CUBA EM NITERÓI: um estudo comparado do Programa Cubano Médico de Família e a experiência do município de Niterói – RJ. Introdução Este trabalho tem por objetivo realizar um estudo comparado das políticas públicas de saúde fundamentadas no Programa Médico de Família em Cuba e no município brasileiro de Niterói, Rio de Janeiro. Cuba originalmente cria o modelo Médico de Família em 1984, este que atualmente, representa o grande pilar de sustentação do seu sistema nacional de saúde. Niterói por sua vez, decide transplantá-lo mediante uma adaptação às condições regionais e infra-estruturais do seu território geográfico. Inaugura a primeira unidade de atendimento em 1992 e desde então, vem mantendo e expandindo gradualmente a prática da medicina familiar, tipicamente cubana mas de concreção brasileira. Objetivamos compreender a experiência de Niterói partindo do seu modelo de origem, o cubano. Para isso, torna-se necessário primeiramente traçarmos um panorama da ampla crise enfrentada pela saúde pública no mundo contemporâneo. Atendo-se em questões conceituais básicas como a concepção do termo saúde pública, a emergência do novo paradigma neste campo denominado produção social da saúde ou vigilância à saúde e o entendimento da economia da saúde, corrente contrária às propostas da saúde pública e cujos preceitos, segundo Berlinguer, estão fundamentados numa espécie de fundamentalismo monetarista. Para compreendermos a crise que enfrenta a saúde pública no mundo contemporâneo precisamos estar a par deste debate conceitual. Ainda que introdutoriamente, abordaremos o sistema de saúde cubano observando o processo político, econômico e social pelo qual estruturou-se a partir de 1959, com a Revolução Cubana, passando pelos princípios que norteiam sua estrutura. Em seguida, conheceremos o processo de regionalização dos serviços de saúde neste país, observando de que maneira podemos considerar sua inserção no paradigma da produção social da saúde. E por fim, conheceremos a experiência de Niterói, o intercâmbio feito com o governo cubano, a forma com que foi adaptado à realidade local do município, uma experiência muito interessante na medida em que constatamos que o Médico de Família funciona fora de Cuba, em outra realidade sócio-cultural. 1. A Crise Mundial da Saúde Pública e a Emergência de um Novo Paradigma: a Produção Social da Saúde. A saúde é o bem fundamental para que todo indivíduo desfrute o bem estar e a plenitude de suas faculdades de ação, resolução e promoção. De imediato, constatamos uma dupla caracterização: a necessidade intrínseca a todo indivíduo em possuí-la e a sua constituição como interesse coletivo de uma sociedade envolvendo a ação conjunta do poder público, da comunidade científica e das diversas instâncias sociais voltadas ou não para o campo da saúde pública. Essa concepção ─ baseada no reconhecimento da „saúde complexa‟ como resultado de um conjunto de fatores políticos, econômicos, sociais e culturais, que exige uma interação dos grupos sociais caso se queira obter algum êxito no setor ─ é bem recente e característica do atual paradigma no campo da saúde pública no mundo contemporâneo, denominado vigilância em saúde ou produção social da saúde pública. Segundo Santos e Westphal, a nova Saúde Pública surge através da medicina preventiva e do alargamento do conceito de educação sanitária, deixando para trás a prática sanitária curativista predominante na primeira metade do século XX ─ entende-se por prática sanitária a forma pela qual uma sociedade estrutura e organiza os problemas de saúde. Esse período foi marcado pela vigência do paradigma flexeneriano, nome que provém do Relatório Flexener de 1910, que estabelece: reformas no ensino médico, como o aumento da duração dos cursos para quatro anos e prática em laboratório; a vinculação das escolas médicas às universidades (ou seja, à pesquisa); a ênfase na pesquisa biológica e o reforço à especialização. No interior desse paradigma, a doença teria uma só causa (mecanicismo/unicausalidade), ocorreria sempre em nível biológico do indivíduo, ocasionada por um patógeno concreto ─ germe (biologicismo) ─ e deveria ser tratada por outro indivíduo qualificado para tal exercício (início da era terapêutica). Excluía-se, portanto, o fato do paciente ser um ator social imerso num ambiente particular e sob condições específicas que deveriam ser consideradas no processo saúdedoença. A saúde era entendida como a mera ausência da doença. Segundo tais autores, no decorrer do século XIX, em função da melhoria das condições de vida da população e, sobretudo, com o posterior desenvolvimento da epidemiologia e da imunologia observou-se um processo gradativo de diminuição da importância das doenças transmissíveis e aumento das denominadas degenerativas, culminando no que podemos chamar de crise do curativismo e o conseqüente deslocamento da ênfase curativa para a prevenção. Isso porque com o desenvolvimento desses dois ramos das ciências médicas entraram em vigor algumas noções, tais como: as de risco, de suscetibilidade a doenças, multicausalidade, o que abalará definitivamente os conceitos centrais do paradigma flexeneriano (biologicismo, unicausalidade,...). O novo paradigma da produção social da saúde tem como prática sanitária fundamental a vigilância à saúde. Em vez de negar o curativismo, ele propõe sua redefinição para dar conta da globalidade do processo saúde doença, abrindo espaço para a reorientação das práticas assistenciais e coletivas. Santos e Westphal qualificam a vigilância à saúde como um trabalho amplo que deve sair dos compartimentos isolados do setor para ganhar as camadas sociais através de um trabalho articulado com outras áreas, tais como: saneamento, habitação, drenagem, educação, trânsito e turismo. A Constituição Federal brasileira de 1988 e a posterior aprovação da Lei do SUS (Sistema Único de Saúde) ou Lei Orgânica da Saúde em 1990, refletem as marcas desse novo paradigma na medida em que reforçam a necessidade de um sistema acessível a todos, garantido pelo Estado, dinâmico em seu funcionamento e eficaz no combate às enfermidades, descentralizado e participativo mediante o controle regulamentado pela sociedade. Segundo Mario Tarride, a nova Saúde Pública deve ser sustentável, igualitária, segura, justa, eqüitativa, ética e complexa. Havendo a necessidade, dentre outros fatores, de questionar os valores, os referentes sociais, o conteúdo ideológico, o trabalho, ampliar os enfoques e métodos, atender ao contexto e à complexidade, melhorar o treinamento e revisar a epistemologia. Falamos na produção social da saúde porque hoje acredita-se que ela é uma resposta factível aos problemas decorrentes da atual crise mundial que enfrenta o setor. Como mostra Carvalheiro, a saúde na contemporaneidade ganhou uma ênfase de natureza econômica, sua alocação no setor terciário da economia, a crescente incorporação tecnológica e a mudança nos processos de gestão das atividades do setor, especialmente a assistência médica individual às pessoas, cujo custo é altíssimo e exercida por prestadores privados, representam a clara evidência que a importância dada à saúde no mundo atual nada tem de humanitário, mas sim monetário. Berlinguer também desenvolve a questão dos efeitos do „fundamentalismo monetário‟ sobre a saúde pública quando diz, “o ganho de capital em nossos dias passou a não respeitar nada (a vida, a saúde e até mesmo as partes do corpo humano vão se transformando em mercadoria) (...) o credo neoliberal é imposto aos povos com as regras do fundamentalismo monetário, que não admite dissidências.” (Op.cit.p.21). Segundo este autor, a Organização Mundial da Saúde (OMS) perdeu seu papel de guia nas políticas mundiais de saúde, dando lugar ao poder exercido pelo Banco Mundial e o FMI, que hoje coordenam as questões do setor, sobretudo nos países menos desenvolvidos. Acrescenta também que os serviços públicos de saúde deixam de ocupar o posto de finalidade primordial para o crescimento econômico de uma nação, passando a serem vistos como verdadeiros empecilhos às finanças públicas que levariam os governos a reduzirem as despesas no setor em vez de racionalizá-las. A mercantilização da saúde é, para Tarride, apenas um dos componentes de uma rede de relações que contribuem para o perfil da crise. Vale ressaltar outros fatores, tais como: complexidade social; frágil base de produção científica em saúde pública em relação às áreas biomédica e clínica; conceito limitado de saúde pública; confusão hierárquica entre medicina e saúde pública, etc. Para finalizar, vale citar a proposta de Tarride: a crise da Saúde Pública deve ser vista em sua complexidade, a ampla discussão em torno de sua compreensão nos permite reconhecer a necessidade da prática metodológica interdisciplinar na tentativa de torná-la inteligível para todos os interessados nessa questão, nós. 2. O Sistema de Saúde Cubano e o Programa Médico de Família No dia 1º de janeiro de 1959, tropas guerrilheiras lideradas pelo comandante Fidel Castro Ruz tomam o poder em Cuba e depõem o general Fulgência Batista. Iniciado em 10 de março de 1952, após um golpe militar com aval do governo norte-americano, o governo de Batista fora marcado pela corrupção, endividamento, alta inflação e desgaste dos salários; imprimindo na memória histórica do país uma intensa recessão econômica e dentre outros problemas, a ineficiência e a precariedade de um sistema de saúde e educação, que não garantia a qualidade e a eqüidade de acesso aos seus serviços. Em meio a tantas rupturas iniciadas com a Revolução Cubana, a saúde pública certamente constituiu uma delas. A Revolução inicia a restruturação do sistema nacional de saúde e até os dias atuais mantém um trabalho contínuo e ininterrupto em busca de seu aperfeiçoamento. De fato, ela foi responsável pelo rompimento com aquele sistema de saúde precário e deficiente tal como observado à época de Batista. Ainda no período de luta armada surgem os primeiros serviços médicos rurais, através dos quais os médicos guerrilheiros levavam assistência aos camponeses. Em janeiro de 1960, estes serviços organizam-se nacionalmente mediante a Lei do Serviço Médico Rural, que inicia um plano acelerado de construções de hospitais e postos de atendimento em zonas de difícil acesso. É a partir desta lei que o país engrena na reformulação do seu sistema nacional de saúde. São fixados como princípios básicos a igualdade de acesso aos serviços de forma eqüitativa por toda a população, a aproximação integral à atenção médica e a participação popular nas iniciativas de saúde. Em 1º de agosto de 1961 o Ministério da Saúde e Bem Estar dissolve-se dando lugar ao Ministério da Saúde Pública (Minsap). O Minsap teria então, a função de fornecer orientação aos três tipos de organização que existiam no âmbito da saúde: o sistema de saúde pública, as clínicas e hospitais mutualistas e as instalações de prática privada. De início, entre 1959 e 1969, promoveu a organização várias campanhas de imunização da população infantil, resultando na erradicação da poliomielite em 1963 e da malária em 1968. Em nossos dias, o Minsap apresenta-se como o órgão público “encarregado de dirigir, executar e controlar a aplicação da política do Estado e do Governo dirigida à Saúde Pública, o desenvolvimento das Ciências Médicas e da Indústria Médico Farmacêutica.” 1 Situamos o sistema de saúde cubano (SSC) no paradigma da produção social da saúde ou promoção da saúde. Dentre suas principais atribuições temos que, o Estado é responsável em oferecer assistência médica, hospitalar e odontológica gratuita para todos os cidadãos, desenvolver medidas de saúde preventivas e aplicar adequadamente os avanços da ciência em atividades do setor. A participação da comunidade, a intersetorialidade e a colaboração internacional também são tomados como incumbências do poder público.2 O modelo cubano 1 Disponível na internet. http://www. infomed.sld.cu. Ver Sistema de Salud – Misión. 2 Disponível na internet : http:// www. infomed.sld.cu, ver Sistema de Salud – Principios Rectores. da saúde segue a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), considerando que o mais importante é “...o estado de bem-estar completo físico, mental e social, não só a ausência da enfermidade...”.3 Baseado na atenção integral à saúde, financiado pelo Estado e dependente da participação popular, o situamos, nesse sentido, no paradigma da promoção da saúde. Após a Revolução, as políticas públicas de saúde centraram-se na idéia de que não bastava utilizar unicamente a prática médica como meio eficaz para enfrentar os problemas da saúde, havia a necessidade de conseguir a melhoria das condições sanitárias da população para mudar o quadro de morbi-mortalidade do país. As reformas sociais ocorridas durante o processo revolucionário, dentre elas, a educação universal, a assistência médica gratuita, a quantidade mínima de alimentos fornecidos mensalmente pelo Estado 4, as moradias de baixo custo subsidiadas pelo Estado, o pleno emprego e a seguridade social, contribuíram para a melhoria da qualidade de vida da população. Levando em consideração o caráter multifacetado de todo sistema nacional de saúde, onde para obter-se um funcionamento satisfatório há a necessidade da existência e da eficácia de políticas sociais dirigidas à outros setores, podemos situar o modelo cubano da saúde na produção social da saúde. Sendo regionalizado, organizado hierarquicamente, com remissão de um nível de cuidado ao seguinte, o SSC oferece cobertura universal, distribuição geográfica eqüitativa de instalações e serviços.5 A educação é um elemento indispensável em sua configuração, deve ser feita no sentido de promover socialmente a noção de totalidade do processo saúde-doença, esclarecendo a população que a saúde é produto do meio biosocial em que o homem está inserido e resultante do modo como vive (seus hábitos). A regionalização do atendimento em Cuba seguiu o modelo soviético, embora tenha tido uma maior preocupação em buscar equidade de acesso da população ao atendimento. Uma outra diferença básica entre ambos os modelos foi o fato dos serviços de saúde 3 4 TORRES (1995, p. 45). Durante o atual “período especial em tempos de paz” cada cidadão cubano maior de sete anos recebe por mês: seis libras de arroz, seis libras de açúcar, três latas de leite, uma libra e meia de feijão preto, uma libra de azeite, uma lata de molho de tomate, 28,7 gramas de café, oito libras de batata, bananas sem limite, duas libras de farinha de mandioca. Por dia recebe cada pessoa recebe um pão, a cada nove dias uma porção de carne, agora mesclada com soja e frango, a cada onze dias uma porção de pescado e semanalmente quatro ovos por pessoa. “Debe recordar se que la ingestión de proteínas de Cuba erá de 35 gramos por persona al día y una ingestión de 269 litros de leche por persona al año antes del periodo especial” (Informação obtida por um agente diplomático cubano na Colombia em novembro de 1993) .Ver Torres, p.30. 5 Torres (1995, p.48). soviéticos terem sido direcionados inicialmente para o atendimento da força laboral industrial urbana enquanto que, em Cuba, desde o primeiro momento o atendimento médico foi direcionado a população residente nas periferias (urbana e rural), de modo a contornar o tradicional desequilíbrio entre os recursos e os serviços entre essas duas áreas. Dentre as primeiras medidas governamentais adotadas para regionalizar os serviços, tivemos: a divisão do país em áreas geográficas, facilitando o planejamento racional e a organização de instalações; a organização dos serviços de forma hierarquizada com remissões de um nível de cuidado ao seguinte e a fixação de uma estrutura clara de autoridade para coordenar as atividades do setor.6 O vínculo entre os diferentes níveis do setor tem como objetivo que o atendimento à saúde seja feito no órgão público com menor grau de especialização, sem contudo, deixar de oferecer uma atenção de qualidade ao assistido. As medidas da regionalização constituíram uma forma de organizar as instalações da saúde no país e racionalizar o sistema como um todo. Na lógica deste processo, todo paciente deve passar primeiramente pelo atendimento do Médico de Família, de acordo com a necessidade, ele é encaminhado por este profissional para a instância superior melhor capacitada para atender a suas necessidades. No caso do paciente apresentar um caso que necessite de um atendimento mais direcionado (e que portanto, o Médico de Família em seu local de trabalho não possui suporte técnico para oferecê-lo), este é encaminhado ao policlínico, instância imediatamente superior que possui recursos para atender uma maior variedade de casos. Com a criação do PMF os médicos passam a realizar o cuidado primário através dos programas básicos, que anteriormente eram confiados aos profissionais do policlínico. Os programas básicos são colocados em prática logo após a realização de um diagnóstico inicial de cada setor de saúde. O SSC conta basicamente com 10 programas básicos: cinco para tratar pessoas, três para o meio ambiente e dois administrativos. Os programas dirigidos ao cuidado do indivíduo são: cuidado integral das mulheres (a partir dos 15 anos de idade), cuidado integral das crianças (menores de 15 anos), cuidado do adulto – “dispensarización”, cuidado dental e programas epidemiológicos. Dentre os 6 TORRES (1995, p. 53). programas ambientais temos o de higiene urbana e rural, higiene alimentícia e saúde ocupacional. E os de natureza administrativa, a administração básica e a “otimização” do tratamento de pacientes e suas famílias ou qualidade do cuidado. A participação popular é indispensável na execução de tais programas. Por meio da atuação dos CDR (Comitê para a Defesa da Revolução), da FMC (Federação de Mulheres Cubanas), da Anpa (Associação Nacional de Pequenos Agricultores), da FEEM (Federação de Estudantes de Escolas Intermediadas) e da FEU (Federação de Estudantes Universitários), são realizadas palestras educativas em escolas, policlínicos, clubes esportivos, tratando temas variados, como: limpeza, vacinação, doação de sangue, luta contra doenças infecciosas. Cada uma dessas organizações de massa atua no sentido de promover as práticas preventivas de saúde. A participação popular também é dada através de centros comunitários locais, onde as comunidades ali representadas podem discutir questões de saúde bem como expor os problemas de sua localidade. Não nos cabe aqui entrarmos na questão do poder político representativo que os centros comunitários exercem sobre as resoluções políticas da saúde, mas sim elucidar a forma com que o sistema cubano está organizado ou estruturado para que possamos vislumbrar sua lógica de funcionamento. Como observa Giorgio Pastori a regionalização e a programação constituem meios que podem ser utilizados para contornar uma possível gravidade de problemas administrativos. A regionalização pode ser feita no sentido de romper com o caráter unitário e centralizador do Governo, distribuindo os poderes do Estado e coordenando os poderes locais. Nesse sentido, o método da programação adquire uma importância fundamental já que as leis tendem cada vez mais a fixar os objetivos últimos e a deixar necessariamente amplo espaço para a ação executiva. Segundo o autor, cabe a programação determinar as próprias modalidades de participação no espaço e no tempo projetando concretamente o programa a desenvolver. A reflexão de Pastori a respeito da administração pública, entendida como “o conjunto das atividades diretamente destinadas à execução concreta das tarefas ou incumbências consideradas de interesse público ou comum, numa coletividade ou numa organização estatal”7, apesar de abarcar uma gama bastante ampla de ações do Governo relacionadas com os poderes de decisão e comando também compreende os empreendimentos voltados para a consecução dos objetivos públicos definidos por leis e atos de governo, como as atividades econômicas e sociais, dentre elas a promoção da saúde pública. Nesse sentido podemos pensar o modelo cubano de políticas públicas de saúde. Segundo este autor, a administração social dentro de um sistema de programas e planos de atividade públicas estabelece implicações organizativas importantes como a reorganização das estruturas gerenciais paralelamente às do Governo, segundo critérios de articulação territorial. Podendo com isso, reentrar facilmente na órbita dos poderes locais e adotar uma administração social das atividades e serviços prestada por diversos grupos sociais interessados. Dentro dessa perspectiva teórica é possível compreender o Programa Médico de Família (PMF) em Cuba. Resultante do processo de regionalização do atendimento à saúde iniciado pelo governo nos anos 60, este programa contribuiu para empreender a racionalização do sistema nacional de saúde. Realizando o cuidado primário mediante planejamentos definidos em programas básicos de ação, oferecendo meios permanentes de promover a educação sanitária e dentre outros aspectos, estimulando a participação popular em atividades de saúde pública, o PMF atua revigorando a todo momento um princípio básico da produção social da saúde: a prevenção à saúde. O Programa Médico de Família em Niterói. Niterói é um município de médio porte, com área total de 130 km², pertencente à região metropolitana do Rio de Janeiro. Situado a 13 km do município do Rio de Janeiro (atual capital do Estado), Niterói delimita-se ao norte com São Gonçalo e a leste com Maricá. Comporta três macro-bacias hidrográficas: a dos rios Aldeia, Columbandê e Alcântara e clima quente e semi-úmido. Com uma população estimada pelo IBGE em 517.992 mil habitantes, Niterói é formado por quarenta e oito bairros que estão distribuídos por cinco regiões de planejamento: Praias da Baía, Norte, Penditoba, Leste e Oceânica. Sendo esta última, a que apresenta maior concentração populacional. Entre 1835 e 1975, Niterói foi capital do Estado do Rio de Janeiro. Este fato, além de ter-lhe conferido uma infra-estrutura típica de pólos de decisões político-administrativas, 7 PASTORI, G. Administração Pública. IN: BOBBIO (1986, p. 10). também funcionou como atrativo populacional, desencadeando movimentos migratórios oriundos das regiões Norte e Noroeste do Estado. A partir de 1975 com a fusão dos estados do Rio e da Guanabara, Niterói deixa de ser capital do Estado. Paralelamente, sofre um processo de transformação no cenário urbano marcado por um crescimento desigual, coexistindo bairros nobres de arquitetura moderna (redutos dos estratos sociais das classes média e alta) com áreas favelizadas (locais onde os domicílios possuem padrão construtivo precário, abrigando a população operária e de baixa renda). A criação do Programa Médico de Família em Niterói no ano de 1991 remete a um histórico de ações de saúde no município que, a partir dos anos 70, foi marcado pela luta contínua dos representantes da Reforma Sanitária8 em busca da regionalização e descentralização dos serviços de saúde. O primeiro procedimento metodológico para implantar o PMF foi o de selecionar as áreas geográficas com população de baixa renda entre 3.500 e 4.000 habitantes. A área deve apresentar pré-requisitos básicos como ter uma infra-estrutura mínima, uma estrutura sócioeconômica fechada constituindo conjunto populacional definido, apresentar uma relativa independência em relação às comunidades vizinhas de forma a permitir uma população mais estável e definida, possuir uma organização comunitária com vínculos locais e ainda, fornecer possibilidade de referenciamento às unidades da rede do SUS, determinada por distância geográfica e vias de acesso. Escolhida a comunidade, ela é dividida em setores de 200 a 250 famílias (cerca de 1000 a 1200 pessoas residentes). Cada setor é atendido por uma equipe básica, composta por um médico generalista e uma auxiliar de enfermagem. O número de equipes é proporcional à população. Assim, uma comunidade de quatro mil moradores (média atual) dispõe de até quatro equipes básicas, sendo uma para cada setor constituído. As equipes ficam instaladas numa edificação modular, por isto denominada Módulo de Atendimento, constituída por 02 consultórios, sala multi-uso, sala de vacinação e nebulização, farmácia, pequena copa, 02 8 "A Reforma Sanitária constituiu um projeto de política alternativo ao que vinha acontecendo (...) numa perspectiva de luta, que estabelece as diretrizes do sistema de saúde no país, a partir das propostas da VIII Conferência Nacional de Saúde. Pretende a democratização da saúde no país entendendo-a como resultante das condições de vida das pessoas e o acesso a um sistema de saúde eficaz, perpassando pela idéia de que a Saúde é um direito de todos e dever do Estado, sendo que através da implantação do SUS, pode-se reorientar o sistema vigente." (Ribeiro, A. & Sousa, G. - 1999) banheiros e área livre de recepção e circulação. Estes estão equipados com recursos mínimos para funcionamento das atividades cotidianas de uma unidade de atendimento primário. Num primeiro momento, a equipe básica realiza o cadastramento das famílias elaborando um diagnóstico de saúde do setor, inclusive identificando grupos prioritários como gestantes, recém-nascidos, portadores de deficiências, etc. Cabe ressaltar que este último procedimento não deve inviabilizar o princípio central do Programa: o de atender de forma integral toda a família, sem distinção de idade, presença de patologia e agravos. A perspectiva de trabalho é biopsicosocial, ou seja, o indivíduo não é considerado de forma isolada, mas sim como parte de um todo que interage na comunidade em que vive. Os profissionais possuem uma carga horária de trabalho semanal de 40 horas, com atendimento feito em consultório para as situações captadas e livre demanda e em campo, realizando visitas domiciliares, hospitalares e atividades de educação continuada. As equipes básicas são orientadas pelos supervisores, que compõem uma equipe multidisciplinar9 responsável pela capacitação permanente dos profissionais em campo. Cabe aos supervisores selecioná-las, realizar o treinamento em serviço, garantir a resolutividade dos médicos e auxiliares perante os problemas surgidos, elaborar o processo de educação continuada, acompanhar resultados e identificar as possíveis alterações nos indicadores de qualidade dos serviços. Cada equipe de supervisão fica responsável por até 20 equipes básicas. A equipe básica e o seu supervisor formam o Grupo Básico de Trabalho (GBT), que por sua vez, possui um coordenador responsável por agrupar os resultados, avaliar o andamento do trabalho das equipes procurando, em conjunto, corrigir distorções e intermediar as relações entre esta instância e as que lhe são superiores. Periodicamente o GBT se reúne para a discutir casos clínicos e analisar os óbitos ocorridos no período, bem como buscar soluções para outras demandas. A avaliação do desempenho da equipe básica é baseada tanto nos aspectos técnico-científicos quanto no nível de satisfação dos usuários. É feita sob a consultoria do representante do Minsap Cubano junto à SMS, FMS e a Superintendência de Ações Integradas, para evitar distorções quanto à implementação do Programa. 9 formadas por especialistas de Clínica Médica, Pediatria, Toco-ginecologia, Enfermagem, Saúde Coletiva e Serviço Social. Para se tornar um médico de família, o profissional deve atender as seguintes exigências: ter uma disponibilidade semanal de trabalho de 40 horas; possuir um compromisso fundamentado na relação médico-paciente, que será avaliada pela população local e tecnicamente, pelos supervisores; estar disposto a desenvolver atividades que envolvam atendimento ambulatorial em consultório, em domicílios e visita hospitalar a pacientes eventualmente internados, atuando paralelamente à equipe do hospital que está responsável pelo paciente. Além disso, o profissional deve procurar desenvolver um trabalho continuado dirigido à promoção em saúde junto a todos os membros das famílias inscritas em seu setor; participar de treinamento e/ ou reciclagem desenvolvidos pelo supervisor; ter concluído residência médica em saúde pública, clínica médica ou pediatria, ou internato nessas áreas e também possuir experiência comprovada como generalista.10 Dentre as exigências para ser um auxiliar de enfermagem, pede-se que o profissional tenha concluído o curso de auxiliar ou técnico em enfermagem; tenha experiência comprovada nas áreas materno-infantil, médico-cirúrgica e saúde pública; possua disponibilidade para trabalhar em horário integral e, preferencialmente, seja residente da área onde trabalhará.11 Observamos aqui uma diferença em relação ao modelo cubano: enquanto que em Cuba o médico reside na área onde trabalha, em Niterói isso não foi possível pois os médicos existentes dado uma boa condição financeira dificilmente habitam em favelas, redutos característicos de uma população de baixa renda e carente de recursos. Sendo assim, fez-se uma adaptação, em vez do médico residir no local onde atua, o auxiliar de enfermagem deve habitá-lo. O PMF-Niterói estabeleceu articulações importantes com outros segmentos institucionais. A Companhia de Limpeza Urbana, organizou projetos de mobilização da população em defesa do saneamento urbano (projetos: "Garis Comunitários", "Sábado é Dia de Faxina", "Joga Fora no Lixo"). A Secretaria de Ciência e Tecnologia (SECITEC), contribuiu entre outros fatores, realizando estudos demográficos e sócio-econômicos pertinentes à setorização das áreas. A Secretaria de Meio Ambiente, confeccionou estudos de risco ambiental, projetos de reflorestamento de encostas e a Secretaria de Serviços Públicos, 10 O'DWYER, G.C. (org.) Implementação do Médico de Família em Niterói. Relato de Experiência. Rio de Janeiro: Niterói,1991. 11 Idem. atuou fornecendo projetos de saneamento e urbanização de favelas como o "Vida Nova no Morro". Atualmente o programa possui vinte e quatro grupos básicos de trabalho distribuídos pelas regiões Centro-Sul, Leste-Oceânica e Norte e conta com quatro unidades de serviço de atendimento 24 horas. Com 286 funcionários, realiza 11 mil consultas e 5 mil procedimentos a um custo mensal inferior a R$ 1 milhão, bancado quase que exclusivamente pelo Município. Atualmente oferece consultoria para 103 municípios brasileiros e troca informações com países como Angola, Moçambique e Timor Leste. Porém, a ajuda financeira que recebe da esfera federal corresponde a um quinto do que gasta, em função do governo Fernando Henrique Cardoso não tê-lo incluído entre as 3.200 experiências de saúde da família mantidas pelo Ministério da Saúde, por motivo de divergência metodológica de ambos os projetos. A regionalização está contida na proposta do SUS, ao estabelecer o rompimento com o caráter unitário e centralizador do Governo, distribuindo os poderes do Estado e coordenando os poderes locais. E o Médico de Família de Niterói consiste numa forma de programação determinando as modalidades de participação no espaço e no tempo e, projetando de forma concreta as modalidades de ação. O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro pode ser definido como um "sistema democrático e suprapartidário de redistribuição de poder e de recursos, de redefinição do papel dos gestores públicos (e de suas responsabilidades financeiras), de estabelecimento de relações consensuais entre os diferentes níveis de governo e de reorganização institucional." 12 Observando a trajetória histórica pela qual se constituiu constatamos tratar-se de um sistema ainda muito recente. O que nos traz a dificuldade em possuir, na medida exata, os impactos que a municipalização da saúde provocou, ou pode provocar, para a melhoria das condições sanitárias da população brasileira. Portanto, o Médico de Família de Niterói é concebido no processo maior da regionalização dos serviços de saúde brasileiros. O que nos leva a reconhecer a necessidade do SUS funcionar de forma satisfatória para que este programa encontre condições necessárias a apresentar resultados favoráveis. Não basta o paciente ter o diagnóstico, se não tem acesso ao medicamento. Urge então a existência de um sistema de saúde realmente integrado e acessível aos cidadãos. Desafio este, que somente será possível mediante a atuação conjunta das três esferas do poder público (União, estados e municípios) como instâncias de planejamento, financiamento, avaliação e controle dos serviços de saúde aliada à mobilização popular em defesa à saúde, o bem imprescindível para o bem estar do homem. Conclusão Este trabalho visou compreender o Programa Médico de Família de Niterói partindo do conhecimento do modelo que o originou: o sistema de saúde cubano. Como vimos, em Cuba o PMF, criado em 1984, resultou de um amplo processo de regionalização do atendimento à saúde iniciado por Castro nos anos 60 e atualmente, representa o grande pilar de sustentação do sistema nacional de saúde. A incumbência de realizar o cuidado primário da saúde mediante um planejamento definido em programas básicos de ação, a prática permanente da educação sanitária e dentre outros aspectos, o estímulo à participação popular em atividades do setor vem possibilitando o PMF cubano contribuir para a racionalização do sistema de saúde, revigorando assim, as práticas de prevenção à saúde. Em 1990 uma epidemia de dengue e o aumento da incidência de casos de Meningite Meningocócica assolaram as condições de saúde pública do município, levando-o a aproximar-se de Cuba. O prefeito Jorge Roberto Silveira visita este país, conhece o PMF e decide implementá-lo em Niterói. A facilidade inicial deste município em ter recebido uma política pública cubana na área da saúde também deve-se ao fato de que os médicos sanitaristas que compunham o movimento pela reforma do setor estavam, em sua maioria, bastante receptivos às idéias comunistas, muitos inclusive, filiados ao Partido Comunista Brasileiro. Inicialmente Niterói recebeu assessoria técnica do governo cubano mediante o trabalho de uma equipe chefiada pelo Dr. Filiberto Pérez do Policlínico Lawton de Havana. O objetivo foi realizar um estudo das viabilidades de adaptação do modelo cubano de medicina familiar à realidade do município. O PMF de Niterói foi então inaugurado no ano de 1992 e atualmente encontra-se em pleno funcionamento. Apesar das diferenças de natureza político-econômica e sócio-cultural entre Cuba e Brasil a experiência de Niterói revelou que o PMF Cubano pode ser aproveitado por um 12 YUNES, J. (1999, p.67) município brasileiro na medida em que haja vontade política do poder público local em implementá-lo. Isto naturalmente, implica a realização de um trabalho de adaptação do programa às condições da localidade em questão, sem perder de vista a preocupação central de fornecer a atenção integral à saúde, onde o cidadão é o alvo privilegiado do atendimento. Distintamente de Cuba onde o PMF cobre mais de 90% da população, em Niterói ele é oferecido somente às camadas sociais de baixa renda, residentes nas áreas mais carentes, como favelas e cortiços. Contudo, é necessário ressaltar que em ambos os casos analisados estamos tratando de realidades distintas, cada qual com uma especificidade politicoeconômica e sócio-cultural própria. E sendo assim, não podemos cair no grave erro de considerar a experiência de Niterói como menos importante que a observada em Cuba ou mesmo afirmarmos que tal município, ao restringir o atendimento do programa à população de baixa renda e desprovida de recursos, tenha feito menos que a Ilha Caribenha. Pelo contrário, a riqueza da experiência de Niterói consiste em comprovar que o PMF funciona fora de Cuba, numa realidade diferente daquela onde fora concebido e fundado. Tal experiência funciona ao mesmo tempo como ponto de partida para uma futura e desejada expansão do PMF, tanto internamente à Niterói ampliando a cobertura de atendimento à outras parcelas sociais não atendidas pelo programa como uma possível adoção deste modelo por outros municípios brasileiros. A experiência de Niterói permite-nos classificarmos o PMF como um modelo de atenção à saúde pública alternativo e viável (nos planos prático e orçamentário) em território nacional, pois trata-se de um programa que pode ser adaptado às condições da localidade interessada, apresenta baixo custo em termos monetários, preenchendo assim, requisitos básicos para vir a constituir uma fonte de investimento do poder público, essencialmente no sentido de sua implementação. Como no modelo cubano, o programa niteroiense proporciona uma relação mais humanizada entre o profissional e o paciente. A equipe médica, realizando um acompanhamento permanente e conhecendo as condições sociais, econômicas e culturais em que vive sua clientela, adquire condições de fornecer um diagnóstico mais preciso, uma assistência centrada no perfil dos assistidos efetivando um trabalho contínuo de educação preventiva. Dessa forma, o PMF Niterói vem proporcionando atenção à uma parcela social, que antes, encontrava-se à margem do atendimento básico à saúde. Enquanto o SUS brasileiro fixa em âmbito nacional os objetivos a serem alcançados na área da saúde pública, ele deixa um amplo espaço para a ação executiva. E a experiência do Programa Médico de Família de Niterói pode ser vista como uma dentre as ações executivas possíveis em âmbito local. O que nos confere o reconhecimento dos métodos de programação como mecanismos de execução imprescindíveis ao desejado êxito do SUS, na medida em que oferecem formas de se trabalhar efetivamente, no caso aqui observado, em nível municipal. A programação ao mesmo tempo em que, quando bem administrada, pode oferecer em âmbito regional resultados animadores contribuindo para a constituição de um sistema integrado de saúde, enquanto estratégia de ação do poder público necessita que a hierarquia estabelecida pelo SUS em nível nacional - encarregada da redistribuição de poderes e de recursos, funcione adequadamente. Dessa maneira, impõem-se dois fatores fundamentais: a importância do Governo funcionar em suas três esferas para que os recursos cheguem ao Município, e mais do que isso, a necessidade da existência de um controle local a fim de averiguar e exercer pressões quanto a aplicação das verbas destinadas ao município. O funcionamento do SUS depende do êxito de políticas públicas de moradia, saneamento, transporte, alimentação, emprego. Daí a necessidade de diminuir as disparidades regionais para que os métodos de programação, como o Médico de Família, sejam eficazes não somente nos centros urbanos dotados de melhor infra-estrutura de serviços (como é o caso de Niterói) como nas zonas mais afastadas, desprovidas dos recursos mínimos ao atendimento. É interessante observar que em ambos os casos analisados neste trabalho, o PMF foi criado e mantido pela política de um mesmo segmento político no poder. No caso de Cuba, Castro criou o programa em 1984 sob a égide do Partido Comunista Cubano (PCC) e sua permanência no poder até o presente momento (ano de 2002) vem possibilitando a continuidade do PMF. No caso de Niterói, este fora criado em 1991, sob o governo de Jorge Roberto Silveira do PDT, que manteve-o durante seus três mandatos. Em abril de 2002, Silveira renunciou ao cargo com o propósito de disputar as eleições para o Governo do Estado. Entretanto seu vice, Godofredo Pinto (PT), assumiu o cargo prometendo uma administração de mudanças mas sem rupturas em relação aos projetos desenvolvidos na gestão de Silveira. Em ambos os casos não houve uma mudança na liderança política do governo. Portanto o PMF sendo um trabalho que é gerido e financiado pelo poder público, depende do apoio deste para manter-se em funcionamento. Uma possível mudança política nos quadros da liderança governamental traz consigo um clima de insegurança tanto aos que integram o Programa quanto aos que recebem a assistência médica. No caso de Cuba, sabemos que desde 1959 este país vive um regime ditatorial. Seu dirigente político, Fidel Castro Ruz, na maioria das vezes em que é interrogado sobre a "realidade daninha" em que vive o cidadão cubano submetido à inúmeras privações como a ausência de liberdade de expressão, de ação, de mobilidade, etc., rebate afirmando que este mesmo cidadão possui a dignidade em ter a saúde e a educação, direitos que não teriam garantidos no dia a dia em nenhum outro país subdesenvolvido (ou em vias de desenvolvimento) do mundo, como o têm em Cuba. Diante deste embate político e ideológico e a partir da temática desenvolvida neste trabalho, podemos nos perguntar: em um regime político autoritário, como é o cubano no mundo contemporâneo, até que ponto uma política pública de bem-estar social (de saúde) pode transformar-se numa política compensatória ou alternativa de participação popular? A proposta do PMF em realizar um trabalho educativo integrado aos princípios da produção social da saúde gera condições para promover a mudança de hábitos dos atores envolvidos. Sua estrutura reserva uma importante via de participação aos cidadãos mediante os conselhos comunitários, no caso de Niterói, as Associações de Moradores. Além disso, a acessibilidade dos serviços a uma determinada comunidade combinada com o diagnóstico local estabelece identidade à porta de entrada do sistema de saúde municipal. Portanto, o PMF Niterói adota como base técnico-metodológica a medicina familiar, que estabelece não somente a mudança no modelo de saúde mas também a mudança de filosofia, de enfoque, objetivando entender a realidade, estudar e interpretar o processo saúdedoença. Dessa maneira, está situado teoricamente no paradigma da produção social da saúde, consistindo uma forma de programação de assistência à saúde no âmbito municipal dentro do processo maior da descentralização dos serviços de saúde brasileiros. A última epidemia de dengue ocorrida no verão de 2002 em todo o país, inclusive no Rio de Janeiro, denunciou a falta de investimento do poder público em mecanismos essenciais para a preservação da saúde pública, como as obras de saneamento, o uso de inseticidas, a educação sanitária e a vigilância de portos, aeroportos e fronteiras. No caso do Rio de Janeiro, a epidemia se justifica dentre outros fatores a falta, desde 1998, de recursos humanos suficientes para combater a dengue. O Governo Estadual demitiu mais de 6 mil "matamosquitos" sem fazer a devida reposição do quadro de funcionários. Municipalizaram tal serviço e a Prefeitura não contratou pessoal. Esta epidemia apresentou um quadro extremamente preocupante marcado por casos de dengue 1 e 2 (dengue e dengue hemorrágica), quadros clínicos atípicos e ainda pela primeira vez no país, a identificação do vírus tipo 3, o qual não temos nenhuma resistência. A tragédia brasileira produziu números assustadores, somente no Estado do Rio foram notificados 101.168 casos, dos quais 45.848 na capital e 39 óbitos confirmados.13 Sabe-se ainda da existência do vírus tipo 4 na Venezuela, o que deve ser seriamente considerado pelas autoridades públicas brasileiras a fim de que este tipo de dengue não avance as fronteiras e penetre no país. Alguns sanitaristas brasileiros alertam que caso persista a negligência do poder público, os casos esporádicos de dengue hemorrágica observados em 2002 darão lugar a uma situação epidêmica deste mesmo tipo de moléstia nos próximos anos. Sendo possível ainda que venha acompanhada da febre amarela, pois esta não foi erradicada do país. Ainda hoje, ela existe na faixa territorial que vai do Maranhão até o Mato Grosso, apresentando casos recentes nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Goiás, trazidos sobretudo pelo deslocamento de pessoas envolvidas com as atividades de turismo e transporte de madeira. No caso da febre amarela é clara a necessidade de realizar uma vacinação em massa, realizando paralelamente um serviço de vigilância sanitária a fim de erradicar o vetor desta doença. Quanto a dengue, de forma análoga, urge realizar um trabalho eficiente no combate ao Aedes Aegypti e de prevenção permanente. Existem várias maneiras de efetuá-lo, bastando para isso, que haja interesse político dos governantes. Niterói, por exemplo, na epidemia de dengue em 2002, adotou um método sugerido pelo próprio governo cubano, por ter sido muito eficaz em campanhas de combate ao mosquito na Ilha. 13 O número de casos do Estado toma por base a estatística oficial de 15 de março de 2002 (89.718 casos) e acrescenta notificações apuradas junto às prefeituras do Rio, Niterói, Caxias, Mesquita, São Gonçalo, Belford Roxo, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Angra dos Reis e Magé. IN: MAGALHÃES, Luiz Ernesto. Dengue atinge mais de 100 mil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de março de 2002. Cidade, p.15. O método adotado por Niterói consistiu na utilização de vermes nematóides para exterminar as larvas do Aedes aegypti. Estes vermes, com formato fino e alongado se alojam como parasitas nas larvas do mosquito causando sua morte. Somente após a morte do organismo do mosquito o nematóide abandona-o e então saciado, procura um par para se acasalar, quando reproduz mais 150 vermes. Segundo as autoridades de Niterói, trata-se de um método eficiente pois além de reproduzirem-se com rapidez os nematóides não transmitem qualquer tipo de doença aos homens e outros animais. Enfim, a dengue-2002 trouxe a tona a necessidade de implementar uma reforma no sistema de saúde brasileiro. Seu combate mostrou que a mobilização popular é válida enquanto medida complementar à ação do poder público. Cabendo a este último investir durante todo o ano num amplo plano de vigilância sanitária. Pois sabemos que não basta realizar o trabalho de prevenção quando o problema já está instaurado. Há, pelo contrário, a necessidade de realizar um trabalho permanente de vigilância à saúde pública. A reforma na área da saúde como aqui entendemos implica promover a integração do nosso sistema de saúde ao paradigma da produção social da saúde, transformando o modelo curativo em um modelo descentralizado com atendimento familiar, comunitário e um sistema de emergência integrado. Nas palavras de Sérgio Arouca, um sistema moderno e humanizado. Nesse sentido, o Médico de Família de Niterói, enquanto um programa de atenção integral à saúde, representa uma via concreta de atuação regional nessa direção, principalmente quando pensamos que este funciona em conformidade com os princípios do SUS. Referências Bibliográficas BALDIJÃO, Carlos E.M. & VALENTE, Flávio L.S. Saúde em Cuba: Um Ano a Mais de Vida para Cada Ano de Revolução. IN: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, n°18, pp.185-201. BARÃO, Carlos Alberto. O Processo de Retificação de Erros e Tendências Negativas em Cuba: 1986-1991. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal Fluminense, 2000. BERLINGUER, Giovanni. Globalização e Saúde Global. IN: Revista Estudos Avançados. São Paulo: USP, v.13, n.35, pp. 21-38, jan./abr.1999. BOBBIO, Norberto, MATEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 9ª ed. 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