ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA Processo n.º 2818-70.2010.811.0040 Vistos etc. 1. Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE PRECEITO COMINATÓRIO COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E MULTA COMINATÓRIA ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO em face do MUNICÍPIO DE SORRISO/MT e do ESTADO DE MATO GROSSO (qualificados nos autos). 2. Narra o autor que a assistida Rosalina Vanzetto, usuária do SUS, possui enfermidade denominada retinopatia diabética e catarata, que lhe vem ocasionando baixa acentuada de acuidade visual de ambos os olhos. 3. Informa que a paciente necessita se submeter à realização do exame de angiofluoresceinografia ocular, conforme prescrito pelo oftalmologista Dr. Antonio Vilmar P. Alves. Segundo narra o membro do Parquet, por ocasião do comparecimento da paciente à Secretaria Municipal de Saúde de Sorriso/MT para agendamento do procedimento, foi informada que não há previsão para realização do exame, o que foi ratificado pelo Município em resposta ao ofício enviado pela Promotoria de Justiça. 4. Em síntese sustenta que a omissão estatal relativa à não prestação do exame atenta contra a garantia constitucional da saúde, bem como contra o princípio da dignidade da pessoa humana, motivo por que formulou os pedidos insertos nos itens “k (1-8)” usque “n” de fls. 54/57. 5. À inicial, fls. 08/58, foram coligidos os documentos de fls. 59/67. WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 2 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 6. Tutela de urgência deferida parcialmente às fls. 70/75. 7. Citado (fl. 91), o Município de Sorriso contestou o ação às fls. 92/108. Em sede de preliminar argumentou a ilegitimidade ativa do Ministério Público para propor a presente demanda por se tratar de direito individual que fugiria das atribuições institucionais do órgão previstas na Constituição. No mérito postulou pela improcedência dos pedidos com base na aplicação do princípio da reserva do possível, bem como alegou que a prolação de uma decisão em desfavor da municipalidade por parte do juízo feriria os princípios da separação dos poderes – por se tratar de matéria afeta exclusivamente ao Poder Executivo – e da legalidade – posto que criaria despesa não prevista no orçamento público, e, também, por que o fornecimento de tratamento médico não consta no rol previsto na portaria n.º 2.577/2006, do Ministério da Saúde. 8. Suscitou, também, o chamamento da União ao processo, nos termos do art. 77, da Lei Adjetiva Civil, pleito que deve ser indeferido nos termos em que se verá adiante. 9. O Estado de Mato Grosso foi citado à fl. 213, tendo apresentado contestação às fls. 109/117. Em sede de preliminares pleiteou a extinção do feito, sob a alegação de ilegitimidade ativa do Ministério Público. No mérito, baseou-se na tese de que a prescrição de tratamentos, de caráter excepcional, de alto custo ou não, tem natureza jurídica de ato médico, não podendo ser imposto ao Estado, porque despido do atributo de coercitividade, afirmando que tal fato violaria os arts. 2º e 5º, caput, 60, § 4º, III, 194, parágrafo único, inciso I e 196/197 da Carta Magna. Por fim, alegou, ainda, a aplicação do princípio da reserva do possível, opondo-se, também, à multa cominatória e aos honorários advocatícios. 10. O Ministério Público apresentou impugnação às objurgatórias às fls. 119/166 e 167/206. WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 3 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 11. Vieram-me os autos conclusos. É o breve RELATÓRIO. FUNDAMENTO e DECIDO. 12. Trata-se, como visto linhas volvidas, de AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE PRECEITO COMINATÓRIO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. MEDIDA LIMINAR ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO em face do MUNICÍPIO DE SORRISO/MT e do ESTADO DE MATO GROSSO (adrede qualificados). 13. Quanto ao chamamento da União para integrar a lide, sem perder de vista que se trata de hipótese de competência comum entre os entes da federação, conforme determina o art. 23, II, da Carta Política de 1988, vislumbro, por um prisma processual, a ocorrência de litisconsórcio passivo facultativo, posto que, tendo em vista que cada unidade da federação possui legitimidade autônoma, tendo, portanto, o dever de satisfazer a prestação exigida independentemente de outras pessoas políticas, cabe ao autor escolher de quem exigirá a prestação em juízo. 14. Não é outro o entendimento do egrégio Tribunal de Justiça de Mato Grosso acerca do tema: “RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – MINISTÉRIO PÚBLICO – MEDICAMENTO – COMPETÊNCIA SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS – ARTIGO 23, INCISO II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CHAMAMENTO AO PROCESSO DA UNIÃO – ARTIGO 77 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – SUS – DESCENTRALIZAÇÃO – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO - DECISÃO MODIFICADA. O artigo 23, inciso WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 4 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA II da Constituição federal estabelece competência comum entre a União, Estados e Municípios em relação à saúde. O Sistema Único de Saúde é um órgão com base na descentralização, com direção única das secretarias estaduais em cada Município ou Estado da Federação, de sorte que o fato da União Federal ser responsável pela importação e registro do referido medicamento não impõe sua incorporação no pólo passivo da demanda e nem retira a lide do núcleo de competência da Justiça Estadual. Inadmissível o chamamento ao processo da União, pois não estão presentes as possibilidades contidas no artigo 77 do Código de Processo Civil.” (TJ/MT – 3ª Câmara Cível – Agravo de Instrumento n.º 66554/2009 – Rel. Des. Evandro Stábile, j. 05/10/2009 – grifamos) “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS –CHAMAMENTO DA UNIÃO AO PROCESSO – IMPOSSIBILIDADE ANTE A AUSÊNCIA DE QUAISQUER DOS REQUISITOS CONTIDOS NO ARTIGO 77, INCISOS I A III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO. Ante a responsabilidade solidária entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, quaisquer um desses, possuem legitimidade para figurar no pólo passivo da demanda. Uma vez que não estão presentes no caso em tela os requisitos contidos na inteligência do artigo 77, I a III do Código de Processo Civil, não há que se falar em chamamento ao processo.” (TJ/MT – 3ª Câmara Cível – Agravo de Instrumento n.º 40485/2009 – Rel. Dr. Antônio Horácio da Silva Neto, j. 06/07/2009 – grifamos) WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 5 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 15. Isto posto, indefiro o pleito de chamamento da União ao processo. 16. O exame dos autos demonstra ser cabível à espécie o julgamento antecipado da lide, ex vi do art. 330, I, do Código de Processo Civil, vez que toda a prova necessária ao julgamento do feito já se encontra nos autos, inocorrendo a necessidade de dilação probatória. Ademais, em tais casos, reza a jurisprudência: “Presentes as condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz, e não mera faculdade, assim proceder.” (REsp 2.832-RJ, STJ, 4ª. Turma, DJU de 17.09.90) “Processo civil – Cerceamento de defesa – Julgamento antecipado da lide. Inexiste cerceamento se os fatos alegados haveriam de ser provados por documentos, não se justificando a designação de audiência.” (REsp 1.344RJ, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU de 4.12.89) 17. Tecidas essas considerações, passo a examinar a questão isagógica suscitada pelos demandados. 18. Não assiste razão aos requeridos em relação à ilegitimidade do Ministério Público para formular os pedidos em debate em favor do Srª. Rosalina Vanzetto. 19. Isso por que a tese apresentada olvida as atribuições constitucionais do órgão estabelecidas no art. 127, da Magna Carta de 1988, in verbis: “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindoWANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 6 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” (grifo nosso) 20. O texto constitucional é claro ao atribuir ao Ministério Público a incumbência de zelar pelos direitos individuais indisponíveis. In casu, o direito para o qual se busca a tutela é o direito à saúde, que irrefutavelmente sustenta natureza de direito fundamental, portanto, irrevogável, irrenunciável, inalienável, intransmissível e indisponível. 21. Sem prejuízo, o direito à saúde é, também, direito social, cuja tutela cabe ao Parquet nos termos da disposição supra, assim definido no texto constitucional: “Art. 6o. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifamos) 22. Outrossim, é função institucional do Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, nos termos do art. 129, II, da Constituição Cidadã de 1988, hipótese perfeitamente aplicável ao caso. 23. Ademais a jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça de Mato Grosso assenta-se no mesmo sentido: “REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS À PESSOA NECESSITADA – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 7 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA MINISTÉRIO PÚBLICO E EXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO – REJEIÇÃO – MÉRITO – COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA E PATOLOGIA (MENINGITE) – OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS DE FORNECER OS MEDICAMENTOS NECECESSÁRIOS AO TRATAMENTO DA SAUDE – DEVER CONSTITUCIONAL – SENTENÇA RATIFICADA. A teor dos artigos 127 e 129 da CF/88, o Ministério Público detém legitimidade ativa para ajuizar ações em defesa de direitos individuais indisponíveis, tal qual o direito à vida e à saúde dos hipossuficientes. O Município, Estado e a União são solidariamente responsáveis por resguardar a garantia fundamental à saúde, razão pela qual pode a parte demandar contra um ou todos entes federativos, não havendo falar em litisconsórcio necessário, inteligência do artigo 196 da CF/88. Restando comprovado nos autos a hipossuficiência e a patologia à qual se encontra acometida o autor/representado, resta incontestável o seu direito de receber do Município os medicamentos necessários ao seu tratamento, uma vez que nos termos do artigo 196 da CF/88 a saúde é direito de todos e dever do Estado (entes federados), cabendo a este garantir aos cidadãos o fornecimento de medicamentos indispensáveis para manutenção e tratamento da saúde.” (TJ/MT – 4ª Câmara Cível – Reexame Necessário n.º 16360/2009 – Rel. Drª. Marilsen Andrade Addario, j. 25/05/2009 – grifamos) “REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇA – RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL NA DEFESA DE INTERESSE WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 8 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA INDIVIDUALIZADO E IDENTIFICAVEL – REJEITADA – PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO – REJEITADA – AÇÃO COMINATÓRIA PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER DIREITO À VIDA E À SAÚDE – GARANTIA CONSTITUCIONAL – DEVER DO ESTADO – O APELADO É PORTADOR DA DOENÇA DIABETES MELLITUS – NECESSIDADE DO MEDICAMENTO INSULINA HUMALOG LISPRO – NEGATIVA DE COBERTURA – ILEGALIDADE – NÃO CONHECIMENTO DO REEXAME – RECURSO IMPROVIDO. Dispõem os parágrafos 2º e 3º do artigo 475 do Código de Processo Civil, que não há necessidade de submissão ao reexame a sentença prolatada desfavoravelmente à União, Estado, Distrito Federal, Município e às respectivas autarquias e fundações de direito público, quando o valor concretamente envolvido na causa não superar 60 (sessenta) salários mínimos. É de ser reconhecida a legitimidade do Parquet para a defesa de interesses individuais indisponíveis, conforme se verifica do artigo 127 da CF/88. Todos os entes públicos que compõem a organização federativa têm responsabilidade solidária, portanto, o Estado de Mato Grosso tem o dever de fornecer medicamentos àqueles que não têm como adquiri-los em farmácia ou drogarias. Todo cidadão tem direito à vida e à saúde, tal como previsto no artigo 6° e artigo 196 da Constituição Federal, bem como em seu artigo 197, que estabelece a relevância pública nas ações e serviços de saúde. Por isso, o Estado deve prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.” (TJ/MT – 4ª Câmara Cível – Apelação/Reexame WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 9 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA Necessário n.º 33396/2009 – Rel. Desª. Clarice Claudino da Silva, j. 14/09/2009 – grifamos) 24. Nestes termos, rejeito a questão isagógica arvorada. 25. Quanto ao mérito da demanda, de proêmio, deve-se ressaltar que os demandados não se voltam contra a alegada necessidade da realização do exame postulado pelo demandante e, tampouco, questionaram sua responsabilidade pela prestação da saúde, posto que o primeiro requerido se levanta apenas contra a divisão da responsabilidade sem negar a parte que lhe toca, o que torna os fatos incontroversos neste sentido. 26. Conforme relatado alhures, evocou-se o princípio da reserva do possível para justificar a omissão Estatal, numa tentativa de infundir a ideia de que o Estado não está obrigado a prestar o serviço posto em discussão nos autos ante a impossibilidade econômica e financeira de atendêlo, entendimento com o qual não pode comungar o Poder Judiciário. 27. Há que se elucidar que, embora o Estado esteja obrigado a buscar um sem fim de finalidades que lhe são impostas pelo texto constitucional e pelas leis infraconstitucionais, fato inafastável é que a saúde é serviço público de primeira necessidade que deve sempre ter a preferência do administrador público. 28. Deve-se ter em mente, também, que o direito à saúde é, senão o principal, um dos direitos de prestação primordiais, consagrado pelo legislador constituinte, plenamente exercível contra o Estado, aqui entendido em sentido amplo, abarcando quaisquer dos entes da federação. 29. Essa disposição é ululante no texto da Carta Política de 1988, ante o enunciado de seu art. 6º, in verbis: WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 10 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 30. Em redação específica, a Magna Carta traz a saúde como imposição ao Estado, que deve buscar medidas de potencialização da saúde pública por meio da prevenção de mazelas que atentem contra a saúde da população, expressa na seguinte forma: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (grifo nosso) 31. Como se pode verificar, a Constituição direciona a ação do administrador público no sentido de promover ações que visem o acesso universal à saúde, bem como sua promoção, proteção e recuperação. 32. A saúde, é, em verdade, direito fundamental consagrado ao indivíduo, decorrente do direito à vida, que tem como pano de fundo a dignidade da pessoa humana, que, por sua vez, ocupa papel central no texto constitucional por configurar o núcleo axiológico de toda a Constituição. 33. Dessa forma, não pode o Estado esconder-se atrás da alegação de impossibilidade de prestação da saúde ante a multiplicidade de objetivos que lhe são impostos, utilizando-se deste argumento como escudo em face da oposição por parte do cidadão de direito que lhe é garantido pela Constituição da República. 34. Neste sentido, vejamos o seguinte pronunciamento do egrégio Tribunal de Justiça deste Estado: WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 11 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA “AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – OBRIGAÇÃO DO ESTADO. 1. Não se mostra imprescindível ao ajuizamento da demanda o prévio indeferimento administrativo, na medida em que o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal prescreve que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 2. A responsabilidade pelo fornecimento de medicamentos é solidária entre União, Estados e Municípios. Eventual deliberação a respeito da repartição de responsabilidade compete unicamente aos entes federativos, a ser realizada em momento oportuno, tendo em vista a solidariedade existente entre todos, não podendo o particular ter limitado seu direito à saúde, garantido constitucionalmente, por ato da Administração Pública. 3. Eventuais limitações ou dificuldades orçamentárias não podem servir de pretexto para negar o direito à saúde e à vida garantido nos dispositivos constitucionais, não havendo que se cogitar, desse modo, da incidência do princípio da reserva do possível, dada a prevalência do direito em questão. 4. Não há que se falar em violação ao princípio da separação dos poderes, porquanto ao Judiciário compete fazer cumprir as leis. 5. A ausência de risco efetivo de morte não é justificativa para que o ente municipal não forneça o medicamento pleiteado, tendo em vista a garantia constitucional ao direito à saúde. O atestado médico juntado aos autos é prova suficiente para comprovar a necessidade, pois o médico que acompanha o caso tem melhores condições de indicar o procedimento adequado.” (TJ/MT – 6ª Câmara Cível – Agravo de Instrumento n.º 46935/2009 – Rel. Drª. Helena Maria Bezerra Ramos, j. 19/08/209 – grifamos) WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 12 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 35. Insta, também, ressaltar que não há se falar em lesão ao princípio da separação dos Poderes por invasão do mérito administrativo. 36. A saúde, conforme dito alhures, é serviço público preferencial, sendo, portanto, atividade material do Estado, estando, por consectário, limitado por todos os princípios que regem a Administração Pública. 37. Nesse diapasão, aqueles direitos que Georg Jellinek convencionou chamar de direitos de prestação (apud ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, passim.), devem ser oferecidos à população balizados pelo princípio da eficiência, estampado no art. 37, caput, da Magna Carta de 1988. 38. Disso decorre que a saúde deve ser prestada de acordo com os parâmetros de alcance de resultados ótimos, presteza e eficácia. 39. Sobre o assunto, assim consta na doutrina: “Eficiência tem como corolário a boa qualidade. A partir da positivação deste princípio como norte da atividade administrativa, a sociedade passa a dispor de base jurídica expressa para cobrar a efetividade do exercício de direitos sociais como a educação, a saúde e outros, os quais têm que ser garantidos pelo Estado com qualidade ao menos satisfatória.” (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Princípio da eficiência. In: ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p. 111.) 40. Assim sendo, a análise do Judiciário não incide sobre a oportunidade e conveniência da prática administrativa, mas sobre sua WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 13 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA legitimidade ou não, motivo por que cabe ao Poder Judiciário declarar a nulidade de atos que, fugindo à razoabilidade, molestam o princípio da eficiência, ou, como no caso em apreço, pelas mesmas razões jurídicas, determinar que se faça ou deixe de fazer alguma coisa em prol da eficiência. 41. In casu, não se pode aceitar como razoável a atuação da Administração Pública Municipal e Estadual que deixam de fornecer exame médico necessário ao tratamento do indivíduo que sucumbe diante da chaga de que sofre, motivo por que a atuação negativa do Poder Público retratada se mostra flagrantemente ilegítima. 42. Outrossim, tenho que a prestação da saúde é atividade vinculada do administrador público e não discricionária, ou seja, não cabe a ele, baseado em critérios de conveniência e oportunidade, decidir pela satisfação ou não do direito à saúde de que necessita o administrado, haja vista que tal imposição decorre diretamente do texto constitucional, mormente em razão de o direito em discussão tratar-se de direito fundamental. 43. Os direitos fundamentais são, em regra, normas constitucionais, nos dizeres de José Afonso da Silva, de eficácia plena, “aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular. (1982, p. 89-91, apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Atlas. 2000, p. 39.) 44. Dessarte, sendo a prestação a saúde imposição vertida diretamente da Constituição da República, obviamente o mandamento judicial que compele o Poder Público à prestá-la não poderia ferir o princípio da separação dos Poderes ou da legalidade, conforme alegou o primeiro requerido. WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 14 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 45. Outrossim, analisando o caso por um prisma processual, ao invocar a reserva do possível, o demandado atrai para si o ônus da prova acerca da impossibilidade de oferecer a prestação aqui requerida, nos termos do art. 333, II, da Lei Processual Civil, o que possibilita a análise da razoabilidade de sua atuação. 46. Assim, em análise dos autos não se constata a juntada de qualquer documento na busca de produzir provas neste sentido, fato que corrobora a procedência da pretensão posta em análise. 47. Por fim, insta consignar a constatação feita pelo Ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal, ao tratar da obrigação do Estado na prestação da saúde, na oportunidade em que foi o relator das Suspensões de Tutela (STA) 175, 211 e 278; das Suspensões de Segurança 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; e da Suspensão de Liminar (SL) 47, de que o problema da judicialização da saúde se dá, na maioria das vezes, como no caso em tela, pelo não cumprimento das políticas públicas de saúde já estabelecidas por parte dos administradores públicos (Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/ms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=12 2125>. Acesso em 31/03/2010): “Assim, levando em conta a grande quantidade de processos e a complexidade das questões neles envolvidas, convoquei Audiência Pública para ouvir os especialistas em matéria de Saúde Pública, especialmente os gestores públicos, os membros da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia da União, Estados e Municípios, além de acadêmicos e de entidades e organismos da sociedade civil. Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 15 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas. Esse foi um dos primeiros entendimentos que sobressaiu nos debates ocorridos na Audiência Pública- Saúde: no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.” (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ar quivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA175.pdf>. Ace sso em: 31/03/2010 – grifo do autor) 48. No que tange à cominação de multa diária em caso de descumprimento injustificado da obrigação imposta à Fazenda Pública, entendo ser cabível o respectivo meio coercitivo para impor aos demandados o cumprimento na obrigação de realizar o procedimento buscado na presente actio. 49. Gizadas essas razões de decidir, a procedência dos pedidos se impõe. 50. Ante o exposto e atendendo a tudo mais que dos autos consta, julgo procedentes os pedidos inseridos na peça vestibular, ex vi do art. 269, I, do Estatuto Processual Civil, para condenar solidariamente os requeridos: a submeter a substituída ao exame de angiofluoresceinografia WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 16 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA ocular, a ser realizado em hospital da rede pública de saúde (SUS), neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponível o exame médico preconizado; a submeter a paciente ao referido exame em hospital da rede privada, vinculado ou não ao SUS, neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponível o exame médico que ora são obrigados a prestar, no caso de indisponibilidade de vagas no SUS; a garantir à paciente, caso necessário, a realização de eventuais outros exames prescritos durante seu tratamento médico, a serem realizados em hospital da rede pública de saúde (SUS), neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponíveis referidos exames; a submeter a substituída, caso necessário, a realização de eventuais outros exames prescritos durante seu tratamento médico a serem realizados em hospital da rede privada, vinculado ou não ao SUS, neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponível tais exames, no caso de indisponibilidade de vagas no SUS; a submeter a paciente, caso necessário, a procedimento cirúrgico eventualmente indicado pelo especialista, a ser realizado em hospital da rede pública de saúde (SUS), neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponível referida cirurgia; a submeter a substituída, caso necessário, a procedimento cirúrgico eventualmente indicado pelo especialista, a ser realizado em hospital da rede privada, vinculado ou não ao SUS, neste município ou em outra localidade, dentro ou fora do Estado, em que disponível a cirurgia, no caso de indisponibilidade de vagas no SUS; a disponibilizar à paciente recursos e medidas necessárias para garantir seu deslocamento até a unidade de saúde (pública, conveniada ou privada) disponível, fornecendo-lhe o valor do transporte (ida e volta) e ajuda de custo (utilizando-se da tabela de composição de valores de procedimentos SUS); tudo sob pena de pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), nos termos do art. 11, da Lei n.º 7.347/85, c.c. art. 461, §4º, do Digesto Processual Civil, tornando definitiva a decisão de fls. 70/75. WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara 17 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE SORRISO PRIMEIRA VARA 51. Sem condenação ao pagamento de custas e honorários, vez que incabíveis à espécie. 52. Decorrido o prazo recursal, arquivem-se os autos, procedendo-se às baixas de estilo e anotações de praxe. Publique-se. Registre. Intime-se. Cumpra-se. Sorriso/MT, 21 de fevereiro de 2011. WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara WANDERLEI JOSÉ DOS REIS Juiz de Direito da 1ª Vara