Universidade de Coimbra FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO Mestrado em Ciências da Educação ABORDAGEM SISTÉMICA EM EDUCAÇÃO Uma Perspectiva em Filosofia da Educação José Farinha Trabalho apresentado à disciplina de FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO PROF. DR. JOÃO JOSÉ BOAVIDA Coimbra, Julho de 1990 C'est leur éducation qui a fourvoyé la plupart des hommes. S'ils croient, c'est parce qu'on leur a appris ainsi. Le prêtre prend le relais de la gouvernante. Ainsi l'enfant s'impose à l'adulte. John Dryden, La Biche et la Panthère. O espírito não criativo é capaz de identificar respostas erradas, mas só o espírito criativo identifica perguntas erradas. Antony Jay, Management and Machiavelli Cogito, ergo sum. Descartes, Discurso do Método Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 3 Índice Introdução .................................................................................................... 4 Temática geral ............................................................................................. 4 A abordagem filosófica do fenómeno educativo.................................... 5 O conceito de educação.............................................................................. 7 Educação como produto ............................................................................ 7 Educação como processo ........................................................................... 8 A abordagem sistémica ............................................................................ 11 A Teoria Geral dos Sistemas.................................................................... 12 Critérios para uma abordagem sistémica da educação....................... 13 Implicações teórico-práticas .................................................................... 16 A abordagem sistémica como instrumento de análise............... 17 A abordagem sistémica como geradora de modelos.................. 18 Bibliografia................................................................................................. 19 José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 4 Introdução TEMÁTICA GERAL As citações apresentadas na página anterior pretendem de certa forma dar o tom que presidirá ao presente trabalho. Existe, com efeito, uma preocupação em analisar o papel desempenhado pela educação nos processos pelos quais cada indivíduo elabora as questões condicionantes das respostas que (in)formam a visão que cada um de nós tem do mundo e da realidade à sua volta. Tentaremos mostrar que a educação é fundamentalmente um processo relacional e, por isso, sistémico. Deternos-emos, ainda, com algum pormenor num conjunto de condições que, quanto a nós, deverão caracterizar qualquer processo educativo que se queira rico e inovador, não limitado a um simples processo de subjugação inposto por uma cultura a todos aqueles que nascem e crescem no seu seio. Para isso situar-nos-emos no contexto da Filosofia da Educação como campo específico e privilegiado de reflexão e questionamento acerca da natureza do fenómeno educativo. Adoptaremos uma perspectiva eminentemente teórica, mas, como esperamos deixar claro ao longo das seguintes linhas, estamos fundamentalmente preocupados em desenvolver e discutir idéias e conceitos que possam ter uma notória incidência prática, isto é, com fortes implicações na actuação dos agentes educativos. Pretendemos, sobretudo, discutir os processos subjacentes à alteração de perspectiva, verificada nos últimos decénios, relativamente às formas de observação, análise e intervenção no campo das ciências humanas e que não podiam deixar de ter importantes consequências no domínio específico da educação. Referimo-nos à linha de pensamento que permitiu saltar de um paradigma reducionista, monocausal e monofactorial, assente José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 5 sobre um determinismo rígido, para uma visão da problemática do fenómeno humano de tipo multicausal, multifactorial e multidimensional, explicando os comportamentos dos respectivos elementos como estando ligados a um campo transaccional complexo. Esta nova forma de entender a realidade tem sido designada, de uma forma geral, por modelo sistémico e veio pôr em causa as concepções tradicionais do homem, nomeadamente as concepções mais radicalmente empiristas, que, aliadas a um determinismo linear, concediam ao homem um papel essencialmente passivo no processo de apropriação do conhecimento. Ora, esta, para além de ser uma questão epistemológica, é igualmente uma questão ontológica, ou, mais precisamente, antropológica. Torna-se assim claro que no campo dos processos humanos esta distinção não é mais possível, e que na educação defender este ou aquele sistema implica necessariamente optar por uma determinada concepção antropológica, quer dizer, uma determinada concepção da educação tem sempre por detrás uma determinada concepção do homem. Este é sem dúvida um campo vasto e complexo, mas, na nossa perspectiva, fundamental como base de reflexão que possa dar sentido à nossa acção meta-educativa, isto é, enquanto educadores de futuros educadores. A ABORDAGEM FILOSÓFICA DO FENÓMENO EDUCATIVO A educação, entendida no seu sentido mais lato, é um fenómeno omnipresente em todas as sociedades e culturas humanas conhecidas, assim como ao longo da respectiva evolução histórica. Da mesma forma que todos os fenómenos humanos é um fenómeno complexo, cujas várias vertentes, dimensões ou factores têm, essas sim, sido objecto de profundas variações de acordo com as sociedades ou períodos históricos. De uma forma geral entende-se que o conhecimento sobre a educação pode ser feito a vários níveis, científico, empírico, filosófico, contudo, a Filosofia da Educação e a História da Educação foram as disciplinas que tradicionalmente de debruçaram sobre o estudo do fenómeno educativo. Apesar da sua importância relativa ter diminuído, a Filosofia da Educação permanece como referência indispensável no quadro das ciências da educação. Com efeito, se entendermos a educação como uma acção consciente e finalizada torna-se claro que a reflexão filosófica sobre o processo educativo tem um papel essencial no sentido de analisar o conjunto de finalidades propostas pelos vários modelos educativos, nomeadamente no que diz respeito tanto à sua coerência interna, isto é, dos fins em si, como à coerência externa, esta referente à sua articulação com outras posições filosóficas mais gerais. José Farinha 1990 6 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação Citando Gaston Mialaret1, podemos, assim, afirmar que "É a análise dos fundamentos filosóficos que permite determinar o carácter exacto de uma situação de educação e dar ao conjunto de caracteres observáveis a sua verdadeira significação." Contudo a Filosofia da Educação não restringe o seu âmbito à análise das finalidades dos vários modelos, implícitos ou explícitos, conscientes ou inconscientes, que determinam a acção educativa, mas tem igualmente como objecto a elucidação dos problemas intrínsecos ao próprio processo educativo, isto é afirmar um determinado número de princípios sem os quais a educação não poderia existir. A Filosofia da Educação, ao conduzir-nos a uma outra forma de análise e de compreensão das situações de educação, dá à acção educativa uma dimensão que as outras ciências da educação lhe não podem atribuir. Reflectir sobre o fenómeno educativo, analisando racionalmente a sua natureza, é, assim, na perspectiva deste trabalho descobrir e analisar as pressuposições sobre as quais assenta qualquer acto educativo. Vimos atrás que as pressuposições acerca da forma como são adquiridos os conhecimentos não podem ser desligadas das pessuposições acerca da natureza humana. Ora, na medida em que cremos que há bons e menos bons processos de fazer educação, cremos igualmente que a elucidação das respectivas pressuposições é uma condição essencial para o aperfeiçoamento das idéias e práticas educativas. A Filosofia da Educação pode ser, assim, definida como uma actividade racional que tem a preocupação de compreender o fenómeno educativo nas suas vertentes mais gerais, integrando os vários aspectos ligados à educação num todo coerente e organizado, essencialmente a partir de quatro níveis que definem outras tantas funções da educação: 1. 2. 3. 4. Análise da linguagem educativa Análise do sentido geral do processo educativo Análise do princípio da educabilidade Explicar as diversas ideologias através de processo teleológico. Como já dissemos atrás o campo da Educação, ao implicar tão diversos níveis e áreas de análise é de tal forma vasto e complexo que qualquer perspectiva generalista será sempre demasiado vaga e, por isso, improfícua. Neste contexto para efeitos do nosso trabalho abordaremos com mais pormenor a problemática relativa ao nível dois, isto é, os processos e pressupostos que têm permitido a evolução da problemática educativa para um entendimento relacional sistémico. 1Mialaret, José Farinha 1976, Pag.82. 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 7 O conceito de educação EDUCAÇÃO COMO PRODUTO Este é talvez o sentido mais corrente no qual é usado o conceito de educação. Com efeito a educação entendida como produto refere-se essencialmente ao resultado de uma acção: educação é aquilo que, bem ou mal, se recebe de algo ou alguém. Pode assim sizer-se de alguém que recebeu uma educação humanista, enquanto outro recebeu uma educação técnica. Nesta perspectiva o conceito de educação aponta para o objecto da educação: aquilo que se ensina, que se transmite. Convirá aqui talvez realçar que esta perspectiva da educação se pode referir tanto aquilo que poderemos designar por educação natural ou informal, como a educação formal, isto é, aquela que tem lugar no contexto de um determinado sistema educativo. É igualmente a este nível que se situam as principais preocupações dos chamados "técnicos da educação" na medida em que concentram os seus esforços no sentido de desenvolver métodos e técnicas que conduzam a uma melhor aprendizagem dos conteúdos entendidos como mais importantes no sentido da preparação para a vida numa determinada sociedade. É igualmente em relação à educação entendida como produto que se avalia o sistema educativo e se baseia toda a política educativa de uma determinada sociedade. Este ponto é, por isso, de capital importância e não deve ser em caso algum menosprezado, contudo isso não justifica que deva ser tomado como única fonte de preocupações, nem a assumpção de estratégias utilitaristas que, pelo seu imediatismo, não poderão oferecer garantias de serem aquelas que mais interessam ao tipo de sociedade que queremos construir. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 8 Abordar a educação do ponto de vista daquilo que é aprendido coloca, por outro lado a questão dos fins e objectivos educativos. Também neste campo se tem verificado uma evolução substancial. Até um determinado momento a educação tinha como objectivo fundamental transmitir à maioria das crianças as noções elementares e os comportamentos sociais indispensáveis para se integrarem na sociedade existente, actualmente, a adaptação a um mundo em constante mobilidade impõe uma renovação permanente dos conhecimentos adquiridos no decorrer da infância e da adolescência. Somos de opinião que uma educação para um mundo actual não se pode limitar à transmissão de conhecimentos, nem mesmo a desenvolver hábitos intelectuais, devendo sim apontar para a personalidade total da criança de modo a despertar o seu sentido humano total, dilatar os seus interesses, apoiando-a nas opções que necessariamente terá que tomar em qualquer momento da sua vida. Trata-se fundamentalmente de desenvolver em cada criança as suas potencialidades, visando um grau de perfeição máxima. Sabemos hoje que a educabilidade do ser humano é muito maior do que se imaginava, de forma que a educação não pode limitar-se hoje a um mero treino de competências, essencialmente baseada na experiência, mas deverá, para além disso, criar no aluno capacidades que lhe permitam apropriar-se pessoalmente dos elementos culturais, prosseguir espontâneamente o seu próprio enriquecimento, isto é, educação para a liberdade. EDUCAÇÃO COMO PROCESSO Um segundo sentido do conceito de educação refere-se segundo Mialaret2: "ao próprio processo que liga de uma maneira prevista ou imprevista dois ou mais seres humanos e que os coloca em comunicação, em situação de troca e de modificações recíprocas." Para podermos entender de forma cabal este nível de análise educativa convém, talvez, determo-nos um pouco sobre o próprio conceito de processo. Para efeitos deste trabalho, partiremos da noção de processo entendido como uma sequência organizada de factos ou acontecimentos. Esta definição ao falar de sequência organizada aponta necessariamente para a noção de causalidade, isto é, o conceito de organização define um sistema de determinações e implicações recíprocas. Ora, é aqui que, na nossa opinião, convém fazer uma distinção importante: no domínio dos acontecimentos 2Op. José Farinha cit. Pag. 13. 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 9 físicos3, a explicação de tipo causal é, em geral, linear. Dizemos, por exemplo que a bola de bilhar B se deslocou nesta ou naquela direcção porque sofreu um embate da bola A segundo um determinado ângulo, e assim sucessivamente. Nas ciências que tratam dos fenómenos vivos, de tipo biológico ou mental4, a explicação recorrendo a um determinismo linear mostrou já as suas insuficiências. Podemos facilmente demonstrar este aspecto verificando que, se, por exemplo, em vez de darmos uma pancada numa bola de bilhar dermos uma pancada num cão é altamente provável que este em vez de se deslocar para longe se volte contra nós e nos morda! O que está aqui em causa não é já uma simples troca de energia5, mas sim a transmissão de informação num determinado contexto6. O funcionamento dos sistemas mentais, tal como dos sistemas biológicos, é determinado pela complexidade dos circuitos causais que define as relações entre os seus elementos. Tais sistemas, mais do que transformadores de energia, devem ser conceptualizados como processadores de informação7. Entendida desta forma a educação ultrapassa largamente o âmbito estritamente escolar, podendo, tal como a educação produto referir-se a situações educativas de carácter mais geral e informal, observando-se em todas as idades e em todas as circunstâncias da vida humana. Se amalisarmos com mais atênção o processo educativo podemos verificar que este envolve uma relação entre dois elementos principais:- O Homem e o conhecimento. É por isso que as ideias fundamentais em Filosofia da Educação 3Para efeitos do presente trabalho situar-nos-emos no domínio da física newtoniana. 4Esta concepção cartesiana tem sido actualmente muito posta em causa por pensadores que acham que não faz sentido uma demarcação rígida a este nível. Se bem que estejamos de acordo com as posições mais recentes nesta matéria, a distinção entre res cogito e res extensa teve, de qualquer forma, uma importância fundamental na evolução das ciências e, dado que o que nos interessa aqui é analisar um processo histórico, partiremos deste princípio. 5No exemplo das bolas de bilhar trata-se efectivamente de transmissão de energia cinética de uma bola para outra, contudo, no caso do cão, se bem que haja efectivamente um efeito newtoniano, pois se a pancada for suficientemente forte o cão pode ir parar a metros de distância, este reage graças à energia que lhe é fornecida pelo seu metabolismo. Neste caso a energia que alimenta a reacção está já disponível, o estímulo (pancada) limitou-se a fornecer uma informação desencadeadora da reacção. 6 O contexto define as regras implícitas no funcionamento de um determinado sistema. 7 Uma unidade de informação pode ser definida como uma diferença que produz outra diferença. Uma diferença que se desloca, sofrendo modificações sucessivas no interior de um determinado circuito, constitui um processo elementar. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 10 assentaram sempre numa determinada concepção do Homem ou numa determinada concepção do conhecimento, ou ainda numa determinada concepção da relação entre o Homem e o conhecimento. São ao fim e ao cabo estas questões que têm organizado de certa forma o sistema axiológico conceptual nem sempre consciente que regula a acção educativa, sejam quais forem os actores nesses processo: - pais, professores, etc.. Do ponto de vista da natureza humana o conceito de educabilidade8, ao afirmar a possibilidade e as condições do acto educativo, tem-se afirmado como um conceito fundamental em Filosofia da Educação. É, com efeito a educabilidade humana, ao permitir que os sistemas de comportamentos individuais evoluam e se aperfeiçoem, que vai possibilitar a emergência daquilo a que chamamos cultura e que paralelamente possibilita a sua transmissão. A educação poderá ser, nesta perspectiva, entendida como um acto cultural, como transmissão de cultura. Do ponto de vista da natureza do conhecimento a filosofia kantiana, ao afirmar a sua complexidade - o conhecimento é uma interpretação que vai evoluindo desde níveis mais empíricos até níveis mais racionais - utltrapassa a oposição clássica entre idealismo e realismo, abrindo uma terceira via de exploração do processo educativo. 8 José Farinha Carrasco, 1987. 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 11 A abordagem sistémica Este trabalho parte da idéia fundamental de que o processo educativo pode ser entendido como um sistema organizado de elementos que interagem entre si de forma significativa de forma a produzirem aquilo que designamos por educação. Parece-nos, assim, que todas as tentativas de compreensão do fenómeno educativo poderão ser mais adequadamente feitas utilizando abordagens que envolvam todos ou os elementos mais significativos de um determinado sistema educativo9. Com efeito, esta necessidade de uma nova abordagem dos problemas, sentida primeiramente no campo da física e biologia e depois no campo das ciências humanas, surgiu da constatação da insuficiência, tanto teórica como metodológica, dos conceitos e métodos tradicionais. Como refere Pierre Delattre: Os trabalhos que, no decurso dos últimos decénios se desenvolveram sob a denominação de Teoria dos Sistemas, nasceram de duas dificuldades perfeitamente claras. A primeira, sobretudo de natureza intelectual, constitui uma reacção saudável e inevitável em virtude do aprofundamento dos conhecimentos anteriores e da consequente multiplicação das disciplinas. A segunda necessidade, de natureza mais prática, resulta da constatação de que o método científico habitual de dissecação analítica e de reconstrução sintética, se revela de 9O conceito de sistema educativo é aqui utilizado num sentido geral, como um conjunto organizado de elementos, e não no sentido estrito referente à organização de normas e regras que definem a educação formal numa determinada sociedade. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 12 uma utilização cada vez mais difícil à medida que surge o interesse por sistemas mais complexos10. Assim, uma abordagem sistémica em educação pode ser definida como uma orientação teórico-prática que se concentra essencialmente sobre os processos de interacção e comunicação entre os membros de um determinado sistema educacional11, mais do que sobre a natureza e dinâmicas individuais de cada elemento, sejam competências, modelos e estratégias do educador ou capacidades, motivações, estratégias cognitivas do educando. A TEORIA GERAL DOS SISTEMAS O modelo sistémico assenta naturalmente sobre o conceito de sistema, que pode ser definido como um conjunto de elementos e as relações entre os elementos. A Teoria Geral dos Sistemas12 define alguns princípios e leis que podem ser aplicados aos sistemas em geral qualquer que seja o seu tipo particular e os elementos e "forças" implicadas. Um sistema apresenta, assim, características e propriedades particulares, não redutíveis às características dos elementos tomados isoladamente. Nas ciências humanas, que num certo sentido podem ser consideradas ciências da vida, mostra-se especialmente adequado o conceito de sistema aberto, quer dizer os sistemas humanos estão contínuamente em relação uns com os outros através de uma troca constante de matérias e informações no interior de um contexto humano mais vasto. Podemos considerar que um sistema aberto tem as seguintes propriedades: Totalidade: Um sistema não é um simples agregado de elementos mas comporta-se como um todo coerente e indivisível de tal forma que alterações significativas ocorridas num determinado membro não podem deixar de ter influência no comportamentos dos outros membros. Auto-regulação: O estudo da dinâmica dos sistemas abertos mostrou que esta se caracteriza pela presença simultânea de duas tendências neces10Delattre, 1981, p.9. a utilização do conceito de sistema educacional no sentido de fazer uma distinção relativamente à noção de sistema educativo, que de uma forma geral define uma determinada organização dos equipamentos, meios e normas que definem o ensino num determinado contexto formal. Definimos sistema educacional como o conjunto de elementos materiais e humanos que interagem num contexto educativo concreto. Este conjunto pode ir desde a díade professor/aluno, até à classe, escola, etc.. 12 Bertalanffy, 1997. 11Propomos José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 13 sárias à sua sobrevivência, uma tendência para a estabilidade (morfoestase) e uma tendência à mudança (morfogénese). Teóricamente todos os sistemas tendem para um estado morfoestático, contudo eles têm que se adaptar contínuamente aos estímulos perturbadores que surgem tanto do exterior como do interior do sistema. A auto-regulação de um sistema efectua-se através de mecanismos de retroacção (feed-back) aos quais um sistema pode reagir positivamente, isto é, aceitando a mudança, ou negativamente, isto é, reforçando o seu status-quo. Equifinalidade: Segundo este princípio as modificações que acontecem num determinado sistema numa sucessão temporal são largamente independentes das condições iniciais. Quer dizer, se quisermos explicar um determinado estado final de um sistema aberto devemos recorrer às regras e parâmetros de funcionamento respectivos, (organização do sistema) mais do que às condições iniciais. CRITÉRIOS PARA UMA ABORDAGEM SISTÉMICA DA EDUCAÇÃO Como vimos, a abordagem sistémica, com todas as suas vertentes e facetas, representou uma revolução ao nível da concepção científica dos problemas em vários domínios da realidade. Uma revolução13 caracteriza-se pelo aparecimento de novos esquemas ou paradigmas conceptuais, assim como pela atenção prestada a determinados aspectos pu problemas até esse momento ignorados ou insuficientemente abordados. Chegados a este ponto, no entanto, parece-nos insuficientemente esclarecida a razão porque supomos que o modelo sistémico pode ser uma abordagem de eleição da problemática educativa. Neste capítulo abordaremos uma série de critérios que, na nossa opinião, fundamentam uma conceptualização do processo educativo ao ponto de podermos dizer que este se comporta como um sistemas e, por isso, pode ser analisado tomando como referencial as propriedades e características apresentadas pelos sistemas em geral. Estes critérios constituem a espinha dorsal deste trabalho, mas nem por isso pretendem ser exaustivos. Muitos outros se lhes poderiam juntar, derivados de perspectivas ou níveis de análise diferentes. Pretendemos, acima de tudo, defender a ideia de que a educação, como fenómeno intrinsecamente humano, não pode, sob pena de aparecer deslocada face ao mundo actual, deixar de ser influenciada pelos desenvolvimentos mais 13 José Farinha Kuhn, 1980. 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 14 recentes na área das ciências em geral e das ciências humanas em particular. Procuraremos demonstrar que aquilo a que chamamos fenómenos educativo acontece no contexto de sistemas que obedecem aos seguintes critérios: 1. Um processo educativo é um conjunto de elementos ou elementos em interacção. Poderá talvez, à partida, parecer supérfulo ou trivial insistir neste ponto. Se o fazemos é porque, se bem que seja por demais evidente que não há acto educativo sem haver, pelo menos duas pessoas, ou uma pessoa em contacto com elementos de informação criados por outros, nem sempre as apreciações que são feitas sobre os problemas educativos têm suficientemente em conta as implicações deste facto. Muitas abordagens pôem, com efeito, a tónica ora nos aspectos ligados ao educando, ora nos aspectos ligados ao educador, nem sempre mostrando o papel da interacção existente entre eles. Nesta perspectiva, o processo educativo funda-se na diferenciação e interacção entre os elementos que participam nesse processo, permanecendo esta, enquanto epifenómeno gerado pela própria situação educativa, como como o aspecto a considerar se quisermos compreender a respectiva natureza. 2. A interacção entre os elementos de um processo educativo é constituído por trocas de informação e é desencadeada por uma diferença. Este critério examina a natureza das relações entre os elementos de um sistema educativo pondo igualmente a questão de saber de que forma essas relações operam no sentido de criar ou produzir aquilo que chamamos educação. Nos sistemas humanos, os elementos do sistema são considerados como fazendo parte de circuitos relacionais, não tendo nenhum poder unidireccional sobre o conjunto do sistema . O que acontece é que uma relação entre entre dois elementos activa uma terceira parte , que podemos designar por receptor, que por sua vez reage a diferenças ou mudanças que ocorrem no contexto dessa relação. Os sistemas perceptivos são um exemplo óptimo desse facto. - sabemos que um estímulo que se mantenha constante deixa de ser percebido como tal14. 14 Alguém poderá objectar que esta regra não se verifica no caso da percepção visual, dado que podemos fixar o olhar sobre um objceto e não deixamos de o ver pelo facto de ele permanecer imóvel. Contudo, os estudos de fisiologia da visão mostram que a retina é muito mais sensível à mudança de estímulo que à presença de um padrão fixo e imóvel. Riggs e colaboradores (Riggs, L. A.; Ratliff, F.; Cornsweet, T. N. - The disappearance of steady fixated visual test objects, J. Opt. Soc. Am., 1953, 43, 495:501) demonstraram que se uma imagem se estabeliza na retina desaparece. Se por vezes conseguimos fixar durante algum tempo objectos perfeitamente imóveis é porque, no sentido de José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 15 Não é difícil de perceber que este critério da mudança é crucial em educação – os sistemas educativos são, ou deveriam ser, sistemas geradores de mudança, de transformação. Só que, por vezes, os processos de mudança são tão lentos que é difícil distinguir entre uma mudança lenta e um estado. A difernça, tendo essencialmente a ver com a relação, só pode ser percebida em determinadas condições. Assim, nem todas as diferenças potencialmente existentes se tornam efecticas, isto é, susceptíveis de afectar o comportamento das entidades capazes de reagir, e, por isso, nem todas as diferenças se tornam elementos de informação. Nesta perspectiva, para que possa haver educação é necessário que haja efectivamente uma diferença de estado entre pelo menos duas pessoas. Contudo, a transformação das diferenças potenciais entre educador e educando sem elementos de informação só se pode realizar no contexto relacional que os une, quer dizer, a partir da partilha de um determinado sistema de significações, um sistema global no qual certas particularidades que existem no educador se possam relacionar com outras existentes no educando. 3. Os processos educativos funcionam a partir da energia colateral fornecida pelos seus membros. Todos os processos, ao implicarem deslocamentos, transformações, requerem uma certa quantidade de energia. Contudo, como referimos mais acima, dado que estamos em presença de um sistema humano, a energia envolvida no processo de reacção está disponível antes mesmo que se tenha produzido o respectivo estímulo desencadeador. Neste tipo de interacção o que é transmitido de um elemento para outro não pode ser já energia, mas sim informação. Nos sistemas humanos, como sabemos, a transmissão de informação faz-se através do processo de comunicação. O estímulo educativo (ele mesmo resultado de um certo dispêndio de energia) tem essencialmente valor como desencadeador da libertação da energia específica do educando. É a isto que chamamos energia colateral esta, tem um papel fundamental na determinação das formas ou vias que um processo educativo poderá tomar, mas não é factor determinante da possibilidade desse processo. Esta possibilidade tem a ver com o conceito de educabilidade humana que referimos noutro ponto deste trabalho. Resta-nos acrescentar que, a nosso ver, a combinação destes dois sistemas compensar essa imobilidade, o globo ocular está continuamente fazendo pequenos e rápidos movimentos - designados por micronistagmos - de tal maneira que obrigas a que as imagens formadas na retina estejam em constante mobilidade relativamente aos cones e bastonetes, que são os orgãos sensoriais terminais. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 16 (mecanismo desencadeador e fonte de energia) cria uma relação que dá a cada um deles uma autonomia parcial15. 4. O processo educativo funciona através de um determinismo circular e bastante complexo. Vimos atrás que no universo material, objecto das ciências físicas, podemos, sem problemas, dizer que a causa de um acontecimento é uma determinada força, ou impacto, procedente de um outro elemento do mesmo sistema. Esta relação define um tipo de causalidade linear no qual A causa B, B causa C, C causa D, e assim por diante, tratando-se, assim, de uma causalidade de tipo determinista e unidireccional. Contudo, verificamos que nos sistemas abertos podem ser definidos processos de retroacção, através dos quais um determinado acontecimento D (output) pode ele mesmo constituir-se como determinante de um acontecimento A, através de circuitos de determinação circulares e complexos. Este tipo de interacção pode ser encontrada em determinados ecossistemas, como, por exemplo, a relação entre espécies. Sabe-se que quando uma espécie A é predadora de outra espécie B pode ser observada uma regulação mútua dos seus efectivos populacionais. A teoria dos sistemas abertos demonstrou que existem basicamente dois tipos de retroacção: retroacção negativa, que, através da redução da diferença de determinados outputs relativamente a determinados parâmetros, tem um papel fundamental na manutenção do funcionamento estável dos sistemas e retroacção positiva, que, através da amplificação dessas diferenças, tende a conduzir o sistema a uma mudança dos seus modos habituais de funcionamento. Considerando a circularidade dos sistemas podemos concluir que os efeitos de acontecimentos verificados em qualquer parte do sistema podem propagar-se e produzir modificações no seu ponto de origem, constituindo aquilo que podemos designar por sistemas autocorrectores. IMPLICAÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS Num trabalho recente elaborado pela UNESCO 17 sugere-se que o papel da abordagem sistémica na educação pode ser conceptualizado a partir de dois níveis distintos: como instrumento de análise, diagnóstico e posterior 15 Um velho aforismo, cuja pertinência é aqui mais que evidenle, refere que podemos conduzir um cavalo até perlo da água. mas nâo podemos obrigá-lo a beber; beber ou nâo é um problema do cavalo. Contudo, é igualmente verdade que por muita sede que tenha nenhum cavalo poderá beber se nâo for levado até à água. Este é o nosso problema. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 17 intervenção num sistema existente ou como instrumento gerador de novos modelos pedagógicos. Terminaremos o nosso trabalho referindo algumas implicações da abordagem sistémica a estes dois níveis. A abordagem sistémica como instrumento de análise A este nível, o modelo sistémico parece-nos ser altamente pertinente do ponto de vista da educação, na medida em que fornece novas possibilidades tanto de análise como de intervenção, permitindo encarar o fenómeno educativo de uma forma mais respeitadora da complexidade inerente a todos os processos sociais e humanos. Situando-nos agora no âmbito mais restrito da educação formal e institucional, concordamos com a UNESCO16 quando afirma que a abordagem sistémica: ...que visa a compreensão da situação e que deve concluir-se por um diagnóstico, é essencial entender da melhor maneira o conjunto dos parâmetros do sistema e, portanto, alargar a compreensão que se tinha da situação. Podemos, assim, concluir que os resultados do processo educativo devem ser entendidos como tendo origem não neste ou naquele elemento de uma situação educativa; mas no próprio fenómeno da relação educativa. Este sistema inter-relacional define um determinado campo transaccional que por sua vez pode ser dividido em subcampos interdependentes como, por exemplo, a biologia e a genética, com os seus factores intermédios (inteligência, maturação, etc..) o estilo de comunicação, o modelo pedagógico/didático, os conteúdos, etc. Esta concepção rejeita naturalmente o reducionismo monocausal, tanto de tipo inatista como empirista, que acabava por centrar a problemática educativa ou no educando ou no educador, conforme o gosto da época. Assim, tradicionalmente, os factores que conduziam a um menor ou maior sucesso educativo eram sempre factores ligados ao educando, normalmente factores cognitivos. Mais recentemente, a pedagogia, veio pôr a questão dos meios e processos educativos, fazendo deslocar o foco da problemática educativa para o campo da acção do educador, procurando optimizá-la em termos da quantidade e qualidade da aprendizagem realizada. Considerando que tanto os factores genéticos, ligados ao indivíduo, como os factores empíricos e sociais, predominantemente ligados ao meio, só muito difícilmente poderão ser alterados significativamente no que diz 16 José Farinha UNESCO. 1980. p.35 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 18 respeito a determinados casos particulares, o ponto de intervenção que oferece as maiores possibilidades de sucesso é o sistema inter-relacional educador/educando. Com efeito, alguns dos modelos pedagógicos actuais como, por exemplo, o modelo da Escola Activa, deram-se já há algum tempo conta deste aspecto, de tal forma que as suas propostas de renovação do sistema educativo dizem essencialmente respeito a questões relacionadas com a relação pedagógica. A abordagem sistémica como geradora de modelos Este é, talvez, o aspecto menos desenvolvido nesta área. Contudo, o período de profunda crise que se vive hoje ao nível dos sistemas sociais não poderia deixar de ter influências profundas nos sistemas educativos. A Escola tem-se, com efeito, revelado uma das instituições sociais mais sensíveis aos vários sinais de transformação a que assistimos no mundo moderno: - a ruptura com tudo o que é antigo, o abandono das mentalidades religiosas colectivas, a necessidade de liberdade individual, o aparecimento das novas tecnologias da informação, fizeram explodir as estruturas existentes, não se tendo cuidado muitas vezes em criar alternativas. Na nossa opinião parece-nos ser este o caminho que terá de seguir toda a reflexão presente e futura sobre o fenómeno educativo. Neste sentido, a abordagem sistémica parece-nos a mais frutífera como matriz geradora de modelos e práticas alternativas respeitadoras da complexidade inerente aos fenómenos relacionais humanos, bem como na definição de objectivos que ultrapassem a compartimentação típica da pedagogia institucional, que apontem para uma formação global do Homem ao nível do pensar, sentir e agir, preparando a sua integração dinâmica no mundo e na sociedade. José Farinha 1990 Abordagem Sistémica em Educação – Uma perspectiva em Filosofia da Educação 19 Bibliografia ARIP - Pedagogia e Psicologia dos Grupos, Lisboa, Livros Horizonte, 1975 BATESON, G. - Vers une écologie de l'esprit, I, II, Seuil, Paris, 1977, 1981 BERTALANFFY, L. von - Des robots, des esprits et des hommes, Paris, ESF, 1982 BERTALANFFY, L. von - Teoria Geral dos Sistemas, Vozes, Petrópolis, 1977 DEBESSE, M. - Les Étapes de l'Éducation, Paris, PUF, 1961 DELATTRE, P. - Teoria dos Sistemas e Epistemologia, Lisboa, Regra do Jogo, 1981 GAL, R. - História da Educação, Lisboa, Vega, 1979 GILBERT, R. - As Idéias Actuais em Pedagogia, (5ª Ed.) Lisboa, Moraes, 1986 GUNTERN, G. - La Revolution Copernicienne en Psychothérapie: Le Tournant du Paradigme Psychanalitique au Paradigme Systémique, Thérapie Familiale, Genève, 1982, vol.3, Nº1, p.21-64 KEENEY, B. - What is an Epistemology of Family Therapy, Family Process, 21:153-168, 1982 KUHN, T. 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