“Estar ou Não Estar”. Do Dilema Ético-Político

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From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha
June 26, 2013
“Estar ou Não Estar”. Do Dilema Ético-Político
Paulo Ferreira da Cunha, Universidade do Porto
Available at: http://works.bepress.com/pfc/188/
RAZOAR XXX
ESTAR OU NÃO ESTAR:
DO DILEMA ÉTICO-POLÍTICO
Ser ou Estar?
O grande dilema existencial não é metafísico, é de filosofia prática: não será
"ser ou não ser", mas "estar ou não estar": onde estar, como estar, e mais especifica e
radicalmente: de que lado estar. To be or not to be tanto poderia querer dizer, em
abstrato, uma coisa como a outra.
Ser ou não ser é muito importante. Sobretudo se se trata de se ser igual a si
mesmo. Uma das composições das Odes de Ricardo Reis diz, a dado passo:
"Para ser grande, sê inteiro;
nada teu exagera ou exclui;
ser todo em cada coisa;
põe quanto és no mínimo que fazes (...)"1.
Quiçá inspirado em José Marinho2, Orlando Vitorino, no seu interessante livro
Refutação da Filosofia Triunfante3 opôs as filosofias do Norte, que são filosofias do
Ser, às do Sul, que são as da Verdade. Ora a especulação ontológico-metafísica do
Norte deu hoje aí lugar à análise descomprometida, abstrata e fria da linguagem e à
lógica formalíssima (de uma especulação se caiu noutra). Contudo continua vivo e
necessário o debate da verdade, ou seja, da adequação do intelecto às coisas, e, no
limite, à discussão ética, que é uma discussão da Ágora e não da lareira.
Perguntarmo-nos pelo ser ou não ser é questão mais abstrata, metafísica ou
ontológica. Mas indagar do estar ou não estar (na verdade, como estar no mundo, na
vida, na sociedade) é com cada um e já. A continuação da fala de Hamlet vai toda no
1
REIS, Ricardo — Odes de..., Lisboa, Ática, 1981, p. 148.
MARINHO, José — Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961.
3
VITORINO, Orlando — Refutação da Filosofia Triunfante, Lisboa, Guimarães, 1976.
2
segundo sentido, não no primeiro:
"To be, or not to be: that is the question:
Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles"4.
Este dilema tem dividido as pessoas desde sempre, os sufrágios dos intelectuais,
e as predileções dos escritores. O próprio Shakespeare fala depois em morrer e
sonhar, que são formas de responder aos desafios da Fortuna.
Duas Vias
A Idade Média também nos brindara já com um clássico par de figuras cujo
exemplo ilumina a bifurcação dos caminhos: Boécio e Cassiodoro. Boécio, que
escreverá na prisão uma Consolação da Filosofia, é uma espécie de Tomás Moro
avant-la-lettre. E pagaria também com a cabeça, como o chanceler britânico, o preço
da sua independência, em tempos de barbárie. Já Cassiodoro, seu contemporâneo,
conseguiria sobreviver e consigo fazer resisitir nesses tempos de brutalidade
anticultural bibliotecas de conhecimento clássico, desde logo porque a sua escola se
dedicou a copiar textos antigos, que conseguiram assim perdurar. A opção é, pois,
entre ir transigindo para salvar bens maiores, ou negar o compromisso e afrontar os
males.
Dois Clássicos Modernos
Há livros exemplares de um e outro dos caminhos.
Exemplo do primeiro poderia ser a Antígona de Sófocles. Mas, embora
reverenciemos o trágico helénico como um dos maiores dramaturgos de todos os
tempos, cremos ser mais atual a obra homónima de Jean Anouilh. Em ambas as peças
(como na imensidão de outras Antígonas intermédias e posteriores), o essencial é a
figura da princesa irmã que, independentemente da razão e sobretudo da razão de
Estado, infringe um decreto real para dar sepultura ao irmão vencido em conflito com
outro irmão, esse homenageado por Tebas com pompas fúnebres.
4
SHAKESPEARE, William — Hamlet, III, 1.
Os teóricos têm-se dividido sobre o sentido jurídico deste gesto. Mas seja ou
não tecnicamente falando o grande exemplo de um direito natural não escrito que
deve prevalecer contra leis efémeras do poder, e injustas, é sempre a voz da razão, do
sentimento e da justiça contra os jogos do poder. Em Anouilh tal é muito claro,
porque se diz que os dois irmãos combateram numa das sete portas de Tebas até à
morte ao ponto de ficarem ambos irreconhecíveis. Portanto, a decisão de não sepultar
um deles é só arbitrária. Antígona "pega em armas contra um oceano de
adversidades".
O segundo livro são as Odes de Ricardo Reis. Representa a outra opção. A qual
também é legítima, conquanto se faça da vida não política uma obra de arte. E esse
esteticismo, por assim dizer quietista ou ataráxico, está latente ao menos no estilo
depurado destes versos brancos. Por exemplo:
"Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre."5
Com a consciência da fugacidade da vida, da força de um fatum ignorado mas
determinante, da vulnerabilidade das coisas humanas, da ridícula pretensão do poder,
o heterónimo de Pessoa apela para um nirvana terreno que obviamente se traduziria
numa vida à margem, colhendo as flores possíveis (elas também perecíveis, símbolo
dessa beleza fugaz).
Não se trata propriamente de sofrer as setas do do destino. Quiçá porque de
algum modo se espera que um destino a quem nada se pede nos poupe?
Mas que vã ilusão!
Paulo Ferreira da Cunha
5 REIS, Ricardo — "Mestre, são plácidas", in Odes de..., cit., p. 14. 
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