (Branco, 1989286, o que leva a “uma razão dialética capaz de praticar o paradoxo, de pensar o complexo, de se equilibrar no oceano agitado da nova ordem, de se habituar à presença constante do contraditório” (Branco, 1989) : requer aprendizagem. Da mesma forma que o salto qualitativo do Homo credulus para o Homo sapiens requereu aprendizagem, a passagem do Homo sapiens ao Homo dialecticus implica dificuldade suplementar: o da dogmatização da dialética. Repetindo, “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos saltando da ‘fé’ em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos perfeito para o reino da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a viver nesse universo heteróclito abandonado por Deus”(Branco, 1989)288. Ao compreender a relação dialética entre a natureza e a sociedade, não existirão mais motivos para o antagonismo de classes e nem mesmo para uma apropriação espontaneísta e dilapidante da natureza, nos moldes observados no sistema de produção capitalista. Para isso torna-se imprescindível a desalienação do homem ou a conversão do homem abstrato no homem real, que para Marx significa a compreensão das relações histórico-dialéticas, representadas pelas forças produtivas, relações sociais de produção e pela superestrutura ideológica. Num primeiro momento, o homem tem necessidade de se conscientizar de que é natureza, o que romperá a concepção da natureza como objeto universal do trabalho. A partir de então, a natureza (com a incorporação do homem) entendida como sujeito e objeto ao mesmo tempo, permitirá a compreensão da existência da dialética. Só assim será possível pôr fim à histórica dicotomia que se constitui em argumento ideológico para a manutenção dos antagonismos de classes (burguesia e proletariado), de crenças (greco-romana e hebraicocristã) e de raças (apartheid e as diferentes formas de discriminações), além de desmistificar a questão ambiental tida como intrínseca ao desenvolvimento (progresso). Quando o homem se sentir parte da natureza, não existirão mais motivos para se subjugar aos interesses de uma minoria privilegiada, detentora dos meios de produção. Entenderá a natureza como sua casa, não apenas substrato da sua existência corporal, mas recurso indispensável para as suas necessidades inatas e sociais. Não se submeterá aos 285 Branco, DCN, p. 285-286. Branco, DCF, p. 286. 287 Branco, DCF, p. 286. 288 Branco, DCF, p. 287. 286 101 desejos insaciáveis das relações de produção, permitindo a reprodução ampliada do capital. Não permitirá a privatização dos meios de produção e nem se submeterá às condições humilhantes como a produzida pela alienação do próprio ser. Diante disso, torna-se evidente, que a relação com a natureza se dará de forma harmônica, racional; que a produção de excedente como sustentação do acúmulo de capital não mais se justificará, e, por conseguinte, a dilapidação da natureza para obtenção dos recursos será desnecessária, dada a extinção do mercado concorrencial. Quando o trabalhador entender que é um ser natural e que, portanto, a natureza lhe pertence, tornar-se-á evidente a superação da forma de propriedade vigente, com a consequente extinção do antagonismo de classes. Para isso, se faz necessário, num primeiro momento, que o trabalhador assuma a consciência de classe, o que é possível a partir de sua própria desalienação. É natural que o atual estágio cultural depende de mudanças substanciais dos instrumentos responsáveis pela formação da consciência social (religião, ensino formal, mídia...), e de um momento para que a ciência assuma a importância de seu verdadeiro papel, procurando através de uma postura crítica, resgatar o erro histórico que legitimou os interesses do sistema de produção. Assim, a ciência precisa abandonar a roupagem da “neutralidade” científica, que sempre se constituiu em argumento de isenção, o que corroborou para a manutenção do sistema. Como se sabe, só existem dois caminhos na lógica, parafraseando Álvaro Vieira Pinto in Ciência e Existência, 1985289, assim como só existem duas classes sociais distintas e antagônicas. Mantendo esse estado de coisas, manter-se-ão todas as formas de dualismo que implicam diferença de classes. . Com o abandono da propalada neutralidade, a ciência deve assumir uma posição de classe, fundado na lógica dialética, procurando evidenciar a relação homem-natureza num processo histórico, onde os diferentes modos de produção respondam pelas formas diferenciadas de apropriação da natureza. Posto isso, as relações processuais serão analisadas em sua integridade, onde o homem passa a integrar a natureza de forma “natural”, justificando as razões de totalidade da lógica dialética e da importância do processo de desalienação para a verdadeira libertação. Libertação não apenas do jugo da alienação, que determina a condição de homem abstrato, mas a de levá-lo ao reconhecimento de ser naturalsocial e como tal, partícipe de todo processo de materialização da realidade objetiva. Só assim a ciência proporcionará o avanço necessário para assumir um caráter social irrestrito. Essa é a expectativa que precisa ter estimulada na Geografia, há mais de duas décadas em processo de ruptura epistemológica. Mesmo longa, tal ruptura torna-se imprescindível à transformação desejada. 289 Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. R. Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 61ss. 102 Por uma Prática Social Desalienada Ao concluir entende-se que alguns pontos devam ser ratificados como argumento de sustentação científica vinculada a uma prática social fundamentada na necessária desalienação: 1. Compreender as razões da ideologização do conceito de “Natureza Externalizada” como forma de superação da apropriação privada dos meios de produção (tendo a natureza como substrato). Só assim será possível resgatar o conceito de uma natureza unificada, dialética, tendo o homem como resultado do processo de desenvolvimento histórico; 2. Compreender o significado da ideologia como forma de subjugação de povos e nações, quando se torna evidente o papel da superestrutura no processo de alienação. O Estado, através dos seus instrumentos ideológicos (relações jurídico-políticas, científico-culturais...) pereniza a alienação como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção e suas resultantes (inclui-se aqui a ideologização cultural e racial como forma de colonização e dominação, determinada pelos interesses hegemônicos do capital); 3. Compreender as razões que justificam a apropriação espontaneísta da natureza. A privatização da natureza e a sua ideologização como forma de legitimação da propriedade justificam a degradação ambiental em nome do desenvolvimento econômico-social (suposto progresso de toda humanidade); 4. Compreender as razões que justificam a subjugação da força de trabalho aos interesses das relações de produção. Enquanto no passado a força de trabalho assumia relevância no processo produtivo, embora não deixando de se constituir em mais-valia, hoje, com o desenvolvimento científico-tecnológico, tem-se uma nova revolução nas forças produtivas que aliena o trabalhador em nome da obsolescência da luta de classes (a tecnologia como forma de opressão); 5. Compreender as relações entre a superestrutura ideológica e as relações sociais de produção como forma de dominação. Essa relação dialética mantém o jogo de interesses, o que pode ser comprovado na atualidade, “quando as forças mais ativas e poderosas no processo de globalização são os conglomerados e empresas transnacionais” (Rattner, 1995)290, sustentadas por um, modelo de desenvolvimento instituído pelo Estado neoliberal. O poder ideológico da superestrutura e o apoio jurídico-político garantem a implementação do 290 Rattner, op. Cit. 103 modelo de desenvolvimento de interesse dos grupos hegemônicos de produção, ao mesmo tempo em que garante sua própria sobrevivência enquanto instituição; 6. Compreender que “o mundo de hoje não é mais que um momento ao longo do desenvolvimento histórico” (Sartre, 1980)291, refuta o argumento teleológico produtivista liberal de um destino comum da humanidade. Torna-se imprescindível compreender o mundo na sua dialeticidade, o que sugere um futuro histórico marcado pelos eventos e forças políticas (necessidade de superação do finalismo mecanicista, aqui utilizado ideologicamente como forma de pacificação de conflitos e reprodução da histórica alienação como forma de subjugação de povos e nações). Como afirma Engels (LF), “o mundo não deve ser considerado um complexo de coisas acabadas”. Reforça-se tal argumento com o fim das verdades acabadas ou o fim das certezas (finalismo mecanicista), que destrói o mito da utopia. 7. Compreender a necessidade de se “proferir brutalmente a verdade chocante” (Adorno e Horkheimer, 1986)292. Partindo do princípio de que as forças do poder jamais patrocinarão qualquer crítica ao sistema, torna-se necessário esclarecer, desalienar, desmitologizar, desencantar, desnudar, descortinar, desanalfabetizar (Ghiraldelli, 1994)293, enfim, difundir a essência das relações que compõem as categorias do desenvolvimento social, partindo da compreensão da existência do próprio homem enquanto ser natural. Enfim, torna-se necessário mudar a maneira de pensar o mundo, de forma a ajustá-la às novas faixas do real, como afirma H. Reeves em Um Pouco mais de Azul.. Essa perspectiva necessariamente remete a um futuro diferente do atual, e aqui cabe lembrar a arte poética preocupada com o mesmo tema no trecho da música Sonho (Im)possível294, na versão de Chico Buarque:: “(...) e assim, seja lá como for, vai ter fim a infinita aflição, e o mundo vai ver uma flor, brotar desse impossível chão”. 291 Sartre, entrevista citada. Adorno & Horkheimer, op. Cit. 293 Ghiraldelli, op. Cit. 294 Música de J. Dorion e M. Leigh. 292 104 BIBLIOGRAFIA BÁSICA Branco, João Maria de Freitas. Dialéctica, ciência e natureza. Lisboa: Caminho, 1989. Engels, Friedrich. A Dialética da natureza. R. Janeiro: Paz e Terra, 1979.Trad. J.B.S. Haldane. Engels, Friedrich. Dialectique de la nature. Paris: Éditions Sociales, 1975. Trad. Emile Bottigelli. Engels, Friedrich. Anti-Dühring. R. Janeiro: Paz e Terra, 1976. Marx, Karl & Engels, Friedrich. A ideologia alemã. S. Paulo: Hucitec, 1991. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. Marx, Karl. Capital. 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Ao mesmo tempo em que a externalização permite a ocupação diferencial do espaço, fundamentada no poder aquisitivo, legitimando o espontaneismo e por conseguinte os impactos ambientais, o conceito de natureza “hostil” estimula a "dominação" como forma de obtenção de novos conhecimentos para a sustentação material do processo produtivo, expansão territorial e reprodução ampliada do capital. O despertar ambiental, assistido a partir da década de setenta do século passado, implica mudanças de paradigma do capitalismo, que responde investindo na base orgânica renovável, com estratégia à manutenção do sistema vigente: utiliza do argumento produtivista como forma de superação da crise ambiental. O desenvolvimento tecnológico de base científica, responsável por tal revolução, além de implicar na pacificação de conflitos das forças produtivas, agrava o antagonismo de classes. Tudo isso sob a égide da teleologia da globalização. A proposta de romper o argumento do "fim comum da humanidade" é feita a partir do resgate da dialética da natureza na concepção engelsiana, apresentada como perspectiva transformadora. Sem qualquer preocupação em inovar, o trabalho procura despertar para a necessidade de se pensar o mundo de forma diferente, contra a correnteza estabelecida. 113