Mamíferos em foco

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PRIMEIRA
LINHA
Mamíferos em foco
PRIMEIRA
LINHA
ECOLOGIA Equipamento simples idealizado no país permite fotografar animais à noite
70
Os estudos sobre a fauna silvestre envolvem algumas dificuldades, como observar animais de hábitos
noturnos, o que acontece com a maioria dos mamíferos. Para resolver o problema, alguns pesquisadores
usam câmeras fotográficas sofisticadas, de alto custo, que registram imagens dos animais à noite. Um
equipamento mais simples, idealizado no Brasil, pode facilitar o acesso a esse tipo de aparelhagem. Por
Manoel dos Santos Filho e Sebastião dos Santos, da Universidade do Estado de Mato Grosso, e Maria
Nazareth F. da Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
números animais da fauna brasileira estão ameaçados de extinção ou são cada vez mais raros, o
que aumenta a necessidade de realizar estudos ecológicos que permitam conhecer em detalhes como
vivem e qual a melhor estratégia para sua preservação. Tais pesquisas, no entanto, devem empregar métodos que minimizem ou evitem o estresse da captura e do manuseio dessas espécies. No caso dos estudos com mamíferos silvestres, os hábitos crepuscu-
I
A
B
Figura 1. Felinos ameaçados de extinção,
como a jaguatirica (A) e a onça-parda (B), foram
fotografados com o novo equipamento
na Estação Ecológica Serra das Araras
7700 •• CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE •• vvooll.. 3311 •• nnºº 118833
lares ou noturnos da grande maioria desses animais
dificultam ainda mais as amostragens de suas populações ou o acompanhamento de seus movimentos.
Em função desses problemas, a maior parte das
informações sobre esses animais é obtida através de
vestígios como fezes, pegadas, restos de alimentos,
vocalizações e outros. Também são utilizados, em
algumas pesquisas, equipamentos fotográficos que
captam imagens noturnas (ver ‘Flagrante animal’,
em CH nº 162), mas essa aparelhagem, em geral
importada e de alto custo, é inacessível para a maioria dos pesquisadores.
Essa situação, porém, pode mudar em breve,
graças ao desenvolvimento de um equipamento fotográfico de custo menor e com excelentes resultados.
A nova câmera foi idealizada durante estudos do uso
do hábitat por mamíferos na Estação Ecológica Serra
das Araras, em área de cerrado perto da cidade de
Cáceres (MT), no mestrado de um dos autores deste
artigo (Manoel dos Santos Filho) no Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa), entre 1998 e 2000.
A aparelhagem permitiu registrar imagens de 17
espécies de mamíferos e cinco de aves. Animais raros como anta (Tapirus terrestris) e cateto (Pecari
tajacu), e até alguns incluídos na lista oficial das espécies ameaçadas de extinção no país, como onçaparda (Puma concolor), jaguatirica (Leopardus
pardalis), tamanduá-bandeira (Myrmecophaga
tridactyla) e tatu-canastra (Priodontes maximus), foram flagrados à noite na região (figura 1). O sistema
pode ser montado por qualquer pessoa, custa um terço do preço dos importados e é ideal para pesquisadores com pouca disponibilidade de recursos.
PRIMEIRA
PRIMEIRA
Calor do animal dispara a câmera
Sensor infravermelho
Câmera fotográfica
Placa de
proteção
Bateria
(12 volts)
Caixa de proteção
Eletroímã
Temporizador
Fio tripolar
Figura 2. Esquema da montagem dos principais
elementos do equipamento fotográfico,
dentro da caixa de proteção
Fio tripolar
Sensor infravermelho
Caixa com
a câmera
1,3 m
O sistema é montado em uma caixa de acrílico com
tampa, para evitar a exposição dos seus elementos
principais ao Sol e à chuva. Essa caixa é presa a uma
haste de metal, que serve como suporte da aparelhagem e permite sua fixação no local onde serão
obtidas as fotografias. A caixa tem uma abertura na
parte onde será fixada a câmera, para que a lente e
o flash fiquem desobstruídos, e essa abertura é
coberta por uma placa de latão galvanizado, também para proteção contra os fenômenos climáticos.
Dentro da caixa (figura 2) são fixados quatro elementos: uma câmera fotográfica (amadora, com avanço automático e flash embutido), uma bateria de
12 volts e 7 ampères, um circuito temporizador
(que determinará o intervalo de tempo entre as fotografias) e um eletroímã (para o dispositivo que
acionará o disparador da câmera). A bateria fornece
energia ao temporizador e ao eletroímã. Este último é ligado, por um cabo tripolar, a um sensor
infravermelho, que capta o calor do corpo dos animais que se aproximam dele. O sensor é instalado,
preso a uma haste, sobre uma trilha ou uma ‘isca’,
onde os animais serão fotografados.
A câmera, a bateria e o temporizador são encontrados no comércio. Já o eletroímã pode ser montado
facilmente. Usa-se um tubo oco de ferro com 0,7 cm
de diâmetro e 4 cm de comprimento (foi usada no
protótipo parte de uma antena de rádio), previamente encapado com fita isolante, deixando as extremidades abertas. Em volta do tubo, são enrolados
fios de cobre envernizados (nº 27), em uma espiral
(um solenóide, ou bobina) com cerca de 350 voltas.
Essa estrutura forma um eletroímã. No interior desse tubo, é inserido um pino de ferro com 4 cm de
comprimento e diâmetro variável: 0,6 cm em três
quartos do seu comprimento (3 cm) e 0,3 cm no
trecho final. Essa parte com diâmetro menor é
LINHA
Haste para fixação
Isca
2,5 m
Figura 3. Disposição no campo do sistema de captação
de imagens noturnas, que reúne a câmera e um sensor
infravermelho
revestida com um tubo plástico de 1,5 cm de comprimento, e deve ficar voltada para o disparador da
câmera. Finalmente, o eletroímã é fixado firmemente na caixa, em posição perpendicular ao disparador.
A operação do equipamento
é simples (figura 3). A caixa com
a câmera deve ser bem fixada no
local escolhido, a 2,5 m do ponto
situado sob o sensor infravermelho (posicionado a 1,3 m do
solo, com o auxílio de uma haste). Ligado, o equipamento é deixado na mata. Quando um animal chega ao ponto focado, o calor do seu corpo é captado pelo
sensor, que ativa o circuito elétrico (figura 4). A energia aciona
o eletroímã, fazendo o pino descer e apertar o disparador. O
tempo entre uma fotografia e outra – cinco, 10, 15 ou 20 segundos – pode ser regulado no temporizador, permitindo a recarga
do flash entre dois acionamentos
da câmera. Esse intervalo permanece constante mesmo se o
animal continuar ao alcance do
sensor.
Dependendo do modelo de
câmera fotográfica escolhida pelo
pesquisador, podem ser registradas data e hora da fotografia.
Como a câmera é apenas fixada
na caixa, não precisa ser modifiFigura 4. As imagens noturnas
cada em nada. Outros pesquisaobtidas confirmaram a presença
dores já estão realizando pesquide animais como tatu-canastra,
sas com esse equipamento fotocateto e anta (na ordem)
gráfico simplificado.
■
no local pesquisado
jjuunnhhoo ddee 22000022 •• CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE •• 7711
PRIMEIRA
LINHA
ECOLOGIA Estudo avalia como certas plantas reagem a queimadas em fragmentos de mata atlântica
Palmeiras, fogo
e sobrevivência
Endêmica da mata atlântica, a palmeira pindoba (Attalea humilis) reage ao fogo posto pelo homem de acordo
com o estado de perturbação da área de floresta em que vive. Estudos em pequenos fragmentos de floresta,
no Rio de Janeiro, verificaram que as populações dessa palmeira são mais instáveis em fragmentos menores
e mais impactados por atividades humanas, indicando que mesmo espécies capazes de resistir ao fogo
podem ter sua sobrevivência ameaçada em função das características do seu hábitat. Por Alexandre F. Souza
e Fernando R. Martins, do Departamento de Botânica da Universidade Estadual de Campinas.
s florestas tropicais, que abrigam grande parte da biodiversidade do planeta, vêm sendo
destruídas nas últimas décadas, em ritmo cada vez
mais acelerado, pelas atividades humanas. A destruição substitui as paisagens tropicais de florestas
contínuas, por um mosaico de plantações, pastos e
cidades. Restam, nessas paisagens modificadas, ape-
A
Figura 1. Indivíduo da pindoba (Attalea humilis)
na fase reprodutiva, no interior da floresta,
e área de ocorrência da espécie
nas fragmentos florestais, em geral pequenos e sujeitos a impactos de origem humana como a caça, a
extração de madeira e os incêndios.
Essa situação é particularmente crítica na mata
atlântica, uma das mais ricas do mundo em espécies
vegetais e animais, hoje reduzida a menos de 5% de
72 • CIÊNCIA HOJE • vol. 31 • nº 183
sua área original. Fragmentos florestais são muito
importantes, porque mantêm muitas espécies que já
não existem no restante da paisagem, de dominação
humana. Conhecer o comportamento das espécies
em fragmentos de diferentes tamanhos e sua resposta aos impactos humanos é fundamental para
preservá-las. Com esse objetivo, uma série de trabalhos recentes – financiados pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo – avaliou a resposta das populações da palmeira
pindoba (Attalea humilis) ao fogo posto pelo homem.
Essa palmeira é encontrada nas
planícies e colinas litorâneas, do sul
da Bahia ao norte de São Paulo (figu-
PRIMEIRA
Fragmento
Área
Árvores/ha
Altura média
1
1,6 ha
426
7,6 m
2
6,4 ha
514
9,4 m
3
9,9 ha
797
9,3 m
Obs.: Apenas árvores com diâmetro maior que 10 cm
Figura 2. O estudo foi realizado em um conjunto
de fragmentos florestais – o ‘Arquipélago dos
Barbados’ – da Reserva Biológica de Poço das Antas
ra 1). Ela é endêmica da floresta ombrófila densa,
um dos muitos tipos de vegetação que compõem a
mata atlântica. Por ocorrer em uma área restrita e
precisar de um ambiente com condições peculiares, as espécies endêmicas, como a pindoba, são seriamente ameaçadas pela destruição de seu hábitat.
A pindoba é uma palmeira com caule subterrâneo,
ficando expostas apenas as enormes folhas, com
comprimento de até 7 m.
O estudo foi realizado na Reserva Biológica de
Poço das Antas, no município de Silva Jardim (RJ),
entre 1996 e 1999. Essa reserva, com cerca de 5 mil
hectares (ha), é o principal refúgio do mico-leãodourado, espécie de primata ameaçada de extinção
e intensivamente estudada ali. Embora seja uma unidade de conservação, Poço das Antas contém grandes áreas abertas, dominadas pelo capim-colonião e
por outras gramíneas invasoras, resquícios das fa-
ILUSTRAÇÃO DE ALEXANDRE F. SOUZA
A
B
C
D
E
ILUSTRAÇÃO DE ALEXANDRE F. SOUZA
CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS FRAGMENTOS
zendas que ali existiam no passado.
Foram escolhidos para a pesquisa três
fragmentos de mata, situados em um
complexo de pequenos fragmentos conhecido como ‘Arquipélago dos Barbados’ (figura 2). No menor fragmento (1,6 ha), muito perturbado, predominavam árvores pioneiras, como a
embaúba (Cecropia sp.) e a grandiúva
(Trema micrantha). O de tamanho intermediário (6,4 ha) apresentava um
setor perturbado e outro bem preservado. No maior (9,9 ha), a floresta era
bem fechada. Em agosto de 1997, um
grande incêndio, iniciado em fazendas
vizinhas, queimou cerca de mil ha da
reserva, inclusive os fragmentos que
estávamos estudando.
Os frutos da pindoba, que originam
os novos indivíduos, são coquinhos
(figura 3) semelhantes ao conhecido
coco-da-bahia, mas bem menores. Eles
têm cerca de 4 cm de comprimento e apresentam
uma particularidade: só germinam quando enterrados no solo, porque o embrião morre se o fruto se
desidratar.
O ciclo de vida dessa curiosa palmeira tem fases
bem distintas (figura 4). Na primeira fase (plântula),
após a germinação, as folhas da pindoba são inteiras. Na segunda fase (juvenil), as folhas começam a
ficar bifurcadas. Na fase seguinte (imatura), as folhas já estão completamente segmentadas. Totalmente subterrâneo, o caule forma-se entre as fases de
plântula e imaturo: o tecido que produz as folhas e
flores (chamado de meristema apical e popularmente
conhecido como palmito) fica enterrado bem abaixo da superfície. A partir da fase de imatura, a planta produz folhas cada vez maiores, até o tamanho
máximo, quando apresenta uma copa esférica,
com cinco a sete folhas de até 7 m de comprimento. "
LINHA
Figura 3.
Os cachos
de coquinhos
da pindoba
formam-se junto
à base das folhas
– as barras de
escala equivalem
a 10 cm
F
Figura 4. As fases da vida
da palmeira são as de plântula (A e B),
juvenil (C), imatura e virgem (D e E),
nas quais o sistema subterrâneo se forma,
e reprodutivo (F) — as barras de escala
equivalem a 10 cm (figuras A a E) e a 1 m (figura F)
junho de 2002 • CIÊNCIA HOJE • 73
PRIMEIRA
LINHA
Setor preservado
Setor perturbado
A fase reprodutiva é atingida quando as flores e os
cachos de frutos formam-se entre as folhas, junto
ao nível do solo.
As plântulas sempre aparecem em agregados de
dois a quatro indivíduos, mas os adultos ocorrem
em geral espalhados na floresta. No setor mais perturbado do fragmento médio, porém, essa palmeira
formava densos agregados, com centenas de indivíduos (figura 5), mesmo padrão observado nos
pastos abandonados ao longo das estradas da região.
Apesar de todas as modificações ambientais presentes nas bordas dos fragmentos florestais, o estudo
não encontrou qualquer tendência de aumento ou
redução do número de palmeiras relacionada a essas bordas.
Graças ao sistema subterrâneo da pindoba, que
protege o meristema apical, a maioria dos indivíduos não morreu no incêndio de agosto de 1997,
mas perdeu suas folhas. Seis meses após o fogo, foi
constatada grande concentração de palmeiras na fase imatura. Por só germinarem em locais mais úmidos e protegidos, a maior parte das plântulas não foi
atingida pelo fogo, que tende a queimar trechos mais
abertos e secos da floresta.
O crescimento das populações foi analisado através de modelos matemáticos que consideram a probabilidade de uma planta em cada fase continuar
nela, crescer para a seguinte, regredir à anterior ou
reproduzir-se. Essas análises mostraram que há cerca de 200 palmeiras (em todas as fases de crescimento) no menor fragmento, cerca de 1.400 no
maior e cerca de 6 mil no intermediário (a maioria,
nesse caso, concentrada na área aberta e perturbada). Essas três populações mostraram diferentes tendências de crescimento: no fragmento menor, a população de palmeiras crescia rápido antes do fogo,
mas se estabilizou depois, enquanto no maior o nú-
74 • CIÊNCIA HOJE • vol. 31 • nº 183
Figura 5. Representação
da distribuição espacial
da pindoba em fragmentos
de mata atlântica: as plântulas ( )
formam agregados de poucos
indivíduos e os adultos ( )
ocorrem espalhados
(mas se concentram, em sua grande
maioria, nas áreas mais
perturbadas de cada fragmento)
mero permaneceu estável e, no
intermediário, diminuiu após o
incêndio.
Várias lições podem ser retiradas desses dados. A dispersão
dos coquinhos de A. humilis provavelmente é feita por roedores
de médio porte, como cotias, pacas e esquilos, que removem os
frutos das proximidades das plantas-mães e os enterram, originando os agregados de plântulas. Nas
florestas preservadas, a pindoba ocorre espalhada
pela mata e depende da abertura natural e ocasional
de clareiras para crescer até a fase adulta. Nessas
florestas (como no fragmento maior), o crescimento
lento e o longo tempo de vida mantêm um equilíbrio dinâmico entre as taxas de mortalidade e de
natalidade, e as populações permanecem estáveis.
A perturbação das florestas pelo homem aumenta a penetração da luz solar, o que acelera o crescimento das palmeiras. Dada a sua alta capacidade de
sobreviver ao fogo (e de aproveitar o aumento de
luminosidade e de nutrientes decorrente), a pindoba forma densos agregados nas áreas mais perturbados dos fragmentos. A ocorrência de sucessivos
incêndios, porém, favorece também a vegetação secundária, dominada por trepadeiras, bambus e árvores pioneiras, e essas espécies dificultam muito
o crescimento de palmeiras jovens, tanto através do
denso sombreamento que produzem quanto através
da ocupação física do espaço. Com isso, a pindoba
começa a ser eliminada do interior da floresta, fato
observado nos dois fragmentos menores. Como o fogo e a caça levam com freqüência à extinção local
dos animais dispersores dos coquinhos, a população pára de crescer, já que os frutos só germinam se
forem enterrados.
Esse cenário evidencia que mesmo espécies vegetais capazes de proliferar em fragmentos perturbados podem ser ameaçadas pelo tamanho reduzido
e pela grande perturbação de seu hábitat, o que muitas vezes inclui a extinção local dos dispersores de
sementes. Tal constatação reforça a grande necessidade de proteger, recuperar e conectar os fragmentos da mata atlântica ainda existentes, para salvar as
espécies de plantas e animais que eles mantêm. n
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