As Telecomunicações e o Mercado Único Abel M. Mateus Professor Universitário Presidente da Autoridade da Concorrência A construção do Mercado Único que é a peça central da integração europeia, depois de cerca de 40 anos de tentativas, teve um impulso importante com o Relatório Delors que deu origem à iniciativa lançada em 1992. Uma componente fundamental desta iniciativa foi o processo de reestruturação e privatização dos monopólios estatais e da subsequente liberalização dos mercados, com vista à introdução da concorrência, nos sectores de infraestruturas, como os de energia e telecomunicações. O mercado das telecomunicações na UE a 25 atinge já 277 biliões de euros em 2004, sendo o crescimento previsto de 5 a 6% ao ano, para os próximos anos, liderado pelos móveis e dados fixos. Apesar deste esforço liderado pela Comissão Europeia, e que recentemente deu origem à nova Directiva sobre Comunicações Electrónicas, o sonho do Mercado Único em telecomunicações está longe de se concretizar. A sua concretização deveria levar a uma maior homogeneização dos preços e qualidade dos serviços prestados, entre os diversos mercados nacionais, assim como ao alinhamento pelas práticas mais eficientes. Esta norma só se atingirá com mercados concorrenciais a nível nacional e sua simultânea integração, o que dará origem a enormes benefícios para os consumidores europeus, que se estima excedam cerca de 2 a 3% do PIB comunitário. A figura abaixo reproduzida de um relatório recente da Comissão sobre preços de um cabaz de serviços de telecomunicações para as famílias, em euros traduzidos em poder de compra, ilustra bem as enormes disparidades que prevalecem entre mercados nacionais. Portugal aparece como o país onde as famílias suportam os preços mais elevados em 2003, 106% superiores aos da Suécia. É de acentuar que se têm feito progressos inegáveis na redução dos preços, que têm acompanhado uma acentuada melhoria na qualidade, resultante do progresso tecnológico que tem caracterizado o sector, desde a generalização do uso de telemóveis à banda larga. De 1998 a 2003 os preços reduziram-se 14% em média na UE. As reduções mais dramáticas ocorreram na Espanha (32%) e na Áustria (29%), comparados com uma redução de apenas 10% em Portugal. Como poderemos intensificar a construção do Mercado Único? Que políticas deverão ser implementadas para intensificar a redução dos preços e seu alinhamento pelos níveis mais baixos, com a provisão de serviços de melhor qualidade? É esta a questão que procuraremos abordar neste artigo, embora de uma forma sucinta. Este processo só se consegue através de uma melhor regulação dos monopólios naturais porventura ainda existentes – nomeadamente “a last mile of the network” – que liga a rede aos consumidores residenciais, mas acima de tudo pela intensificação da concorrência entre operadores. Hoje são muitas as tecnologias disponíveis para transportar voz, imagem e dados ou de um ponto para múltiplos utentes, ou entre múltiplos pontos e múltiplos utentes, e o progresso tecnológico neste sector não parece abrandar. Ao nível residencial, por exemplo, a pay TV pode ser fornecida por cabo ou satélite, a internet por cabo ou ADSL (rede fixa), e a voz por telefone tradicional ou IP. Quanto às redes básicas estas podem ser as tradicionais de cobre, cabo ou fibra óptica. A Coreia, com a sua política de desenvolvimento da sociedade da informação, já cablou a maioria dos grandes centros urbanos até às residências, o que permitiu um grande avanço em relação a todos os outros países. E no Japão também se estão a instalar redes de fibra óptica nos grandes centros urbanos que irão concorrer com a tradicional rede de cobre. É evidente que o nível de serviços prestados depende do nível tecnológico da infraestrutura e esta terá que estar alinhada com o nível de desenvolvimento de cada região para ser rentável. Daí que seja difícil de estudar estes problemas a nível nacional. A região de Lisboa pode comparar-se com os principais centros urbanos europeus, mas já o interior do país não terá níveis de rendimento para justificar o mesmo nível tecnológico, embora estejam em desenvolvimento tecnologias que permitem reduzir estes diferenciais. Mas regressemos à questão da concorrência. O modelo básico que presidiu à liberalização das telecomunicações na União Europeia, e que não se distingue muito do dos EUA, consistiu em duas aproximações fundamentais. Primeiro, promover a concorrência entre redes. Segundo, facilitar o aparecimento de novos operadores que iriam concorrer com o incumbente na prestação de serviços a retalho seja através da revenda desses serviços, como da desagregação do lacete local. Não é possível duplicar uma rede de cobre, porque não é rentável, embora em centros de grande densidade populacional e elevado rendimento se estejam a criar redes alternativas de fibra óptica até a empresas, prédios e mesmo ao nível residencial. Porém, as novas tecnologias móveis introduzidas em meados dos anos 1990 permitiram prestar serviços de voz e hoje mesmo de internet, o que representou uma importante alternativa ao consumidor final. Mas ainda a mais importante rede alternativa à tradicional de cobre é constituída pela rede de cabo, que foi instalada para fornecer pay TV. Esta permite também fornecer serviços de dados (cable modem) como até de voz sobre IP. Por isso, a maioria dos países europeus não permitiu aos incumbentes tradicionais, que detinham a rede de cobre, de concorrer às licenças (muitas vezes regionais) de pay TV. Outra separação estrutural resultou também da proibição de participarem nos leilões de pay TV via satélite. A não proibição só ocorreu em Portugal, e nalguns casos isolados, alguns dos quais já foram resolvidos entretanto. É importante referir que esta construção de redes alternativas ao cobre pode levar à constituição de monopólios regionais que terão que ser regulados.1 As licenças podem ser concedidas em regime de exclusividade ou em concorrência. Neste último caso surge o problema de acesso às condutas, que nalguns países se resolveu tornando-as propriedade dos municípios que têm a responsabilidade de as construir e manter (p.ex. caso holandês). Foi esta preocupação de introduzir mais concorrência que levou ao break-up da ATT nos EUA nos anos 1980, separação de redes regionais das comunicações a longa distância e que levaram ao aparecimento das Baby Bells. Os incumbentes tradicionais desceram a sua quota no volume de negócios total do sector de 4 a 7% nos últimos 4 anos, embora as situações sejam muito diferenciadas de país para país, mas em grande parte devido à quebra de cerca de 10 pontos percentuais na telefonia de voz. Em 2004 os serviços móveis já ultrapassam largamente os fixos em termos de rendimento (122 contra 90 biliões de euros) em toda a UE. A segunda linha em que a liberalização prossegue é a de “unbundling” dos serviços grossistas e retalhistas. Um das formas é a revenda de serviços. Mas para ser um tipo eficaz de concorrência tem que respeitar certas regras: (i) interoperabilidade, (ii) preços serviços grossistas que reflictam os verdadeiros custos, (iii) portabilidade dos números, (iv) não discriminação no acesso. Também a desagregação do lacete local, que é uma forma mais evoluída de concorrência tecnológica, tem progredido a ritmo bastante lento, não só na UE como até nos EUA, embora esteja ultimamente a ganhar um certo momento. Mesmo nos países nórdicos, que têm revelado estar à frente no processo de liberalização, o grau de desagregação é bastante baixo, indo de apenas de 0,6% na Suécia a 3,9% na Finlândia, em 2003. O próprio regulador inglês, a Ofcom, num mercado que é dos mais liberalizados da UE, declarou recentemente que está muito insatisfeito da forma como a BT tem controlado o acesso às redes que detém, com um impacto negativo sobre a inovação nos produtos a nível grossista e secundariamente sobre as escolhas que os consumidores podem fazer. Na banda larga, os produtos afectados incluem a desagregação do lacete local, na voz o arrendamento de linhas a nível grossista e o carrier pré-selecionado. 1 Um dos casos são os monopólios regionais de pay TV que sendo concessionados a uma só empresa podem explorar o seu poder de mercado. Esta é uma das questões que tem sido muito discutida nos EUA onde existem estes monopólios. Por exemplo, o pacote básico em Nova Iorque custa cerca de 60 dólares, contra 20 a 30 euros em muitas cidades europeias. É normal tomar a quota de mercado dos incumbentes na voz como um indicador do grau de liberalização das telecomunicações, como a Comissão o faz. Tomando o tráfego e rendimentos, verifica-se que na EU-15 os países mais avançados são a Suécia, Reino Unido, Dinamarca e Áustria. Os mais atrazados são Grécia e Portugal. A igualdade real de acesso implica que a BT venda os serviços grossistas e imponha as mesmas condições contratuais que pratica com os seus serviços de retalho. Para tal, a Ofcom exige não só uma separação legal e de gestão entre as empresas grossistas e retalhistas, como também uma clara divisão de incentivos. Finalmente, chama atenção para o baixo número de consumidores que até à data mudaram de fornecedor, o que é devido em grande parte à falta de clareza sobre preços e condições de fornecimento de serviço, bem como aos elevados custos de transição que resultam daquela mudança. A construção de um verdadeiro mercado único também deverá incentivar as fusões e aquisições entre empresas de diferentes mercados nacionais. Só nos serviços móveis é que já apareceu uma verdadeira empresa global, o que a coloca em boa posição para transferir tecnologia e assim poder alavancar as inovações que estão a ocorrer nos mercados mais evoluídos de 3G como a Coreia e Japão. Esta integração “cross-border” já levou a Comissão a investigar os custos de “roaming”, em que apesar de ser dentro de uma mesma empresa (sem justificação de custos) as empresas de móveis praticam preços por vezes 5 a 7 vezes superiores aos dentro da rede nacional. É evidentemente difícil traçar um paralelismo entre o sector das telecomunicações e o da energia. Porém, já vários economistas, tais como Littlechild, “o pai da regulação”, têm procurado tirar lições entre o processo de liberalização dos dois sectores. Como sabemos, o “unbundling” da energia consiste em separar estruturalmente a produção de energia das redes de alta e das redes de distribuição regionais, estando as redes – que são monopólios naturais – sujeitas a regulação das tarifas de transporte e distribuição. Também em Portugal a rede de transporte do sinal da televisão é do Estado e está alugada à RTP e à SIC. Da mesma forma, poderíamos conceber que as redes de cobre muitas vezes nas mãos do incumbente nacional, fossem separadas estruturalmente e detidas por uma entidade pública ou privada, estruturalmente diferente, e alugadas tanto ao incumbente como a outros operadores, em condições de igualdade. Como o gráfico acima demonstra, estamos longe de ter construído um mercado único nas telecomunicações, objectivo almejado em 1992. Para o conseguirmos tanto a Comissão Europeia, como os Reguladores Nacionais e as Autoridades da Concorrência de todos os Estados Membros devem estabelecer um fórum de discussão regular, fazer uma reanálise dos processos de liberalização em curso e estabelecer uma nova Visão para as Telecomunicações num Mercado Único, com um horizonte temporal preciso, e cujo progresso pode ser controlado pelo benchmark da convergência para as melhores práticas europeias.