Nº35 Jan-Mar 2015 Pág. 10-13 Fernando de Pádua Presidente Honorário da Sociedade Portuguesa de cardiologia Professor catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa Presidente do instituto nacional de cardiologia Preventiva Presidente da Fundação Professor Fernando de Pádua Perspetiva histórica Os cardíacos no Trabalho Palavras-chave: Reabilitação cardíaca; Atividade física; Trabalho Tentei fazer Reabilitação cardíaca em 1987, no meu novo instituto nacional de cardiologia Preventiva então recentemente inaugurado, mas falhou – apesar da ajuda dos meus colaboradores Francisco correia Júnior e António Pais de Lacerda - por não ser comparticipado pelo SnS. ninguém se inscreveu. Propuseram-me fazer o meu histórico da reabilitação em Portugal. e eis que descobri a minha primeira conferência sobre o Tema, há 60 anos! Poucos de vós teriam já nascido em 1955 para me terem lido… Aqui vai! OS CARDÍACOS NO TRABALHO Palestra do Dr. Fernando de Pádua, proferida na reunião de 16 de Agosto de 1955 do Rotary Club de Lisboa Prezados Rotários: Primeiro que tudo uma saudação amiga para todos – há muito não tinha o gosto de comparecer a estas vossas reuniões, e é grande o prazer com que revejo os velhos amigos, e conheço os novos companheiros que entretanto foram entrando para o vosso clube. O assunto que me proponho tratar nesta breve dissertação – Os cardíacos no trabalho – 10 e que à primeira vista poderá parecer de somenos importância só interessando aos especialistas do coração, será, dentro de muito poucas décadas, um dos problemas mais prementes das sociedades civilizadas. Talvez seja novidade, excepto para os «aficionados» da cultura médica das «Selecções», que hoje em dia morre mais gente por doenças do coração do que por todas as outras doenças em conjunto (incluindo a tuberculose, o cancro, etc.) – quer dizer, as doenças do coração e dos vasos tornam-se na nossa era o inimigo público nº1. não significa isto que tenha surgido uma epidemia de doenças do coração – embora a extenuante vida moderna possa em parte contribuir. A verdadeira causa está em que os progressos da ciência têm permitido prolongar cada vez mais a média de vida, de forma que hoje a maior parte da população pode esperar ultrapassar a idade em que se tornam mais frequentes as doenças cardíacas. não quero sobrecarregá-los com estatísticas, mais ou menos indigestas no meio duma refeição – mas queria frisar que este aumento da duração média da vida faz que a percentagem de pessoas idosas e doentes seja cada vez maior, e que, portanto, para não sobrecarregar nem a família nem o estado, essas pessoas deverão, dentro do possível, ser capazes de angariar o seu próprio sustento. Põe-se aqui pois a primeira questão – poderão os doentes cardíacos trabalhar sem perigo para a sua saúde? É uma verdade, hoje já aceite por todos os cardiologistas, que grande parte dos cardíacos pode fazer uma vida praticamente normal, devendo tão-somente evitar os desportos mais esforçados ou os trabalhos mais violentos. Longe vai também o tempo em que se aconselhavam as jovens cardíacas a não casar e não ter filhos. Mas estas verdades conhecidas dos cardiologistas, não estão suficientemente espalhadas no público, e muitas vezes entre os próprios médicos. Frequentemente, num excesso de cuidado, a lesão cardíaca aparece de tal modo hipertrofiada aos olhos do médico e do doente, que este passa daí em diante a viver somente para o seu coração. Os receios do doente, que liga à doença do coração a ideia de morte súbita, e os cuidados excessivos do médico que o fazem crer justificados os seus receios, criam muitas vezes um estado de ansiedade, que só por si é muito mais prejudicial que a própria doença cardíaca, e que atemoriza o doente e o inibe de muitas actividades pelo receio das consequências, e por julgar sentir sintomas que só existem na sua imaginação ou se devem aos seus temores. É tão importante este factor emocional, de que o médico muitas vezes se não apercebe ter sido o involuntário causador, que para essa sintomatologia ansiosa se criou a designação de Doença Iatrogénea que, de sua origem grega significa «doença gerada pelo médico». A pessoa que adoece do coração muitas vezes só ouvira até aí referências a tais afecções através das notícias nos jornais do súbito falecimento de pessoas importantes. e ignorando que a par dessas poucas existem milhentas outras que fazem uma vida activamente normal, ao saber que sofre do coração logo pensa estar em risco de morrer de repente – daí o terror. Hoje em dia os melhores cardiologistas do Mundo se esforçam em frisar, nas suas publicações, a relativa benignidade da evolução da grande maioria das doenças cardíacas: os doentes com hipertensão têm na maior parte dos casos uma duração de vida normal; os doentes com lesões reumáticas ainda que graves poderão viver até aos 40, 50 60 anos desde que obedeçam a algumas restrições; os próprios doentes com a chamada angina de peito sobrevivem muitas vezes, 10, 20, e até 30 e mais anos após o aparecimento da doença. Torna-se pois imperioso fazer chegar aos doentes e clínicos gerais estas notícias animadoras – assim faz por exemplo a American Heart Association através de panfletos que elucidam o médico e o doente sobre o modo de encarar a sua afecção, e quais as possibilidades de recuperação após o período mais intenso do tratamento. Esta última guerra, absorvendo para os campos de batalha larga percentagem do potencial humano, e obrigando portanto as grandes indústrias, nomeadamente na América do norte, a assalariar as pessoas idosas e doentes, veio pôr em relevo este facto surpreendente: o doente cardíaco não só pode trabalhar, como inclusive passa muitas vezes melhor quando absorvido num trabalho útil e dentro das suas possibilidades, do que quando vegeta, mais ou menos hipocondríaco, fechado e meio inválido em casa. Já anteriormente vários autores tinham feito afirmações semelhantes, mas eram vozes isoladas. Foram a falta de mão-de-obra, e o progressivo aumento da população idosa atrás referido, que obrigaram a um exame pormenorizado e organizado do problema. não nos sobra tempo para rever o que se tem investigado nesta matéria. creio no entanto ser interessante referir por exemplo as conclusões a que chegou o United States Department of Labor num estudo recente: comparando, no que respeita a rendimento de trabalho, acidentes, faltas, etc., cerca de 1800 trabalhadores doentes do coração com 3.000 não doentes empregados em ofícios idênticos, e espalhados todos eles por 50 indústrias diferentes, concluiu que existia somente uma li- 11 Nº35 Jan-Mar 2015 Pág. 10-13 Foto de Artur geira diferença na capacidade de trabalho dos dois grupos – mas estas diferença era em favor dos doentes cardíacos, que produziram um pouco mais que os não cardíacos. exemplo bem frisante de como pessoas seriamente doentes podem recomeçar a trabalhar, é-nos dado pela experiência das Altro Work Shops, de nova iorque. esta empresa, fundada há 30 anos para reabilitar tuberculosos, dedica-se agora também (porque estes aumentaram e aqueles diminuíram) à readaptação de doentes cardíacos. A fábrica aceita tão-somente pessoas seriamente doentes do coração, e dedica-se à factura do vestuário médico. Os doentes são pagos à tabela do Sindicato, e os produtos vendidos no mercado livre. Após um exame inicial, que permite avaliar as suas possibilidades, o doente começa trabalhando nos primeiros tempos só 1 ou 2 horas de manhã ou de tarde. Há salas de repouso, restaurante e solário no mesmo andar, e não existe horário fixo – o doente pára de trabalhar sempre que queira ou se sinta cansado. Uma enfermeira vigia o pulso e a tensão periodicamente, um cardiologista é chamado para qualquer emergência (eventualmente rara), e uma vez por semana os doentes são examinados, avaliando-se dos seus progressos e permitindo-se-lhes, se assim o quiserem e se sentirem capazes, um aumento no número de horas de trabalho. Um relatório recente conta-nos de 46 cardíacos que completaram este programa de reabilitação: quase todos tinham estado inutilizados quase 2 anos, e a maior parte, excedendo os 40 anos de idade, julgava não mais poder voltar a trabalhar. Actualmente cerca de metade trabalha em «full-time», e dos restantes muitos conseguem trabalhar com horários mais suaves. esta experiência de larga projecção mos- 12 trou nitidamente as possibilidades de readaptação dos doentes cardíacos desde que lhes dêem possibilidades de trabalho de acordo com a sua capacidade de esforço. e isto nos traz para a segunda questão: visto que os doentes do coração podem trabalhar, que género de trabalho lhes deverá ser aconselhado? Para esta pergunta tem sido também dada resposta eficiente nos países mais avançados, nomeadamente a América do Norte (a que mais nos referimos por aí termos contactado pessoalmente com o problema). Assim, primeiro em nova iorque, há já 15 anos, e depois em várias outras cidades através do país, têm sido criadas Work Classification Units - Unidades de classificação do trabalho – que, pela opinião conjunta de clínicos gerais, cardiologistas, assistentes sociais, conselheiros vocacionais, psiquiatras, etc., avaliam as possibilidades físicas e especializadas do doente cardíaco, e decidem do tipo de emprego que ele poderá escolher, de acordo com a sua vocação, mentalidade, educação, estado emocional, situação social, e gravidade da doença. Médicos gerais, hospitais, empresas privadas, todos podem recorrer ao auxílio dessas organizações. Uma das primeiras conclusões a que nelas se chegou foi de que, sempre que possível, o doente deve voltar para um trabalho idêntico ou muito semelhante ao que tinha antes de adoecer – tratando-se em regra de pessoas de meia-idade, o esforço de aprendizagem e adaptação a um novo tipo de trabalho é muito maior do que o de persistirem numa actividade que, embora exigindo um pouco mais de força física seja aquela a que estão habituados. O que por vezes terá que ser-lhes concedido é a redução do número de horas de trabalho, com um intervalo a meio. Quando a profissão habitual exige de facto um esforço excessivo, o doente terá de aprender novo ofício, preferivelmente dentro dos menos difíceis e especializados. Nos doentes mais jovens são feitos «testes» vocacionais, procurando-se, dentro das suas aptidões inatas, o tipo de emprego que igualmente satisfaça a sua capacidade física. Quando um emprego já existente implique transporte de pesos, subir escadas, actividade incessante, etc., torna-se aconselhável a transferência para secção menos movimentada, ou emprego mais sedentário, onde o doente actuará melhor e sem prejuízo para si e para os empregadores. exames detalhados e a longo prazo destes doentes cardíacos colocados em empregos seleccionados e sob adequada vigilância médica, mostram à evidência que nestas circunstâncias o trabalho não tem qualquer efeito prejudicial no decurso da doença cardíaca. de tudo o que resumidamente expusemos creio podermos pois concluir: 1º - nos doentes do coração, conforme um slogan recente, as mãos estão ainda capazes de trabalhar. 2º - O trabalho, quando bem seleccionado, não só não prejudica a doença como é favorável ao equilíbrio orçamental da família, e ao próprio equilíbrio da sociedade, uma vez que o indivíduo passa de peso morto a elemento activo. ]]] Referimo-nos ao que se faz na América do norte. E que se passa entre nós? infelizmente falta quase tudo, a começar pelo esclarecimento das pessoas interessadas: o doente que julga agravar o seu mal, o empregador que receia assalariar um inválido, e por vezes o próprio clínico geral que não está familiarizado com as possibilidades de recuperação destes doentes. Pensámos assim que seria útil traduzir e adaptar para o nosso país, alguns dos folhetos publicados pela American Heart Association – teríamos mesmo o maior gosto em tentar obter desta entidade, da qual somos membros, a necessária autorização se por exemplo o Rotary Clube, elemento activo na luta pelo bem da comunidade, estivesse disposto a subvencionar a sua publicação. Mas no próprio Serviço de Cardiologia onde trabalhamos, vemos frequentemente doentes que depois de tratados saem relativamente bem, mas porque logo voltaram para o seu emprego totalmente inadequado – trabalhadores do campo, carregadores, estivadores, etc. – dentro em pouco regressam ao hospital em piores condições que da primeira vez. Algumas personalidades autorizadas procuram soluções adaptáveis ao nosso país: no Hospital de Santa Maria, onde trabalhamos, e onde os serviços de Assistência Social parecem querer esmerar-se no auxílio ao doente, temos visto várias vezes o nosso director, Prof. Eduardo Coelho, a eles recorrer para tentar colocar alguns doentes em empregos compatíveis com a sua reduzida capacidade funcional: porteiros, ascensoristas, etc. e na voz do Prof. João Porto o assunto foi inclusive levantado há poucos meses na Assembleia nacional, tendo por exemplo sido sugerido, num projecto de assistência, que cada empresa destinasse para doentes cardíacos reabilitados uma pequena percentagem das suas vagas nos trabalhos mais leves. Muita boa vontade se torna necessária, sobretudo da parte das empresas particulares, para tentar melhorar um pouco este problema cuja gravidade só tende a aumentar com os anos. Por isso nos pareceu importante trazer o assunto junto de vós. e creio que seria deveras interessante se fossem os Rotários, como elementos bem representativos do comércio e indústria nacionais, os primeiros a pôr-se à disposição dos serviços de Assistência Social, indicando as possibilidades de emprego disponíveis dentro das suas progressivas empresas, para alguns dos doentes cardíacos que, de outro modo, tentando em empregos inadequados angariar o sustento da família, rapidamente inutilizarão as melhoras conseguidas no Hospital. e mais espero que sereis os primeiros a cooperar com os médicos das vossas empresas, no sentido de transferir para funções mais apropriadas ou mais leves os vossos empregados sofrendo do coração. O doente cardíaco – repetimo-lo – quando vigiado e colocado em emprego compatível, pode e deve ser, por muitos anos, um trabalhador activo e o ganha-pão da sua família. 13