DOI: 10.4025/4cih.pphuem.763 REFLEXÕES SOBRE PAGODE

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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.763
REFLEXÕES SOBRE PAGODE BAIANO E SUAS INFLUÊNCIAS NA IDENTIDADE
DE GÊNERO
Anderson dos Anjos Pereira Pena*
Rocío Castro Kustner†
A música é um dos elementos preponderantes na configuração das identidades
pessoais e coletivas. Inúmeros relatos na história do Brasil constatam a música como uma das
articuladoras da identidade nacional, dos movimentos de resistência social e dos movimentos
religiosos, entre tantos outros que apresentam a relevância da música enquanto fator cultural
articulador de identificações entre grupos sociais e influenciador da identidade pessoal.
Assim, a música ocupou um papel relevante no enfrentamento ao Regime Militar
durante o período de 1960 a 1980. O movimento musical Tropicália contribuiu para abalar as
bases do Regime, através de duas estratégias: a primeira de conscientização crítica, e a
segunda de aglutinação de pessoas que se identificavam com suas músicas, deixando-se
impregnar pela produção simbólica que influenciava ora na linguagem, ora na vestimenta, no
penteado, no estilo do cabelo, além das formas de relação com os outros iguais e diferentes
ideologicamente.
A música também é utilizada pelos grupos sociais privilegiados como fomentadora de
estereótipos e de uma cultura de consumo ditada pela indústria da moda e pela própria
indústria da música. Ou seja, nem sempre a música é a propagadora de estilos que influencia
as identidades individuais e coletivas, pois, muitas vezes ela é um veiculo dessa propagação,
sendo a moda imposta através dela, mas não surge dentre dela.
Sem pretender colocar a música como panacéia para a resolução dos problemas
sociais, nem culpabilizá-la pela dominação e subalternização de pessoas, neste trabalho
objetivamos refletir sobre o papel complexo – às vezes até ambíguo - da música como
disseminadora de ideologias, difusora de poder e influenciadora na recriação, no caso
concreto do pagode, da identidade de gênero, através de seu ritmo, de suas letras; pela forma
*
Aluno Regular do Programa de Mestrado em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade
do Estado da Bahia – UNEB -, Bolsista da Fundação para o Desenvolvimento da Pesquisa na Bahia – FAPESB.
E-mail: [email protected]
†
Doutora em Antropologia Social, com ênfase em América Latina. Professora Adjunta e Coordenadora do
Programa de Mestrado em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB. E-mail: [email protected]
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como as pessoas consomem a música ou pela forma como ela é imposta midiaticamente;
enfim, pela própria cultura.
Partimos do pressuposto de que a identidade é resultado de um processo discursivo
com o outro em constante transformação, de tal forma que Hall (1992) nós diz que não
podemos falar de identidade e sim de identificação. Neste processo, que também é histórico,
Hall distingue três grandes momentos que conformaram três grandes identificações: o sujeito
do iluminismo, concebido na imutabilidade, ou seja, ele nasce com uma essência que o
acompanha por toda a vida, sendo apenas polido, educado, moldado, disciplinado para seguir
sua trajetória linear; o sujeito sociólogo, construído nas suas relações com o outro e com o
meio; e o sujeito pós-moderno, fragmentado em várias identidades, de gênero, sexualidade,
etnia, raça e nacionalidade, “que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais”, (ibidem, p. 8) mas que, atualmente, essas sólidas localizações encontramse deslocadas.
Desta forma, na pós-modernidade nos defrontamos com várias identidades,
antagônicas, relacionadas e/ou fragmentadas. Temos uma identidade de classe, de gênero,
sexual, étnico-racial, profissional, cultural... enfim, um caldeirão de identidades individuais e
coletivas, que podem, a depender do contexto, estar reforçando-se entre si ou em conflito. No
caso concreto do presente trabalho, apresentamos o pagode como ferramenta de identificação
tanto com machismo de uma cultura patriarcal que prega o culto à guerra e ao poder da força
bruta, quanto com o sexismo potencializado pelo capitalismo global através da propaganda. O
objetivo é trazer uma reflexão sobre como são estabelecidas e recriadas as identidades de
gênero e as hierarquías, considerando, junto às feministas, o gênero como primeira relação de
poder.
A análise será feita a partir da observação de como as músicas do pagode recriam as
relações de gênero reafirmando a cultura patriarcal da violência. O estudo concentra-se
especialmente na década de 1990, porém concebendo o pagode nas suas reminiscências
dentro da própria cultura musical baiana desde os cantores de serenata no século XVIII e
XIX, passando pelos seresteiros do século XX (TINHORÃO, 2005) e chegando na “bunda
music” do final do Século XX e início do XXI (FAOUR, 2008, p.335). A abordagem será
iniciada pela síntese da história do pagode baiano, seguida de uma breve reflexão sobre a
cultura patriarcal e os reflexos dessa cultura no pagode baiano e, por último, uma amostra de
resultados iniciais para nosso estudo de caso, obtidos nos grupos focais – um de mulheres exdançarinas e outro de homens ex-integrantes de bandas de pagode - nos bairros da Chapada do
Rio Vermelho, Nordeste de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas, em Salvador.
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Pagode Bahiano: breve contextualização histórica
O pagode é um produto histórico, transmutado, dos sons que vem da rua: uma
perspectiva das cidades que passaram por um processo de urbanização colonial e imperial,
pois, conforme explicita Tinhorão (2005, p. 27), “[...] existe uma relação direta entre o
processo de urbanização e o aparecimento dos artistas de rua, personificados no romântico
cantor de serenatas”.
O ponto de partida dessa discussão teórica sobre o pagode e a identidade de gênero, na
perspectiva propedêutica aqui apresentada da história musical, remonta ao ano 1991, quando,
segundo descrito por Faour (ibidem, p. 340),
[...] mais um baiano, Zé Paulo, estourou com a inacreditável Rala o pinto. Veio o
verão do Requebra – um rebolado feito com as pernas bem abertas, que o outrora
politizado [...] Com a elasticidade do corpo já testada na folia do Requebra, em 95, o
país parou para dançar a dança da garrafa, obra da Companhia do Pagode [...] Nesse
meio-tempo, em 95, apareceu – agora sim, um grupo que foi uma febre em todo país
– o Gera Samba, que, por conta de um problema com um grupo rival homônimo,
teve no ano seguinte o nome mudado para o de sua música de maior sucesso: É o
tchan [...]. A letra dizia “Tudo que é perfeito a gente pega pelo braço/ Joga lá no
meio/ Mete em cima/ mete em baixo/ Depois de nove meses você vê o resultado.
E depois de ralar o pinto, requebrar, dançar na boquinha da garrafa,
meter em cima e em baixo, o refrão não poderia ser outro:
Segura o tchan!
Amarra o tchan!
Segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan! (ibidem, 2008, p. 334)
Cabe ressaltar que o pagode atual tem íntimas ligações com o Axé Music, um estilo
tipicamente carnavalesco, especificamente nascido nos carnavais de Salvador. Mas ele não
nasceu exclusivamente da Axé Music e nem tampouco pôs fim a ele; é produto de uma
construção histórica e cultural que, num processo inicial de intercomunicação com a Axé
Music, apareceu para a população carnavalesca e festeira da Bahia, e em alguns casos do
Brasil.
As bandas de destaque daquela época, como Harmonia do Samba, Parangolé, Guig
Gueto, Nossa Juventude e Pagodart, e dos os dias atuais como Psirico, Fantasmão, A Bronka
e Black Style, foram introduzindo um novo tipo de pagode através do incentivo à cultura de
consumo promulgada pela indústria da música, e cujas letras fazem apelativo à sexualidade de
forma violentamente machista. Assim, Tapa na cara, interpretada pela banda Pagodart, canta
o prazer que a mulher sente ao receber tapa na cara durante o ato sexual. Outras bandas
apelaram para a vulgarização da mulher, rotulando-a com adjetivos como piriguete, mamãe,
delícia, canhão - expressões que foram incorporadas no cotidiano popular, especialmente de
moradores de bairros pobres. Em contrapartida, e para legitimar a cultura patriarcal, os
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homens, no seu papel de machões, são os “putões”, “bichos soltos”, fiéis à “putaria”; ou
“cornos” e “bichas”. Alguns trechos da música Fiel à putaria, interpretada pela banda Psirico,
contemplam as afirmações que sintetizam bem os estereótipos sobre as identidades de gênero:
Eu te falei meu irmão que essa mulher ia te dar trabalho/
Você agora é carta fora do baralho/
Abandonou quem não devia e se deu mal/
Mas eu cansei de te avisar/
Quem gosta de homem é gay/
Mulher gosta é de dinheiro (...)
Por isso seja/
Fiel à Putaria
Atualmente, novas letras têm tomado conta do pagode, mantendo o duplo sentido
sexual, ou transcendendo-o e demonstrando de fato as intenções de formulações sexuais
arquetípicas. Aparecem com destaque especial a banda Black Style com músicas como Vaza
canhão, Perereca, Tabaco, Rala a Tcheca o Chão, Rala a xana no asfalto, Piriguetona e
outras, num repertório que conceptualiza e estereotipa papéis sociais de gênero. As letras nos
dizem muito, e nos inquieta perceber como as pessoas incorporavam e incorporam os
princípios e condutas sexistas e machistas disseminadas através da linguagem, das
vestimentas, das relações amorosas e das relações sociais entre homens e mulheres.
A história da música baiana tem requintes de incorporação de letras que incentivam as
condutas machistas, o que explicam que tantos shows e festas acabem em brigas relacionadas
à disputas por mulheres ou por prestígio machista. Tinhorão (2005, p. 27) recolhe o poema
“Mocotó” de Edístio Martins, que descreve esta situação como típica já na primeira metade do
século XX
“Já é de madrugada. Alguns cambaleado
Insultam os demais, que apenas vão entrando,
Provocam a mulher daquele que comprou.
O próprio Satanás parece que tem medo
Da apuração final que traz o tal brinquedo!
Dos célebres cantores que a branca provocou!”
A evolução do processo musical urbanístico traçado pelo pagode hoje encontra
transcendência na relação direta entre o processo de globalização capitalista, representado
pela cultura de consumo, e o surgimento de bandas e músicas de pagode, cada vez mais
descartáveis, cujas letras nos levam a refletir sobre o espelho de uma dominação histórica
masculina, sempre presente na história da humanidade e que, apesar dos grandes avanços dos
movimentos feministas, atualmente é estimulada através da cultura de consumo e da cultura
musical, sendo que na Bahia o pagode ocupa um papel protagonista.
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Reflexões necessárias sobre a construção das identidades de gênero na cultura patriarcal
Podemos considerar a formação da cultura ocidental do capitalismo global como um
processo muito ligado à formação de nossa identidade tanto coletiva quanto individual,
primeiramente no seio da família, fundamentalmente patriarcal. Como tal, nossa identidade
vai ser moldada em função de padrões patriarcais que atribuem características diferenciadas
aos sexos e valoriza a força física masculina que habilita ao homem para a caça, a guerra, a
competitividade, e dai protagonismo ao militar que enfrenta a morte em detrimento do
cuidado feminino para com o lar e a vida (CASTRO, 2008). Assim, quando falamos de
identidades de gênero (masculino e feminino) estamos nos referindo às identidades
construídas social e culturalmente em função dos sexos (macho e fêmea).
A cultura patriarcal prega a violência e estabelece a primeira hierarquia entre os seres
humanos baseada na construção de diferenças sociais em função das diferenças biológicas ou
naturais. É o primeiro sistema em se servir da diferença para justificar a dominação e o uso da
violência.
Ele ainda sobrevive em nossa sociedade de forma tão determinante que as
mulheres inclusive feministas têm sérios problemas em desconstruir a identidade patriarcal
em seus companheiros e propiciar um clima que facilite a construção de identidades
alternativas para seus filhos homens. Isto porque
[...] o homem, mais do que em décadas anteriores, vê-se pressionado a vencer, custe
o que custar, transformando a rua em lugar de produção, mas também de guerra e
deriva (...) subsiste uma cultura machista onde ter medo é sinal de covardia, e não
reagir é ser passivo e incapaz. Assim, é reforçado um certo etos masculino que tem
na violência e na supremacia física provas de sua masculinidade e até mesmo
enquanto luta contra o medo (DE OLIVEIRA C., 2005, p. 15 e 19).
A cultura patriarcal, no caso concreto latino-americano, é recriada pelo
patrimonialismo colonial gerido, no Brasil, no âmbito da casa grande e a senzala e estendido e
adaptado, após a abolição da escravidão, ao modelo de estado-nação importado de Europa. Os
novos estados-nações latino-americanos viriam a forjar uma identidade nacional legitimada
pelo poder da força bruta do patriarcado ocidental que prega idolatria aos heróis da arte da
Guerra, como Cícero e Napoleão – na América Latina, patriarcas como Pizarro, Hernán
Cortez ou Aguirre serão “os grandes homens que fizeram a História”.
Queremos relembrar mais uma vez que, antes da cultura ocidental ser patrimonialista,
nacionalista ou capitalista, ela é patriarcal – antes de ser gerida na casa grande e senzala ou
nos estados nações, ela foi formada no seio da família patriarcal.
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A modernidade iluminada européia, que falava de igualdade para todos excluindo às
mulheres e minorias étnicas, apresentava-se possuidora da liberdade, colocando-a como valor
universal, graças a sua dominação colonial e capitalista. Com o imperialismo, os países
“democraticamente livres” do chamado “Primeiro Mundo” autorizam-se a provocar guerras
em nome da democracia e, assim, perpetuam o culto ao homem que se faz herói matando.
Enquanto isso, as mulheres negras e indígenas do chamado “Terceiro Mundo” ocupam o
último nível na hierarquia, realidade que não só não tem mudado com a chegada da
democracia para os países do Sul, mas que se tem agravado - o fenômeno da feminização da
pobreza - com o desenvolvimento das novas estratégias político-económicas neoliberais.
Estas mulheres são as mães da nova geração que esta sendo criada cada vez mais na
ausência de uma responsabilidade paterna, fragilizada frente ao poder econômico e impelida a
uma violência como resposta à falta de modelos masculinos que guiem à construção positiva
da identidade no caos do mundo existente dominado por padrões masculinos, racistas e
consumistas. Esta nova geração, que cresce com a crise de desemprego conseqüente dos
processos de globalização, lembremos que, no caso brasileiro, são os filhos dos que, após a
abolição da escravidão, nunca conseguiram se inserir no trabalho assalariado. Sempre vistos
pela oligarquia como a massa preguiçosa incapaz de produzir (DE OLIVEIRA, 1987), passam
a ser identificados como marginais e, potencialmente, protagonistas da delinqüência e
violência urbanas. A história da construção da cultura patriarcal ocidental tem lhes conduzido
aos momentos nos quais, a nova geração, o futuro do planeta, sofre toda esta realidade
globalizada que reforça a identidade do outro, o excluído, como violento, sob o ethos do
guerreiro, assim definido por Zaluar (2004) quando analisa fenômenos como o crime
organizado de Rio de Janeiro, comuns às grandes metrópoles latino-americanas (CASTRO,
1998).
Como essa identidade do “ethos do guerreiro” baseada no machismo e no sexismo se
espalha nos bairros populares através da música do pagode? Para compreendermos como a
cultura patriarcal é recriada pelo pagode baiano analisaremos as letras das suas músicas.
Cultura patriarcal, identidades de gênero e “ethos do guerreiro” no pagode baiano
Ao analisarmos a representação das identidades de gênero nas letras da música do
pagode baiano, evidenciamos, por um lado, a banalização da mulher e a utilização de seu
corpo como objeto de desejo sexual; por outro lado, o prestígio e a honra da figura masculina
que se reafirma com o caráter da força física, a posse de bens e a promiscuidade sexual, como
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podemos observar na canção, interpretada pela banda Black Style, intitulada “Preconceito”
(muitas bandas do pagode não têm álbuns de disco produzidos e/ou comercializados por
gravadoras, tendo como fontes básicas de divulgação do trabalho os shows e o pirateamento
dos CDs, de modo que em nosso estudo existe uma dificuldade de localizar os compositores
das músicas e assim atribuir-lhes as referências devidas).
Mas tenho três coisas
Que as mulheres gostam
Uma ta no meu bolso
A outra na garagem
E essa [...]
Tome aqui
Tome ali tome aqui
Falou do meu povo
Falou da minha raça
Falou da minha cultura
Falou de minha música
Falou de mim
Mas tenho três coisas [...]
A música “Preconceito” trata a questão do racismo do ponto de vista meramente
econômico, patrimonialista e patriarcal, deixando a mensagem que o melhor caminho para
combatê-lo é que o negro tenha dinheiro, carro e, conseqüentemente, mulheres.
Antagonicamente à questão racial apresentada, analisaremos outro grande hit de
sucesso da banda Black Style: a música “Vaza Canhão”:
Eu conheci uma menina na internet
Ela me disse que era um tremendo avião
Eu marquei um encontro com ela na avenida sete
E quando eu vi a menina pirei o cabeção
Ela tem cara de jaca
Nariz de xulapo
Estria nas pernas
Bunda de peteca
Perna de alicate
Cabelo de asolã
Ela é caolha
Tem unha encravada
Boca de desdentada
Barriga dobrada
Tirando a camisa o peito batia no chão [...]
Minha resposta na hora
Foi cantar esse refrão
E o refrão é assim
Vaza canhão... Vaza canhão... Vaza canhão... Vaza canhão
Enquanto em “Preconceito”, o homem não necessita de um padrão estereotipado para
que as mulheres gostem dele - basta que tenha dinheiro, carro, seja heterosexual e goze de
vida sexual ativa, em “Vaza Canhão” a mulher necessita ser o oposto do que a música
delineia. Ela não pode ter o “cabelo de asolã”, não pode ter a “bunda de peteca”, nem ter seios
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grandes que “bate no chão”, nem celulite, enfim, enquanto o homem pode ter total
desprendimento do cuidado com o corpo contanto que tenha dinheiro, carro e esteja gozando
da plena atividade heterosexual.
Vaza Canhão apresenta a estética feminina como elemento fundamental na construção
da identidade de gênero. Ao contrário do “tome ali, tome aqui” que desferiu o personagem da
música “Preconceito” contra o autor das afirmações racistas, na música “Vaza Canhão”, a
mulher do cabelo de asolã não teve sequer o direito de responder, pois foi convidada a “vazar”
– uma gíria muito utilizada no cotidiano da juventude baiana e que significar sair, partir, “cair
fora”.
Muitas das músicas, mesmo aquelas que já foram esquecidas durante o efêmero
processo de suas sobrevivências, incentivam que as mulheres dêem “chapinha no cabelo” e
“escovadinha”, malhem para ficar gostosas, não sejam lésbicas e tantas outras recomendações
que colocam a mulher, de corpo “sarado” e traços estéticos cada vez mais braqueados, à
disposição e bem prazer dos homens que tem dinheiro, carro e sejam heterosexuais com vida
sexual ativa.
Além disso, é comum que os homens nas representações do pagode baiano sejam
adjetivados, como uma forma positiva, de “putões”, “miseravões”, “brocadores”, entre outros;
enquanto a mulher é vulgarizada como “piriguete”, “cachorra”, “delícia”, “toda boa”, “mulher
perereca”, “bandida”, e tantos outros adjetivos que a rotula ora como objeto sexual, ora como
desclassificada. Observamos também que as questões raciais – mesmo que trivializadas –
ocupam maior preocupação nas representações desse pagode do que as questões de gênero,
afirmando que, enquanto cometer racismo é um erro grave, dominar, discriminar e excluir a
mulher é algo natural.
Até aqui vimos como o pagode se serve do sexismo para reforzar as identidades de
gênero construídas pela cultura patriarcal. O pagode também faz apologia à violência como
atributo da masculinidade quando alude às brigas e esbofeteamentos com músicas que
estimulam até mesmo a polícia a “descer a madeira”, que mandam a “galera” empurrar, ou
incentivam a violência física contra a mulher, como a já citada “Tapa na Cara”.
No forte machismo e sexismo dessas músicas existem também, embora sejam poucos
os que se reconheçam dessa forma, homens que são inferiorizados. A regra para definir a
representação desses homens nas letras é a mesma utilizada para definir o estereótipo
feminino representado: o inverso do que as músicas pregam determina a exclusão. Assim, os
machos que não são heterosexuais, nem promíscuos e não estão atentos às possíveis traições
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femininas, são rotulados de “otários”, “cornos” e “bichas”. Nessas representações são
vitimizados os traídos e os homossexuais.
Diante das representações aqui brevemente apresentadas, podemos-nos perguntar até
que ponto estas são legitimadas nos discursos e nas práticas dos seguidores do pagode.
Os seguidores do pagode falam
No processo inicial dessa pesquisa realizamos grupos focais com moradores dos
bairros soteropolitanos do Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas, Chapada do Rio
Vermelho e Santa Cruz, que são bairros com características peculiares e similares, senão
idênticas, devido a proximidade geográfica. Conversamos, em momentos distintos, com
quatro homens e quatro mulheres sobre a história do pagode baiano, o envolvimento deles
com esse estilo musical, a ligação das músicas do pagode com sua história de vida, e a
recriação dos esteriótipos de gênero representados em seus cotidianos.
Por questões metodológicas, resolvemos preservar as identidades desses entrevistados
e os/as nomearemos da seguinte forma: as mulheres serão referendadas com as siglas M1,
M2, M3 e M4; já os homens receberão as seguintes: H1, H2, H3 e H4.
As entrevistadas foram: M1, 19 anos, moradora do Vale das Pedrinhas; M2, 19 anos,
moradora da Santa Cruz; M3, 19 anos, moradora da Chapada do Rio Vermelho e; M4, 15
anos, todas elas afirmaram com veemência a paixão pelo pagode, sendo que duas delas
chegaram a ser dançarinas de bandas desses bairros populares.
Os entrevistados foram: H1, 18 anos; H2, 26 anos; H3, 20 anos, sendo esses três
primeiros moradores da Santa Cruz e, H4, 22 anos, morador do Nordeste de Amaralina.
Todos eles foram e/ou são músicos e cantores do pagode. Vale ressaltar que todos eles
conheceram as suas atuais esposas através do pagode, e três deles afirmaram que foi graças ao
pagode que tiveram filhos com elas e estão juntos até hoje. Todos afirmaram que é sonho dos
jovens de Salvador, especialmente os que vivem nos bairros populares – que eles a todo
momento chamam de “periferia” – serem músicos do pagode, sonho que virou mais popular
que desejar ser jogador de futebol, como podemos observar em um dos depoimentos do grupo
dos homens.
Hoje no Brasil em si, as crianças sonham em ser jogador de futebol, mas acho que
na Bahia, se fizer uma pesquisa só na Bahia, acho que as crianças sonham em ser
músicos, em cantar numa banda de pagode, em tocar numa banda de pagode, até
muito mais que no futebol (H3).
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Na realidade, todos eles desde a infância se envolveram em grupos de pagode, os
homens como instrumentistas ou cantores, e as mulheres como dançarinas. Porém, homens e
mulheres colocaram como impecílio à continuidade do seu trabalho artístico a violência e
criminalidade do bairro, que dificultou a ocorrência de festas e apresentações das bandas.
Todas as bandas apresentadas na segunda parte desse artigo foram mencionadas pelos
entrevistados/as. De forma espacial se remeteram à banda Harmonia do Samba por têr
quebrado paradigmas com as suas músicas que marcaram época – tanto homens quanto
mulheres citaram muito a música “Vem Neném” – e com o “remelexo” do líder da banda
Xande. Consideram É o Tchan e Companhia do Pagode como as bandas pioneras e
atualmente têm forte ligação com o novo movimento do pagode protagonizado pela banda
Fatasmão, cujos músicos influenciram a estética dos entrevistados.
Para os entrevistados/as, o pagode pode ter uma das duas funções: ou promover, sem
segundas intenções, brincadeiras, ou fazer crítica social. Reconhecem também a sensualidade
contagiante dos ritmos e letras das músicas.
As mulheres falam muito dos ritmos do pagode que denominam “quebradeira”, pois
quando eram dançarinas e a quando dançam o pagode em algum evento festivo – quase
sempre fora do bairro - “os meninos não guentavam, mandavam botar o bumbum pra cima”
(M3). M1 reitera “quem dança gosta de chamar a atenção dos homens, a verdade é essa, gosta
de ver os homens ali gritando, chamando né...” Sentem-se bem com os assédios masculinos e
afirmam ter gostado também, quando dançavam profissionalmente, de serem modelo para as
mulheres, que sempre copiavam seu estilo: cabelo, idumentária, maquiavem, tatuagens,
piercings, entre outros.
Se homens e mulheres reconhecem a influência da estética dos músicos do pagode,
não podemos dizer o mesmo sobre suas letras que, segundo os depoimentos recolhidos,
significam apenas uma brincadeira sem más intenções e não influenciam nas suas identidades
pessoais e coletivas nem em suas relações de gênero. Entretanto, o que podemos perceber pela
leitura de algumas falas, que a hierarquia estabelecida nas relações de gênero é vivida como
natural. Assim para um dos entrevistados, “o pagode é feito por homens [...] prevalece a
superioridade masculina, mas pelo fato de ter sido feito por homem”. Outro depoimento fala
que “Mulher gosta de homem, mulher não vive sem um homem, mas ela quer um homem que
dê estabilidade a ela, um cara que tenha um carro [...] um cara que dê um conforto a ela [...]
ela busca isso num homem”.
As mulheres também consideram o machismo como algo normal – o homem mesmo
tem que ser incentivado a “pegar mulher”, e assim é como eles sempre brincam com os seus
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próprios filhos. Em relação à sexualidade e seu desenvolvimento precoce, todos comentaram
sobre a cautela que se deve ter com as meninas, especialmente nas roupas e nas danças, mas
culpabilizam as famílias e não ao pagode.
Então as letras influenciam o cotidiano ou o cotidiano influência as músicas? O
pagode é só diversão, ou forma de dominação masculina?
Notas Finais
Não há como fazer conclusões fechadas sobre como o pagode recria as identidades de
gênero reforçando as relações patriarcais de dominação, desde que haja diversão, o fator
diversão existe como o fator dominação também. Isso é explícito nas representações, nos
depoimentos e no cotidiano observado. Porém percebemos que os estereótipos machistas e
sexistas concorrem na manutenção da violenta cultura patriarcal, que não se tem se utilizado
tanto da força física para coagir – embora apele para ela de vez enquanto -, mas se utiliza de
um poder simbólico que não se deixa perceber com facilidade, mas que domina tão
eficazmente ou mais que a força física, encontrando seu aporte na cultura consumista que faz
que os homens que têm (dinheiro e bens) possam ter quantas mulheres quiser, tratá-las como
bem entender e ditar as exigências estéticas (cada vez mais branqueadas).
Percebemos ao longo dessa nossa discussão sobre o pagode características das
representações e das assimilações dos estereótipos de gênero no discurso de cotidiano de
homens e mulheres moradores/as dos bairros escolhidos na pesquisa. O pagode é um produto
da cultura, e como toda manifestação da cultura não pode ser visto como inferior ou superior a
produções de outras culturas. Contudo, a cultura pode apresentar, no seu bojo, ideologias
racistas, machistas e sexistas e disseminá-las para os seus membros, que tem permanente
necessidade de aceitação e assumem essas ideologias como método para não ser excluído dos
grupos culturais a que pertencem. A maioria deles sequer se ocupa de refletir sobre essas
ideologias e é nesse sentido que temos objetivado trazer uma reflexão sobre o papel da música
do pagode na recriação das identidades de gênero e a resignificação da cultura patriarcal.
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