Alterações Cardíacas na Síndrome da

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Arq Bras Cardiol
volume 73, (nº 3), 1999
e cols.
ArtigoHerdy
Original
Alterações cardíacas na síndrome da imunodeficiência adquirida
Alterações Cardíacas na Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida. Estudo Prospectivo em Vinte e Um Pacientes
Adultos com Correlação Clinicopatológica
Gesmar Volga Haddad Herdy, Artur Haddad Herdy, Pedro Savio Almeida, Roberto de Carvalho,
Fabiano B. Azevedo, Kátia Azevedo, Márcia Cláudia Vasconcelos, Raquel Paiva, Hsu Y. Tchou,
Pablo Nascimento, Rachel Cosendey, Analise Ferrari, Vania S. Lopes
Niterói, RJ
Objetivo - Avaliar, as alterações cardíacas e sua evolução no decurso da síndrome da imunodeficiência adquirida e realizar correlação de dados clínicos e patológicos.
Métodos - Foram estudados, prospectivamente, 21
pacientes entre 19 e 42 anos, (4 mulheres) internados com
diagnóstico da síndrome da imunodeficiência adquirida
e acompanhados até o óbito. Além dos exames de rotina,
foram feitos ECG e ecocardiograma a cada 6 meses. Após
o óbito, realizou-se estudo macro e microscópico.
Resultados - As indicações mais freqüentes de internação foram: diarréia ou pneumonias de repetição, tuberculose, toxoplasmose ou sarcoma de Kaposi. Na avaliação cardíaca, mais freqüentemente, foram encontrados
pericardite aguda ou crônica (42%) e miocardiopatia dilatada (19%). Quatro casos tiveram como causa mortis
disfunções cardíacas, respectivamente, endocardite bacteriana, pericardite com derrame, miocardite bacteriana
e infecção por Toxoplasma gondii.
Conclusão – Algumas alterações cardíacas graves levaram ao óbito. Na maioria, houve boa correlação entre
dados clínicos e anatomopatológicos. Avaliação cardíaca
foi importante mesmo nos casos assintomáticos para se
detectar alterações precoces e tratá-las convenientemente.
Palavras-chave:
coração, síndrome de imunodeficiência
adquirida (SIDA), correlação clínicopatológica
Hospital Universitário Antonio Pedro - UFF - Niterói. (Apoio CNPq)
Correspondência: Gesmar Volga H. Herdy - Trav. Antonio Pedro, 10/301 - 24230-030
- Niterói, RJ Recebido para publicação em 28/1/99
Aceito em 26/5/99
O comprometimento cardíaco na síndrome de imunodeficiência adquirida tem sido divulgado freqüentemente
por vários autores 1-3. Em estudos retrospectivos anteriores,
observamos que mais de 50% dos casos apresentaram anormalidades cardíacas, semelhantes às que foram observadas
em outros países 2-4. As lesões miocárdicas podem estar relacionadas ao próprio vírus da imunodeficiência humana 5,6
ou aos agentes oportunistas, principalmente, Toxoplasma
gondii, Citomegalovirus, Criptococcus 7. Tendo em vista a
elevada incidência de casos encaminhados ao Hospital
Universitário Antonio Pedro (HUAP), decidimos realizar estudo prospectivo para avaliar as alterações cardíacas e sua
evolução no decurso da doença.
Métodos
Dentre os 80 pacientes internados com síndrome da
imunodeficiência adquirida e investigados, prospectivamente, do ponto de vista cardíaco, selecionamos 21 casos
que evoluíram para óbito e que haviam completado o estudo
clínico. As idades variaram de 19 a 42 anos, sendo 4 mulheres e 17 homens.
Foi utilizada a classificação do Centers for Disease
Control de Atlanta (CDC) de 1986 8 para avaliar a gravidade
dos pacientes. Todos os casos tiveram também diagnóstico
laboratorial de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, pelo menos através do método ELISA. Em alguns foi
confirmado com outros métodos (Westernblot ou P24).
O protocolo incluiu revisão da história clínica, exame físico completo, hemogramas seriados, eletrocardiogramas e
ecocardiogramas semestrais. Nos casos de óbito, estudamos todos os órgãos com descrição macro e microscópica.
Utilizou-se um ecocardiógrafo bidimensional Esaote
SIM 5.000 Plus, equipado com módulo de dopplermetria,
para análise das estruturas cardíacas e avaliação da função
ventricular.
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A dosagem de enzimas DHL, CPK e CPK-MB constava do protocolo, mas não foi feita em todos os casos.
No estudo histológico dos órgãos foram utilizados,
além das técnicas de rotina (hemotoxilina-eosina), outros
métodos específicos para alguns agentes infecciosos como:
Ziel-Nielsen, Gomori e Grocott.
Resultados
Os pacientes foram acompanhados, clinicamente, por
longos períodos, porque apresentaram durante a evolução
alterações graves que requeriam internação prolongada,
como toxoplasmose cerebral, sarcoma de Kaposi, tuberculose, citomegalovirose e insuficiência cardíaca congestiva.
Pela classificação clínica dos casos (CDC,1986), 19 estavam
no grupo IV-C e dois no IV-D, pois apresentavam complicações infecciosas ou neurológicas.
Os principais diagnósticos clínicos, por ocasião da
internação, encontram-se na tabela I. Os dados dos exame
cardiovascular, eletrocardiograma e ecocardiograma estão
nas tabelas II, III e IV, respectivamente.
O exame clínico-cardiológico mostrou que seis pacientes apresentavam sopro sistólico no bordo esternal esquerdo e dois no foco mitral. Em uma paciente havia também so-
Tabela I - Complicações infecciosas mais freqüentes
Complicações infecciosas
N° de casos
%
Diarréia de repetição
Tuberculose pulmonar
Sarcoma de Kaposi
Candidíase oral
Pneumonias de repetição
Toxoplasmose cerebral
Citomegalovirose ocular
12
8
8
5
5
4
4
57
38
38
23
23
19
19
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pro diastólico no foco aórtico (caso 7). Tratava-se de uma
paciente com lesão aórtica e mitral por febre reumática. Seis
pacientes tinham hipofonese de bulhas. Em cinco, havia sinais de insuficiência cardíaca congestiva e em quatro, ritmo
de galope. Dois tiveram atrito pericárdico e dois, quadro clínico de tamponamento cardíaco.
O eletrocardiograma foi normal em sete casos. Em outros sete, havia distúrbio de repolarização ventricular. Em três
foi observado aumento das cavidades esquerdas; em outros
dois, extra-sistolia ventricular. Em dois, havia baixa voltagem
generalizada e, em outro, hemibloqueio anterior esquerdo.
O ecocardiograma foi normal em seis casos. Em sete, havia efusão pericárdica moderada ou grave. Quatro pacientes
apresentaram discinesia ou hipocinesia associada ao afastamento entre a válvula mitral e septo, sendo que um deles era
assintomático do ponto de vista cardiovascular. Estes apresentaram baixos índices sistólicos (todos com fração de
ejeção <40%) e portanto tiveram diagnóstico ecocardiográfico de miocardiopatia dilatada. Em dois, que também eram
assintomáticos, havia alterações discretas (espessamento
dos folhetos da mitral ou prolapso da valva mitral), associadas a pequeno derrame pericárdico. Em um, havia sinais
ecocardiográficos de endocardite infecciosa.
Nos cinco pacientes com quadro de insuficiência cardíaca
congestiva (casos 1, 5, 7, 17 e 20), o ecocardiograma mostrou:
nos casos 1 e 5 não havia alterações importantes; uma paciente
tinha vegetação em válvulas mitral e aórtica (caso 7), outra mostrou aspecto de miocardiopatia dilatada (caso 17) e, no caso 20,
havia efusão pericárdica. Um paciente assintomático (caso 19)
mostrou baixa FE e dilatação de cavidades esquerdas.
Durante a evolução, foram repetidos os ecocardiogramas
em oito pacientes. Dos quatro casos de miocardiopatia dilatada, em dois ocorreram melhora da função ventricular e di-
Tabela IV – Resultados dos ecocardiogramas na internação
Tabela II - Exame clínico cardiológico
Dados clínicos
Sinais obtidos
Nº de casos
%
6
6
5
4
2
2
1
28
28
24
19
10
10
5
Sopro sistólico no BEE
Hipofonese de bulhas
Sinais de ICC
Ritmo de galope
Tamponamento cardíaco
Sopro sistólico no foco mitral
Sopro diastólico no foco aórtico
Nº casos
Normal
Efusão pericárdica moderada ou grave
Hipocinesia ou discinesia + baixa FE + VM afastada SIV
Efusão pericárdica leve + PVM
Vegetação em VAo e mitral.¯FE e efusão pericárdica
Dilatação de VE, baixa FE
Espessamento de VM e VAo
6
7
3
2
1
1
1
%
28
33
14
10
5
5
5
*BEE- bordo esternal esquerdo; ICC– insuficiência cardíaca congestiva
*FE- fração de ejeção; VM- valva mitral; SIV- septo interventricular; PVMprolapso de valva mitral; V- válvula; VE- ventrículo esquerdo; Vao- válvula
aórtica.
Tabela III - Resultados do eletrocardiograma
Tabela V – Dados da necropsia
Sinais obtidos
Nº de casos
%
Principais alterações encontradas
7
7
3
2
2
1
33
33
14
10
10
5
Sem alterações significativas
Pericardite crônica
Pericardite aguda associadas ou não a miocardite
Miocardite grave
Vegetação em válvulas
Degeneração e fragmentação de fibras + edema
Sarcoma de Kaposi no pericárdio
Miocardite focal
Normal
Distúrbio da repolarização ventricular
Aumento de AE e VE
Extra-sistolia
Baixa voltagem generalizada
Hemibloqueio anterior esquerdo
*AE-átrio esquerdo; VE-ventículo esquerdo
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Nº casos
%
4
5
4
2
2
2
1
1
28
23
19
14
14
10
5
5
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Fig. 1 - Caso 14 – Paciente com alterações discretas na repolarização ventricular; aumento discreto de cavidades esquerdas; o Doppler mostra fluxo mitral diminuído e diminuição
na fase de relaxamento.
minuição dos diâmetros cavitários, após tratamento prolongado com antiretrovirais, antimicrobianos e tratamento de apoio.
Nos outros casos não ocorreu modificação importante.
Na necropsia, considerando exame macro e microscópico, houve comprometimento pericárdico em 10 casos, sendo:
quatro pericardite aguda, cinco crônica e um com infiltração
do sarcoma de Kaposi. Dois pacientes apresentaram
miocardite grave, sendo uma bacteriana e outra por Toxoplasma gondii. Em dois, havia vegetação em válvulas: um na
tricúspide e, outra, com lesões em aórtica e mitral, além de sinais de febre reumática com nódulos de Aschoff (tab. V).
Em dois havia fragmentação de fibras e edema interfibrilhar. Em um, havia áreas de hemorragia, outros de necrose
focal com afluxo inflamatório no miocárdio. Em quatro, as
alterações eram de pouco significado ou normais.
Quanto aos agentes etiológicos causadores de pericardite, em um caso foi detectado Microsporidium e em cinco
havia tuberculose pulmonar ou miliar associada. Em dois
havia lesões em outros órgãos pelo citomegalovírus e, em
outros dois, pelo Criptococccus.
Quatro pacientes tiveram como causa mortis as
complicações cardíacas; uma com doença reumática e endocardite, outra com pericardite por Microsporidium e dois
com miocardite grave (Toxoplasma gondii e bacteriana)
Apenas em três casos, a correlação entre os dados clínicos, ecocardiográficos e anatomopatológicos não foi boa.
Nos casos 11 e 19, o ecocardiograma mostrou alterações
importantes e não houve descrição de lesões na microscopia; no caso 13, ocorreu o contrário.
Discussão
O quadro clínico geral de nossos pacientes assemelhouse ao relatado por vários autores 1,3,5,9. Muitos destes casos foram estudados antes da terapia anti-retroviral combinada e, por
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Fig. 2 - Caso 14 - Seis meses depois (próximo ao óbito): alterações graves na repolarização ventricular; aumento importante da área cardíaca por volumoso derrame pericárdico,
confirmado pelo ecocardiograma.
isso, apresentaram as complicações descritas. A diarréia de repetição foi uma queixa freqüente acompanhada de emagrecimento.
A superfície absortiva intestinal dos pacientes infectados pelo
vírus da imunodeficiência humana é prejudicada tanto pelo encurtamento das vilosidades como mostram as biópsias, como
também por alterações nos enterócitos 9. No quadro de desnutrição, pode haver deficiência de oligoelementos 10.
Outras complicações freqüentes, descritas por nós, como tuberculose e toxoplasmose, também causaram impacto
no início da epidemia, em países desenvolvidos, pois tiveram
que retomar esquemas terapêuticos já quase esquecidos 11.
Muitos de nossos casos tiveram pericardite ou miocardite. O comprometimento cardíaco pode ter uma grande variedade de agentes etiológicos 12. O próprio vírus da imunodeficiência humana pode ser o agente causal, já que houve
identificação do vírus no tecido miocárdico por vários autores 5,6. Outros agentes virais cardiotrópicos, como o cito284
megalovírus, podem ser encontrados com freqüência nas
miocardites das crianças 13,14. A presença do vírus EpsteinBarr é um fator preditivo de insuficiência cardíaca crônica 15.
Tivemos dois casos com miocardite grave, sendo um por Toxoplasma gondii, a causa do óbito. Este agente é o protozoário mais freqüentemente associado a miocardites 16
O envolvimento pericárdico foi freqüente em nossos
casos, alguns com tamponamento cardíaco e outros com
miocardite concomitante. As causas descritas são as infecciosas (vírus, Criptococcus, Micobacterium tuberculosis
ou Avium, Staphilococcus aureus) 16,17. Em vários de nossos casos havia tuberculose e uma paciente teve tamponamento cardíaco por Microsporidium.
Apenas duas pacientes apresentaram vegetação em
válvulas cardíacas, sendo que em uma delas havia doença
reumática prévia. Neste grupo não ocorreu endocardite
trombótica não bacteriana (marântica), que tem sido descrita
como a mais freqüente nestes pacientes 4,16.
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Em nosso material foram diagnosticados vários casos com
miocardiopatia dilatada, que apresentaram baixos índices cardíacos. Destes, em alguns, houve melhora dos índices sistólicos e
redução dos diâmetros cavitários durante a internação. Foram
descritos vários casos de melhora das funções cardíacas em pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida após recuperação de alguns quadros infecciosos 18,19.
Durante infecções graves, alguns pacientes desenvolvem
quadro clínico de insuficiência cardíaca congestiva e parâmetros
ecocardiográficos de miocardiopatia dilatada 20. Sabe-se que durante estas infeções (virais ou bacterianas), há aumento dos níveis séricos de interleucinas que se correlacionam com a gravidade da doença 21. A interleucina 2 é produzida pelos linfócitos T,
sendo capaz de aumentar a toxicidade das células Killer que promovem a síntese de fator de necrose tumoral. Tanto a interleucina
2 como o fator de necrose tumoral promovem diminuição da fração de ejeção do ventrículo esquerdo 22,23. Recentemente Bryant
e cols. 24 usaram fator de necrose tumoral alfa e mostraram grave
prejuízo das funções cardíacas com dilatação biventricular e diminuição da fração de ejeção em ratos transgênicos.
Deste modo, muitos de nossos casos que evoluíram
com quadro clínico de insuficiência cardíaca congestiva
que ao ecocardiograma mostraram baixos índices sistólicos e à necropsia não havia lesões miocárdicas importantes, provavelmente sofreram os efeitos no coração daqueles mediadores durante as intercorrências infecciosas graves, e melhoraram após seu controle.
Concluímos que foram detectados vários casos com
alterações cardíacas graves que levaram ao óbito. Alguns
pacientes mostraram ao ecocardiograma sinais de miocardiopatia dilatada ou derrame pericárdico e eram assintomáticos.
Na maioria dos casos houve correlação muito boa entre os
dados clínicos e anatomopatológicos. Em outros, houve melhora das funções cardíacas com o tratamento da insuficiência cardíaca congestiva associado aos antimicrobianos e de
apoio. A avaliação cardíaca é importante, mesmo nos assintomáticos, para se surpreender alterações precoces e tratá-las.
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