1 NEOLIBERALISMO, TERCEIRO SETOR E EDUCAÇÃO: OS DILEMAS DO VOLUNTARIADO NA EDUCAÇÃO Albany Mendonça Silvai Carla Rezende Gomesii Eixo temático: Educação, intervenções sociais e políticas afirmativas. RESUMO Este artigo se propôs a refletir acerca da educação como espaço privilegiado para o desenvolvimento de práticas do voluntariado, na última década, no contexto marcado pelas implicações do neoliberalismo e do Terceiro Setor. Para melhor compreensão do objeto em exame, faz-se uma reflexão sobre o voluntariado no contexto neoliberal, buscando situar a funcionalidade do trabalho voluntário ao capital, diante das mudanças na esfera estatal e o incentivo ao processo de refilantropização. Os resultados das reflexões apontam que o problema não consiste nas ações voluntárias em si, mas, como as mesmas são apropriadas dentro da lógica de Reforma do Estado e transferência de parte das suas responsabilidades para a sociedade civil. Além de pontuar que as práticas voluntárias fazem parte de um conjunto de ações pontuais, assistemáticas, sem acompanhamento e avaliação. Representando assim, mais um projeto de marketing político-governamental do que uma ação que venha altera, de forma propositiva, a estrutura escolar. Palavras - chave: Neoliberalismo, Terceiro Setor, Educação e Voluntariado NEOLIBERALISM, THIRD SECTOR AND EDUCATION: THE DILEMMA OF VOLUNTEERS IN EDUCATION ABSTRACT This article proposes to think about education as a privileged space for the development of the voluntary practices over the last decade, marked by the implications in the context of neoliberalism and the Third Sector. To better understand the object under examination, it is a reflection on volunteering in the neoliberal context, attempting to locate the functionality of volunteer work to the capital, ahead of the changes at the State level and encouraging the process refilantropização. The results of the reflections indicate that the problem is not the voluntary actionitself, but as they are appropriate within the logic of the State Reform and transfer part of its responsibilities for civil society. In addition to scoring that volunteer activities are part of a set of specific 2 actions, unsystematic, without monitoring and evaluation. Thus representing a more projectgovernmental political marketingthan an action that will change, so purposeful, the school structure. Key - words: Neoliberalism, the Third Sector, Education and Volunteering O voluntariado não é algo novo, mas em períodos mais recentes observa-se uma modificação na sua conformação, estendendo-se para várias esferas da sociedade, além das instituições filantrópicas. Hoje, o voluntariado se faz presente nas Organizações NãoGovernamentais – ONG’s, empresas privadas, entre outras. No caso do Brasil, a partir de 1990, com a adoção do receituário neoliberal e, em conseqüência, a reforma do Estado, é posto em questão o financiamento das políticas públicas, principalmente as de corte social, ocorrendo em grande medida, à transferência de responsabilidades para a sociedade civil. Assim, “o papel do Estado torna-se secundário e apela-se para a benemerência e o voluntariado” (SAVIANI, 2002, p. 23). De acordo com Pereira, “a ênfase no voluntariado se fez acompanhar de convincentes argumentos pautados em valores liberais, que se recusavam a aceitar o Estado como a única fonte de autoridade” (2004, p.138). É dentro dessa lógica que se defende a construção da “co-responsabilidade social (em que nenhuma instância teria a primazia) no trato de novos riscos sociais” (Idem, p.136). Tal situação tem repercutido na educação de forma ampliada na última década. Constata-se a proliferação de programas e projetos nos diferentes níveis de ensino, a exemplo da Universidade Solidária, Educação Solidária, Alfabetização Solidária, Projeto Amigos da Escola, entre outros. Essas iniciativas envolvem diversas fontes de financiamento, na maioria das vezes, através de parcerias estabelecidas com a Organização das Nações Unidas para a educação-UNESCO, Rede Globo, outras empresas privadas, ONG’s, entidades filantrópicas e, por vezes, órgãos governamentais. O Projeto Amigos da Escola foi lançado no Brasil, na segunda gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC), através do Programa Comunidade Solidáriaiii, em parceria com o Projeto Brasil 500 anos, promovido pela Rede Globo e coordenado pela TV Globo. Vale ressaltar que as experiências e as iniciativas do voluntariado na educação estão sendo amplamente divulgadas pelos meios de comunicação (televisão e Internet). Existem vários sites com informações relacionadas ao Projeto e as experiências desenvolvidas em todo o país, assim como manuais de orientação de como participar do Projeto. Nota-se que os 3 mecanismos são utilizados como uma estratégia de divulgação e sensibilização do cidadão para adesão ao voluntariado. De acordo com a concepção do Projeto, “o voluntariado é um ato do coração e uma virtude cívica, toda pessoa tem capacidades, talentos e dons que podem ser compartilhados. A ação cidadã para o bem comum está na base de uma sociedade mais participativa e responsável”iv. Com o intuito de auxiliar os indivíduos a desenvolverem uma ação voluntária, foram criados os Centros de Voluntários que funcionam em todo país. Em Sergipe existem 265 escolas, das redes pública e privada cadastradas no Projeto Amigos da Escola e quatro instituiçõesv, que desenvolvem ações nessa áreavi. Dentre os municípios do Estado de Sergipe, Aracaju possui 28 escolas públicas cadastradas no projeto, das quais 14 são da rede estadual e 14 da municipal. Na perspectiva de compreender melhor essa retomada do voluntariado, como uma estratégia utilizada para justificar a redução do papel do Estado nas áreas de intervenção social, faz-se necessário fazer uma contextualização do neoliberalismo e emergência do Terceiro Setor para compreender a retomada do voluntariado na educação e especificamente, em Aracaju. CONTEXTUALIZAÇÃO DO NEOLIBERALISMO, TERCEIRO SETOR E VOLUNTARIADO . Para compreender a nova conformação do voluntariado no Brasil, no momento atual, na área educacional, faz-se necessário recuperar alguns elementos do contexto sócio-histórico, desencadeado a partir da crise capitalista desde os anos de 1970. Depois de um período áureo do capitalismo, iniciado no pós Segunda Guerra, com duração de aproximadamente 30 anos, a partir dos anos de 1970, o padrão de acumulação que lhe caracterizava (fordista/taylorista) começou a dar sinais de crise: queda da taxa de lucro; esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista produção face à retração do mercado; hipertrofia da esfera financeira; maior concentração de capitais, graças às fusões entre empresas monopolistas e oligopolistas; crise do Welfare State ou Estado de bem estar social; incremento acentuado das privatizações, tendência generalizada às desregulamentações e à flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho (ANTUNES, 2000). No tocante às razões que influenciaram a crise do fordismo como sistema de 4 produção, Ferreira destaca as de ordem técnica e as de ordem social e econômica. Quanto aos limites técnicos, o autor chama a atenção para a excessiva “rigidez do sistema face às necessidades colocadas pela atual conjuntura econômica mundial que está exigindo soluções – tanto de ordem técnica quanto organizacional – dotada de maior flexibilidade [...]” (s/d, p.9). Tal crise, como não poderia deixar de ser, põe por terra o modo de regulação que lhe dava sustentação, isto é, o Estado de bem estar social, segundo o padrão keynesiano de intervenção estatal, modificando assim a esfera do Estado. Para responder à crise, assiste-se à emergência de novas formas de produzir assentadas em tecnologias flexíveisvii e uma outra modalidade de regulação político-institucional fundada no neoliberalismo. O receituário neoliberal entra em cena com um conjunto de propostas que podem ser sintetizadas em: flexibilização dos mercados nacional e internacional, flexibilização (precarização) dos contratos de trabalho, subcontratação das relações de trabalho, redução do poder sindical, desemprego estrutural, privatizações de empresas estatais, drástica fuga de capitais para o setor financeiro, redução do Estado no financiamento de políticas públicas e na regulação social entre capital e trabalho (DRAIBE, 1993; MONTAÑO, 2002; NETTO, 1993). É dentro dessa lógica, que “o receituário neoliberal diagnosticou na crise do Estado a fonte de todos os Males da Modernidade” (TEIXEIRA, 1996, Na verdade, o neoliberalismo aparece como um movimento do capital para enfrentar a crise fiscalviii e ampliar sua base de legitimação, traduzindo-se em “um conjunto de regras práticas de ação, em que a idéia de constituição de um Estado forte está associada à criação de condições necessárias à expansão do mercado e da livre economia” (FACEIRA, 1999, p.79). No Brasil, o projeto neoliberal é implementado durante a gestão de Fernando Collor, mas ganha densidade a partir da implementação do projeto de reforma do Estado, na gestão de FHC, sob a coordenação do ex-ministro da Fazenda Bresser Pereiraix. Tal projeto de Reforma, baseado nas diretrizes do Consenso de Washingtonx, coloca por terra conquistas históricas de direitos asseguradas na Constituição de 1988. De acordo com o programa de ajuste e estabilização proposto no marco desse Consenso, definem-se as principais reformas que foram e estão sendo implementadas pelos governos latino-americanosxi. Das principais reformas propostas pelos organismos internacionais destacam-se: disciplina fiscal; redefinição das prioridades do gasto público; manutenção de taxas de câmbio competitivas; reforma tributária; liberação comercial; regime cambial, privatização de empresas estataisxii, desregulação da economia; proteção dos direitos autorais, reforma do ensino superior; reforma da Previdênciaxiii e Administrativaxiv (NETTO, 5 1993; TEIXEIRA, 1996; GENTILI, 1998; BATISTA, 1999). Tais reformas trazem implicações diretas para o desmonte do setor público e conseqüentemente para o funcionalismo públicoxv. Pode-se dizer que o referido consenso representa a hegemonia neoliberal, dentro do contexto capitalista, ao construir uma política de consentimento, como também de coerção, uma vez que as agências financiadoras passam a assumir além da função de crédito, um papel decisivo na definição das políticas e estratégias a serem desenvolvidas nos países latinoamericanos. Ou seja, o que está em jogo é a redução do tamanho do Estado e a abertura da Economia para garantir a nova fase da acumulação. Para tanto, foi implementado, pelo projeto de Reforma do Estado, um Programa de Publicização através da criação das agências executivas e das organizações sociais regulamentadas pelo Terceiro Setor, constituindo um chamado Setor Público não-Estatal responsável por firmar parcerias com ONG’s e instituições filantrópicas para implementação de políticas sociais. O que está jogo, é um processo de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. Dentro dessa lógica “os subsídios fiscais, por exemplo, que são recursos públicos, podem ser dados ao setor privado da economia, desde que os resultados advindos dessa operação não sejam apenas dependentes da vontade dos proprietários do capital” (Idem, p.5). Tal processo afeta diretamente a regulação do Estado nas políticas públicas. Pode-se concluir que a Reforma do Estado, do modo como vem sendo materializada, abre crescentes espaços para as ONG’s e a iniciativa privada que compõem o Terceiro Setorxvi, “assumindo a execução de inúmeras políticas públicas [...] abarcando grande parte de recursos governamentais e privados, com a tarefa de promover ações sociais antes de responsabilidade estatal” (OLIVEIRA, 2003, p.97). No que se refere à questão da educação, diretamente relacionada ao nosso objeto de estudo, observa-se que tais conseqüências afetam a política educacional e suas reformas introduzidas no Brasil a partir dos anos de 1990, as quais seguem a lógica de privatização do setor público. Como afirma Oliveira, “a política de privatização da educação brasileira vem se dando, sobretudo, a partir da adoção de novas estratégias de gestão e financiamento para os diferentes níveis e etapas de ensino” (2003, p.65). Cumpre chamar a atenção que essas estratégias têm sido conduzidas pelo Banco Mundial, mediante a concessão de empréstimos convencionais, com encargos e rigidez das regras e das condições financeiras e políticas inerentes ao processo de financiamento. Dentre as principais medidas recomendadas pelo Banco Mundial, destacam-se: 6 1 - Educação básica como principal prioridade; 2- Qualidade da educação como eixo da reforma educativa; 3 -Ênfase nos aspectos relativos ao financiamento e à administração da reforma educativa; 4 -. Descentralização e instituições escolares autônomas e responsáveis pelos seus resultados; 5 Promoção de uma maior participação dos pais e responsáveis pelos seus resultados; 6 - Estímulo ao setor privado e aos organismos não- governamentais (ONGs), como agentes ativos no âmbito educativo, no nível das decisões e implementações das reformas; 7- Mobilização e adequada distribuição de recursos adicionais para a educação fundamental; 8 - Redefinição do papel tradicional do estado em relação à educação e a maior participação das famílias e das comunidades no financiamento da educação; 9 - Enfoque setorial, centrado na educação formal; 10 - Definição de políticas e prioridades com base em análises econômicas (CANDAU, 2002, p.36). Como se pode observar, as propostas acima reforçam os princípios da transferência de poderes para a sociedade civil, o incentivo da participação da família na escola e a prioridade da educação básica como instrumento principal para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza. Nesse sentido, “o Estado vem abrindo mão de seu protagonismo como provedor social, tornando cada vez mais focalizadas as políticas sociais públicas, enquanto o mercado ocupa-se em privilegiar o bem-estar ocupacional que protege apenas quem tem emprego estável e bem remunerado” (PEREIRA, 2002, p.39), destacando-se assim como “saída salvadora” o incentivo ao Terceiro Setor e às práticas de solidariedade informal e voluntária, a exemplo do Projeto Amigos da Escola, objeto de reflexão dessa pesquisa. Entretanto, outra é a lógica que preside a presença forte da sociedade civil a partir dos anos de 1990, com a entrada do neoliberalismo, a qual passa a ser “metamorfoseada em Terceiro Setor” (ALMEIDA, 2004, p. 9). Tal fato provoca mudanças significativas nas relações entre o Estado e a sociedade, cumprindo assim um papel ideológico na preservação dos interesses do capital. Ou seja, o Estado não deve, nem pode, ser mais o grande responsável pelo bem-estar social, então, define-se, como estratégia prioritária para atender as expressões da questão social à parceria entre o Estado e a sociedade civil. Nessa direção, adverte Montaño (2002), o Terceiro Setor está associado à retomada da “refilantropização da questão social”, ou seja, a “remercantilização da questão social”, com base em uma nova estratégia de legitimação do sistema capitalista que, no contexto neoliberal, tem como eixo central a passagem das “lógicas de Estado” para as 7 “lógicas da sociedade civil” ou, na equalização que faz a corrente liberal, para as lógicas do mercado. Observa-se que o Terceiro Setor provoca mudanças significativas nas relações entre o Estado e a sociedade, cumprindo assim um papel ideológico na preservação dos interesses do capital. É nesse cenário que as respostas à questão social deixam de ser pensadas no plano da implementação de políticas universais, como direito, para serem substituídas por práticas focalistas e voluntárias, vinculadas à promoção da equidade de oportunidade, a exemplo dos programas comunidade solidária e o Projeto Amigos na escola. Pode-se afirmar que o Estado além de promover a expansão do Terceiro Setor é responsável pelo seu funcionamento através da transferência de fundos públicos por meio das parceriasxvii firmadas entre o Estado e a sociedade civil. Tal transferência é assegurada pelo Estado mediante a legislação vigente do Terceiro Setor, do Voluntariado e das Organizações da sociedade civil de interesse público -Oscips. Desta forma, o Estado torna-se “o verdadeiro subsiador e promotor destas organizações e ações do chamado Terceiro Setor e da ilusão do seu serviço” (Idem, p. 146) Considerações sobre os dilemas do voluntariado na educação na contemporaneidade É nesse cenário de emergência do Terceiro Setor, no contexto do projeto neoliberal, conforme delineado acima, que o voluntariado na educação vem sendo discutido, retomado e ampliado o seu raio de ação. Essa retomada do voluntariado apresenta-se reatualizada, pois não se trata apenas da filantropia tradicional, mas da filantropia do grande capital, o qual passa a modernizar seu discurso e suas práticas, incorporando pautas que buscam homogeneizar o discurso dos diferentes segmentos da sociedade civil, redefinindo o papel socializador do capital e ampliando suas ações para fora da empresa como parceiros na implementação de políticas sociais. (LIMA, 2003, p.77) O voluntariado sempre esteve ligado, principalmente, às religiões e à assistência social. Entretanto, a partir das últimas décadas do século XIX, verifica-se uma mudança nas formas de implementação do voluntariado, as quais deixam de ser restritas ao âmbito da Igreja e das iniciativas privadas de caráter filantrópico e passam a ser contempladas também pela 8 ação estatal. É importante frisar que esse movimento de “refilantropização”xviii faz com que o voluntariado ressurja com grande força através das parcerias estabelecidas para garantir a implantação de programas e projetos nessa direção, a exemplo da Educação Solidária , Comunidade Solidária , Alfabetização Solidária e do Projeto Amigos da Escola. Quanto aos motivos que impulsionaram à prática do voluntariado, Coelho destaca, como principais: o altruísmo e o interesse por pessoa. Considera a impossibilidade de traçar um perfil bem delineado sobre o voluntariado brasileiro, em virtude da inexistência de pesquisas sobre a temática, no entanto afirma que, segundo o senso comum, o perfil constituise da seguinte forma: “a maioria dos trabalhadores voluntários brasileiros é de mulheres, de meia-idade e com educação média, perfil tradicional das senhoras católicas que atuam junto à igreja local” (COELHO, 2000, p.72). A valorização da ação voluntária tem contribuído de forma decisiva para que seja disseminada a idéia da “participação cidadã, ou seja, a participação dos cidadãos na melhoria da qualidade de vida, e por conseqüência, dos bens públicos, incluindo ações nas áreas de saúde, educação, esporte, lazer, meio-ambiente, direitos e deveres etc, mas sem pretender substituir o Estado” (FIGUEIREDO, 2003, p.13). Para sua operacionalização, Abrahamson (1995) explica que o Estado compareceria com o seu recurso de poder, o mercado com o dinheiro e o terceiro setor com a solidariedade, criando –se, desse modo, uma coalizão de forças capazes de enfrentar com maior eficácia e abrangências dois principais problemas que afligem a ordem capitalista contemporânea: os crescentes níveis de desemprego estrutural e conseqüentemente de pobreza-e a ameaça que isso representa para coesão social (apud PEREIRA, 2004, p.136). Segundo a Lei do Serviço Voluntário (9.608), Considera-se serviço voluntário, para fins desta lei, atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade (s/d, n.p.). Ainda a esse respeito, a lei esclarece que o “serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, providenciaria ou afim” (s/d, n/p). Para realização desse serviço, a lei assegura que seja firmado um Termo de Adesão. Nesse sentido, 9 conforme a legislação, o voluntário pode ter direito ao ressarcimento das despesas, caso seja autorizada pela entidade. A prática do voluntariado vem sendo incentivada não como uma prática caridosa, mas como uma maneira de tornar cidadãos e empresas conscientes para assegurar novas respostas às expressões da questão social, nos ditames do projeto em jogo. A essa questão, o depoimento da presidente do Comitê Brasileiro do Ano internacional do Voluntariado é enfático: Lutar pelo voluntariado não é apenas assumir uma postura caritativa ou piedosa. É, isto sim, lutar pela liberdade. E esta, por sua vez, só pode ser conquistada por meio da solidariedade. Ou seja, pelo reconhecimento do próximo como alguém igual a nós, com os mesmo direitos e as mesmas obrigações [...] O voluntariado torna cidadãos e empresas mais conscientes de suas responsabilidades sociais, mediante a doação de bens, recursos e tempo de trabalho. Como se deduz, não é mera filantropia, nem simples mecenato, nem muito menos benemerência dos mais favorecidos. É o caminho desafiador para a afirmação de uma sociedade mais aberta e democrática, mais justa e eqüitativa (p.34-5). Diante do que está posto, indaga-se até que ponto, dentro dessa lógica excludente, o voluntariado consegue reduzir a desigualdade? assegurar direitos? Ou será que na verdade reforça os mecanismos de desigualdades? Será uma igualdade apenas formal parametrada na lei e no discurso que a sociedade deve se responsabilizar por tal questão? Até que ponto o voluntariado torna os cidadãos conscientes? O que a literatura a respeito tem evidenciado é que tal estratégia tem contribuído para implementar as políticas de desestruturação do Estado e desviar recursos públicos, conforme ressaltou se anteriormente. Concordando com Cabral, verifica-se que existe uma relação intrínseca entre a cultura do voluntariado e a “cultura da crise” (MOTA, 1995). Nessa perspectiva, ela afirma que seria um equívoco achar que o incentivo às atividades voluntárias tão aplaudidas nos dias de hoje na sociedade (quase um consenso entre as pessoas) se desenvolveu em virtude do amadurecimento da “sociedade civil” ou da consciência cidadã ou mesmo do fortalecimento da democracia como pensam alguns teóricos e defensores desta “cultura” (CABRAL, 2004, n.p). De acordo com Oliveira, “os efeitos do trabalho voluntário e do associativismo solidário no sistema educacional merecem a atenção dos que se preocupam com o ensino público brasileiro, os verdadeiros ‘amigos da escola” (2003, p. 97). Tomando por base os elementos dantes comentados e o estudo empírico realizado 10 em Sergipe, do universo de 265 escolas inscritas no site do Projeto Amigos da Escola, dentre as quais apenas 28 escolas públicas situadas no município de Aracaju, sendo 14 escolas municipais e 14 estaduais. Entretanto as escolas municipais, apesar de constarem no site, na realidade não realizaram o projeto face a pressão do movimento sindical e das 14 escolas estaduais, duas informaram não ter feito o cadastro e nas demais não conseguimos localizar registros sistemáticos, apenas identificamos ações pontuais. Portanto, percebe-se o quanto é preocupante a forma como a educação vem encampando as propostas do voluntariado, o que, por sua vez, vem apontando para a necessidade de estudos e pesquisas no âmbito educacional, que possam contribuir para o aprofundamento a respeito da questão. Diante do exposto, constata-se que o problema não consiste nas ações voluntárias em si, mas como as mesmas são apropriadas dentro da lógica de desresponsabilização do Estado e transferência de parte de suas responsabilidades para a sociedade civil. Nesse sentido, presencia-se a funcionalidade do trabalho voluntário ao capital. Reafirmando assim a importância da presença do Estado na garantia dos direitos e implementação das políticas sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS ALMEIDA, É. T. V. Crítica da metamorfose do conceito de sociedade civil em “Terceiro Setor”. Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez. Ano XXV, nº 80, nov./2004. ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 3 ed. São Paulo BIANCHETTI, R. G. Modelo neoliberal e políticas educacionais. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2001 (Coleção da Nossa Época; v. 56). .CABRAL, P. B. G. A Cultura do Voluntariado e suas implicações na concepção e implementação da Assistência Social brasileira. XI CBAS: O Serviço Social e a esfera pública no desafio de construir, afirmar e consolidar direitos. Fortaleza, 17 a 22 de outubro de 2004. [n.p.]. CD-ROM. CANDAU, V. Reformas educacionais hoje na América Latina. In: MOREIRA, A. F. (Org.). Currículo: políticas e práticas. São Paulo: Papirus, 2002. COELHO, A. B. de S. R. 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BOLETINS DA REDE GLOBO de Televisão- Boletins e Relatórios.Rio de Janeiro: Maio/2000 WEBSITES www.amigosdaescola.com.br. www.portaldovoluntariado.com.br www.lxxl.pt/babel/biblioteca/cidadania. i Assistente Social, mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe- NPGED/UFS e-mail [email protected] Professora efetiva do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/UFRB. ii Psicóloga, mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe- NPGED/UFS, e-mail: [email protected] Coordenadora do curso de Psicologia da Faculdade Estácio de Sergipe iii O Programa Comunidade Solidária (PCS) foi criado em 1995, pelo Governo Federal, vinculado à Casa Civil da Presidência da República, constitui-se num conjunto de ações governamentais pensada na perspectiva de combater agudas ou extremas linhas de pobreza. (SILVA, 1999). iv Dados contidas no site www.portal.voluntariado.com.br . acessado em 20/04/2005. O Portal do voluntariado é um site com conteúdos, experiências e oportunidades de ação voluntária que foi lançado em 05/12/2000, em comemoração ao ano internacional do voluntário da ONU etc através da parceria entre o Programa de Comunitas, IBM e TV GLOBO. v As instituições são: Escola Estadual João Antônio César, Escola Estadual Olímpia Bittencourt, Grupo Escoteiro Uirapuru e Missão Criança Aracaju. vi Dados disponíveis no site do Portal do voluntariado. Para que as escolas aderissem ao projeto foram enviadas correspondências às instituições escolares para que tomassem conhecimento dos objetivos e procedimentos. Após inscrição, as escolas recebiam materiais informativos sobre as orientações sobre o desenvolvimento do Projeto,enviados pela Rede Globo. Segundo os princípios do projeto, o diretor tem autonomia para decidir os rumos do voluntariado na escola, ou seja, cabe ao diretor decidir se quer voluntários e para quê, estabelecer os critérios, necessidades e prioridades do estabelecimento escolar. vii Segundo Harvey, o novo regime de acumulação “apóia-se na flexibilidade dos processos e padrões de trabalho, dos mercados de trabalho dos produtos e novos processos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”. (1992, p.123). viii A crise fiscal expressa numa divida pública gigantesca, que, em alguns países, chegou a representar quase 80% do Produto Interno Bruto (TEIXEIRA, 1996, p.222). ix O ex-ministro foi enviado e participou efetivamente das “reuniões do Consenso de Washington com a missão de discutir as circunstancias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um technopol a obter o 13 apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso, o programa de estabilização econômica” (MONTAÑO, 2002, p.26). x Essa expressão foi usada pela primeira vez por Jonh Williamson, um dos célebres think tanks norte-americanos (GENTILI, 1998, p.14). xi Os países latino-americanos que aplicaram ou aplicam programas de ajustes, financiados pelo Banco Mundial, têm apresentado resultados diferentes das promessas neoliberais difundidas, a exemplo do caso dos seguintes países: Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, República Dominicana, México, Panamá, Uruguai e Venezuela. (GENTILI, 1999). xii A política de privatização adotada pelo governo brasileiro passou a constituir-se um verdadeiro “comitê gerenciador” responsável na transferência de recursos públicos para o setor privado. Nesse sentido, foram privatizadas empresas federais e estaduais, as quais mantinham vínculos diretos com a produção de bens materiais e de serviços. Segundo Aloysio Biondi, o resultado positivo das privatizações, apresentado pelo governo, não é verdadeiro. “O processo de privatização, além de causar aos serviços públicos, redução da prestação de serviços essenciais para a população e outros, contribuiu com a perda de 87,6 bilhões de reais. Ou seja, o programa de privatizações trouxe um dividendo negativo para a poupança pública” (apud BATISTA, 1999, p.76). xiii A reforma da previdência atinge diretamente o funcionalismo público federal que está na ativa e fora dela, uma vez que o governo propõe as seguintes medidas: a) transformar o tempo de serviço em tempo de contribuição, b) instituir a idade mínima de 55 anos para mulher e 60 anos para o homem, em substituição há 48 anos e 53 anos, para os atuais segurados; c) privatizou o seguro de acidente de trabalho; d) acabou com as aposentadorias especiais; e) aumentou as alíquotas de contribuição, realizando um verdadeiro confisco no salário dos trabalhadores; g) passou a cobrar alíquotas de contribuição para os aposentados (BATISTA, 1999). xiv A reforma administrativa afetou diretamente o funcionalismo público. As principais propostas encaminhadas pelo governo no bojo da reforma administrativa foram: 1) fim da estabilidade de emprego; 2) a criação do programa de demissões voluntárias e flexibilização do trabalho, ampliando a redução do número de servidores, a precarização do trabalho e a redução salarial; 3) fim da isonomia de remunerações, alterando o Plano de Cargos e Salários; 5) alteração nas regras para os concursos públicos e por fim a criação de Contrato de Gestão. (BATISTA, 1999). Tais propostas afetam diretamente o servidor público. xv De acordo com Batista, as reformas implantadas atingiram, em suas especificidade, diretamente o funcionalismo público. Com o argumento da necessidade imediata de reduzir o tamanho do Estado, o servidor está humilhado, descartado como qualquer outra mercadoria, enquanto os serviços que presta estão sendo entregues para a iniciativa privada (1999, p.85). xvi Como afirma Montaño (2002) o Terceiro Setor refere-se a um fenômeno real, pautado nos princípios neoliberais, que propõe um novo padrão de função social de respostas a Questão Social, baseada nos valores da solidariedade social, auto-ajuda e da ajuda mútua. Esse termo surge nos EUA, em 1978, e se expande recentemente nas décadas de 80 e 90, em todo mundo, tendo em vista a necessidade de superar a dualidade público x privado e da equiparação público/ estatal. A discussão qualificada sobre a temática será abordada no segundo capítulo. xvii Parceria entendida exclusivamente nesta perspectiva como a transferência de recursos públicos para iniciativas privadas xviii Associada aos conceitos de responsabilidade social ou solidariedade, a refilantropização é entendida como “à volta ou retorno à noção de filantropia, enquanto contraponto moderno e humanista de caridade religiosa que enfatiza o aspecto da doação para si para outro” (LANDIM, 1993, p. 41). Sendo que agora o enfoque é para a filantropia empresarial por meio da realização de projetos sociais.