Redes Sociais e Comportamento Sexual: para uma visão relacional

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Redes Sociais e Comportamento Sexual: para
uma visão relacional da sexualidade, do risco e
da prevenção1
Social Networks and Sexual Behaviour: towards a relational
approach to sexuality, risk-taking behaviour and prevention
practices
Sofia Aboim
Pesquisadora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Endereço: Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189, Lisboa,
Portugal.
E-mail: [email protected]
1 Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação Nacional da
Infecção HIV/AIDS (Portugal) e realizada no Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa.
Resumo
Com base num inquérito representativo da população portuguesa entre 18 e 65 anos, realizado em
2007, este estudo investiga o impacto de fatores de
rede social sobre os comportamentos sexuais dos
indivíduos. Através da percepção normativa dos
inquiridos sobre a moral sexual dos seus amigos e familiares e de indicadores relativos à caracterização
da rede de confidência sexual, tais como o número, a
identidade, o gênero, a idade e o comportamento dos
confidentes em matéria de sexualidade e prevenção
face ao risco de infecção por DSTs, obtivemos um
retrato multidimensional das redes sociais dos
indivíduos. A realização de análises de regressão
linear e logística permitiu avaliar o impacto preditivo da rede sobre o número de parceiros sexuais,
as relações sexuais ocasionais e o uso do preservativo. Os dados mostram que os fatores de rede são
importantes para explicar o comportamento sexual
dos indivíduos. Redes constituídas por amigos e
mais liberais em termos de moral sexual tendem a
influenciar o comportamento sexual, levando a um
maior experimentalismo, sobretudo no caso das mulheres. Por outro lado, a homologia entre o comportamento sexual dos confidentes e o dos inquiridos
é relevante para explicar o recurso ao preservativo
nas relações sexuais ocasionais, especialmente no
caso dos homens. Tanto numa perspectiva relacional
da sexualidade como numa óptica epidemiológica,
a análise das redes sociais dos indivíduos constitui um aspecto importante para a compreensão e
explicação da variedade de experiências sexuais,
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mais restritas ou mais plurais, e para os riscos de
infecção que daí podem advir.
Palavras-chave: Síndrome de Imunodeficiência
Adquirida; Doenças Sexualmente Transmissíveis;
Comportamento Sexual; Redes Sociais; Fatores de
Risco.
208 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
Abstract
Based on a representative survey of the Portuguese
population aged between 18 and 65, carried out in
2007, this study investigates the impact of social
networks on the sexual behaviour of individuals.
Through the normative perceptions respondents
have of the sexual morals of their family members
and friends, as well as through a number of indicators related to the characterization of the network of
sexual confidants, such as number, identity, gender,
age and confidants’ behaviour in terms of sexuality
and risk-taking practices, we were able to draw a
multidimensional portrait of the individuals’ social
networks. By carrying out several linear and logistic
regression analyses, we were also able to evaluate
the predictive power of network variables and their
effect on the number of sexual partners, occasional
sex and condom use. Data show that network factors
are important to explain individuals’ sexual behaviour. Confidence networks constituted by friends
and orientated towards a more liberal sexual moral
tend to allow for a greater sexual experimentalism,
particularly in the case of women. On the other hand,
the homology between confidants’ and respondents’
sexual behaviour seems relevant to explain condom
use in occasional sex, especially in the case of men.
Either by taking on a relational perspective or an
epidemiological approach, the analysis of individuals’ social networks constitutes a major feature for
understanding and explaining the variety of sexual
experiences and the infection risks that can be associated with sexual behaviour.
Keywords: Acquired Immunodeficiency Syndrome;
Sexually Transmitted Diseases; Sexual Behaviour;
Social Networks; Risk Factors.
Introdução
Este artigo parte de uma idéia central, ao propor que
os comportamentos sexuais dos indivíduos, bem
como as suas percepções e estratégias de prevenção face ao risco de se infectarem por uma doença
sexualmente transmissível (DST), não são independentes da forma como, ao longo da vida, estes se
inserem em determinadas redes sociais. Como tem
sido argumentado, essas redes de relações poderão
condicionar tanto as orientações normativas dos indivíduos relativamente à moral sexual, como os seus
comportamentos sexuais. Na verdade, a hipótese
que associa biografias sexuais e redes sociais tem
sido explorada em inúmeras pesquisas sobre comportamento sexual e risco de transmissão de DSTs,
tanto nos Estados Unidos (Fowler e Christakis 2008;
Smith e Christakis 2008; Heckathorn e col.,1999) e
no Brasil (Barcellos e Bastos, 1996), como na Europa
(Ferrand e Mounier 1993, 1998; Bajos e Marquet,
2000) ou na África (Behrman e col., 2003). Duas preocupações são importantes na maioria destes estudos
( veja especialmente:Heckathorn e col., 1999).
Por um lado, de um ponto de vista epidemiológico, as redes de relações sociais têm constituído
um ponto de partida para analisar, visando prever e
prevenir, eventuais riscos de disseminação de DSTs.
Nesta óptica, as redes sociais são normalmente consideradas importantes por duas razões fundamentais. O primeiro motivo reside no fato de os parceiros
sexuais tenderem a ser selecionados no interior do
universo relacional do indivíduo (Laumann e col.,
1994; Liljeros e col., 2003). O segundo motivo advém
das funções de controlo social que podem ser atribuídas às redes sociais (Heckathorn, 1990). Com efeito,
mesmo em contextos de crescente individualização
das vivências da sexualidade (Bozon, 2005), o grau
de conservadorismo ou de permissividade da rede
social tende a exercer efeitos de pressão normativa
sobre os comportamentos individuais, ora restrin-
gindo ou ampliando o experimentalismo sexual, ora
estimulando ou desencorajando o recurso a práticas
preventivas (Heckathorn e col., 1999).2 Nesta óptica,
o mais importante seria então determinar ocorrências e probabilidades de transmissão, propiciadas
pelas interações entre o indivíduo e os membros da
sua rede social.
Por outro lado, numa perspectiva relacional da se­
xualidade (Ferrand e Mounier, 1993, 1998), por exemplo, investigar as redes sociais dos indivíduos comporta implicações talvez ainda mais abrangentes.
Um primeiro aspecto importante reflete-se na
abordagem dos condicionamentos normativos que
emergem das relações sociais em rede, mas sem
se concentrar, como a perspectiva epidemiológica,
exclusivamente nas questões do risco e da transmissão de DSTs. Assim, na óptica relacional importa
examinar com maior profundidade as formas de
controlo social, normativas e efetivas, que os indivíduos podem exercer uns sobre os outros. Com efeito,
as mudanças profundas que têm vindo a alterar o
cenário da vida privada, permitindo maior liberdade
aos atores sociais – nomeadamente às mulheres – e
um controlo mais individualizado da própria sexualidade, estão na base dos processos de pluralização
das biografias sexuais (Bozon, 2005). As lógicas de
experimentação sexual e o elogio do prazer erótico
associam-se integralmente a processos históricos
de individualização social, que progressivamente
substituíram a ética institucionalista orientada para
a procriação por outra, mais hedonista e centrada no
indivíduo (Giddens 1996; Beck e Beck-Gernsheim,
2002). Neste processo, a libertação dos constrangimentos associados à família como instituição e ao
rígido controlo exercido pelo parentesco constituem
parte essencial. O primado do sangue e da aliança,
ao poder do qual se submetia a sexualidade, tem
sido progressivamente abandonado a favor das afinidades eletivas: as do amor romântico, como nota
Luhmann (1991),3 mas igualmente as da amizade
2 Nesta óptica, a influência social que os indivíduos exercem uns sobre os outros constitui um elemento central. Segundo Festinger (1954),
e mais genericamente segundo a teoria da comparação social (Erickson, 1988, p. 101-102), os indivíduos adaptam-se permanentemente às
circunstâncias da interacção, na medida em que procuram adequar o seu comportamento ao que pensam serem as expectativas dos outros.
As interacções grupais são tanto mais importantes como determinantes do comportamento quando maior for a flexibilidade normativa
associada ao comportamento em causa. Em suma, quanto menor for a regulação social da sexualidade, como sucedia tradicionalmente,
maior será a importância da interacção intra-grupal.
3 A importância da relação conjugal é aliás reconhecida do ponto de vista da análise epidemiológica das redes sociais. Grande parte dos
estudos tem-se centrado no que alguns autores (Smith e Christakis, 2008) intitulam os “efeitos diádicos” das relações a dois, por contraposição à tendência emergente para se estudar a rede social alargada, ou seja, os “efeitos supra-diádicos”.
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e da livre escolha dos próximos e afins, independentemente dos laços do sangue. Uma sexualidade
liberta, assim como uma vida globalmente mais
livre, dependeriam, em grande medida, do corte de
amarras com o parentesco e a vigilância da comunidade, imperantes nas sociedades tradicionais (Ariès,
1973; Shorter, 1995; Elias, 1993; Flandrin, 1981).
É, por conseguinte, compreensível o fato de vários estudos elegerem esta problemática enquanto
objeto, procurando examinar as conexões tecidas
entre ação individual e relações sociais envolventes.
Nesta óptica, a principal preocupação tem sido a de
verificar empiricamente de que formas as relações
sociais continuam a influenciar uma esfera privada
vista como secreta e individualizada. O campo da
sexualidade oferece-nos exemplos recentemente
pesquisados, como é o caso do trabalho de Ferrand
e Mounier na França (1993, 1998), que estudaram o
efeito das redes de pessoas próximas sobre o comportamento sexual dos indivíduos. De forma geral,
também neste domínio, a hipótese sociológica mais
evidente parece encontrar eco nos dados: afinal,
segundo esses autores, redes de pessoas próximas
mais conservadoras em matéria de sexualidade
parecem favorecer a restrição da experimentação
sexual, e vice-versa.
Em segundo lugar, para além dos efeitos da regulação normativa sobre os comportamentos privados,
as relações sociais correspondem igualmente a feixes de trocas materiais e simbólicas existentes nas
práticas quotidianas (Scott, 2000). Neste sentido,
são inúmeras as pesquisas que têm vindo a refutar
a tese parsoniana (Parsons e Bales, 1955) de progressivo isolamento social dos indivíduos (ver, por
exemplo, Wall e col., 2001). Nos E.U.A., não obstante
a influência da tese do isolamento social (ver, por
exemplo, Putnam, 1995), a pesquisa sobre redes
sociais tem-se desenvolvido significativamente.
Os resultados obtidos na área da saúde constituem
exemplo desta tendência (Levy e Pescosolido, 2002;
Bell e col., 1998; Bell e col., 2002; Bajos e Marquet,
2000). Voltando à perspectiva epidemiológica, as
principais conclusões apontam para a importância
das redes não só enquanto meios de disseminação de
doenças, mas igualmente como centro nevrálgico da
prevenção. Como demonstraram Heckathorn e col.,
(1999), os resultados obtidos relativamente à eficá-
210 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
cia de campanhas de prevenção de DSTs foram mais
elevados quando dirigidos a grupos específicos, ou
seja, a redes sociais de pessoas próximas entre si,
do que a indivíduos isoladamente. Como referem
os autores, os esforços para evitar a disseminação
da infecção HIV/aids implicam a adoção de uma
perspectiva de rede, que considere o impacto das
relações sociais, quer para a transmissão de DSTs,
quer para a difusão de conhecimentos e disposições
comportamentais de prevenção.
Neste artigo, partimos, por conseguinte, de uma
perspectiva relacional da sexualidade, que situa
o indivíduo na sua rede de relações sociais, cujos
efeitos se fazem sentir tanto ao nível do comportamento sexual, como na disseminação e prevenção de
DSTs. Propomo-nos, por conseguinte, caracterizar,
de modo multidimensional, as redes sociais dos
indivíduos. Seguindo a linha de pesquisa proposta
por Ferrand e Mounier (1993, 1998), exploramos o
conceito de rede social a partir de duas dimensões
centrais: a normativa e a prática. Neste contexto,
utilizaremos, ao longo do texto, dois conceitos
interligados. O primeiro, a rede normativa, referese, em concordância com a hipótese da regulação
normativa do comportamento sexual, à percepção
que os indivíduos inquiridos possuem da moral sexual – mais liberal ou mais conservadora – dos seus
familiares e amigos. Trata-se, por conseguinte, de
uma perspectiva centrada no indivíduo (uma egorede), que faz o retrato normativo da sua rede, de
acordo com a sua percepção pessoal (Scott 2000).
O segundo termo, a rede prática, incide, novamente
seguindo o trabalho de Ferrand e Mounier (1998)
sobre as relações de confidência sexual tecidas entre
o indivíduo e as pessoas próximas da sua rede social
(Bell e col., 1998). A focagem na confidência – o falar
sobre, o partilhar intimidade e segredo – está longe,
é evidente, de ser uma opção casual. Dois motivos
principais subjazem a esta estratégia teorico-metodológica, que enfatiza a proximidade e a intimidade
no seio da rede.
Por um lado, o próprio ato de falar sobre a sexualidade na primeira pessoa indicia uma postura reflexiva, orientada para a verbalização da intimidade e
a exposição de si em face de outros, particularmente
consentânea com os ideais relacionalistas imperantes na modernidade avançada (Giddens, 1996). Ora,
um dos aspectos centrais do processo de erotização
das relações, que tem marcado as últimas décadas,
reside precisamente numa crescente verbalização
da sexualidade, que sai cada vez mais do domínio
do privado para a arena pública, hoje marcada pela
discussão, médica e social, de questões e problemas
pensados como sendo do foro íntimo (Sennett, 1974).
A constituição de uma reflexividade pública sobre
a intimidade produz novas formas de regulação da
própria sexualidade, instituindo categorias que
permitem compreendê-la e partilhá-la, ou seja, o que
Foucault (1976) intitulou de discursos regulativos.
Além disso, a verbalização da sexualidade indica,
assim, uma atitude reflexiva relativamente a si
próprio que importa apreender.
Por outro lado, identificar os confidentes, um
a um, permite-nos obter com maior rigor a configuração da proximidade, não a do apoio ou a da
sociabilidade, mas a que se constrói pela partilha da
intimidade. Captar aqueles a quem se confidenciam
expectativas, problemas e segredos em matéria de
sexualidade, permite-nos testar a nossa hipótese
com maior precisão. Com efeito, se queremos perceber até que ponto as redes sociais podem influenciar os comportamentos sexuais dos indivíduos,
funcionando, como sugere Heckathorn (Heckathorn
1990; Heckathorn e col., 1999), como lugar de ancoragem e de recriação dos discursos regulativos que
controlam a sexualidade e os próprios comportamentos sexuais, nada mais adequado do que incidir
seletivamente sobre a rede de confidência que se
mobiliza seletivamente no seio de uma rede social
mais alargada.
A dupla caracterização das redes sociais, nos
seus aspetos de controle normativo e de confidência
sexual, permitir-nos-á, depois, estimar os efeitos
produzidos pelas variáveis de rede operacionalizadas sobre o comportamento sexual e as estratégias
de prevenção mobilizadas face ao risco de infecção
por DSTs, nomeadamente no respeitante ao uso do
preservativo em relações sexuais com parceiros
ocasionais.
Material e Métodos
Os dados analisados têm como base um inquérito
representativo da população entre 18 e 65 anos,
residente em Portugal Continental, realizado em
2007. A amostragem é multistage-area aleatória
e estratificada ao nível da freguesia (ou seja, as
divisões administrativas de menor dimensão em
Portugal), por referência aos dados censitários de
2001. Foram feitas 8781 tentativas de contato em
domicílios selecionados aleatoriamente em cada
freguesia, tendo sido aplicados apenas 3643 questionários válidos, devido ao elevado número de recusas
e de situações de não-elegibilidade (tais como, idade
superior a 65 anos, ileteracia, mudança de residência, etc.) verificadas durante o trabalho de campo.
O questionário foi aplicado em duas versões (uma
feminina e outra masculina). A alternância entre as
versões seguiu um critério aleatório sistemático.
Todos os participantes do estudo foram previamente
contatados e concordaram em responder às duas
partes constituintes do questionário na presença
do inquiridor: uma de questionamento direto pelo
inquiridor e outra de auto-preenchimento. A parte
auto-preenchida, em que se colocavam as questões
sobre comportamentos sexuais, DSTs e práticas de
prevenção, foi colocada pelo inquirido num envelope
lacrado, que era depois anexado ao inquérito geral.
Ambos foram colocados num segundo envelope e
em seguida anonimizados, com total garantia de
sigilo (Cabral e col., 2008). Em conformidade com
a lesgislação portuguesa sobre ética de pesquisa,
este estudo foi previamente aprovado pela Coordenação Nacional para a Infecção VIH/Sida, estando
integrado no seu Programa Nacional de acção para
o controle da infecção.
As redes sociais: normatividade, confidência e
sexualidade
No inquérito operacionalizaram-se várias questões
que nos permitem explorar duas dimensões-chave
das redes sociais, que esperamos tenham impacto
significativo sobre o comportamento sexual dos
indivíduos.
Em primeiro lugar, e em concordância com o
quadro teórico de que partimos, pesquisou-se a
percepção que os inquiridos têm da moral sexual
dos seus familiares e amigos. Recorremos, para esse
efeito a uma questão que tem sido sistematicamente
utilizada em pesquisas sobre sexualidade e redes,
replicando o estudo de Ferrand e Mounier (1998), no
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âmbito do inquérito francês de 1992 sobre sexualidade (Bajos e col., 1998): trata-se de uma pergunta
simples em que se procura aferir qual a percepção
que os indivíduos possuem sobre a aceitação da
infidelidade conjugal (aventuras amorosas, mesmo
tendo uma relação estável) por parte das suas redes
de familiares e de amigos. Em matéria de moral
sexual, o tema da infidelidade tem-se mostrado
particularmente certeiro, quando o objetivo é dividir
as pessoas, distinguindo entre orientações mais conservadoras e mais permissivas. Assim, perguntavase muito simplesmente até que ponto o inquirido
achava que seus familiares e amigos aceitariam uma
“aventura amorosa mesmo no quadro de uma relação
estável”. Além disso, da forma como foi colocada,
a fim de aferir separadamente a percepção sobre
os amigos e sobre os familiares, a questão permite
observar as diferenças normativas entre ambas as
redes: a de familiares e a de amigos. Com efeito, a
diferenciação entre redes de familiares e redes de
amigos constitui também um aspecto central da nossa análise, em consonância com o papel diferenciado
destes dois grupos em termos de controle social do
comportamento sexual (Shorter, 1995; Elias, 1993).
Adicionalmente, de forma a medir a maior ou menor
homogeneidade ou heterogeneidade normativa da
rede de amigos e de familiares, foi operacionalizada uma escala com 5 possibilidades de resposta:
1) Todos eles discordam; 2) Um ou outro concorda
em certas circunstâncias; 3) Alguns concordam em
certas circunstâncias; 4) A maior parte concorda em
certas circunstâncias; 5) Todos eles concordam em
certas circunstâncias. Partia-se da hipótese de que
quanto maior a homogeidade da rede (por exemplo,
com todos os familiares ou amigos concordando
com a infidelidade conjugal ou vice-versa), maior
seria também o controle normativo da rede sentido
pelo indivíduo.
Em segundo lugar, investigou-se a dimensão
relacional da rede de próximos, focando as interações de confidência sobre questões de sexualidade.
Para além dos aspectos normativos acima referidos,
perguntava-se ainda aos inquiridos se, para além do
cônjuge (à partida excluído da rede de confidentes
descrita pelos indivíduos), costumavam falar sobre
a vida sexual, os problemas íntimos e as aventuras
amorosas com outras pessoas. Inquiria-se quantas
212 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
eram essas pessoas, pedindo-se seguidamente aos
entrevistados para caracterizarem as duas pessoas
com quem mais freqüentemente discutem estes
assuntos íntimos: pretendiamos saber quem são
esses confidentes, que laços (familiares, de amizade, etc.) têm com o inquirido, qual a sua idade, sexo
e escolaridade. Obteve-se, desta forma, o desenho
geral do que aqui chamaremos de “rede de confidentes”, bem como as principais caracteristicas
sócio-demográficas de cada um dos dois confidentes
identificados pelos inquiridos.
Finalmente, para além de simplesmente caracterizar as redes de confidência, procuramos ainda
examinar as percepções dos inquiridos acerca do
comportamento sexual dos seus confidentes, procurando aferir-se qual a percepção dos indivíduos
sobre o número de parceiros dos confidentes, bem
como sobre as eventuais preocupações e precauções
desses confidentes sexuais face ao risco de infecção
por DSTs e nomeadamente por HIV/aids. Indagavase finalmente se havia ou tinha havido alguma
relação amorosa-sexual entre os inquiridos e seus
confidentes.
Como sugeriram Ferrand e Mounier (1998), a percepção sobre o comportamento sexual dos confidentes, bem como o próprio fato de ter havido contato
sexual entre inquiridos e confidentes, parecem ser
variáveis muito relevantes para explicar o próprio
comportamento dos indivíduos em matéria de sexualidade. Será que confidentes mais preocupados com
a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis
são nomeados por indivíduos que com eles partilham a mesma preocupação? Existirá homologia
entre os comportamentos dos inquiridos e dos seus
confidentes? Até que ponto as práticas de risco
possuem uma dimensão coletiva sustentada pela
influência recíproca entre indivíduos de semelhante
matriz comportamental? Estas são três perguntaschave para as quais tentaremos encontrar algumas
respostas através dos dados disponíveis.
Comportamentos sexuais e risco potencial
Os comportamentos sexuais (ou seja, as nossas
variáveis dependentes) são analisados através de
um conjunto alargado de indicadores, capazes de
reconstituir elementos-chave da biografia sexual dos
indivíduos, atestando a maior ou menor orientação
para lógicas experimentalistas, por oposição a lógicas restritivas da experiência sexual. Nesta óptica,
importa examinar alguns indicadores importantes
na aferição de potenciais riscos de transmissão de
DSTs.
Os principais indicadores reportam-se ao número de parceiros sexuais. Em primeiro lugar, importa
contabilizar o total de parceiros ao longo da vida.
Em segundo lugar, interessa igualmente observar a
última fase da biografia sexual, identificando agora
os últimos dois parceiros sexuais dos inquiridos. Ao
analisar os últimos parceiros optamos por isolar
os inquiridos que declararam tratar-se de relações
ocasionais (com ou sem conhecimento prévio entre
ambos os parceiros) e, dentre estes, identificamos
ainda aqueles que não usaram preservativo nas
relações sexuais tidas com pelo menos um desses
dois parceiros mais recentes. A problemática do
risco de doenças sexualmente transmissíveis, nomeadamente de infecção pelo HIV/aids, que esteve
na base deste inquérito, levou-nos a abordar desta
forma as questões relativas aos parceiros, centrando
a análise nas relações ocasionais. Como é óbvio, os
riscos de DSTs podem igualmente advir de relações
com parceiros regulares. No entanto, a escolha dos
parceiros ocasionais pareceu-nos uma estratégia
analítica mais adequada em face da hipótese que
pretendemos testar.
Modelo de análise e estratégia analítica
No modelo de análise que operacionalizamos, a rede
(tanto a normativa como a de confidência) assume o
estatuto de variável intermédia, sendo considerada
enquanto elemento de mediação entre os contextos
sociais e os comportamentos sexuais. As atitudes
face às aventuras sexuais poderão ser influenciadas
por coordenadas geracionais, escolares e de gênero,
bem como pela situação conjugal e profissional dos
homens e mulheres entrevistados (a este respeito,
veja Irvine, 1990; Mosher e col., 2005; UNAIDS,
2008). O mesmo sucederá, como é evidente, ao nível
da rede prática de confidência. A escolha dos confidentes, dentre familiares, amigos, colegas ou outros
elementos da rede social, dependerá, em boa medida,
do contexto social e da fase de ciclo de vida (familiar
e profissional) em que se encontram os indivíduos.
No entanto, esperamos que ambas as dimensões da
rede social se articulem com os comportamentos
sexuais dos indivíduos, produzindo sobre estes
determinados efeitos.
Procuramos, portanto, investigar a associação
entre variáveis comportamentais de risco e prevenção (número de parceiros sexuais, parceiros
ocasionais na última e penúltima relação sexual,
uso de preservativo nas relações sexuais ocasionais)
e variáveis de rede, comparando os efeitos destas
últimas com o impacto gerado por coordenadas
sócio-demográficas. Para isso efetuamos várias
regressões lineares e logísticas, assim testando um
modelo explicativo multidimensional. As variáveis
independentes foram, por conseguinte, divididas
em dois grupos: um primeiro grupo contemplou as
coordenadas sócio-demográficas (idade, escolaridade, situação conjugal, condição perante o trabalho)
e a prática religiosa; o segundo grupo de variáveis
introduziu as variáveis de rede no modelo.
Resultados
Caracterização das redes sociais: rede normativa
e rede de confidência
Nesta primeira secção relativa aos resultados do
estudo, iremos caracterizar as variáveis de rede, começando por analisar a dimensão normativa da rede
e examinar as diferenças entre a regulação exercida
diferencialmente por familiares e por amigos.
Como seria expectável face às hipóteses colocadas sobre o papel regulador da família, as redes de
familiares são descritas como sendo internamente
muito mais conservadoras e homogêneas do que
as de amigos (tabela 1). A análise de médias mostra
que as diferenças na percepção de ambos as redes de
relacionamento social são particularmente evidentes. O universo da família (média de 1,41 na escala
de 1-conservador a 5-liberal) é visto de forma muito
mais conservadora do que o das afinidades amicais
(média de 2,16, mais próxima do pólo liberal). Esta
diferença acentua-se sobretudo no caso dos homens,
pois para eles as diferenças entre as duas redes parecem ser bastante mais pronunciadas. Enquanto os
familiares são percebidos de forma relativamente
similar por homens e por mulheres (embora pese a
visão sexualmente mais moralista com que as mulheres descrevem os seus familiares), as diferenças
Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011 213
Tabela 1 - Distribuição da proporção (%) de pessoas segundo sexo e variáveis de rede normativa e de confidência. Adultos em Portugal, 2007
Total
Homens
Mulheres
Percepção da aceitação da infidelidade por parte de amigos e familiaresi (médias)
Familiares (η2=.11***)
1,41
1,50
1,32
Amigos (η2=.01***)
2,16
2,53
1,79
Nenhuma pessoa
52,4
54,3
50,6
1 pessoa
20,3
19,1
21,4
2 pessoas
14,4
13,4
15,4
Redes de confidência (percentagens)
Número de confidentes (ccii=n.s.)
3 ou mais pessoas
12,9
13,3
12,6
Total
100,0
100,0
100,0
Laço com os confidentes (ccii=.31***)
Um/a colega de trabalho
10,0
10,4
9,7
Um elemento da sua família
28,4
24,6
31,7
Um/a amigo/a próximo/a
59,0
61,9
56,3
Outra pessoa
Total
2,6
3,1
2,2
100,0
100,0
100,0
Gênero (ccii=.51***)
Rede Masculina
30,3
55,6
8,2
Rede Feminina
51,7
20,9
23,5
Rede mista
18,0
78,6
13,2
Total
100,0
100,0
100,0
Mesmo intervalo etário
52,0
53,2
50,9
Confidentes mais novos que inquirido
19,0
19,6
18,4
Confidentes mais velhos que inquirido
11,4
10,2
12,5
Confidentes de diferentes intervalos etários
17,6
17,0
18,1
Total
100,0
100,0
100,0
Sim
66,3
70,5
62,6
Não
33,7
29,5
37,4
Total
100,0
100,0
100,0
Sim
30,4
42,4
19,9
Não
69,6
57,6
80,1
Total
100,0
100,0
100,0
10,3
15,5
5,8
Perfil etário dos confidentes (ccii=n.s.)
Percepções sobre o comportamento sexual dos confidentes no último ano
Confidentes fazem seleção de parceiros sexuais por causa do HIV/aids? (ccii=n.s.)
Confidentes multi-parceiros? (ccii=,45***.)
Relações sexuais com os confidentes (ccii=.17**)
Teve relações sexuais
Não teve
89,7
84,5
94,2
Total
100,0
100,0
100,0
***<0,001 **p<0,01 *p<0,05
i
) Escala: 1 Todos eles discordam; 2 Um ou outro concorda em certas circunstâncias; 3 Alguns concordam em certas circunstâncias; 4 A maior parte concorda em certas
circunstâncias; 5 Todos eles concordam em certas circunstâncias.
ii
) Coeficiente de contingência
214 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
de gênero evidenciam-se nos discursos sobre os amigos. A liberdade sexual masculina parece construirse, mais do que a feminina, pela inserção em redes
sociais alternativas à família, ainda um reduto conservador e fiel ao ideal de relação monogâmica face
ao aparente liberalismo com que são representados
os amigos (Ferrand e Snijders, 1997).
Esta diferença encaixa-se em tendências documentadas de mudança histórica das relações sociais
de proximidade. O corte de amarras com o controlo
exercido pelos parentes é indissociável dos processos de individualização (Shorter, 1995; Elias, 1993).
A autonomia pessoal constitui afinal uma condição
sine qua non para a expressão de uma sexualidade liberta, muito mais tardia e parcialmente conquistada
pelas mulheres. A eventual erosão de laços institucionalistas seria assim decisiva para a valorização
das “afinidades eletivas”, termo primeiramente
utilizado por Goethe, no seu romance homônimo
de 1809 (republicado em 2008), para se referir ao
casamento por amor e à valorização do indivíduo e
das suas escolhas e desejos pessoais. Neste sentido,
as relações de amizade constituem igualmente um
símbolo da livre escolha. Evidentemente, a família
mantém-se, no presente, extremamente importante,
de certa forma simbolizando o triunfo normativo
da monogamia sobre o tradicional duplo padrão de
gênero no que respeita à infidelidade. Os resultados similares obtidos no masculino e no feminino
assim o demonstram: nem se aceita a infidelidade
dos homens nem a das mulheres. A tolerância relativamente à infidelidade e, muito provavelmente, a
persistência do duplo padrão de comportamento sexual, segundo o gênero, encontra agora ancoragem
no universo das relações de amizade, representadas
como mais tolerantes no caso dos homens do que
no das mulheres. As diferenças de gênero inerentes
às percepções das redes de amigos são, pois, um
dado de grande importância para compreendermos
as desigualdades que se mantêm, em termos normativos, entre homens e mulheres no domínio da
sexualidade (sobre normas de género e sexualidade,
veja Irvine, 1990).
A segunda medida das redes, como anteriormente explicitado, incide sobre a própria rede de
confidência.
Começamos agora por abordar o primeiro dos in-
dicadores de caracterização da rede de confidência:
o número de confidentes.
Cerca de metade dos inquiridos não referem ter
qualquer confidente sexual. Curiosamente, ao contrário do que sucedia no plano normativo, o “falar de
sexo” parece seguir um padrão bastante similar no
que respeita ao gênero. Com efeito, a especialização
feminina na reflexividade exercida sobre o domínio
dos afetos e da intimidade (Giddens, 1996), não incide necessariamente sobre o plano da sexualidade,
enquanto campo autônomo da discursividade. No
caso dos homens, a imaginada dificuldade em expor
a intimidade sexual, domínio vital da masculinidade,
parece afinal não impedir os homens de, tal como
as mulheres, falar de sexualidade com outros. No
entanto, à semelhança dos resultados franceses
(Ferrand e Mounier, 1998), entre a metade da amostra que identificou confidentes sexuais, cerca de um
quinto dos homens e das mulheres falam da sua vida
sexual apenas com uma pessoa, 13-14% fá-lo com
duas pessoas e somente cerca de 13% diz ter três ou
mais confidentes (tabela 1). Em suma, apenas uma
minoria de indivíduos parece ter uma rede alargada
de partilha da intimidade sexual, contrastando com
uma maioria de pessoas que ou não fala do assunto
com ninguém ou o faz apenas com uma pessoa.
Depois de respondida a primeira questão sobre
o número total de confidentes, era pedido aos inquiridos que caracterizassem um ou dois, no máximo,
dos seus confidentes, indicando qual o laço entre
ambos (tabela 1).
Como seria espectável, depois de observado o
maior liberalismo dos amigos em questões de normatividade sexual, estes tendem a assumir, na prática, o papel de confidentes sexuais, encontrando-se
aqui em vantagem face ao segundo agrupamento
identificado – os elementos da família próxima.
Entre os indivíduos que identificaram pelo menos
um confidente, cerca de 62% dos homens e 56% das
mulheres elegem os confidentes sexuais entre as
suas relações de amizade. Em contraste, notemos
que apenas 24,6% dos homens e 31,7% das mulheres
nomeiam familiares. Esse ligeiro pendor “familialista”, muito menos significativo, aliás, do que o
observado no plano normativo, constitui a principal
diferença entre homens e mulheres.
Outros dois aspectos importantes para a ca-
Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011 215
racterização das redes de confidentes prendem-se
com o sexo e a idade desses mesmos confidentes
(tabela 1).
Começando pelo primeiro indicador, podemos
observar qual o perfil das redes em termos de gênero.
No total da amostra, mais de metade das redes de
confidentes são constituídas por mulheres, tratando-se exclusivamente de redes femininas. Cerca de
30% são redes masculinas e apenas 18% são redes
mistas, ou seja, incluem simultaneamente homens
e mulheres. A primeira constatação importante deve
assim destacar o caráter feminizado das relações
de confidência. De acordo com os nossos dados,
corrobora-se a idéia, bem explicitada por Giddens
(1996), de que a reflexividade sobre a intimidade é
uma qualidade historicamente desenvolvida sobretudo entre as mulheres, por oposição ao estereotípico afastamento masculino de um mundo de afetos,
tendencialmente conotado com o feminino.
A análise do perfil de gênero da rede de confidentes segundo o sexo dos inquiridos acrescenta
informações interessantes: apenas 55,6% dos homens têm como confidentes outros homens; pelo
contrário, as lógicas intra-gênero aplicam-se a quase
80% das mulheres. Entre os homens são mais freqüentes as redes de confidência mistas (23,5%) ou
apenas femininas (20,9%), tendência que contrasta
claramente com o perfil das redes femininas, quase
sempre apoiadas na partilha da intimidade entre
mulheres (Wall e col., 2001). Uma das razões subjacentes a esta diferença de gênero poderá residir
precisamente nas particularidades constitutivas da
feminilidade e da masculinidade. Se às mulheres se
associa idealmente o mundo dos afetos por contraste
com a maior sexualização da masculinidade, muitos
homens poderão encontrar espaço para a partilha da
intimidade afetiva junto de mulheres, pessoas fora
do jogo simbólico da competição sexual masculina
(Pleck, 1993). Afinal, a confidência de questões e
problemas sexuais e amorosos implica a exposição
de si face ao outro, podendo gerar, no seio da masculinidade dominante, o receio de parecer fraco ou
efeminado perante os pares (Connell, 1995). O fechamento feminino das mulheres comporta, por outro
lado, uma orientação de gênero homóloga, pautada
pela restrição do mundo íntimo e da sexualidade a
esse universo.
216 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
Do ponto de vista da proximidade etária entre
confidentes e inquiridos, a tendência majoritária é
para que as relações de intimidade sejam desenvolvidas no interior dos mesmos intervalos etários (52%
da amostra). Dentre a outra metade, cerca de um
quinto identifica confidentes de intervalos etários
mais jovens, 17,6% nomeia pessoas de diferentes
idades e apenas 11,4% declara falar de sexo com
indivíduos mais velhos.
Finalmente, analisamos as redes de confidência
a partir da percepção que os inquiridos têm acerca
do comportamento sexual dos seus confidentes.
Utilizamos, para o efeito, duas questões-chave: a
percepção sobre o número de parceiros sexuais dos
confidentes ao longo do último ano e a percepções
sobre as estratégias de prevenção utilizadas pelos
confidentes face aos riscos de transmissão do HIV/
aids. Perguntava-se aos inquiridos quantos parceiros sexuais pensavam que os seus confidentes
tiveram no último ano e se achavam que estes eram
seletivos na seleção desses parceiros devido ao receio da infecção HIV/aids (tabela 1).
Relativamente à percepção sobre o número de
parceiros dos confidentes, optamos por isolar as
respostas que identificaram confidentes multiparceiros, ou seja, que tiveram vários parceiros
sexuais no último ano (vários parceiros diferentes ou um parceiro regular e outros ocasionais),
diferenciando-as dos confidentes com apenas um
parceiro. Globalmente, verificamos que entre os
homens entrevistados, quase metade pensa que os
seus confidentes tiveram vários parceiros sexuais
ao longo do último ano; entre as mulheres, esta
percentagem desce, abrangendo apenas cerca de
20% dos casos. A visão masculina dos confidentes
é, como esperávamos, mais permissiva do que a
das mulheres. No entanto, apesar desta diferença
significativa ao nível do número de parceiros, no
respeitante à percepção sobre as formas de seleção
de parceiros sexuais utilizadas pelos confidentes,
percentagens não muito diferentes de homens
(70,5%) e de mulheres (62,6%) pensam que os seus
confidentes têm particular atenção em selecionar os
parceiros sexuais devido ao receio de ser infectado
com o HIV/aids.
Por fim, a última dimensão de caracterização
da rede indagava sobre as relações sexuais entre
inquiridos e confidentes, sendo que nenhum dos
confidentes, como foi explicitado anteriormente,
era o cônjuge da pessoa entrevistada. Na maioria
dos casos, nunca houve relacionamentos sexuais
entre ambos. No entanto, em 10,4% das situações é
descrita a ocorrência de relações sexuais entre os
inquiridos e os seus confidentes. Esta prática está,
por conseguinte, longe de ser a lógica da maioria,
assim indicando a independência entre atividade
sexual e diálogo sobre sexualidade. Observam-se,
todavia, diferenças de gênero significativas que
importa assinalar. São, afinal, os homens quem mais
declara ter tido este tipo de relação com os confidentes: enquanto 15,5% destes referem ter tido relações
sexuais, apenas 5,8% das mulheres o fazem, quase
três vezes menos, portanto.
Comportamento Sexual: número de parceiros e
relações ocasionais
As diferenças de gênero são, aliás, muito evidentes
ao nível do comportmento sexual dos indivíduos
(tabela 2). Efetivamente, nos vários indicadores por
nós analisados, as diferenças de gênero são, desde
logo, flagrantes, assim reiterando os resultados de
vários outros inquéritos à sexualidade realizados em
vários países:veja-se , por exemplo, Laumann e col.,
1994, para os E.U.A.; Bajos e col., 2007, para a França;
Wellings e col., 1994, para a Grã-Bretanha; ou Ministério da Saúde, 2000, para o Brasil, entre outros.
De forma geral, encontramos na amostra percentagens mais significativas de homens cujos últimos
parceiros foram relações ocasionais – 15,7% e 21,8%
dos homens referem que o último e o penúltimo
parceiro, respectivamente, foram ocasionais, contra
4,5% e 5,9% das mulheres. Em relação ao uso de preservativo nessas relações ocasionais, as diferenças
permanecem: 6,5% dos inquiridos da amostra não
usaram preservativo nas relações ocasionais que
tiveram com o último ou penúltimo parceiro. Porém,
enquanto esta ausência de prevenção abrange cerca
de 10% dos homens, apenas se aplica a 2,7% das
mulheres. O número de parceiros sexuais declarados
pelos homens – quer ao longo da vida, quer nos últimos cinco anos – é também, e como seria de esperar,
bastante mais expressivo do que os declarados pelas
mulheres.
Tabela 2 - Distribuição da proporção (%) de pessoas segundo sexo e variáveis dependentes de comportamento
sexual. Adultos em Portugal, 2007 (n=3335)
Total
Homens
Mulheres
36,6
18,2
55,7
Número de parceiros sexuais ao longo da vida (%)
Um parceiro
Dois parceiros
14,2
12,4
16,0
Três parceiros
10,3
10,2
10,4
Quatro ou mais
38,9
59,1
17,8
Total
100,0
100,0
100,0
Nenhum parceiro
13,5
15,6
11,4
Um parceiro
59,9
49,7
70,5
Dois parceiros
7,9
7,3
8,5
Número de parceiros nos últimos cinco anos (%)
Três parceiros
5,6
6,5
4,6
Quatro ou mais
13,1
20,9
5,0
100,0
100,0
100,0
Último parceiro relação ocasional (% na amostra)
10,6
15,7
4,5
Penúltimo parceiro relação ocasional (% na amostra)
14,0
21,8
5,9
Ultimo ou penúltimo parceiro, relação ocasional sem usar preservativo (% na amostra)
6,5
10,2
2,7
Total
Últimos dois parceiros e relações ocasionais
Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011 217
Na próxima e última secção deste artigo completamos a análise, procurando testar a nossa hipótese
do impacto da rede nos comportamentos sexuais
dos indivíduos. O recurso a técnicas estatísticas
de regressão permite-nos observar as interações
complexas de causalidade existentes entre o conjunto de variáveis que identificamos no modelo de
análise. Através destes procedimentos estatísticos
conseguimos avaliar o impacto global dessas mesmas variáveis no seu conjunto. Só assim podemos
comprovar que o “efeito de rede” não é apenas um
espelho de outras diferenças fundadas, por exemplo,
na geração, no gênero, nos capitais acadêmicos ou
na situação conjugal.
Redes sociais e comportamento sexual
Em face deste objetivo, construímos um modelo de
regressão congregando todas as variáveis sóciodemográficas utilizadas, às quais acrescentamos
ainda a freqüência da atividade religiosa, e todas as
variáveis de rede descritas ao longo do capítulo: a
rede normativa de amigos e de familiares, o número
de confidentes, o sexo e a idade desses confidentes,
os indicadores de comportamento sexual dos confidentes (percepções sobre o numero de parceiros
ao longo do último ano e estratégias de seleção de
parceiros sexuais) e, finalmente, as relações sexuais
existentes entre os inquiridos e os seus confidentes.
Testamos este modelo de regressão sobre três variáveis dependentes: o número de parceiros sexuais nos
últimos 5 anos, as relações sexuais com parceiros
ocasionais (últimos dois parceiros), e as relações
sexuais com parceiros ocasionais em que não se
usou preservativo. A escolha destes indicadores
de comportamento sexual obedeceu aos objetivos
inicialmente explicitados de procurar aferir qual
o impacto efetivo das redes sociais sobre práticas
que podem ser consideradas de risco. Referimo-nos
nomeadamente à ausência de prevenção em relações
sexuais esporádicas levadas a cabo com pessoas
conhecidas e até com desconhecidas.
Comecemos, no entanto, por observar os resultados da regressão linear efetuada sobre o número
de parceiros sexuais nos últimos 5 anos (tabela 3).
Tal como para as outras variáveis dependentes,
realizamos três análises de regressão: uma para o
total da população e as outras duas em separado para
218 Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011
os homens e para as mulheres. Em face das lógicas
de gênero atuantes neste campo da vida privada,
pretendíamos descobrir eventuais especificidades
inerentes às experiências sexuais e sociais no masculino e no feminino.
Na verdade, no procedimento efetuado para o
conjunto da população inquirida, podemos verificar
que a variável sexo é particularmente importante
enquanto preditora do número de parceiros. Relativamente às restantes variáveis sócio-demográficas
o peso que assumem nos modelos de regressão
depende, de fato, do sexo dos inquiridos. Globalmente, as coordenadas etárias e escolares são mais
importantes para prever o número de parceiros
sexuais das mulheres, ao passo que a situação conjugal assume particular relevo no caso dos homens.
Mulheres mais novas e mais escolarizadas tenderão
a ter mais parceiros. Entre os homens, estar dentro
ou fora da vida em casal pode ser determinante para
equacionar este comportamento.
Porém, os resultados mais interessantes, do ponto de vista da hipótese que procuramos testar, são os
que se prendem com os efeitos de rede revelados pela
análise de regressão. O número de parceiros sexuais,
tanto de homens como de mulheres, parece poder
ser predito, em certa medida, pelo comportamento
sexual dos confidentes sexuais. Não obstante cerca
de metade dos inquiridos na amostra ter declarado
não ter confidentes, esta relação mostra a importância destes últimos como fatores de influência
do comportamento sexual individual. Na verdade,
os resultados do estudo mostraram que quem
declarou ter confidentes sexuais tende a ter mais
parceiros sexuais. A tendência acima observada
é, aliás, similar para homens e para mulheres, não
obstante os resultados diferirem consoante o sexo.
O comportamento sexual atribuído aos confidentes
parece assim constituir um preditor relevante com
influência sobre o número de parceiros sexuais nos
últimos 5 anos, confirmando-se portanto a pertinência da nossa hipótese inicial sobre a homologia
comportamental entre inquiridos e confidentes.
Em face dos resultados expostos, parece, de fato,
estabelecer-se uma conexão estatística entre o
número de parceiros sexuais dos indivíduos e a sua
rede de confidentes. Além disso, existe também
um certo efeito preditor da rede normativa sobre o
Tabela 3 - Comportamento sexual e preditores sócio-demográficos e de rede
Regressões lineares (Coeficientes estandardizados – Beta)
Número de parceiros sexuais nos
últimos 5 anos
Homens
Variáveis sócio-demográficas
Sexo
Idade
Escolaridade
Situação conjugal i
Condição perante o trabalho ii
Freqüência da atividade religiosa iii
Variáveis de rede
Opinião dos amigos sobre aventuras sexuais
Opinião dos familiares sobre aventuras sexuais
Número de confidentes
Perfil da rede em termos de gênero
Membros da rede com multiparceiros sexuais
Membros da rede selecionam parceiros por
causa da AIDS
Relações sexuais com confidentes
R2 ajustado
Mulheres
Todos
Parceiros sexuais ocasionais
(últimos dois parceiros)
Homens
Mulheres
Todos
-0,21***
-0,17**
0,16**
0,22***
-0,16***
0,28***
0,17***
0,38***
0,21***
0,16**
0,17*
0,15***
0,18***
0,14***
0,19***
0,19***
0,14*
-0,21**
-0,21***
-0,19***
-0,30***
-0,19**
0,14
0,12
0,20
0,29
-0,23***
-0,10*
-0,21***
0,16
0,23
Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados (betas) estatisticamente significativos: * p < 0,01; ** p < 0,05; ***p < 0,001. As células vazias cor­res­
pon­dem a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p > 0,01). Os códigos das variáveis utilizadas são os seguintes: i 1)casamento;
2)coabitação; 3)solteiro com relacionamento; 4)solteiro sem relacionamento. ii 1)trabalha; 2)não trabalha. iii 1)todos os dias a 8)nunca.
número de parceiros. Porém, enquanto os homens
parecem ser mais influenciados pela opinião dos
amigos acerca das aventuras sexuais, esta variável
normativa parece ser pouco relevante como preditora do número de parceiros sexuais das mulheres
nos últimos 5 anos.
Vejamos os resultados da segunda regressão
linear (tabela 3). Relativamente à segunda variável
dependente em análise (o ter tido parceiros sexuais
ocasionais), o modelo explicativo é particularmente
eficaz para prever este comportamento sexual no
grupo masculino (Clark, 1990), por comparação com
o grupo feminino, ao qual a adequação do modelo
de regressão é menor, como mostram as diferenças
verificadas na abrangência explicativa global dos
modelos (enquanto no caso dos homens temos um
R2 de 0,29, entre as mulheres este valor situa-se nos
0,16). No entanto, em ambos os casos se verifica
um efeito preditor das variáveis de rede, embora
pesem as diferenças de gênero reveladas nos procedimentos de regressão. No caso dos homens, as
coordenadas mais importantes são as que se referem
ao comportamento sexual dos confidentes: se os
inquiridos acham que os seus confidentes tiveram
vários parceiros no último ano, é mais provável que
eles próprios tenham tido também mais relações
sexuais ocasionais (coeficiente de 0,30). Além desta
variável, tem ainda impacto a que se refere às estratégias preventivas dos confidentes: confidentes que
selecionam os seus parceiros sexuais em função do
receio do HIV/aids associam-se a homens com maiores probabilidades de terem tido parceiros sexuais
ocasionais. Relativamente às mulheres, a rede é,
como notamos, igualmente importante, embora os
parceiros ocasionais declarados pelas mulheres se
associem a outro conjunto de variáveis. As mulheres
são mais sensíveis a coordenadas normativas como a
opinião que os amigos têm sobre aventuras sexuais,
ao número de confidentes sexuais e ao próprio fato
de terem tido um envolvimento sexual com pelo menos um desses confidentes. Para elas, os aspetos de
pressão reguladora decorrentes da rede normativa
Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011 219
parecem, assim, ter mais relevância no que respeita
a este tipo de comportamento sexual. Amigos mais
liberais são importantes para legitimar práticas
sexuais ocasionais.
Finalmente, a terceira análise de regressão (agora uma regressão logística dada a natureza binária
da variável dependente: usou/não usou preservativo
com os parceiros sexuais ocasionais) permite-nos
testar a adequação do modelo explicativo a práticas
sexuais de “risco” (tabela 4). Além da idade, importante quer para homens quer para mulheres, e da
escolaridade, mais relevante no caso dos primeiros, as variáveis de rede surgem novamente como
elementos preditores deste comportamento sexual,
sobretudo no caso das mulheres. Para elas, o modelo
de regressão revelou maior adequação (o pseudo R2
é de 0,48, bastante elevado, portanto), destacandose o impacto da dimensão normativa da rede social
– a opinião dos amigos, a opinião dos familiares.
Redes de relacionamento social mais permissivas
relativamente à infidelidade e às aventuras sexuais associam-se a comportamentos mais liberais
e também de maior risco, em face de uma eventual
infecção por DSTs. No caso dos homens, o uso de
preservativo parece associar-se, sobretudo, a idades
mais jovens e a escolaridades mais elevadas.
Em suma, os procedimentos de regressão ajudaram-nos a captar o efeito conjunto das variáveis
que selecionamos e assim comprovar o efeito da
rede sobre o comportamento sexual dos inquiridos.
Em linhas gerais, a similitude entre comportamentos sexuais de inquiridos e de confidentes parece
revestir-se de alguma importância para equacionar
a diversidade de experiências sexuais. De relevo
são igualmente os ambientes normativos que caracterizam as redes de relacionamento social dos
inquiridos. Tanto a rede de confidentes como a rede
normativa produzem efeitos específicos que, segundo os dados, têm influência nos comportamentos
sexuais de homens e de mulheres.
Tabela 4 - Relações sexuais com parceiros ocasionais sem usar preservativo (últimos dois parceiros) e preditores
sócio-demográficos e de rede. Regressões logísticas (coeficientes de regressão)
Homens (n=158)
Mulheres (n=204)
Todos (n=362)
Idade
-0,07*** (8,84)
-0,08** (4,36)
-0,11*** (22,56)
Escolaridade
-0,39** (4,47)
Variáveis sócio-demográficas
Sexo
1,10** (4,34)
-0,44*** (8,29)
Situação conjugal
Condição perante o trabalho
Freqüência da atividade religiosa
Variáveis de rede
Opinião dos amigos sobre aventuras sexuais
-1,83*** (8,96)
-0,60** (6,05)
Opinião dos familiares sobre aventuras sexuais
Número de confidentes
-0,74*** (10,87)
Perfil da rede em termos de gênero
-0,94*** (8,38)
Perfil da rede em termos etários
Membros da rede com multiparceiros sexuais
1,03* (3,66)
Membros da rede selecionam parceiros por causa da AIDS
Relações sexuais com confidentes
Nagelkerke R2
0,17
0,48
0,31
Nota: Os valores são coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente significativos: * p < 0,01; ** p < 0,05; *** p < 0,001. As células vazias correspondem
a coeficientes de regressão estandardizados estatisticamente não significativos (p > 0,01).
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Discussão e Conclusões
Para terminar, importa rever e discutir algumas
das principais conclusões reveladas pela análise
efetuada. Em primeiro lugar, pretendíamos aferir
qual o impacto dos constrangimentos normativos
vividos no seio das redes de relações com familiares
e com amigos sobre o comportamento sexual dos
indivíduos. Em segundo lugar, procuramos observar
o impacto gerado pela rede prática de confidentes,
verificando até que ponto o perfil destes últimos
estabelece conexões explicativas com o comportamento sexual de homens e de mulheres. Evidentemente, não obstante os resultados apontarem para
uma relação pertinente entre ambas as dimensões
– a rede e o comportamento sexual –, a abrangência
das conclusões retiradas não deixa de ser afetada por algumas limitações inerentes à pesquisa
quantitativa efetuada em Portugal. Gostariamos
de salientar dois aspetos importantes. O primeiro
incide sobre a forma como foi operacionalizada a
rede social, aqui limitada a aspetos normativos e
de confidência sexual, seguindo os procedimentos
sugeridos por Ferrand e Mounier (1993, 1998). Muito
embora estas duas dimensões se tenham revelado
relevantes e apontem para resultados semelhantes
aos encontrados, na França, pelos autores referidos,
será, sem dúvida, útil que em futuras pesquisas se
incluam na análise outras dimensões de rede. O
presente estudo analisa, afinal, apenas dois aspectos
da rede, dentre muitos outros que poderiam revelarse importantes numa perspectiva epidemiológica.
As formas de selecção de parceiros sexuais, entre
outras dimensões das redes sociais, constituem
um fator de grande importância que não foi contemplado na nossa pesquisa (a este respeito ver, por
exempo, Morris 1997; Heckathorn e col., 1999, entre
outros). O segundo problema, claramente decorrente
da perspectiva de rede de confidência sexual que
utilizamos, repousa no fato de cerca de metade dos
respondentes ter declarado não ter quaisquer confidentes e de cerca de um quinto ter indicado apenas
um confidente. Certamente, a inclusão de outras
medidas de rede, em consonância com uma análise
de redes mais multi-dimensional (Scott 2000, entre
outros), como sugerimos acima, poderia evidenciar
mais claramente a importância das variáveis de rede
para a compreensão do comportamento sexual, do
risco e da prevenção face às DSTs e ao HIV/aids. Porém, os resultados apresentados permitem, apesar
das limitações apontadas, destacar a prevalência de
um “efeito de rede”, que deve ser considerado quer
na descrição dos comportamentos sexuais, quer nas
práticas preventivas face ao risco de infecção por
DSTs, como salientam, aliás, diversos autores (Bell
e col., 1998; Bell e col., 2002).
Assim, relativamente à dimensão normativa da
rede social, observamos algumas tendências importantes. Em primeiro lugar, importa relembrar
as diferenças entre as redes de familiares e as de
amigos, pois as primeiras são geralmente muito
mais conservadoras do que as segundas, no respeitante à percepção que delas têm os inquiridos. A infidelidade e a aventura amorosa-sexual constituem
comportamentos muito mais censurados no seio
da família e muito mais tolerados no universo dos
amigos. Seguindo de perto os resultados obtidos
por Ferrand e Mounier (1998) a partir dos dados do
inquérito francês à sexualidade de 1992, constatamos serem raras as redes normativas em que todos
os familiares e todos os amigos são permissivos. No
entanto, a tendência majoritária traça um retrato
normativo heterogêneo em que os amigos são mais
liberais do que os familiares em matéria de moral
sexual.
Em segundo lugar, em consonância com a idéia
inicial, é de assinalar a importância dos amigos na
configuração das relações sociais dos inquiridos,
sobretudo quando nos reportamos aos homens. Face
ao ideal monogâmico imperante no seio familiar,
que restringiu, a favor da transparência afetiva,
o tradicional duplo padrão de gênero pautado por
normas diferentes relativamente à infidelidade masculina, mais aceitável nas famílias tradicionais, e à
feminina, sempre interdita e censurada, os amigos
fornecem o ambiente de tolerância sexual capaz de
legitimar a infidelidade conjugal. A existência de
redes sociais não conservadoras para lá do universo
familiar, tendência mais expressiva no grupo masculino, parece assim articular-se significativamente às
biografias sexuais dos indivíduos, permitindo-lhes
um controlo mais individualizado da sua própria
sexualidade. Esta tendência é importante para homens e para mulheres, embora pese o maior impacto
Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.207-224, 2011 221
regulador da rede normativa sobre o comportamento
sexual das mulheres, como mostraram os resultados
obtidos através das análises de regressão. Como
tem sido largamente argumentado (Irvine 1990), , a
permanência de normas de gênero (partilhadas no
seio da rede) mais restritivas da liberdade sexual das
mulheres tem um impacto profundo sobre a vivência
feminina da sexualidade. Pelo contrário, normatividades mais liberais e hedonistas continuam a fazer
parte da codificação da sexualidade masculina e, em
grande medida, a reproduzir um modelo de duplopadrão de gênero no respeitante à sexualidade, como
notou igualmente Campbell (1995), ao analisar a
realidade norte-americana. Apesar das grandes
mudanças que têm vindo a transformar as relações
de gênero e os comportamentos sexuais femininos
(Bozon, 2005), a diferenciação de gênero continua
a pesar sobre os comportamentos e as normas da
sexualidade. A maior incidência de sexo com parceiros ocasionais (usando ou não o preservativo)
entre a população masculina constitui, desde logo
e entre outras, uma evidência clara da permanência
de desigualdades de comportamento sexual, como
demonstrou também Clark (1990).
Porém, como seria de esperar, a configuração da
rede normativa segue linhas de mudança geracional
acentuadas, quer no caso das mulheres, quer no dos
homens. Globalmente, gerações mais jovens e indivíduos mais escolarizados tendem a descrever redes
heterogêneas e a sublinhar a diferença entre as redes
de familiares e os de amigos, lembrando a atualidade
da tese de Giddens (1996) sobre as transformações
da intimidade na modernidade avançada. Beneficiam assim de sociabilidades plurais e eventualmente favoráveis a uma maior liberdade individual no
campo da sexualidade, em concordância com a tese
proposta por Shorter (1995) sobre o enfraquecimento
do papel regulador da família e do parentesco. Em
suma, acentua-se a diferença entre redes conservadoras e de base familiar e redes mais liberais onde os
amigos são fundamentais. As primeiras associam-se
a comportamentos mais restritivos da experiência
sexual e as segundas a práticas mais plurais em matéria de sexualidade, como também demonstraram
Ferrand e Mounier (1993, 1998).
Estes contrastes evidenciam-se igualmente ao
nível das redes de confidência, confirmando o papel
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mais restritivo que se associa à família por contraste
com a maior permissividade dos amigos. A verdade
é que, na maioria dos casos, sobretudo em gerações
mais jovens, em grupos mais escolarizados e entre
os homens, os confidentes nomeados fazem parte do
universo dos amigos. Mais uma vez, a maior inclusão
de uma significativa parte das mulheres em redes de
confidência constituídas por familiares e por outras
mulheres reproduz uma diferença de gênero, cujo
impacto ao nível do comportamento sexual deve ser
salientado. Embora cerca de metade dos inquiridos
não tenha identificado qualquer confidente, esta
tendência é, ainda assim, bastante relevante. A rede
de confidentes é normalmente restrita – lembremos
que cerca de um quinto dos homens e das mulheres
fala da sua vida sexual apenas com uma pessoa,
13-14% fá-lo com duas pessoas e somente cerca de
13% diz ter três ou mais confidentes. Porém, falar
de sexo com outras pessoas constitui um elemento
particularmente relevante para a compreensão dos
comportamentos sexuais dos indivíduos, sejam
homens ou mulheres. Ter confidentes marca, desde
logo, uma atitude e uma prática mais liberal em matéria de sexualidade, demonstrando a importância
da reflexividade partilhada nos processos de erotização e libertação sexual dos sujeitos. Deste ponto de
vista, a conexão entre o perfil da rede de confidentes
e o comportamento sexual dos inquiridos corrobora
a nossa idéia inicial, demonstrando a importância
de abordar a sexualidade e os comportamentos de
risco e prevenção numa perspectiva de rede, que contemple as relações sociais dos indvíduos e a forma
como se influenciam reciprocamente.
Algumas coordenadas revelaram-se particularmente importantes: ter redes mistas do ponto de
vista do sexo e heterogêneas do ponto de vista etário
parece promover comportamentos sexuais mais
descomprometidos e maior diversidade de parceiros
sexuais. Estes resultados encaixam-se sem grande
dificuldade no pressuposto de que a pertença a universos plurais e libertos das amarras do parentesco
ou de um denso inter-conhecimento entre os membros das várias redes sociais tenderá a promover
a individualização do sujeito, bem como morais
sexuais mais liberais. Mais interessante ainda é a
já referida homologia relativa entre comportamento
sexual dos inquiridos e dos seus confidentes. A par
de coordenadas sociais, como a geração, o gênero ou
a escolaridade, a rede social tem afinal um impacto
relevante. Confidentes a quem se atribuem maior
número de parceiros sexuais ou particular cuidado
com a prevenção de DSTs são nomeados por indivíduos com comportamentos semelhantes. Tanto
numa perspectiva relacional da sexualidade como
numa óptica epidemiológica, a observação das redes
de relações sociais dos indivíduos constitui assim,
como foi sugerido por Heckathorn e colaboradores
(1999) – entre vários outros autores –, um aspecto
importante para a compreensão e explicação da
variedade de experiências sexuais, mais restritas
ou mais plurais, e para os riscos de infecção que
daí podem advir.
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Recebido em: 20/01/2010
Reapresentado em: 31/07/2010
Aprovado em: 03/08/2010
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