Efeito da CAE (Artrite-Encefalite Caprina) na saúde e produtividade de cabras leiteiras Roberto Soares Castro Prof. Dr. Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Medicina Veterinária - Área de Medicina Veterinária Preventiva Rua D. Manoel de Medeiros, S/N, Dois Irmãos. 52171-9000-Recife,PE E-mail: [email protected] Introdução A Artrite-encefalite Caprina (CAE) é uma Lentivirose de caprinos, caracterizada por incubação longa, variando de meses a anos; evolução assintomática ou com sintomatologia progressiva e irreversível, culminando com o agravamento dos sintomas e morte. A doença é causada pelo vírus CAEV (caprine arthritisencephalitis virus), que apresenta semelhança molecular e biológica com o vírus visna-maedi. Devido ao fato de ambos vírus já terem sido isolados tanto de caprinos como de ovinos, tem-se adotado, genericamente, a terminologia Lentivírus de Pequenos Ruminantes (LVPR). Essa enfermidade tem sido motivo de preocupação para os produtores e pesquisadores, por ser de controle relativamente difícil, em decorrência, dentre outras coisas, da indisponibilidade de vacinas e ao fato de estar amplamente disseminada em plantéis de alto padrão genético. Além do aspecto econômico pelas perdas causadas à ovino-caprinocultura, os LVPR têm despertado grande interesse por apresentarem certas características biológicas peculiares, também comuns ao HIV 1. Nesta apresentação serão abordadas algumas características gerais da infecção por LVPR em caprinos, enfatizando sua importância para a produção. Epidemiologia Os LVPR têm sido notificados em diversos países, com prevalências mais elevadas nos que apresentam ovino e caprinocultura mais tecnificadas. No Brasil, além de descrições clínicas e anatomopatológicas, a ocorrência de animais soropositivos tem sido registrada em vários Estados: Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Maranhão e Paraná. O reservatório e a fonte de infecção dos LVPR são os animais infectados, que transmitem o agente por meio de secreções ou excreções ricas em células do sistema monocítico-fagocitário. Entre os caprinos, a transmissão ocorre, geralmente, pela ingestão de colostro e leite contaminados. Apesar de ter um significado menor, a transmissão horizontal, por fezes, saliva, secreções respiratória e urogenital e, sobretudo, leite contaminante dos copos das ordenhadeiras mecânicas, tem sido considerada importante, dependendo da situação particular de cada criação. Além disso, parece ocorrer transmissão vertical, pois tem sido observado soroconversão em cabritos que foram separados imediatamente após o parto e receberam colostro e leite de vaca, pasteurizados. Embora haja registro de soroconversão de um ovino em contato prolongado com caprinos infectados, a transmissão interespécie só foi demonstrada em condições experimentais. A transmissão venérea ainda não foi confirmada, apesar da detecção de RNA viral no sêmen de carneiros naturalmente infectados e do vírus no sêmen de ovino experimentalmente infectado por LVPR e Brucella ovis. Após introdução dos LVPR em uma criação, a freqüência de animais soropositivos e clinicamente afetados, bem como da intensidade das alterações são bastante variados, dependendo de certos fatores relacionados à intensidade de estresse, tipo de nutrição e condições gerais de higiene. A infecção por LVPR acomete animais de ambos os sexos, várias raças e idades. Apesar dos relatos de maior prevalência em determinadas raças e em animais do sexo masculino, não se pode concluir pela maior susceptibilidade racial ou de acordo com o sexo, pois os estudos são de difícil interpretação devido aos vários fatores ligados ao manejo e origem das diferentes raças. Entretanto, um fator muito importante é o tempo de exposição para a soroconversão, pois tem-se observado que a freqüência de soropositivos é maior em animais mais velhos. Em rebanhos com alta taxa de infecção a soroprevalência pode ser bastante elevada, mesmo entre animais jovens. Aspectos clínicos e anatomopatológicos A infecção por LVPR, geralmente persistente e assintomática, pode causar afecção multissistêmica, de evolução geralmente crônica com agravamento progressivo das lesões, perda de peso e debilidade até a morte. Do ponto de vista clínico e anatomohistopatológico a expressão da infecção por LVPR tem sido classificada em quatro formas básicas: nervosa, artrítica, respiratória e mamária. Além dessas formas, há registro, em animais soropositivos, de alterações inflamatórias nos rins, proliferação de células linfóides no baço e linfonodos e infiltração mononuclear do endométrio. A forma mais importante em caprinos é a artrítica, geralmente observada em animais com mais de oito meses de idade. As alterações, aumento na consistência e tamanho das articulações, são observadas, comumente, nas articulações carpianas. Ao exame macro e microscópico observam-se lesões típicas de processos degenerativos e inflamatórios, que afetam os tecidos conjuntivos periarticulares, bolsas sinoviais, tendões e bainhas tendinosas. A apresentação pulmonar é muito freqüente e grave entre ovinos e mais rara e de menor gravidade entre caprinos. Os sintomas são tosse, dispnéia após exercícios físicos, taquipnéia, macicez pulmonar, som úmido à auscultação e comprometimento do estado geral. Durante as necrópsias observam-se aderências pleurais, pulmões pesados e firmes à palpação e áreas róseo-acinzentadas. Os achados microscópicos são de pneumonia intersticial e broncointersticial. As cabras afetadas apresentam mamite aguda ou crônica. A aguda é observada no início da lactogênese, pelo endurecimento não edematoso do órgão com baixa ou nenhuma produção leiteira. A crônica, instala-se durante a lactação com assimetria e endurecimento da mama e produção de leite de aspecto normal. Em ambas as formas há hipertrofia persistente dos linfonodos retromamários e, histologicamente, mamite intersticial, com presença de nódulos linfóides. A forma nervosa é de menor importância, tendo sido relatada em cabritos, de um a quatro meses de idade ou, menos frequentemente, em caprinos mais velhos, em associação com a forma artrítica. Os animais, mesmo mantendo o apetite e atividade mental normais, apresentam ataxia e paresia uni ou bilateral dos membros posteriores, que evolui para tetraparesia. As lesões microscópicas são de meningo-encefalomielite e desmielinização. Resposta imunológica A infecção por LVPR é responsável pela indução, em intensidade variada, de resposta imunológica celular e humoral, que não protegem contra a multiplicação viral. Estudos seqüenciais têm revelado resposta humoral em torno da terceira a quinta semanas após infecção, todavia, os anticorpos neutralizantes são produzidos tardiamente, em quantidades limitadas, e são de baixa afinidade, de forma que não interrompem o ciclo de replicação viral. A resposta celular é caracterizada pela proliferação de linfócitos responsáveis pela destruição de células infectadas, porém não destroem as que não expressam o provírus. Os anticorpos passivos adquiridos pela ingestão de colostro persistem em níveis detectáveis no soro de cabritos por menos de seis meses e não interferem com a susceptibilidade à infecção pelos LVPR. Diagnóstico Pelas características da infecção persistente por LVPR, a forma mais prática de diagnóstico laboratorial é a sorologia, pois a presença de anticorpos demonstra, indiretamente, a existência de infecção. Por outro lado, o diagnóstico direto da infecção, pelo isolamento e identificação do agente, não é rotineiramente empregado por ser demorado e bastante dispendioso. Alternativamente, tem-se utilizado, em condições ainda experimentais, porém com grandes possibilidades de uso rotineiro, a reação em cadeia de polimerase (PCR), para amplificação do DNA proviral ou do DNA sintetizado in vitro pela RT (RT-PCR), a partir do RNA viral. Dentre os testes sorológicos disponíveis, a imunodifusão em ágar gel-IDAG tem sido amplamente utilizada. Entretanto, devido a maior sensibilidade e possibilidade de quantificação e automação, vários ensaios imunoenzimáticos (EIE) têm sido desenvolvidos para pesquisa de anticorpos séricos, usando-se antígenos CAEV, visna-maedi, ou proteína recombinante desses vírus. O uso de proteínas recombinantes tem causado problemas de resultados falso positivos, o que tem resultado na substituição desse tipo de antígeno pelo do vírus completo. Também tem sido adaptado um EIE para pesquisa de anticorpos no leite ou colostro, sem grandes vantagens em relação aos testes com soros. Para detecção qualitativa de anticorpos contra as principais proteínas virais, tem-se recomendado, inclusive como gold standard, as técnicas de western blotting e imunoprecipitação. Devido a restrição da expressão gênica, ou na fase precoce da infecção, vários animais infectados por LVPR são soronegativos por períodos bastante variados. Nesses casos, a PCR tem se apresentado como potencial alternativa na identificação de animais com sorologia negativa ou dúbia. Vários sistemas, com oligonucleotídeos iniciadores derivados das sequências dos genes gag ou pol, foram desenvolvidos para detecção de DNA proviral ou RNA viral em leucócitos, células do leite, de lavado brônquio-alveolar e do líquido sinovial. Como alternativa para aumentar a quantidade do produto amplificado e permitir sua visualização pela coloração com brometo de etídio, tem-se usado iniciadores internos à região inicialmente amplificada, pois geralmente os produtos só são detectados após hibridização com sonda específica do fragmento do gene aplificado. Outro método de detecção de ácidos nucleicos virais, porém de uso limitado, é a hibridização in situ. Efeito na pridutividade e medidas de controle A moderna produção pecuária deve ser fundamentada na exploração animal, em condições de bem estar e de respeito ao ambiente, com elevada produtividade, visando o atendimento das necessidades humanas, de forma socialmente justa e humanitária. Assim, para se atingir esses objetivos, é essencial o conhecimento de fatores que interferem com a saúde animal, bem como o controle dos custos da produção. Para isso tem sido desenvolvido, nos últimos anos, a disciplina de Economia da Saúde Animal, que tem como objetivo estruturar os conceitos, procedimentos e dados para dar suporte ao processo de tomada de decisão na otimização do manejo. No caso específico da CAE, a avaliação das perdas é dificil, pois se trata de doença de evolução geralmente crônica, resultante da complexa interação de vários fatores produtivos. Além disso, o teste diagnóstico comumente usado para CAE tem sido a IDAG, que não detecta certos animais com infecção recente ou que soroconvertem tardiamente, resultando na indevida classificação de animais usados na formação de grupos para avaliação de perdas. Apesar dessas limitações, alguns estudos têm sido conduzidos. Os resultados disponíveis, as vezes contraditórios, indicam que ocorre diminuição da vida produtiva e produção leiteira, redução na duração do período de lactação, predisposição da glândula mamaria às infecções bacterianas, retardo no crescimento das crias, aumento da mortalidade de cabritos e diminuição da eficiência reprodutiva. Por outro lado, as perdas indiretas são significativas e decorrem da desvalorização dos rebanhos, reposição precoce de animais que desenvolvem os sintomas, despesas com medidas de controle, pesquisa e desenvolvimento, barreiras comerciais para produtos de multiplicação animal (matrizes, reprodutores, sêmen e embriões), dentre outras. No Brasil, a importância relativa de eventuais perdas causadas pela CAE está relacionada com a prevalência da infeção (e doença), distribuição do efetivo caprino e sua organização produtiva. Estima-se que o rebanho caprino brasileiro seja de cerca de 11 milhões de cabeças. Desse total, cerca de 90% estão distribuídos nos Estados da Região Nordeste, 7% nos da Sul e Sudeste, que apresentam organização produtiva bem diferentes. Na Região Nordeste a exploração caprina foi estabelecida no século XVI e continua sendo praticada, em larga escala, principalmente no Polígono das Secas, onde são criados, predominantemente, animais sem raça definida (SRD), que representam importante meio de subsistência e de fixação do homem nas terras semi-áridas. Atualmente, devido à manutenção das demandas externa e interna de peles e carne e, sobretudo, a crescente demanda de leite, tem-se evidenciado o surgimento de núcleos produtores de caprinos de raças leiteiras, localizados mais próximos dos grandes centros urbanos. Vários registros de animais soropositivos para CAEV têm sido realizados nessa Região, que têm demonstrado alta prevalência (cerca de 30%) da CAEV em animais de raças especializadas para produção de leite e apenas casos esporádicos (cerca de 3%) têm sido observados em animais SRD ou nativos, criados de forma tradicional. Nas Regiões Sul e Sudeste a caprinocultura foi estabelecida mais recentemente e se caracteriza, predominantemente, pela exploração de animais leiteiros. Essas criações apresentam prevalência de animais soropositivos para CAEV semelhante à observada nos caprinos leiteiros do Nordeste. Considerando-se que o vírus da CAE encontra-se amplamente disseminado nos animais de raças leiteiras e que há disponibilidade de tecnologias para combater a doença, é necessário elaborar um programa de controle, que propicie condições futuras para sua erradicação, minimizando, assim, perdas nas criações leiteiras do país e evitando a disseminação do vírus entre os animais nativos e SRD da Região Nordeste. Nos primeiros surtos de visna-maedi, na Islândia, as medidas de controle foram baseadas no sacrifício dos animais doentes e dos contactos, e repovoamento das fazendas com animais provenientes de rebanhos que não foram expostos a animais doentes. Atualmente, programas de controle da infecção por LVPR, majoritariamente de adesão voluntária, têm sido adotados em vários países. Com base na realidade Brasileira, propõe-se, em linhas gerais, um programa cujas ações envolvam os produtores, através de suas Associações, e os setores públicos Federal e Estadual, seguindo os seguintes princípios: voluntariedade na adesão ao programa; estímulo aos participantes através das Associações e outras Instituições envolvidas, com certificação dos criatórios livres do vírus; interdisciplinariedade das ações, resguardando as atribuições previstas para cada Instituição participante; controle da CAE preservando e, se possível, multiplicando, o material genético disponível. Na execução de um programa desse tipo deve-se estimular a adesão do maior número possível de produtores, dispor de apoio financeiro dos agentes de crédito e de respaldo técnico (para pesquisa e extenção) na execução de todas as ações do programa. É fundamental se trabalhar com a perspectiva da futura erradicação da doença, através de medidas de política sanitária mais rigorosas, definidas no âmbito dos Serviços de Defesa Sanitária Animal, que deverão incluir o teste e sacrifício de animais. Nessa ocasião, os produtores que já tiverem erradicado a doença, através do programa voluntário, não sofrerão perdas. Para se obter êxito em tal programa propõe-se o seguinte esquema básico: definição do status do rebanho através do teste sorológico de todos os animais acima de seis meses de idade, repetido periodicamente; rebanhos negativos devem ser oficialmente certificados como livres do vírus da CAE; definição de como manter o status livre: fechamento parcial (aquisição de animais apenas de rebanhos livres ou de animais soronegativos provenientes de rebanhos sem definição do status) ou total do rebanho; monitoramento dos rebanhos parcial ou totalmente fechados; nos rebanhos positivos deve-se definir quais medidas deverão ser adotadas visando o controle e erradicação da doença, que devem envolver o monitoramento periódico de todos animais com separação e(ou) eliminação dos positivos, além de medidas de manejo que diminuam o risco de transmissão do vírus, como: separar as crias imediatamente após o nascimento, evitar o contacto com secreções e isolá-los dos adultos; administrar colostro termicamente tratado, de mães não infectadas ou de vaca; alimentar as crias com substitutos do leite; testar os animais a intervalos regulares e separar ou eliminar os positivos; adotar a linha de ordenha; controlar a monta com reprodutores positivos; e usar material estéril, para evitar a transmissão através do sangue contaminado. 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