Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral TRADIÇÃO GRAMATICAL: CONTRADIÇÕES DO ENSINO Ana Maria Pires Novaes* Costuma-se pensar o ensino da língua como ensino de gramática, e o ensino de gramática como o ensino de regras. [...] Ensinar gramática é ensinar a língua em toda sua variedade de usos, e ensinar regras é ensinar o domínio do uso. Sírio Possenti RESUMO: Este trabalho objetiva uma reflexão sobre o ensino da língua materna, acentuadamente prescritivo e classificatório, que se efetiva na escola. A partir da crítica à tradição dos estudos gramaticais, busca contribuir para propostas mais produtivas de ensino que considerem a diversidade lingüística e as variadas situações interlocutivas. Um ensino que possa colaborar para o aprimoramento da eficiência lingüística do falante/aluno deve ter como base a leitura, a produção de textos e a análise lingüística. ABSTRACT: This work aims at a reflection over the teaching of the mother tonque, especially the prescriptive and classifying ones that take place in schools. From the critic to the tradition of the grammatical studies, this paper seeks to contribute to the most productive proposals of teching that consider the linguistics diversity and the varied interlocutive situations. A teaching that can corporate with the refinement of the linguistic efficiency of the speaker/student must have as a base the reading the production of texts and the linguistic abalysis. Palavras-Chave: metalinguagem – ensino produtivo – eficiência – gramática. Key Words: metalanguage – productive teaching – efficiency – grammar. O primeiro aspecto a se considerar numa reflexão sobre o ensino de língua materna é a distinção entre duas tendências históricas. De um lado, a dos que refletiam sobre a linguagem para construir um sistema nocional capaz de descrevê-la. Nessa direção, situam-se os estudos greco-latinos, as gramáticas especulativas e filosóficas. De outro lado, a tendência – iniciada com os filólogos de Alexandria – dos que se preocupavam em estabelecer regras de “uso” de linguagem e que deu origem às gramáticas prescritivas e normativas. Nesse caso, a tarefa do gramático seria a de elaborar um manual sobre a –––––––––– arte de falar e escrever corretamente com base no dialeto da elite. Na verdade, desde a sua origem, a gramática procurou estabelecer as regras, consideradas as melhores, para a língua escrita, com base no uso que dela faziam os grandes escritores. A análise dos fatos lingüísticos está fortemente marcada pela tradição, e o modelo de gramática, a partir do qual a Escola baseia o ensino da língua, é resultado de um processo que se perpetuou através dos séculos e se conserva até hoje: ensinar um modelo de língua àqueles que já dominam outras variedades dessa língua. * Mestre e doutoranda em Letras (UFF), Professora do Centro Universitário Augusto Motta, da Universidade Estácio de Sá e do Curso Normal Superior do ISERJ. 9 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral O segundo aspecto é a prática do exercício escolar excessivamente classificatório que obriga o aluno a decorar definições nocionais e vasta nomenclatura, afastando-o do sentido fundamental da atividade gramatical que, para Carlos Franchi (1987, p. 23-7), consiste em compreender os diversos processos pelos quais o sujeito atua lingüisticamente. Ao analisar a postura tradicional, taxionômica e prescritiva, do ensino de gramática na escola, observa esse autor: É justamente essa posição que justifica, inteiramente, o desapreço pelo estudo gramatical nas escolas. Quando a gramática se estuda pelos seus aspectos descritivos, [...] faz-se da linguagem um objeto morto […]. Quando incorpora a noção de uso, volta teimosamente e impertinentemente à concepção normativa: faz do uso da língua uma questão de disciplina, de obediência a “dogmas”, com forte componente elitista e repressivo. Pode-se dizer que, na escola brasileira, o ensino da língua, quando não está centrado no domínio das regras normativas, confunde-se com o ensino da metalinguagem gramatical. Uchôa (1993, p. 311-312), ao afirmar que “a gramática é o conteúdo de ensino a que a escola ainda mais se atém”, esclarece: [...]: o ensino de gramática identifica-se fundamentalmente com o saber sobre a língua (saber metalingüístico) – classificações, regras, proscrições […] –, tendo mais freqüentemente como principal objetivo o domínio da nomenclatura gramatical, talvez ainda o objetivo principal do ensino. […] Gastam-se demasiadamente aulas de português com este saber metalingüístico que, em geral, só tem valor na sala de aula. Mas o professor de português está de tal maneira comprometido com este saber, que não sei se, sem ele, saberia ocupar o tempo das aulas semanais com a sua disciplina. Também Geraldi (1997, p. 45-46), ao discutir a finalidade do ensino de Português, critica o tipo de descrição lingüística que tem predominado nas aulas de língua materna: [...] o mais caótico da atual situação do ensino de língua portuguesa em escola de primeiro grau consiste precisamente no ensino, para alunos que nem sequer dominam a variedade culta, de uma metalinguagem de análise dessa variedade – com exercícios contínuos de descrição gramatical, estudos de regras 10 e hipóteses de análise de problemas que mesmo especialistas não estão seguros de como resolver. […]. […] Tradicionalmente prevaleceu o ensino de descrição lingüística – eu diria que nem sequer a descrição prevaleceu, mas o exemplário de descrições previamente feitas, pois na escola não se aprende a descrever fatos novos, formular hipóteses de descrição etc. O que se aprende, na verdade, é exemplificar descrições previamente feitas pela gramática. Através de exercícios classificatórios, limitados ao âmbito da frase, e da adoção de vasta nomenclatura, acredita o professor estar levando o aluno ao domínio da gramática da língua e aumentando sua capacidade expressiva. Um ensino de língua materna que tenha como objetivo maior a educação lingüística não pode privilegiar o ensino normativo nem ater-se exclusivamente à taxionomia dos fatos gramaticais. Isto não quer dizer que não haja espaço para o estudo da gramática na sala de aula ou não seja importante levar o aluno a uma reflexão sobre a língua. Em uma sociedade letrada, o conhecimento lingüístico não pode se restringir ao uso prático da língua; há um saber social e histórico produzido sobre ela que deve ser considerado e cujo domínio pode ser útil para que o falante opere com e sobre a língua. O que se quer é uma mudança no processo de ensino, isto é, que a gramática descritiva e a normativa tenham sua importância revista. Antes de descrever ou tentar sistematizar a sintaxe e a morfologia das expressões, o professor deve, como sugere Possenti (1999, p. 84-85), certificar-se de que o aluno sabe usá-las e entendê-las. Saber uma regra de gramática não significa saber enunciá-la, mas saber aplicá-la adequadamente em situações concretas de interação verbal. Britto (1997, p. 121), ao comentar a legitimidade e a oportunidade do ensino da metalinguagem como uma das questões que têm polarizado o debate sobre o ensino de gramática, assinala que a crítica maior que se faz não é à adoção desta ou daquela taxionomia, mas “ao seu esvaziamento e à valorização de exercícios de pura identificação e rotulação de fragmentos da frase”. Fica claro, então, que a gramática, enquanto disciplina, não pode ser o objeto próprio do ensino; deve ser seu instrumento para que, através dela, o aluno possa adquirir um conhecimento mais reflexivo das estruturas e das possibilidades Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral de sua língua e utilizá-la com mais eficiência e criatividade. O que se faz necessário é uma redefinição de objetivos de ensino da gramática para que o conhecimento não se limite à aprendizagem de regras e de nomenclatura, mas se construa diuturnamente na reflexão sobre a própria atividade lingüística. Para que isto ocorra, porém, é imprescindível uma mudança da postura do professor em relação à concepção de linguagem e do que é ensinar língua materna. Ao tratar dos problemas relacionados ao ensino de língua materna na escola, decorrentes da dificuldade de delimitação do próprio objeto e dos objetivos de ensino – o que e para que ensinar –, Coseriu (1989, p. 36) aslienta a necessidade de o professor desenvolver atividades que possibilitem aos alunos o conhecimento e a utilização eficiente e criativa das estruturas e possibilidades da língua: [...] También es cierto que, en la enseñanza média, no cabe enseñar gramática como disciplina y nomenclatura gramatical: lo que hay que enseñar es el saber idiomático como tal, que implica el conocimiento de las estructuras y procedimientos gramaticales de la lengua correspondiente. Toda língua funcional – como a entende Coseriu (1980, p. 113) – tem a sua gramática como reflexo de uma técnica lingüística que o falante domina e que lhe serve de intercomunicação na comunidade a que pertence ou em que se acha inserido. Ainda, segundo Coseriu (1987, p. 130), a gramática pode ser entendida como “técnica de falar”, numa língua determinada – língua funcional –, e como a “descrição dessa técnica”, isto é, como metalinguagem. No primeiro sentido, deve ser entendida como técnica livre, a própria estrutura do sistema lingüístico em funcionamento. Qualquer falante, portanto, ao produzir um ato de comunicação verbal, domina e utiliza a gramática, isto é, a “gramática implícita” em cada ato de fala. No segundo sentido, a gramática é a descrição e a investigação dessa técnica. Na condução do trabalho pedagógico, precisam ser considerados esses dois sentidos. A gramática implícita deve ser observada, valorizada e servir como ponto de partida para a aprendiza- gem; já o ensino da gramática, enquanto descrição e investigação, deve-se caracterizar pelo conhecimento das possibilidades do sistema como forma de ampliar os recursos lingüísticos do aluno e, conseqüentemente, sua capacidade de comunicação e expressão verbal. O ensino da metalinguagem, nessa concepção de gramática, torna-se recurso para fixar um saber consciente sobre a língua, um saber já dominado pelo aluno. Assim, o ensino da gramática deixa de ser um conjunto de regras prescritivas ou normativas para transformar-se em uma explicitação das regras de uso da língua em situações significativas. O conhecimento pelo aluno da nomenclatura gramatical torna-se um meio em relação à aprendizagem da gramática, a qual, por sua vez, é também um meio em relação ao domínio da língua. Se ensinar uma língua é ensinar a comunicar, a utilizar adequadamente as modalidades funcionais da língua histórica, a gramática precisa ser trabalhada na dimensão do uso, explorando-se a diversidade de estilos, a variedade de recursos lingüísticos e permitindo-se ao aluno refletir sobre as escolhas realizadas e sua relação com a produção do sentido. Comparar ou propor, por exemplo, diversas possibilidades de construção lingüística, observar as condições de uso de uma ou outra forma, fazer a escolha adequada à finalidade comunicativa. Deve-se, pois, ensinar da gramática somente o que contribua para aumentar a eficiência lingüística do falante/aluno e, da nomenclatura gramatical, apenas os termos necessários a essa gramática. Em outras palavras, só vai ser necessário ensinar descrição gramatical quando esta servir para fixar o conhecimento já dominado ou aperfeiçoar o falar, o ler e o escrever, isto é, quando ajudar o ensino produtivo. Desse modo, o ensino de língua materna, sobretudo de gramática, deixa de ser o ensino de uma terminologia, para tornar-se, através de atividades, produção de conhecimento, desenvolvimento de habilidades, educação lingüística. Uchôa (1993, p. 311), ao relacionar os conteúdos de ensino à produção textual, à leitura e à gramática, comenta: 11 Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral [...] É no texto que a língua – objeto de estudo – se revela em sua totalidade, quer enquanto conjunto de formas, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação. É, pois, no texto que o ensino da língua deve estar centrado, na sua leitura e produção. O ensino de gramática, associado ao texto lido ou produzido, afasta-se das digressões teóricas para ater-se aos usos lingüísticos, aos aspectos semânticos e pragmáticos, ao domínio do vocabu- lário, às construções sintáticas possíveis e aos recursos expressivos do sistema. Nesse tipo de ensino, o conhecimento metalingüístico aparece como resultado de um saber consciente a respeito da língua e não como decorrência da transmissão de conteúdos prontos. Também o papel do professor se altera visto que deixa de ser o de detentor/transmissor de um saber para transformar-se em interlocutor de seus alunos nas reflexões sobre a linguagem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas: ALB: Mercado de Letras, 1997. FRANCHI, Carlos. Criatividade e gramática. Trabalhos de lingüística aplicada, Campinas, IEL/UNICAMP, n. 9, p. 5-45, 1987. COSERIU, Eugenio. Lições de lingüística geral. Trad. Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. Tradução de: Leziones de linguistica generale. GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: ——––— (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. ——––—. O homem e sua linguagem: estudos de teoria e metodologia lingüística. Trad. Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira. 2. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1987. (Linguagem, n. 16). Tradução de: El hombre y su lenguaje. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 1999. ——––—. Sobre la enseñanza del idioma nacional. Problemas, propuestas y perspectivas. Separata de Philologia II. Salamanca, 1989, p. 33-37. 12 UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. Reflexões sobre o estado atual do ensino da língua portuguesa no 1º e 2º graus. Cadernos pedagógicos e culturais, Niterói: Fundação Brasileira de Educação – Centro Educacional de Niterói, v. 2, n. 2/3, p. 307-316,. Mai./dez. 1993.