3.4 DELINEAMENTO ÉTICO – JURÍDICO DA NOVA ORGANIZAÇÃO SOCIAL Os fundamentos propostos para a nova organização social, a desconcentração e a cooperação, devem inspirar mecanismos e instrumentos que conduzam a transformação da sociedade no rumo de sua humanização. O fato de serem instrumentos operacionais não deve, no entanto, retirar deles sua dimensão ética. Seria incorrer no mesmo equívoco esquecer essa dimensão, e retornar à mera proposta de resultados imediatos. Assim, os instrumentos concretos da proposta, encontram um conteúdo ético que pode ser expresso da seguinte forma: − a desconcentração, tem na participação seu componente ético; − a cooperação, o tem na solidariedade; − a sociedade humanizada, deles decorrentes, os realiza no equilíbrio social, ou na justiça; na harmonia, ou na equidade, no amor e na paz. Não há como não retornar, mais uma vez, à profética percepção de Theilhard de Chardin, para dizer que todos esses elementos têm na amorização do mundo, a essência de seu conteúdo ético, substituindo a ganância, o conflito, o ódio, a competição e a concentração. Conclui-se, no entanto, que se a humanização do mundo é incompatível com a visão alheia a valores e a alma essencial da sociedade, comprometida apenas com comportamentos “ práticos” . Também não constitui uma perspectiva meramente ética, que possa ser acusada de proposição alienada ou alienante. Na verdade, a ética, entendida como adequada conformação dos comportamentos ou das estruturas à natureza do ser e das relações, mais do que nunca nesse mundo complexo a que chegou a humanidade, constitui uma imposição de sobrevivência do mundo. Ética consistente, porque é essencial, que não pode ser confundida com o moralismo ao sabor das ideologias ou da diminuição das dimensões humanas, de seu enquadramento ou de seus preconceitos. Importante é perceber que, em reação inconsciente ou não, nos “ práticos” , esta nova ética do terceiro milênio, já se manifesta nas aspirações que podem ser identificadas na sociedade. Quando as pessoas conscientes, as novas gerações, clamam pela paz, pelo amor, pela cooperação, pela solidariedade, pela justiça, pelo respeito aos direitos humanos, pela preservação da natureza, estão instintivamente expressando os conteúdos éticos dos fundamentos propostos para a organização da sociedade humanizada. É para esses sentimentos difusos, às vezes contraditórios e até equivocados, que é necessário dar respostas adequadas em termos da nova organização social, humanizada e coerente com o mundo transformando. Esta é a outra dimensão, ou a dimensão essencial da revolução do terceiro milênio. É neste contexto, também, que a nova ética deve inspirar uma inovadora percepção jurídica ou um novo direito, igualmente coerente com a sociedade humanizada. Este direito há de constituir a forma como os valores sociais – ou a ética, no sentido de expressão da natureza das coisas e de sua evolução, são transformados em normas que presidem a organização da sociedade, ou simplesmente transformam valores em normas e instituições. Se os valores e a ética evoluem e evoluem, coerentes com a natureza do ato de evoluir, uma das características necessárias ao novo direito está em sua capacidade de inserir nas instituições os valores ou a ética em transformação, para que os valores e a ética não evoluam simplesmente, ao sabor da mudança tecnológica, ou dos condicionamentos que ela impõe, ou dos interesses dos que dominam. Ou que simplesmente, não evolua de forma alguma. Através dessa contínua inserção, o direito e a organização social, ou as instituições que ele regula, se tornam dinâmicos, adequados continuamente ao processo e às aspirações, ou aos sonhos da sociedade, evoluindo em ritmo mais próximo da transformação ou das mudanças tecnológicas e permitindo superar, dessa forma, a desritmia do processo. Esta perspectiva implica uma revisão, não só conceitual, mas sobretudo prática, do direito positivo no sentido de que deixe de ser, predominantemente, um instrumento de estratificação de valores, usos e costumes, para transformar-se em instrumento de ordenação dos processos de mudança ou de transformação social. De acordo com a importância e a velocidade que assume o processo social, o novo direito deve instrumentar-se com capacidade adequada de ordenar as coisas novas, de definir as linhas e os limites dessas coisas, de reordenar os resultados da mudança, antecipando sua organização, para que a organização e a convivência humana ocorram como expressão da natureza das mesmas coisas e de seus processos. Desta forma, o direito passa a ser um instrumento de extrema importância na evolução do processo social, ou na revolução do terceiro milênio, em vez de ser um mecanismo apenas conservador, aplicando soluções válidas em outros contextos, mas em contínua defasagem em relação a um mundo transformado ou em transformação, que guarda pouca relação com o que foi o passado. Este é o desafio a ser assumido pelo novo direito. Isto quer dizer que os fundamentos da nova organização social – a desconcentração e a cooperação e os conseqüentes direitos à participação e dever de solidariedade, ou viceversa, devem se transformados em princípios jurídicos ordenadores dessa nova sociedade. A transformação de princípios éticos em princípios jurídicos permite, à moda de reflexões finais, algumas considerações sobre a questão da solidariedade (o componente ético da cooperação) e da participação (o componente ético da desconcentração). Em relação ao conceito de solidariedade, pode-se fazer um paralelo entre o que ocorre hoje e o que, em épocas remotas, ocorria em relação ao conceito de justiça. A justiça constituía um preceito ligado à virtude, e não ao direito ou à lei. O cidadão não era obrigado a ser justo. O mais forte podia oprimir, escravizar e até matar o mais fraco. Os códigos, em geral, admitiam isto, que hoje é inadmissível: a lei e o direito do mais forte prevalecendo sobre a noção da justiça. Nesta concepção, a justiça era uma virtude, e justo era o homem virtuoso, respeitado por isto, por sua comunidade. Esta concepção da justiça de então, equivalia, de certa forma, à concepção que se tem hoje da solidariedade. A solidariedade, mais do que objeto e lei, é considerada virtude da cidadania. A lei não obriga ninguém a ser solidário. O conceito de solidariedade está no âmbito da virtude, que é um passo além da justiça, embora o direito permita, às vezes, interpretar a justiça e estendê-la ao dever da solidariedade como exigência extrema da justiça. É nesta linha que precisam caminhar as instituições. Não basta que o cidadão solidário, como outrora o justo, seja considerado virtuoso e possa ser louvado por sua virtude. É preciso que a solidariedade se imponha como norma jurídica, porque nas condições de hoje, do absoluto poder do mais forte, só a solidariedade permitirá realizar a justiça. A globalização, a interdependência, a imensa distância que vai entre os que detêm a riqueza e, portanto, o poder e a tecnologia em relação às legiões de excluídos, impõe esse avanço nas instituições. Considerações semelhantes podem ser aplicadas ao conceito de participação, contrapartida ética da desconcentração. Reconhecida a participação como objeto de direito e, portanto, das normas de convivência, é necessário criar instrumentos que garantam o exercício da participação, o acesso universal à participação. Não só a propriedade é um direito. Também a participação o é, e é necessário que o princípio, aliás, reconhecido em grandes linhas como um direito social, gere conseqüências. A universalidade da participação se refere ao conjunto da sociedade, das pessoas que a compõem, e das diversas dimensões da vida em sociedade. Não se trata apenas da participação na renda, ou nos bens materiais; trata-se do acesso, também, aos bens culturais, à vida política, às relações ou convivência, enfim, a todas as dimensões que constituem o homem e as suas circunstâncias, como o concebeu Ortega e Gasset.* O reconhecimento da participação como princípio jurídico, além de princípio ético e, portanto, objeto do direito positivo se constituiria em vigoroso instrumento de viabilizar a desconcentração, contribuindo para levar os bens para perto das pessoas, ampliando os acessos. O reconhecimento efetivo do direito à participação, como norma jurídica, obrigaria a definir políticas de desconcentração, contribuindo no apressamento do advento da sociedade humanizada, e permitiria, objetivamente, frear medidas – inclusive políticas governamentais –, adotadas em favor da concentração e, portanto, excludentes, desumanizadoras. Esta é também outra dimensão da revolução do terceiro milênio. * Ortega e Gasset – citação esparsa.