Resenha crítica do artigo: Ensino de Filosofia de uma perspectiva

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RESENHA CRÍTICA DO ARTIGO: ENSINO DE FILOSOFIA DE UMA PERSPECTIVA HISTÓRICOPROBLEMATIZADORA
O artigo procura defender uma determinada abordagem no ensino de Filosofia no
ensino médio, a abordagem histórico-problematizadora. Esta abordagem busca fugir de duas
práticas infrutíferas, mas muito comum nas salas de aula: a mera exposição, esvaziada de
sentido, de doutrinas e sistemas de pensamento da tradição filosófica; e um tipo de prática
que, na intenção de desenvolver o pensamento crítico e se relacionar com o cotidiano do
aluno, aborda de maneira superficial questões não-filosóficas, ou não filosoficamente
elaboradas, de modo que é incapaz de introduzir o aluno na prática específica da filosofia,
mantendo suas habilidades argumentativas no nível da mera opinião.
Antes de expor em que consiste tal abordagem, é esboçada uma posição sobre em que
consiste a própria Filosofia e a sua atividade. Inicialmente apropria-se da noção de
Gramsci de que a Filosofia é uma “[...] contínua solução de problemas colocados pelo
desenvolvimento histórico” (GRAMSCI, 2001a, C10, §31, p. 343). Só esta colocação, mesmo
sem explicitar a noção de problema, já é o suficiente para pôr em xeque aquelas duas
abordagens comuns que pretende evitar. Se por um lado, uma abordagem que se mantem
num mero debate de temas atuais é obviamente incapaz de expor como a prática filosófica se
relaciona com um desenvolvimento histórico, uma exposição linear de doutrinas filosóficas
não oferece ao aluno uma ideia concisa de que é a Filosofia, pois ainda que seja visível alguma
unidade quando se estuda doutrinas contrárias sobre uma mesma questão filosófica, por
exemplo, o racionalismo e o empirismo, a noção de Filosofia apresentar-se-ia provavelmente
muito vaga quando se tentasse abarcar dentro dela doutrinas que não dão ênfase a um
mesmo problema, ainda mais quando pertencem a momentos históricos muito distantes. Qual
o sentido aparente, por exemplo, em se estudar a ética de Epicuro e a teoria da ciência de Karl
Popper dentro da mesma disciplina escolar?
O artigo prossegue caracterizando a atividade filosófica de acordo com o que Platão
apresenta no diálogo O Banquete: o filósofo busca o saber por se encontrar em uma posição
entre o ignorante, que nem mesmo de sua ignorância tem consciência, e o sábio, que já possui
o saber. Sendo assim, a prática filosófica parte do “só sei que nada sei” socrático, de uma
postura de admiração diante das crenças costumeiras, admiração esta que “requer um
distanciamento das crenças costumeiras que permita sua problematização.”(SILVEIRA, Ensino
de Filosofia de uma Perspectiva Histórico-problematizadora, pág 6).
Quanto à noção de problema, o artigo se apropria da definição de Saviani: “uma
questão, em si, não caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta é desconhecida;
mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema.
Algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber,
eis-me, então, diante de um problema. (SAVIANI, 2007, p. 17).” Desta noção, ressalta ainda
que o problema possui duas facetas: uma objetiva, a necessidade de saber algo que não se
sabe; e uma subjetiva, a consciência desta necessidade. Desta dualidade aparece a primeira
consideração sobre o ensino de filosofia, mais precisamente, sobre a ação do professor:
“Ocorre que ambas as dimensões subjetiva e objetiva da necessidade nem sempre são
imediatamente percebidas pelos alunos, necessitando de uma ação mediadora que as explicite
e faça com que sejam apreendidas pela consciência individual.” (SILVEIRA, Op. Cit, pág 8)
Esta ação mediadora, esta ação de problematização, assemelhar-se-ia talvez a ironia
socrática. Idealmente, mais que a mera exposição de um problema, o professor deve procurar
meios de produzir de fato no aluno a experiência de admiração e dúvida. Pode-se aí encontrar
mais um argumento a favor de um ensino de Filosofia que tome a tradição como referência,
pois confrontar as opiniões dos alunos com concepções produzidas em contextos históricos
muito diferentes (a Grécia Clássica, a Europa medieval, por exemplo) parece ser, se bem
articulado com outros recursos, por assim dizer, “mais atrativos”, um bom recurso para causar
um distanciamento do senso comum.
Por fim o artigo passa a apresentar as explicitamente as implicações desta concepção de
Filosofia sobre o ensino no Ensino Médio. Começa por apontar a necessidade de um ambiente
dialógico em sala de aula, pois se um dos objetivos da disciplina Filosofia no Ensino Médio é
desenvolver habilidades de pensamento crítico, a relação entre o professor e o aluno não pode
ser de mera “transmissão de conhecimento”. Considera ainda a opinião de Marilena Chauí
sobre o diálogo entre professor e aluno:
“A esse respeito, porém, Marilena Chauí tem uma posição instigante. Para ela, a relação professoraluno é assimétrica, de modo que, a rigor, não pode haver diálogo entre eles, pelo menos no ponto de
partida do processo pedagógico. E é preciso reconhecer essa assimetria, para não transformar o diálogo em
uma caricatura, em um engodo, em um mecanismo ideológico de dissimulação da própria assimetria que
concorra para perpetuá-la.” (SILVEIRA, Op. Cit., pág 12)
Para Chauí:
“O diálogo é ponto de chegada e não ponto de partida, só se torna real quando o trabalho
pedagógico termina e o professor encontra-se com o não-aluno, o outro professor seu igual”. (CHAUÍ, 1980,
p. 39)
Procuremos compreender no que consiste tal assimetria. No ponto de partida do
processo pedagógico o aluno não estaria apto nem a defender uma posição, tampouco a
considerar adequadamente a posição do professor, pois aquele não teria como este um
familiaridade com um conjunto de problemas que a tradição procurou colocar de maneira
radical, nem teria desenvolvido suas habilidades lógico-argumentativas no sentido de ser
capaz de argumentar de maneira rigorosa, para além de pontos-de-vista parciais e
particulares. Sendo assim, o processo pedagógico não seria um diálogo entre o aluno e o
professor, ”o diálogo do aluno é com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e
nas práticas sociais e transmitidas pela linguagem e pelos gestos do professor, simples
mediador” (CHAUÍ, 1980, p. 39).
Novamente o professor é retratado como um mediador da relação entre o aluno e a
Filosofia (seja na forma de sua produção material ou dos problemas colocados e recolocados
ao longo de sua história), como aquele que dota a produção filosófica de sentido e apresenta
parâmetros para sua leitura (que problema filosófico devemos ter em vista quando o lemos,
quais as pretensões teóricas e práticas de tais textos, etc.). É interessante contrapor esta
concepção da função pedagógica do professor de Filosofia com a concepção de que o
professor é um tradutor das obras filosóficas, apresentada por Lídia Maria Rodrigo em sua
obra Filosofia em Sala de Aula – a qual também defende uma abordagem que se não pode ser
enquadrada como histórico-problematizadora, ao menos defende tanto o recurso à tradição
quanto ao desenvolvimento da habilidade de problematização.
Podemos considerar que se é apenas em contato com a tradição que se pode
desenvolver o pensamento especificamente filosófico (não que não seja possível desenvolve-lo
do zero, mas seria como fazer com que os alunos deduzissem sozinhos os axiomas, teoremas e
fórmulas nas aulas de matemática, abrindo mão de todo o seu legado), a principal função do
professor é fazer com que os alunos estabeleçam uma atitude filosófica diante daqueles
textos, e portanto sua principal função seria o que foi esboçado como ação mediadora.
Entretanto as obras filosóficas se referem mais que frequentemente a própria história da
Filosofia, de modo que muitas vezes é preciso que o professor seja de fato um tradutor de
conceitos e do vocabulário especificamente filosófico (sem contar ainda o fato de que muitas
vezes precisa compensar um déficit da competência de leitura entre os discentes). No ponto
final ideal do processo pedagógico, poderíamos ainda considerar que a função do professor se
reduziria apenas a uma – por falta de termo melhor – ação agenciadora, ou seja, seu
conhecimento de história da Filosofia serviria apenas para apresentar textos e autores
relevantes a este ou aquele problema aos alunos, que já teriam desenvolvido o pensamento
crítico e a habilidade leitora e o arcabouço conceitual específicos da Filosofia, e com os quais o
professor já poderia estabelecer um diálogo propriamente dito.
Se olharmos para a história da Filosofia, veremos que os filósofos, entre si, executam
não só esta ação agenciadora, recuperando textos da tradição em seus debates, como também
executam a ação mediadora, quando recolocam aos seus “adversários” problemas da maneira
que considera de fato pertinente e frutífera, procurando estabelecer uma nova relação com a
tradição, e também agem como tradutores, quando interpretam de determinada maneira um
texto ou um conceito.
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