Entrevista com Osvaldo Pessoa Jr. (Centro Acadêmico da Filosofia, março 2003) 1. Primeiro, fale um pouco de sua formação, de como nasceu seu interesse pela Filosofia da Ciência, há quanto tempo você está nela. Desde a adolescência me interessei pelos problemas eternos da humanidade, em especial aqueles ligados à ciência. Cursei Física e ao mesmo tempo Filosofia na USP (naquela época podia). O filósofo que me inspirou mais foi o Bertrand Russell e, seguindo seu exemplo, resolvi primeiro me aprofundar na ciência para depois virar filósofo. Acho que agora chegou a hora de eu virar um filósofo de verdade! Digo isso porque sempre vivi às margens da comunidade filosófica nacional. Depois de fazer um mestrado em Física na Unicamp, e cursar um ano do famoso Mestrado em Lógica e Filosofia da Ciência coordenado pelo Porchat, passei cinco anos fazendo doutorado no Depto. de História e Filosofia da Ciência da Indiana University, nos Estados Unidos. Especializei-me em filosofia da física, especialmente da física quântica. De volta ao Brasil, em 1991, descobri que esta área de filosofia da física não tinha muito espaço nos departamentos de filosofia. Comecei então a trabalhar com pesquisadores da área de Ensino de Física, mas sempre fazendo o que considero ser filosofia, uma filosofia da natureza que focalize a ciência atual. No período 1998-99 trabalhei como professor visitante no Instituto de Estudos Avançados, da USP. Minha proposta de pesquisa era trabalhar na área de “ciência da ciência”, usando a computação para representar aspectos relevantes da ciência. Entrei bastante na história da ciência, e um dos resultados foi uma abordagem nova à teoria da ciência, que pretendo desenvolver aqui na Filo. Nesse período, também, fui um dos organizadores do evento Visões de Ciência – Encontros com Sokal e Bricmont. Interesso-me muito pela questão da cientificidade das ciências humanas, e gostaria de estudar isso na Fefelech – já tenho interagido com pesquisadores da psicanálise e da lingüística. Nos últimos três anos morei na Bahia, participando do Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências, onde pude dar aulas sobre vários temas que me interessam: filosofia da física quântica, filosofia da biologia, auto-organização e complexidade, teoria da ciência e história da física moderna. 2. Qual sua área de preferência na FC? Qual sua área de pesquisa? O que pesquisou e vem pesquisando nos últimos anos? Tenho trabalhado principalmente em duas áreas: filosofia da física e ciência da ciência. Na filosofia da física, meu foco de estudo é a física quântica. Em breve lançarei um livro que oferece uma abordagem conceitual a este assunto. O assunto é um pouco difícil, mas para quem gosta de filosofia da natureza é um tema fascinante. Ela apresenta uma ontologia diferente da que estamos acostumados, e não existe apenas uma maneira filosoficamente interessante de explicála, mas muitas (ou seja, há muitas “interpretações” diferentes)! Assim, há muita pesquisa a ser feita por filósofos. Conforme a interpretação, temos um mundo onde algo pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, ou pode ocorrer em dois instantes diferentes... O passado pode se atualizar apenas no presente, ou um evento na estrela de Sírio pode nos afetar instantaneamente! Além dessas questões ontológicas, há também todo um complexo de questões epistemológicas que convidam paralelos com sistemas clássicos de filosofia: a inseparabilidade entre sujeito e objeto, etc. 1 Nesta área, trabalhei com os seguintes tópicos: problema da medição, definição do tempo, complementaridade, interpretações e teorema de Bell. A pesquisa em ciência da ciência, desenvolvida no IEA, acabou resultando num estudo sobre histórias “contrafactuais” da ciência, ou seja, histórias possíveis que não ocorreram! Partindo do estado da física no ano de 1800, postulei quatro grandes caminhos pelos quais a física quântica poderia ser descoberta (sendo que apenas um deles foi de fato trilhado). Acho que uma das grandes vantagens de ser filósofo é que podemos especular sobre coisas que pesquisadores de nenhuma outra área se permitiriam estudar! Imagine a reação de um historiador profissional quando um filósofo vem especular sobre fatos que não aconteceram! Estudar o que aconteceu já dá tanto trabalho! Mas no caso da ciência e da tecnologia, existem restrições fortes ao seu desenvolvimento, restrições estas que permitem vislumbrar com algum grau de confiança diferentes histórias possíveis. Uma coisa interessante deste estudo é que, meio sem querer, desenvolvi uma teoria da ciência diferente, centrada em “unidades de conhecimento”, que chamei de “avanços”, e que consistem de idéias, descobertas, técnicas experimentais e matemáticas, dados, problemas, explicações, definições, etc., ou seja, qualquer forma de conhecimento que um cientista pode passar para outros. Na análise feita, tais avanços são ligados por relações causais (ou seja, uma descoberta de um cientista “causa” o desenvolvimento de outro avanço por parte de outro cientista). Existiria assim uma complicada rede de relações causais, que pode ser estudada a partir de “modelos causais” desenvolvidos na última década. É este o estudo que apresentei ao Departamento de Filosofia como meu projeto de pesquisa. Um pergunta que sempre me acompanha é saber se o que eu faço pode ser considerado “filosofia”. Acho interessantíssima a pergunta “o que é filosofia?”. Para que tipo de pesquisa o Comitê de Filosofia do CNPq (por exemplo) deve dar dinheiro? Para um historiador da filosofia, naturalmente, que estuda, digamos, a ética kantiana. Mas e um pesquisador que pretende desenvolver uma ética aplicada aos problemas contemporâneos, por exemplo, relacionada aos avanços da genética? Existe filosofia fora da tradição grega? Se sim, o estudo de filosofias orientais, africanas ou ameríndias mereceriam financiamento? E a lógica: quando ela é filosófica e quando ela é matemática? E filosofia da ciência? Há uma linha divisória entre filosofia política e ciência política? 3. Conte-nos como vê o papel da FC hoje, comente sobre sua importância num mundo em que a ciência tem esbarrado com freqüência na ética -- o que tem colocado publicamente, na mídia inclusive, o debate sobre a suposta "neutralidade" da ciência e sua (des)vinculação com a política, a cultura, o social. Qual é o papel da Filosofia da Ciência hoje? Uma boa pergunta. Qual é o papel do filósofo em nossa sociedade? Ao filósofo é delegado o direito de refletir sobre o assunto que ele queira, de maneira crítica e original, sem ter que se especializar em áreas restritas; ao filósofo cabe refletir sobre o todo, sobre as relações entre as diferentes áreas do saber, entre as diferentes épocas e entre as diferentes culturas; e cabe ao filósofo ensinar ou exercitar o pensamento crítico com os membros da sociedade. Nessa linha, o papel do epistemólogo seria refletir criticamente sobre o conhecimento em geral. A filosofia da ciência seria uma sub-área da epistemologia. O papel do filósofo da ciência seria refletir criticamente sobre a ciência, tanto a ciência passada quanto a atual. Há uma divisão básica na Filosofia da Ciência: há uma abordagem geral e abordagens específicas. O que estudamos nos departamentos de filosofia é a abordagem geral: o que é explicação? qual o fim da ciência? como ela progride? qual o papel da observação e da teorização? qual o seu método e seus valores? etc. A abordagem específica parte de uma área particular da ciência, como a teoria da relatividade ou a biologia evolutiva, e examina seus conceitos, problemas e relações com outras áreas (inclusive a ética) sem se deter muito nas questões técnicas da área. 2 A questão da ética relacionada à ciência contemporânea é muito interessante e importante, mas é pouco explorada em nossos departamentos de filosofia, ficando mais nas mãos de teólogos, médicos, cientistas, educadores, sociólogos e jornalistas. Isto porém poderia mudar, já que a ética pode ser considerada uma área da filosofia aplicada. 4. Falando em ética, em política, em social: como você vê a questão da divulgação científica para o público leigo? Na sua avaliação, ela vem sendo realizada de modo adequado? Esta é uma questão multifacetada, mas eu diria que, em primeira aproximação, a divulgação é razoavelmente boa. Não é excelente como na Grã-Bretanha, mas hoje há várias revistas sobre o assunto, seções de jornais, e espaço na televisão, especialmente a cabo. Que papel o filósofo da ciência poderia ter na área de jornalismo científico? O Caetano Plastino vem atuando nesta interface, certamente ele poderia esclarecer a questão. Uma questão que me atrai é a da pseudociência, definida e criticada pelos partidários do chamado “ceticismo científico”. Muitos cientistas excelentes aceitam a possibilidade de transmissão de pensamento, do acerto das previsões astrológicas, de regressão para vidas passadas, etc. Mas macacos velhos como eu acreditam que isto tudo é enganação, de dois tipos: ou enganação proposital (como o Uri Geller) ou auto-enganação (como de uma tia minha que jura de pés juntos já ter presenciado levitação). Este assunto é raramente discutido em nossa educação científica, no Ensino Médio e Superior. No entanto, uma educação “científica” deveria discutir mais o que seria uma visão de mundo científica, e menos – especialmente para quem não vai se tornar um especialista – fornecer um catálogo de definições, fórmulas e explicações. Este é um exemplo de como um filósofo da ciência poderia contribuir para a questão da educação científica. Com relação à divulgação científica, seria interessante também examinar as concepções ingênuas de ciência que são transmitidas pelos jornais, em nome do sensacionalismo. 5. Como sua pesquisa se alinha ao trabalho que desenvolverá na USP? Quais suas expectativas em relação ao Departamento de Filosofia? Que tipo de trabalho pretende desenvolver conosco? Minhas expectativas com relação ao departamento são as melhores possíveis. Os grupos de Filosofia da Ciência e de História Filosófica da Ciência reúnem professores e alunos excelentes, e servem como referência para muitos grupos de pesquisa espalhados pelo país. A tradição uspiana de História da Filosofia, que remonta à fundação da Faculdade e à influência da análise estrutural de textos (Goldschmidt, Guéroult, Lebrun, etc.), é uma tradição sólida e profícua. Eu, pessoalmente, me coloco fora desta tradição, pelo fato de estar mais preocupado com a filosofia da ciência contemporânea. Mas acredito que qualquer filosofia brasileira original para o século XXI, a ser desenvolvida em nossa universidade, deva partir ou pelo menos incorporar esta tradição (numa nova síntese dialética). Mas o que seria uma filosofia original para o século XXI? Seria “original” no sentido de não ser apenas uma leitura de textos clássicos. Ela poderia ser uma filosofia “aplicada”, aplicada à ciência, à medicina, à sociedade, à ética, à arte contemporâneas. Ou então ela poderia incorporar técnicas contemporâneas, como a computação. Seria possível usar a computação para fazer filosofia? Por fim, imagino que seja possível desenvolver novas abordagens metafísicas, inspirando-se em parte nas descobertas da ciência moderna, da psicologia e da lógica, mas também mantendo o diálogo com a tradição filosófica. Por falar em tradição filosófica, esposo uma concepção que está em moda agora, a dos “world philosophies”, de que as tradições filosóficas de diferentes culturas são igualmente relevantes. Por sinal, vocês sabem qual é considerada a mais original contribuição brasileira para a filosofia mundial? A teologia da libertação! 6. Você dará seu primeiro curso no próximo semestre. Pode nos adiantar o programa (mesmo que apenas o esboço dele) e explicar seus objetivos nesse primeiro contato? 3 Eu darei o curso de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência II, que é optativo. Procurarei dar continuidade ao curso de TCFC I, dado pelo Pablo, investigando a questão da mudança científica e acompanhando as discussões sobre a racionalidade científica. Já preparei as primeiras aulas, mas quero travar contato com os alunos, saber o que eles já leram, o que eles gostariam de estudar, para decidir a maneira mais interessante de continuar a disciplina. 7. Alguns dados pessoais: idade, onde lecionou antes da USP, interesses fora da FC, onde nasceu e onde foi criado, que tipo de influência os ambientes familiar, social e cultural exerceram em você e em sua escolha profissional, alguma coisa sobre sua infância e/ou adolescência que indique (ou não) o caminho que você viria a tomar depois. O que mais você quiser falar. Bem, tenho 43 anos, sou paulistano, filho de cientistas. Sou casado, tenho três filhos entre 9 e 10 anos, e irei morar numa chácara nos arredores de Campinas. Gosto de futebol, atletismo e xadrez. Minhas primeiras influências foram Perdidos no Espaço, Jeannie é um Gênio, Tintim e Ademir da Guia. No Colégio Santa Cruz, líamos Sartre e nos falavam de uma “experiência negativa”, mas continuei sendo ateu. Adoro a Filosofia por causa de sua generalidade, mas estou sempre atento para evitar a arrogância e o uso excessivo de jargões. Gosto de cinema, especialmente aqueles filmes que pedem decifração, como “Cidade dos Sonhos” (D. Lynch) ou “Malpertuis” (quem se lembra?). Gosto de rock, MPB e clássica. Há vinte anos atrás estudava na Filosofia e participava de uma comissão cultural do CAF. Organizamos um evento sobre a descriminalização da maconha que teve alguma repercussão. Gosto de misturar filosofia e humor, e é desta época que escrevi um trabalho abobrinhesco sobre o conceito de Kopfschmerz na obra de um filósofo pouco estudado, Werner Schmoe. Quem quiser pode ver uma versão recente do texto no sítio http://www.fis.ufba.br/dfg/pice/ludico/zucchini.htm ! 4