A violência exercida no poder da internação judicial Violência

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III CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL
A violência exercida no poder da internação judicial.
Relato de uma experiência clínica: o encontro musical como o lugar possível de não
alienação
Ana Irene Canongia
Pollyanna de Azevedo Ferrari
“Escrever é procurar entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento
que permaneceria apenas vago e sufocador (...)”.
(Clarice Lispector)
Como nos diz a poeta, o escrever favorece a busca do sentido, da compreensão,
da nominação. É o que buscamos, um logos para o transbordamento que por vezes
atravessa nossa prática clínica cotidiana.
Se por um lado a violência e o poder são inerentes à constituição psicopatológica
do humano, por outro essa tragicidade “natural” da subjetividade humana poderá chegar
à desmedida no exercício violento do poder em diferentes relações, sejam familiares,
institucionais, terapêuticas, jurídicas, se a dimensão subjetiva singular do adoecimento
psíquico for desconsiderada.
Nosso trabalho, a tentativa de construção de uma narrativa do caso a partir do
espaço melódico, dirá do desencontro-encontro com uma paciente internada por ordem
judicial, a pedido de seu curador, numa enfermaria psiquiátrica de pacientes agudos,
numa instituição pública, e sem indicação clínica para tal segundo a avaliação da equipe
de saúde mental.
A violência do poder-ato:
Consideramos esse fato como um ato de violência, uma vez que a determinação
da internação judicial se deu a partir da consideração de um único aspecto, qual seja o
de atender à vontade do curador sem que a outra parte, a paciente, fosse sequer ouvida e
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mesmo avaliada, e sem a equipe de saúde que a acompanhava tivesse sido consultada.
Nem a paciente nem a equipe sabiam do que estava em curso.
Por outro lado, o poder e a violência de um evento como este podem suscitar na
equipe hospitalar de saúde mental respostas de paralisação, de desistência, tendo como
efeito na assistência ao paciente, nas dimensões contratransferenciais/transferenciais
desse encontro, a cristalização do seu alienado funcionamento pathico, perpetuando-se a
violência do apagamento da dimensão subjetiva.
Não é do escopo deste trabalho abordar e problematizar os equívocos que muitas
das vezes o Poder Judiciário comete, tendo em vista não dispor de assessoria
especializada no momento mesmo em que são avaliadas e despachadas as petições.
Acreditamos, porém, que no presente caso uma assessoria especializada que contasse
com profissionais qualificados na área da saúde mental que conhecessem as leis que
tratam dos direitos do portador de transtorno metal poderia ter avaliado de forma
contextual a reivindicação do curador. Isso teria evitado uma decisão judicial que
considerou apenas a parte e não o todo desse complexo evento existencial.
Como dito acima, é por essa razão que o qualificamos de violento. Houve entre
outros pontos, a violação ao direito da paciente de ser ouvida, o que acarretou uma
distorção do que poderia ser uma melhor saída para os impasses familiares, que não a
internação manicomial. Por outro lado, o exercício da clínica que deveria ser soberano,
ficou subordinado ao exercício da Justiça. A indicação do procedimento de internação
não foi dada pela equipe de saúde mental a partir da avaliação conjunta com a paciente e
os familiares, mas determinada judicialmente.
Alguns dirão que há recursos legais que podem ser acionados pela
equipe/instituição hospitalar. Concordamos. No entanto, as providências legais que
foram e têm sido tomadas não conseguem interromper a longa permanência da paciente
– já são quase nove meses – numa enfermaria de pacientes agudos, possivelmente em
decorrência dos desdobramentos burocráticos e sua conseqüente morosidade. Viola-se a
visibilidade da pessoa.
A revolta:
Somos então convocados à revolta! Mas a que revolta?
Segundo Kristeva (1996, p.14-18), a palavra revolta contém uma polivalência,
uma plasticidade. Além do sentido político (rebelião), guarda em si a idéia de
movimento, tempo e espaço, ou seja, de descoberta, de deslocamento e de reconstrução
do passado, da memória e do próprio sentido. Ou seja, um movimento inserido no
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tempo do possível.
Nessa medida, a revolta traz a perspectiva da repetição, da
perlaboração, da elaboração, afinal a subjetividade é coextensiva ao tempo. Seguiremos
com essa dimensão e não naquela da revolta como transgressão da proibição.
Um pouco da pessoa Cíntia:
Cíntia, formada em letras, tem 55 anos de idade. Tem diagnóstico de transtorno
bipolar do humor e transtorno de personalidade histriônica. Foi internada por ordem
judicial, tendo em vista a argumentação do curador, apoiada no artigo terceiro da Lei
10.216, de que “é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde
mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos
mentais”. Entretanto, omitiu a continuação da frase, “com a devida participação da
sociedade e da família” e ignorou o artigo quarto que deixa clara a indicação, ou seja,
“quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.
Cíntia que é cadeirante – um dos membros inferiores foi parcialmente amputado
devido à doença vascular – estava inserida num CAPS onde, há cerca de seis anos,
vinha recebendo acompanhamento. Além do atendimento psiquiátrico, participava das
oficinas terapêuticas e estava em vias de desenvolver um projeto de geração de renda –
dar aulas de inglês. Também estava inserida no grupo de musicoterapia. Apresentou
nesse período, segundo nosso contato com a equipe do CAPS, progresso em relação à
autonomia e à redução do número de reinternações.
Na ocasião da internação judicial, Cíntia morava sozinha e recebia ajuda de uma
diarista já que seu companheiro, também portador de transtorno mental, há anos fora
impedido, pelo curador dela, de continuar morando com ela. Aliás, segundo o relato da
paciente e da equipe do CAPS, essa ruptura favoreceu certa descompensação de seu
quadro psicopatológico na direção dos actings. Por exemplo, numa das discussões com
seu pai, por causa daquela separação forçada, tentou atear fogo numa poltrona. Em
função da sua dificuldade de locomoção, e da descontinuidade da presença do
companheiro que a ajudava, passou a ter problemas para chegar ao CAPS.
O contexto do espaço internação:
Foucault (2007, p. 45) nos diz que a loucura vai ser reduzida ao silêncio através
de “um estranho ato de violência” qual seja, aquele da reclusão em casas especiais, ditas
terapêuticas, iniciada em meados do século XVIII, separando os doentes dos demais
indesejáveis à alta sociedade.
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Podemos constatar que, ainda hoje, tão distantes no tempo da Era Clássica
descrito por Foucault, testemunhamos atos que tentam silenciar a loucura, em que pese
o processo da reforma psiquiátrica em curso há 20 anos. A Lei 10.216, sancionada em
2001, trata dos direitos dos portadores de transtorno mental e do redimensionamento da
assistência psiquiátrica. Ou seja, como naquela época, a reclusão-exclusão ainda hoje é
reivindicada como solução para “os indesejáveis”.
Na internação, para além do sofrimento inerente ao próprio processo mórbido da
pessoa em crise, há o sofrimento resultante da ruptura dos seus laços afetivos, sociais e
de seus hábitos, sem mencionar que muitas vezes esse procedimento se dá em
instituições que ainda contam com algumas características da instituição total. Segundo
Goffman (2007, p. 11), a instituição total é definida como um local com grande número
de indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade, levando uma vida
fechada e formalmente administrada, isto é, há uma homogeneização das suas
necessidades, promovendo a massificação com conseqüente perda da individualidade e
diluição dos laços com o exterior.
Ou seja, como nos diz Moffatt (1980, p.15), a vida asilar produz amputações em
todos os níveis, e o paciente não possui o que possa ser sentido como próprio, sendo a
amputação mais dolorosa aquela da dignidade pessoal.
Portanto, inerente a esse
universo, no processo de reclusão-exclusão, temos a violência do apagamento da
singularidade.
Vale ressaltar, no entanto, que a internação pode ser um dispositivo terapêutico
necessário, desde que na lógica de um modelo hospitalar mais humanizado, que
preserve a individualidade e que seja pelo mais breve tempo possível. De acordo com o
artigo quarto da Lei 10.2160, a internação “em qualquer de suas modalidades, só será
indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.
A
humanização, por sua vez, se dá com ações simples, mas efetivas, como por exemplo o
uso de roupas próprias, o fato de o paciente dispor de um lugar para guardar os
pertences, de salas de convivência, jardins, além da previsão da presença de familiares
ou cuidadores junto aos pacientes no período da internação.
O possível do exercício clínico: a revolta
É nessa tessitura que conhecemos Cíntia e partimos para a revolta como
possibilidade de movimento criativo.
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Delineamos nosso trabalho de construção de uma abordagem da sua convocação
ao lugar de protagonista, de sujeito tanto do seu processo terapêutico, quanto do próprio
sofrimento e de seu destino em três momentos.
No início de nossos encontros, Cíntia estava sempre na cadeira de rodas, embora
dispusesse de uma prótese que, mesmo com certa dificuldade, lhe permitiria andar –
mas ela se recusava a usá-la.
Da mesma forma, recusava-se a entrar na sala de atendimento, e quando o fazia
ficava apenas alguns minutos para logo sair, alegando motivos diversos. Porém, no
decorrer do dia, pelos corredores da instituição, nos abordava demandando atenção e
escuta. Naquele momento dava a impressão de certa “diluição” do si mesmo na massa
de pacientes, não se importando com as interrupções e com o falatório em torno.
Numa das tentativas de que permanecesse no setting, foi utilizada a
argumentação de que esses encontros faziam parte do seu tratamento. Cíntia reagiu
muito enraivecida, afirmando que não precisava de tratamento, pois não estava louca e
ameaçou sair da sala. Seu dizer permitiu que entendêssemos que para ela o tratamento
estava vinculado à internação judicial. Então falamos que talvez aquele espaço privado
pudesse ser o lugar onde poderíamos conversar sobre a determinação judicial e sobre os
seus sentimentos, suas apreensões, suas mágoas. Ela voltou à sala e disse “eu queria que
meu pai tivesse pena de mim, e me tirasse daqui”.
Durante algumas semanas, foi aos encontros em cadeira de rodas, mas
gradativamente passou a usar a prótese e literalmente “colocou os pés no chão” como
cantou numa sessão.
Suas canções nessa primeira fase eram simples e a harmonia sugerida por sua
linha melódica era de dois acordes, sem tensão ou dissonância. Nas letras, pedia o amor
ou o perdão de seus pais de forma pueril. Essa era a visibilidade da sua “acomodação”,
digamos assim. Mantinha-se no lugar de ser levada, de ter seu caminho decidido e
traçado pelos outros. Campo fértil para a manutenção da alienação.
(será colocada a pauta )
“Pai, meu amigo meu guerreiro / És um ser humano verdadeiro/ Esta canção é
minha derradeira/Pedindo perdão e te amando/ Por favor, creia em mim/ É sincero o
meu pedido/ Preciso morrer ao teu lado”
Segue-se um segundo momento, em que adiciona mais notas em suas canções:
há tensão na harmonia e um retorno ao relaxamento. Verifica-se mudança da estrutura
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musical. Sai do lamento, sai do lugar, surge o movimento, a dinâmica. Cíntia começa a
esboçar uma saída do lugar de submissão em que se encontrava. Levanta-se de sua
cadeira, assim como levanta a voz. Nas letras cobra os seus direitos, negados. Não tem
mais dificuldade para manter-se na sessão: ao contrário, a dificuldade agora é para
interrompê-la, para finalizarmos a sessão.
(será colocada a pauta )
“(...) Quero me refazer, meu pai/ Me dê uma chance, meu pai/ De começar de
novo, meu pai/ Sou outra Cíntia, meu pai/ aprendi com a vida, paizinho/ Tem dó de
mim, meu pai/ Cinco meses aqui, meu pai/ Sem sexo e sem vida comum/ Me dê uma
chance, meu pai/ (...)/ Para que compreendas, meu pai/ Que não sou mais uma menina,
meu pai/ Sou uma mulher, que pensa, que sofre, que sente, que chora/ E que se
arrepende das coisas que fiz/ querendo uma chance/ (...)”
Nesse momento Cíntia começa a falar de seu passado. Rememora o início do seu
transtorno mental, há mais de 25 anos, os episódios maníacos, e o quanto negligenciou o
tratamento.
Chegamos ao terceiro momento intitulado de “nova Cíntia”, título de uma de
suas composições nesse período. Segue reivindicando, por meio de suas letras e
melodias, os seus direitos e, se auto-afirmando, cantou “quero dirigir o meu mundo”.
Sua linha melódica é enriquecida com mais notas, a mudança da estrutura musical vai se
organizando na direção de mais mobilidade, torna-se mais rebuscada, sugerindo tensão
na harmonia e nas letras que reivindicam respeito. Essa mudança aparece no samba que
compôs:
(será colocada a pauta )
“Sai, sai, pra lá/ Gente que não gosta de mim/ Sai, sai, pra lá/ Atrevidos e
afins/ (...) Eu sou mais eu/ Com uma perna e meia/ Sou bonita e sou faceira/ Com a
prótese fico inteira”.
Cíntia dá sinais em seu comportamento e mesmo nos seus dizeres, de uma
mudança subjetiva. Reconhece por exemplo que determinados comportamentos que
privilegiavam as ameaças, como por exemplo, como ameaçar atirar-se das escadas
porque o namorado/companheiro não foi visitá-la ou porque determinados familiares se
negaram a falar com ela ao telefone, apenas reforçam a argumentação da sua
incapacidade para uma vida extra-hospitalar.
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Assim, pela via musical, Cíntia vai aos poucos se historicizando. Fala das
relações familiares e reconhece a sua parcela de responsabilidade no difícil convívio
familiar. “Eu não era fácil, não existia barreira para mim, o que eu queria fazer eu fazia,
não importava nada, nem ninguém; talvez por isso eu esteja numa cadeira. Deus não
deu asa a cobra !.”
Segue compondo, se conhecendo, se reconhecendo, e novos caminhos se abrem
no espaço fechado da internação. Tem dado aulas de inglês para alguns companheiros
de internação e tem vendido alguns livros usados e doados: “ganho um dinheiro a mais
do que meus familiares me dão para comer na cantina”.
(será colocada a pauta )
“Eu sou uma nova Cíntia/ Muitas coisas mudaram dentro de mim/ Não dou bola
pro azar/ Eu agora vou ser assim/ Sou uma nova Cíntia/ Não dou bola pro azar/ Quem
quiser me aceite assim (...”).
Como é possível depreender, Cíntia tem utilizado a composição como forma de
expressar e de exteriorizar suas vivências internas. Suas composições que são
acompanhadas no violão pela musicoterapeuta, são gravadas e em seguida ouvidas
durante a sessão. Cíntia escuta suas canções e normalmente diz “ficou bonita”, mas
algumas vezes se espanta com alguns trechos “nossa, eu disse isso?”. Esses espantos
são tomados como vias de acesso, como aberturas na exploração do seu mundo interno.
O fazer musical tem favorecido a melhora da auto-estima, os insights e o seu
reposicionamento subjetivo, porque quando escolhe as notas, as palavras que utilizará e
ainda, o como e o que vai cantar, naquele momento o poder e o saber estão do seu lado.
Ela se apropria de si mesma, é “o poder de fazer ver e fazer crer, o poder de se fazer
tomar em consideração, o poder de falar e se fazer ouvir” (Bourdieu: 2000, p.4).
Outro exemplo desse apoderamento é quando por exemplo se apresenta aos
demais da instituição como compositora, ou quando resolve dedicar-se ao projeto
“Canções de Cíntia”, onde pretende fazer uma “autobiografia em tom de melodia” (sic),
com sua produção nas sessões.
E assim, na experiência-revolta, na experiência que resgata o movimento
criativo, vamos abrindo “espaços de negociação com a realidade” (BOLLAS, apud
COELHO JUNIOR, 2000, p. 104; o grifo é nosso) construindo possibilidades,
sobretudo subjetivas, enquanto a ordem jurídica não se abre para o singular.
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Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. “Sobre el poder simbólico”. In: Intelectuales, política y poder.
Tradução de Alicia Gutiérrez. Buenos Aires: UBA/ Eudeba, 2000. Disponível em:
http://sociologiac.net/biblio/Bourdieu_SobrePoderSimbolico.pdf. Acessado em 02 de
julho de 2008.
BRASIL, Lei n. 10.216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.
Disponível
em:
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei10216.pdf.
Acessado em agosto de 2006.
COELHO JUNIOR, Nelson “Percepções e destinos da percepção na psicanálise
freudiana”. In: Psicanálise e Universidade, Belo Horizonte: A.S.Passos, 2000.
FOUCAULT, Michael. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,
1995.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira
Leite. São Paulo: Perspectiva, 2007.
KRISTEVA, J. (1996) Sentido e contra-senso da revolta. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do Oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria
popular. São Paulo: Cortez Editora, 1980.
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