ntao UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA A COBERTURA DO TERROR E O TERROR DA COBERTURA: PRODUÇÃO DE SENTIDO EM REVISTAS – ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO DE 2001 WELLINGTON DOS SANTOS FIGUEIREDO BAURU/SP Outubro/2007 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA WELLINGTON DOS SANTOS FIGUEIREDO A COBERTURA DO TERROR E O TERROR DA COBERTURA: PRODUÇÃO DE SENTIDO EM REVISTAS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO DE 2001 Dissertação de Mestrado apresentada por Wellington dos Santos Figueiredo ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação – Área de Concentração: Comunicação Midiática. Linha de Pesquisa: Produção de Sentido na Comunicação Midiática, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Bauru-SP, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Comunicação Midiática, desenvolvida sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz. BAURU/SP Outubro/2007 DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO UNESP – BAURU Figueiredo, Wellington dos Santos. A cobertura produção de de setembro Figueiredo, do terror e o terror da cobertura: sentido em revistas – atentados de 11 de 2001 /Wellington dos Santos 2007. 195 f. Orientador: Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2007. 1. Comunicação. 2. Imprensa e propaganda. 3. Sociedade da informação. 4. Jornalismo – Aspectos sociais. 5. Jornalismo – Terrorismo. 6. 11 de setembro de 2001. I - Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II – Título. Ficha catalográfica elaborada por Maricy Fávaro Braga – CRB-8 1.622 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO CAMPUS DE BAURU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA A dissertação desenvolvida, A cobertura do terror e o terror da cobertura: produção de sentido em revistas - atentados de 11 de setembro de 2001, por WELLINGTON DOS SANTOS FIGUEIREDO, foi submetida à Banca Examinadora como exigência para obtenção do Título de Mestre em Comunicação Midiática, junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita”, Campus de Bauru. BANCA EXAMINADORA: Presidente: Prof. Dra. Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz Instituição: FAAC/UNESP – Bauru-SP Titular: Prof. Dr. Dimas Antonio Künsch Instituição: Faculdade Cásper Líbero – São Paulo-SP Titular: Prof. Dr. Ruy Moreira Instituição: Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ Bauru, 19 de outubro de 2007 DEDICATÓRIA Esta dissertação é dedicada à memória da colega Ronise Frediane Motta. Ronise, a mão do destino interrompeu-lhe a vida e a conduziu para outro plano, deixando nas pessoas que com você conviveram, um vazio. Mas seu passamento não é forte o suficiente para apagar de nossa memória, de nosso coração, seu doce sorriso. Como nas palavras de Guimarães Rosa, você não morreu, tornou-se encantada. Seu espírito alegre agora brilha junto às estrelas e, habitando o firmamento, não mais será apagado. AGRADECIMENTOS O momento dos agradecimentos é um dos mais difíceis da pesquisa. Ao tentarmos traduzir em palavras nossos sentimentos, corremos o risco de não conseguirmos manifestar corretamente o verdadeiro significado de nossa gratidão. Dentro dessa limitação, desejamos neste espaço manifestar nossos sinceros agradecimentos a todos que contribuíram para que chegássemos até este ponto. Primeiramente externamos publicamente nossos agradecimentos à professora doutora Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, pelo carinho, paciência, confiança e sabedoria a nós manifestadas durante o percurso desta pesquisa. Com gracioso sopro de sabedoria purificou as palavras redigidas nesta dissertação. Seus consistentes e apolíneos ensinamentos foram essenciais para o sucesso desta jornada. Aos docentes Antonio Carlos de Jesus, Regina Celia Baptista Berluzzo, Maria Inês Mateus Dota, Luciano Guimarães e Cláudio Bertolli Filho que durante as aulas compartilharam seus conhecimentos e nos apontaram importantes diretrizes para o desenvolvimento desta dissertação. À banca de exame de qualificação, integrada pelos docentes Cláudio Bertolli Filho e Maximiliano Martin Vicente. Os conselhos destinados à pesquisa exalaram um toque de intelectualidade e sobriedade importantes para corrigir direcionamentos e sedimentar o texto frente às pequenas cavidades presentes e que poderiam erodir e fragilizar esta dissertação. Aos meus pais Paulo Figueiredo e Neuza Xavier dos Santos Figueiredo, pela compreensão e extrema confiança. Não sei quantas vezes as minhas provas foram suas provas de amor e nem quantos sonhos renunciaram para que os meus fossem realizados. Ao amigo Elvis Christian Madureira Ramos, pelo imenso apoio e fraternais palavras de incentivo. Sempre ao nosso lado nos momentos de “turbulência intelectual”, importante no período pré-mestrado, indispensável no transcorrer da pesquisa. Sua amizade materializou a epígrafe de Cícero: “Viver sem amigos não é viver”. Ney Vilela, que no decorrer do curso tivemos o privilégio de tê-lo como companheiro em quatro disciplinas, além de poder contar com seu apoio, conhecimento e amizade até os dias atuais. Marcos Paulo da Silva, pela amizade, paciência e gentileza nas trocas de informações sobre textos e autores que foram importantes em nosso trabalho. Aos companheiros do GES (Grupo de Estudos Semióticos), em especial a Juliano José de Araújo pela recepção e apoio nos momentos de dúvidas. À amiga Audrey do Nascimento Sabbatini Martins, pela amizade, companheirismo, carinho e incentivo. A atenção e o apreço a nós dispensados na reta final desta pesquisa foram de extrema valia. “Um amigo é alguém que sabe a canção de seu coração e pode entoá-la quanto você tiver se esquecido da letra”. Ao professores e amigos Antonio Francisco Magnoni, Ana Silvia Lopes Davi Médola, Lourenço Magnoni Junior e José Misael Ferreira do Vale pelo imenso apoio dado antes e durante a pesquisa. À amiga Tatiana Pedra pelas palavras de incentivo e pelos valiosíssimos préstimos na elaboração do abstract presente nesta pesquisa. Sua seriedade e excelência nas discussões sobre o vocabulário e seus sentidos, ecoaram os dizeres de Hegel: “Nada de grandioso existe sem paixão”. Nada mesmo! Aos professores Dimas Antonio Künshc (Faculdade Cásper Líbero) e Ruy Moreira (Universidade Federal Fluminense) pela honra de tê-los em nossa banca como também pela serenidade, rigor científico e sabedoria típica dos grandes intelectuais com que conduziram o debate sobre esta dissertação. Seus ensinamentos e fraternais conselhos enriqueceram muito o texto final deste trabalho, e guiarão nossas análises em futuras produções acadêmicas. Ao aluno e amigo Homero Gustavo Ferreira Amaro pelos valiosos e préstimos a nós destinados no apagar das luzes deste trabalho, quando a máquina resolveu nos pregar uma peça. A competência que de nós se ausentou, em Homero transbordou! As minhas hoje alunas e eternas amigas Jéssika Piovezan Fernandes, Marília Cancian Bertozzo, Laura Ceretti Coachman, Marcela Maldonado Fabbro Sarturato, Amanda Berton, Isabela Licursi Garcia da Costa, Eliza Carloni Rotondaro e Helen Caroline Porto Izaac e ao grande amigo Carlos Eduardo Domingos Loterio pelo imenso carinho, torcida, companheirismo e orações. Não me esquecerei da participação de vocês nesta vitória. Vitória que é tão minha quanto suas! A conquista do título sempre terá a participação de vocês! Faço minha as palavras do grande escritor mineiro Guimarães Rosa: "Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende." Se hoje me tornei mestre, é porque além da concretização desta pesquisa, pude aprender com vocês, como bem profere a sentença “roseana”. E, cada produção intelectual por nós realizada, será sempre uma eterna homenagem a Álvaro José de Souza. Mestre, exemplo, amigo... Infelizmente não pode em vida nos ver chegar a este momento. Álvaro, você é parte desta conquista! A morte física jamais terá a força necessária para apagar a herança intelectual e o exemplo de integridade que você nos deixou. Nenhum texto, nenhuma palavra, são capazes de fazer jus à gratidão e orgulho que temos por sua pessoa. VERDADE A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram a um lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade RESUMO: O impacto causado pelos atentados de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos despertaram a atenção do mundo e a mídia serviu a duplo objetivo: fonte de informações (desencontradas) de repórteres (despreparados) e vitrina dos autores desses atentados que propagavam seus objetivos. Perante o caráter polissêmico e polifônico assumido pelos meios de comunicação frente aos atentados, esta dissertação analisa os discursos produzidos por quatro revistas (Veja, CartaCapital, Superinteressante e Caros Amigos). Tomando da semiótica greimasiana dois procedimentos de semântica discursiva, tematização e figurativização, e conceitos do nível profundo, a análise de vinte textos identificou mecanismos responsáveis em produzir efeitos de sentidos e discursos construídos em torno do “outro”, do “diferente”. Na tentativa de explicar a realidade, a mídia construiu um “inimigo”, justificou a imposição dos valores existentes em um modelo de civilização ou defendeu a total ruptura do sistema vigente, em textos moldados de acordo com axiologias e significações pré-existentes, traduzidos no repertório social de nossa época. Quando tais práticas afloram, a desinformação (falseamento) deixa de ser um mero equívoco para se converter em uma poderosa estratégia enunciativa. Palavras-chave: Comunicação; Mídia impressa; Informação; Produção de sentidos; 11 de setembro de 2001. ABSTRACT: The impact caused by the September 11th attacks against the United States of America attracted the world’s attention. In that context, the media acted both as a source of divergent information from unprepared reporters and as a means of spreading the attacks perpetrators goals. Taking into consideration the polysemic and polyphonic aspects assumed by the means of communication before the attacks, this research focus was to investigate the discourses produced by four Brazilian magazines (Veja, CartaCapital, Superinteressante and Caros Amigos). Theoretically supported by two procedures from the Greimasian semiotics, thematization and figurativization, as well as by the deepest level concepts, the analysis of the collected data has pointed out some responsible mechanisms for producing meanings and discourses about the “other” - the “different”. Attempting to explain “the reality”, the media constructed an “enemy”. In order to do so, it justified the imposition of specific society values or even claimed for the complete rupture with the capitalist values by using discourses from preexisting ideologies and meanings, converted then into the social repertoire of an age. On the basis of these analyses, this investigation highlights that, whenever such (social and discursive) practices emerge, the lack of information (or the misunderstanding) can not be faced as a mere misconception but as powerful enunciative strategy. Key words: Communication, The Press, Information, Meaning production, September 11th 2001. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 14 CAPÍTULO 1. A COMUNICAÇÃO, O BOM SENSO E A PESQUISA.................. 1.1. A notícia e a teia social............................................................ 1.2. O pensamento francês em comunicação................................ 1.3. A semiótica francesa............................................................... 1.4. Comunicação: uma prática antropológica............................. 21 23 29 31 37 CAPÍTULO 2. O DIA 11 DE SETEMBRO DE 2001, O JORNALISMO EM TEMPO REAL E O ALINHAMENTO MIDIÁTICO........................ 2.1. Novo século, velhas histórias............................................... 2.2. A águia imolada: os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono............................................................................. 2.3. Dificuldades de compreensão de um acontecimento na TV em tempo real.......................................................................... 2.4. Doutrina Bush, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque e o recrutamento da mídia............................................................. CAPÍTULO 3. O TERRORISMO: UM LEGADO HISTÓRICO E SUA CARACTERIZAÇÃO NA PLATAFORMA MIDIÁTICA.............. 3.1. O terrorismo na história............................................................ 3.2. As faces do terrorismo.............................................................. 3.3. Islamismo, fundamentalismo e terrorismo................................ 3.4. O surgimento do grupo terrorista islâmico Al Qaeda................ 3.5. A Al Qaeda e o “Terrorismo em Rede”..................................... 3.6. Terrorismo na mídia: um contrato semântico polêmico............ 3.7. Contextualização para entendimento....................................... CAPÍTULO 4. COBERTURA DOS ATENTADOS CONTRA OS ESTADOS UNIDOS EM 11 DE SETEMBRO DE 2001 EM QUATRO VEÍCULOS DA MÍDIA IMPRESSA BRASILEIRA..................... 4.1. Valor e efeito de verdade no universo midiático.................... 4.2. Identidade, cultura e a construção da notícia: o caso do Islamismo................................................................................. 4.3. Corpus da pesquisa.................................................................. 4.3.1. Veja..................................................................................... 4.3.2. CartaCapital........................................................................ 4.3.3. Superinteressante............................................................... 4.3.4. Caros Amigos..................................................................... 4.4. Temas presentes nos discursos dos periódicos....................... 4.4.1. Veja..................................................................................... 49 49 50 52 61 74 75 77 79 83 85 93 98 103 103 107 111 111 111 112 112 115 115 4.4.2. CartaCapital........................................................................ 4.4.3. Superinteressante............................................................... 4.4.4. Caros Amigos................................................................... 4.4.5. Quadro demonstrativo dos temas dos periódicos analisados........................................................................... 135 145 158 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 170 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 178 169 INTRODUÇÃO Buscando o sentido O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência e as coisas e os eventos. O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir. Recuso-me a viver num mundo sem sentido. Estes anseios/ensaios são incursões conceptuais em busca do sentido. Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação. Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. Tirando isso, não tem sentido. Paulo Leminski Nem lamentar, nem se indignar, mas compreender. Spinoza 11 de setembro de 2001. Pouco antes das 09h00min horas (horário estadunidense 1 ), plantões das principais emissoras de telejornalismo do mundo interrompem sua programação matinal para mostrar imagens de uma das torres do famoso edifício World Trade Center exalando fumaça. Parecia uma gigantesca chaminé alçando fuligem no céu azul da cidade de Nova York. Juntamente com as imagens, uma dúvida: o que teria acontecido com a Torre Norte de um dos principais símbolos estadunidenses? A resposta imediata para tal questão nem mesmo as pessoas que estavam no edifício poderiam responder e, infelizmente, grande parte delas jamais a descobriria. Possivelmente a resposta desejada estava alojada na mente de um saudita ancorado provavelmente no Oriente 1 Nesta dissertação, faremos uso do vocábulo “estadunidense”, para nos referimos à população e práticas culturais, políticas, econômicas... inerentes aos Estados Unidos. A escolha deve-se a imprecisão que termos como “americanos” e “norte-americanos” trazem. Todos aqueles que habitam o continente da América podem assim ser classificados. ”Norte-americano” também pode ser empregado aos mexicanos e canadenses, uma vez que México e Canadá também integram a América do Norte. Manteremos as grafias “americanos”, “América” e “norte-americanos quando as mesmas forem citadas destas formas por outros autores. 14 Médio, num país pobre, de clima árido cortado por cicatrizes montanhosas provocadas pela constante movimentação de placas tectônicas: o Afeganistão. As primeiras informações davam conta de um choque de um avião bimotor contra as estruturas do arranha-céu. Um triste acidente. Mas nada comparado com as verdadeiras causas que ainda se camuflavam entre a fumaça da Torre Norte. Quem, por qualquer motivo, estivesse sintonizado na TV pode, em poucos minutos, testemunhar as imagens transmitidas em tempo real do Boeing 767 da United Ailines mergulhando em direção à torre sul do World Trade Center, mesmo sem ter a verdadeira noção do sentido que essa cinematográfica imagem era dotada. As Torres Gêmeas haviam sido atacadas! Era fato! Bilhões de pessoas acompanhavam os desdobramentos, buscavam informações sobre o que realmente estava acontecendo. Outras duas aeronaves também foram seqüestradas. Mas as imagens das torres em chamas pareciam hipnotizar a quem pusesse os olhos nas imagens que as TVs transmitiam. O poder da imagem capturava a todos. Aos poucos, a fuligem das fumaças se misturava ao céu nova-iorquino. A claridade fornecida pelos raios solares permitia que se visualizasse o serpentear das fumaças cortar o azul celeste colorindo tristemente a atmosfera de Manhattan. Com o passar do tempo, às nuvens de fumaça foram se dissipando; aterrissando sobre as páginas de jornais, revistas, livros que eternizariam o acontecimento daquela inesquecível manhã de setembro. A imprensa somente revela fatos, não toma partido; não é responsável por acontecimentos, apenas os registra. Esse dogma jornalístico jamais soou tão irreal como depois do 11 de setembro. Muitos episódios, como a própria guerra do Afeganistão, tiveram a participação ativa da imprensa. É impossível, hoje, separar o que foi apenas a intenção pura e simples do governo Bush e o que foi facilitado, possibilitado pela influência da mídia. (DORNELES, 2003, p. 270) É neste ponto que se inicia esta dissertação. Durante os ataques, as mídias procuravam, meio atordoadas com a magnitude das ações, munir-nos de informações que pudessem saciar as dúvidas sobre o que acontecera com os Estados Unidos, até então tidos como intocáveis em seu território. Tarefa ingrata, pois nem elas tinham as respostas necessárias e desejáveis naquele momento. 15 A partir do dia 12 de setembro, a mídia impressa se agrupava ao exército de informações e começava a relatar em suas páginas as ações contra os Estados Unidos ocorridas no dia anterior. As imagens das chamas consumindo as estruturas das torres do World Trade Center tornaram-se um referencial dos atentados; uma imagem massificada que se converteria em ícone do 11 de setembro de 2001. Mas, tão importante quanto às imagens veiculadas, foram o discurso construído e a produção de sentidos que dele emanava. Como fora a produção discursiva na mídia impressa, sobretudo, na construção dos sentidos? Para responder a essa questão investigamos quatro revistas: Veja, CartaCapital, Superinteressante e Caros Amigos. Sendo duas de periodicidade semanal (Veja e CartaCapital) e duas de circulação mensal (Superinteressante e Caros Amigos). A escolha das revistas teve como princípio tomar linhas editoriais diferentes num certo distanciamento entre os atentados e a data de publicação. Assim, analisamos o discurso vinculado por esses periódicos sobre um evento impactante e buscamos os sentidos produzidos pelo relato do mesmo acontecimento numa trajetória temporal definida. Fato e notícias são considerados heterogêneos. A notícia é uma manifestação discursiva que, em princípio, pode ser verdadeira ou falsa. O texto em si é uma configuração que produz sentidos. O seu efeito é o sentido. As notícias que constituem o material essencial dos periódicos são mensagens textuais onde os fatos são relatados. Sua estratégia é conquistar o receptor dentro de determinado sistema de valores. Assim, descrever um fato é, ao mesmo tempo, interpretá-lo, estabelecer sua gênese, seu desenvolvimento e possíveis desdobramentos (Arbex Jr., 2001). O receptor designa o que é um fato, mas o faz dentro de contextos econômicos, culturais, sociais, ideológicos, políticos, históricos, psicológicos e por sua própria competência discursiva em uma disputa de discursos e saberes. As notícias são textos dotados de sentidos, que por sua vez, falam de fatos; são objetos com os quais o sujeito (leitor) pode entrar em comunicação ou interação lingüística. Os fatos, em princípio, são objetos “mudos”, isto é, objetos 16 com os quais não é possível nenhuma comunicação ou interação lingüística. (Gomes, 1993). Assim, cria-se uma dualidade entre o tempo do fato e tempo da narração. Dentro do espaço entre tempo e fato estão os atores que são retratados nas notícias dando feições ao enunciado. As notícias não são a própria realidade, mas uma representação e interpretação desta. Dessa maneira, o efeito de realidade fixa-se nos discursos através da mediação da enunciação: o emissor como sujeito inserido no espaço e no tempo. Os atentados sofridos pelos Estados Unidos em 2001 abrem um grande cabedal de temas a serem estudados sobre a luz das pesquisas em comunicação. Desde as dificuldades de se acompanhar ao vivo um evento impactante como o executado pelo grupo de Osama bin Laden, passando pela “guerra de discursos” dos meios de comunicação, a utilização da mídia para divulgação da ideologia por trás dos ataques, o poder das imagens, o recrutamento midiático para justificar outras guerras... Enfim, abre-se um arcabouço de fatos e desdobramentos que nos permitem subsídios para analisar como se manifesta a produção de sentidos na linguagem midiática. Para investigar a cobertura dos meios de comunicação impressos sobre os ataques ocorridos em 11 de setembro de 2001, teremos como critério de análise as reportagens que envolveram a produção de sentidos em relação aos “outros”, aos “diferentes”... Claramente, em coberturas a respeito de eventos históricos, existem (ou são criados) heróis e vilões, santos e pecadores, o moderno e o atrasado... personagens e sentidos que figurativizam a dualidade arquitetada sobre a construção de uma narrativa entre valores opostos. “A ideologia pressupõe que ‘eu’ sou a norma, que todos são como eu, que qualquer coisa diferente ou outra não é normal”, resume Kellner (2001, p.83). Em um dos seus discursos após os atentados, o presidente estadunidense George Walker Bush, sentenciava que seria travada “uma cruzada”, uma luta dos eternos contrários do “bem” contra o “mal”. Contudo, o “bem” e o “mal”, o “sagrado” e o “profano” são atributos que têm valores diferenciados de acordo com a visão simbólica de cada indivíduo. Assim, a temática da construção de esteriótipos sobre o “outro” foi o fio de Ariadne que costurou as análises e os sentidos produzidos pelos discursos das 17 mídias impressas que constam nesta pesquisa indicando a tendência de classificar a alteridade (o “outro”, o “diferente”), como um grande problema para a humanidade devido aos valores eufóricos e disfóricos que gravitam sobre identidade e cultura. Entender a comunicação como um exercício de representação seria compreendêla como algo que se assenta, com alguma autonomia, para além da objetividade econômica e sociológica. Confere-se, desse modo, mais valor a importância da cultura, como quadro de fundo do processo comunicacional. (LOPES, 2004, p. 144) Das revistas analisadas, foram extraídos e analisados vinte enunciados (cinco de cada periódico) entre as matérias de capa, carta ao leitor, seções de opiniões, entrevistas... Fatias de edição em que as estruturas discursivas emitiam os sistemas de valores sustentados pelas revistas. A afiada lamina editorial corta o texto, sangra culturas e evidencia quem é o “outro” para as redações dos periódicos. No primeiro capítulo apresentamos o cabedal teórico que sustenta esta pesquisa; a metodologia que guiará as análises dos textos selecionados: a semiótica francesa e seus gradientes analíticos para captura dos sentidos. Discutimos o mito da imparcialidade midiática na produção das notícias e, partindo da assertiva de Lévi-Strauss (1970) que nos ensina que as sociedades humanas nunca estão sozinhas, procuramos demonstrar a importância de compreender os processos culturais frente à comunicação para produção de sentidos. Ao amarrar o pensamento cartesiano à pesquisa, aponta-se para o bom senso no julgamento sereno e despido de preconceitos para o valor da cultura do “outro” e análises das notícias. O segundo capítulo abordará os atentados de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos passando pelos percalços da cobertura do fato em tempo real e o desdobramento do governo estadunidense na resposta aos terroristas, mostrando o recrutamento das mídias e conversão destas como importantes instrumentos para a consecução dos objetivos do aparelho de Estado estadunidense em legitimar a guerra e controlar as informações oriundas dos campos de batalhas. 18 O terceiro capítulo conceitua a expressão terrorismo, apontando que esta violenta forma de manifestação política não foi parida em 11 de setembro e 2001, resultando como fruto de um processo histórico sendo praticado desde a Antigüidade. Em grande parte das coberturas da mídia, o Islamismo foi descrito de forma obscura e retrógrada. Para esclarecer e derrubar o senso comum recorremos à história e discutimos nesse capítulo as principais divisões da religião, as origens do fundamentalismo islâmico e da rede Al Qaeda e a metodologia deste grupo e os sentidos atribuídos à isotopia terrorista pela imprensa. No capítulo quatro serão discutidos os efeitos e sentidos de verdades que se arvoram nos meios de comunicação. Apontamos identidade e cultura na construção da notícia através do exemplo do Islamismo para se mostrar como as tintas do preconceito e da desinformação são impressas nos enunciados e, sobretudo, serão analisados os discursos das quatro revistas que são objeto de nosso estudo, sublinhando os temas e figuras recorrentes para depois mostrá-los em quadro geral que possibilitará melhor visualização e avaliação das análises discursivas e a construção dos quadrados semióticos apontado o nível profundo do processo gerativo do significado. Inegavelmente o 11 de setembro de 2001 tem seu lugar na história, sendo atravessado por múltiplas interpretações e sentidos. Não raramente, a mídia procura dar aos eventos uma interpretação definitiva e categórica sendo guiada pelo instantâneo, moldando-se apenas em um recorte temporal. A cobertura jornalística pós-11 de setembro, converteria-se no episódio mais censurado, autocensurado e distorcido de que se tem notícia na história da imprensa em frontes de guerra (Dorneles, 2003). A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. (...) A ética da compreensão (...) pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar. (...) A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometidos erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas. (MORIN apud KÜNSHC, 2006, p. 85) 19 No campo jornalístico, não raro, os acontecimentos são vistos como algo congelado, sem desdobramentos futuros. Contudo, a análise do fato requer interpretações e opiniões cautelosas. Muitas vezes se tem o desejo de fabricar culpados e forjar causas às pressas. Com este procedimento, guiado pelo instantâneo, o jornalismo cede lugar à desinformação. O tempo curto é a mais caprichosa e a mais enganadora das durações e, quando ficamos presos à purpurina e ao flash, não conseguimos captar o que está se passando efetivamente na história e, principalmente, nos sentidos construídos nas entrelinhas das notícias. 20 CAPÍTULO 1: A COMUNICAÇÃO, O BOM SENSO E A PESQUISA Na verdade, o desafio da comunicação não é a gestão das semelhanças, mas a gestão das diferenças. Dominique Wolton O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que tem. E não é verossímil que todos se engajem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. (DESCARTES, 1996, p. 65) O texto redigido por René Descartes aponta o bom senso como protagonista dos sentimentos próprios ao homem. Além de possuí-lo, segundo o filósofo francês, todos acreditam que o detém em quantidade suficiente. Diferente de senso comum, que implica uma padronização vulgar que não admite o diferente, o revolucionário e o criativo, o bom senso estaria próximo ao conceito de ética, de ouvir as partes, para o juiz, de “buscar várias fontes”, do jornalista, cercando-se de probabilidade que possam conduzir ao que tem a aparência de verdade, pois a verdade em si é um conceito inatingível. Adotar o bom senso é pautar-se pelo convincente, ter critérios analíticos, estando aberto à crítica e a comprovação científica dos dados possíveis. Em razão disso, o bom senso costuma não se precipitar em suas conclusões e, assim, tentar “distinguir o verdadeiro do falso”, conforme assinala Descartes. Ao estabelecer uma verdade, procura testá-la na experiência continuada, repetida, em hábitos e tradições, que nem sempre são fontes seguras da verdade. Esse procedimento pode fortalecer uma afirmação. 21 Tal assertiva permite que todos possam externar suas opiniões sobre acontecimentos. Munidos de bom senso (ou não), as pessoas põem-se a julgar fatos e construir seu juízo sobre os eventos que permeiam nosso cotidiano. No entanto, é preciso conhecer as origens, observar as transformações, identificar as causas que expliquem esses processos, analisar os fatos, transferir conhecimentos. Para isso, a geografia, a história, a sociologia, a filosofia e ciências afins são áreas do saber que nos propiciam um arcabouço de conhecimentos sobre a gênese e transformações sociais no decorrer dos séculos. No entanto, a história da humanidade é escrita diariamente por seus personagens. Compreender as modificações da sociedade impressas nos fatos diários não é algo fácil. Os números de acontecimentos são muitos 2 . Para ficarmos a par dos principais eventos, comumente recorremos aos órgãos de imprensa. É por meio da mídia impressa (jornais e revistas), televisiva, radiofônica e, hoje em dia, pela Internet, que nos alimentamos de informações. Ou seja, os meios de comunicação são as matérias-primas que nutrem nossas opiniões. Através de seus instrumentos é que obtemos as informações que norteiam nossas avaliações. Contudo, as mídias não são “inocentes”. Suas intenções são manifestadas de maneira a induzir o receptor a crer que está absorvendo a “verdade”. Nessa seara provocativa, Wolton (2004, p. 271) comenta que “(...) todos os atores manipulam a informação, usando a legitimidade da informaçãoimpressa para justificar sua própria informação” 3 . Nem sempre o texto segue um caminho coeso entre emissor e receptor. A mensagem pode conter ruídos, o que dificulta a compreensão. Reforçando essa idéia, Santos (2003) explica que 2 Um claro exemplo é fornecido pelo psicólogo e consultor de empresas David Lewis: “Mais informações têm sido produzidas nos últimos 30 anos do que nos 5.000 anos anteriores. Uma edição de dia de semana do New York Times contém mais informações do que tudo aquilo que um homem médio do século XV ficou sabendo em toda sua vida”. (LEWIS apud SERVA, 2001, p. 76). Complementando o raciocínio, Umberto Eco em entrevista à revista Veja (dezembro de 2000) relata que uma boa quantidade de informação é benéfica e o excesso pode ser péssimo, porque não se consegue dimensioná-lo nem escolher o que presta. Na visão do semioticista, não há diferenças entre o jornal stalinista Pravda e o New York Times dominical. O primeiro não possui notícia alguma e o outro tem 600 páginas de informação. Uma semana não é suficiente para ler essas 600 páginas, reforça o escritor. 3 Grifos de Dominique Wolton. 22 ...numa sociedade complexa como a nossa somente vamos saber o que houve na rua ao lado dois dias depois, mediante a uma interpretação marcada pelos humores, visões, preconceitos e interesses das agências. O evento já é entregue maquiado ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, e é também por isso que se produzem no mundo de hoje, simultaneamente, fábulas e mitos. (SANTOS, 2003, p.40). Para Barros (1988, p. 64): “O discurso constrói a sua verdade”. Assim sendo, o que o receptor consome é uma versão dos acontecimentos, a visão que determinado órgão de imprensa assume sobre o evento. Obviamente que, expressando a sua ótica, o transmissor procura transformar sua opinião em “verdade”. 1.1. A notícia e a teia social Tão importante como saber os acontecimentos que permeiam nosso mundo é ter o conhecimento de como as informações nos chegam, afinal é característica da mídia ter pressa em informar, insistir na quantidade e não na qualidade da informação. Para Ramonet (2004, p. 247), “... não há tempo para estudar a informação. A informação é feita cada vez mais de impressões, de sensações”. Re-inserindo Descartes no debate, o filósofo sentencia que ... e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. (DESCARTES, 1996, p. 65) “Andar lentamente” permite acompanharmos os desdobramentos do fato, entendendo as motivações e repercussões por ele traçado 4 . Notícias forjadas no 4 Bob Woodward e Carl Bernstein, repórteres do jornal estadunidense Washington Post, durante a apuração do caso Watergate jamais se utilizaram de atalhos para apressar as investigações ou conseguir um furo jornalístico. Foi uma investigação meticulosa, monótona, sem nenhum glamour cinematográfico ou jornalístico. Pautando seu trabalho por normas estritas e cuidadosas, não lhes era permitido sequer negar a profissão de jornalista durante os infindáveis contatos telefônicos com fontes extremamente escorregadias. Jornalismo investigativo de verdade é assim. Dá muito 23 forno da velocidade, e que procuram assim, transmitir a informação em primeira mão, podem sofrer com o reverso das circunstâncias. 5 Para Wolton (2004) Hoje, a informação é onipresente e resulta da tirania do instante. Sabe-se tudo, de todos os cantos do mundo, sem ter tempo de compreender, ou retomar o fôlego, e sem saber, finalmente, o que leva a melhor entre o dever de informar, a loucura concorrencial e o fascínio pela técnica, ou essas três coisas ao mesmo tempo. 6 (...) ... quanto mais se está ao vivo, mais se deve reintroduzir distanciamento. (WOLTON, 2004, p. 284-285) Desse modo, o fato de ficarmos próximos aos eventos ou recebê-los de maneira instantânea, não significa, em absoluto, a compreensão imediata e total da notícia. Mariani (1999), refletindo sobre a produção da notícia aduz que O ato de noticiar (...) não é neutro nem desinteressado: nele se encontram, entrecruzam-se, os interesses ideológicos e econômicos do jornal, do repórter, dos anunciantes bem como, ainda que indiretamente, dos leitores. Além desses fatores, as forças políticas em confronto no momento histórico em que divulga um acontecimento vão constituir também os sentidos produzidos pelas notícias. (MARIANI, 1999, p. 102) Ou seja: existe todo um procedimento de preparo para que a notícia chegue ao seu destino, como atesta Serva (2001) O sistema de construção da notícia jornalística se dá através de procedimentos técnicos, denominados “edição”, que visam explicitamente a satisfazer a necessidade de informação do consumidor. (SERVA, 2001, p.123) trabalho, consome tempo e nem sempre rende um filme de Hollywood, nem sequer uma manchete. É um exercício incansável, enfadonho, que exige determinação e perseverança. (Brasil, 2007) 5 Em março de 1994, os donos da Escola Base (Maria Aparecida Shimada e o marido Icushiro Shimada) e alguns funcionários foram injustamente acusados de promover orgias com menores na escola infantil que mantinham no bairro da Aclimação (São Paulo). A imprensa assumiu a acusação, baseada no depoimento da mãe de uma das crianças (Veja publicou uma reportagem intitulada “Escola de horrores”). Os acusados foram absolvidos. Em 19 de novembro de 2002, o Superior Tribunal de Justiça aumentou de 100.000 (determinada pelo TJSP) para 250.000 reais o valor de indenização por danos morais que o Estado de São Paulo terá de pagar a cada um dos donos da escola. (ARBEX JR., 2003b, 162) 6 Grifos de Dominique Wolton. 24 Por natureza, todo discurso caracteriza-se por ser persuasivo. Sua composição encorpa instância simbólica de representação, um recorte criador de determinada realidade. Quem emite opta pela utilização de certas palavras em detrimento de outras, seleciona imagens para impactarem o receptor e ampliar o poder de sedução/persuasão. Tais procedimentos pavimentam a estrada que leva para o receptor à trama narrativa na forma de notícias. Desta feita, a notícia além de “satisfazer a necessidade de informação do consumidor”, como diz Serva (2001), também satisfaz o desejo do veículo de comunicação em externar/persuadir a sua versão dos fatos. Afinal, a linguagem é um símbolo encravado em nossa existência. Para Pinto (2002) Cada vez mais as ciências sociais vêm se dando conta que as práticas sociais de produção-circulação-recepção de discursos são fundamentais na criação, manutenção e mudança das representações, identidades e relações sociais. (PINTO, 2002, p. 09) A linguagem envolve nossos sentimentos. É um tecido presente na trama do pensamento. Ela é a base onde se desenvolvem os processos discursivos. Pintados com as cores da ideologia, como qualquer outro, os discursos das mídias são molduras em que se representam visões. A maneira pela qual uma notícia é exposta reflete a categorização do discurso e as intenções de seus autores. Dando eco a essa afirmação, Magnoli (2002) afirma que A linguagem é um produto social e, nessa condição, carrega consigo uma carga política e ideológica muito marcada. As palavras e as expressões fazem mais que designar objetos e idéias. Elas trazem à tona um universo de significados e experiências humanas que são julgamentos de valor, avaliações positivas ou negativas do mundo que nos cerca. (MAGNOLI, 2002, p.16-17) Todo texto, como não poderia deixar de ser, tem uma função informativa. Além dessa dimensão, todo e qualquer texto também possui uma função interpretativa, pelo simples fato de que ele é o produto de uma enunciação, isto é, resulta de uma atividade que constrói o sentido do seu referente ao enunciá-lo, necessariamente, de certa maneira. 25 O sentido portanto não significa apenas o que as palavras querem nos dizer, ele é também uma direção, ou seja, na linguagem dos filósofos, uma intencionalidade e uma finalidade. (GREIMAS, 1973, p.15) O desenvolvimento da linguagem foi de capital importância para o aprimoramento intelectual e social do ser humano. As palavras não são sons sem significância, nem as frases se constituem unicamente em elementos estéticos. A unidade de comunicação não é o signo, não é a palavra nem o traço, mas a organização deles numa matéria significante, como uma unidade comunicativa, um conjunto coerente, a que chamamos “texto”. Os signos um por um são inoperantes, ainda que matéria-prima dos textos. Então, um texto (...) é um objeto de comunicação entre dois sujeitos. É assim que um texto pode colocar-se entre dois objetos culturais pertencentes a uma dada sociedade e assumir as marcas sócio-históricas dela. (PERUZZOLO, 2004, p.135) A história do conhecimento se desenvolve à luz da linguagem. É por meio da percepção e das palavras que os seres humanos organizam a realidade e a interpretam. É a partir da articulação lingüística que se produzem conceitos acerca da realidade que, em seu conjunto, formam o terreno de qualquer investigação. A linguagem cria a imagem do mundo, mas é também um produto social e histórico; sendo sempre comunicação (e, portanto, persuasão), ela o é na medida em que é produção de sentido (Fiorin 1989, 1995). Para Greimas (1981) A estrutura da comunicação comporta, como sabemos, um destinador e um destinatário, intercambiáveis, cada um dos quais dotado por isso mesmo de uma competência ao mesmo tempo emissiva e receptiva. (GREIMAS, 1981, p.27) Ao admitirmos que ler é, ao mesmo tempo, compreender e interpretar, é preciso então propor ao leitor conceitos e critérios que o ajude a reconhecer, por detrás das aparências, o sistema de valores que o enunciador investiu em seu texto. Para Barros (1988, p.83): “... é preciso inserir o texto no contexto de uma ou mais formações ideológicas que lhe atribuem, no fim das contas, o sentido”. O pensamento reducionista e senhor da racionalização do real, anti-dialógico e anti-compreensivo, mais produz desconhecimento que conhecimento. Mais divulga e amplia a incomunicação que a comunicação. Mais encobre que cobre. (DIMAS, 2005, p. 30) 26 Retomando a citação de Descartes que diz “... não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”, o bom senso se abastece na faculdade de apreciar e julgar com ponderação e discernimento os conteúdos transmitidos pelas mídias, não esquecendo que os discursos midiáticos têm como característica o convencimento, impondo o conjunto de opiniões, idéias e concepções de seu enunciador. Ultrapassando assim, a perigosa barreira do pensamento reducionista. Isso mostra que para compreendermos o fazer-jornalístico necessitamos de instrumentos de análise como nos explica Steinberger (2005). Só a análise de discurso será todavia capaz de confrontar discursos com discursos, de revelar contradições entre eles. Só uma análise do discurso jornalístico será capaz de mostrar os efeitos potenciais que a manipulação política de lugares e valores geográficos pode gerar na construção de imaginários geopolíticos de massa. (STEINBERGER, 2005, p. 192) Se a notícia deve, em suma, satisfazer a necessidade do leitor, e é parte da linguagem, logo a "Teoria do Espelho" explica a identidade com o meio, ou seja, o reflexo da sociedade na notícia, sem nenhuma espécie de contágio. Tal teoria abraça fraternalmente o pensamento racional-reducionista uma vez que Sua base é a idéia de que o jornalismo reflete a realidade. Ou seja, as notícias são do jeito que as conhecemos porque a realidade assim as determina. A imprensa funciona como um espelho do real, apresentando um reflexo claro dos acontecimentos do cotidiano 7 . (PENA, 2005, p.125) 7 O jornal paulistano O Estado de S. Paulo há alguns anos utilizava o slogan “O espelho do mundo visto por olhos nos quais você confia”. A afirmativa procurava passar aos leitores que o jornal (podemos expandir para todos os meios de comunicação) é um retrato fiel da realidade. Entretanto, não se trata de um “espelho do mudo”, mas de “um aparelho produtor de interpretações do mundo”. (MAGNOLI, 2002, p. 16). Construindo uma análise comparativa com o processo histórico, podemos conduzir um encontro teórico nessa questão: a produção e o registro da informação. A ciência histórica foi referenciada no decorrer do século XIX. Época do romantismo e robusto sentimento nacionalista fizeram brotar interesses pelos estudos do passado. Não raramente as pesquisas eram patrocinadas pelo Estado. O historiador Leopold Ranke foi um dos muitos a externar sua preocupação em relatar os fatos como eles realmente aconteceram, sem a pretensão de interpretá-los. Assim estruturou-se a chamada História Positivista, interessada em temas políticos, considerando o passado algo encerrado e imóvel, mas passível de ser conhecido mediante a neutralidade de quem produz o conhecimento sobre o pretérito. Entretanto, essa teoria não é mais que uma ideologia da imprensa destinada a camuflar a inevitável (e presente) parcialidade do setor. Teorias de pesquisa sobre comunicação já mostram a dinâmica das sociedades e seus atores em suas análises. A prática jornalista está longe de ser o espelho do real. Será sempre a construção de uma suposta realidade. 27 Para ter validade a “Teoria do Espelho” necessita de maneira imprescindível da objetividade e imparcialidade. Informar sem sugestionar. Os jornalistas devem retratar o acontecimento com “neutralidade”. Evitando a “contaminação” da notícia com suas opiniões (salve exceções de articulistas, que têm como princípio expor seu ponto de vista assim como os editoriais). É óbvio que, ao redigir uma matéria, a opinião do jornalista se transpõe para as linhas do texto como testemunha Hernandes (2006). ... é impossível ter acesso à realidade sem fazer escolhas, sem determinar valor para alguns aspectos em detrimento de outros. Podemos dizer que a própria idéia de significação é uma “opinião” sobre o mundo. (HERNANDES, 2006, p. 33) Comentando as dificuldades de se ter objetividade Clóvis Rossi, jornalista da Folha de S. Paulo, ilustra que O Manual de Redação do jornal Folha de S. Paulo foi o primeiro livro-texto oficial a reconhecer as dificuldades para a prática da objetividade. ‘Não existe objetividade em jornalismo. Ao redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma uma série de decisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções’, diz o verbete ‘Objetividade’, à p. 34 do Manual... (ROSSI, 1998, p. 12-13) Do mesmo pensamento comunga Charaudeau (2006, p. 241) quando expõe que “relatar e comentar acontecimentos é uma atividade impregnada de subjetividade”. Não há neutralidade nem por parte do leitor nem por parte do jornalista: ambos emitem seus juízos sobre os fatos 8 . Segundo Greimas (1973, p. 152): “O discurso, efetivamente, é não somente o lugar da manifestação da significação, mas ao mesmo tempo o seu meio de transmissão”. Analisar discursos é perscrutar suas genealogias, suas condições de produção, os percursos de configuração dos sentidos até o estágio em que se cristalizam em materialidade e se instituíram em scripts (Steinberger, 2004). A análise do discurso depende sempre do contexto (Pinto, 2002). Sua estrutura não se desvencilha de suas condições de produção. “El sentido no pertence sólo al 8 O guia ético do jornal estadunidense New York Times recomenda ser tão imparcial quanto possível. 28 texto; surge em el encuentro entre lector y el texto 9 ” (GRUPO DE ENTREVERNES, 1982, p. 16). A compreensão de textos é atingida quando a junção de conhecimentos anteriores (repertório) e dos elementos extraídos do texto são julgados pelo leitor como sendo suficientemente coerentes e completos. A decodificação não reside apenas na arquitetura do texto, ela também está na mente dos indivíduos. 1.2. O pensamento francês em comunicação Na construção desta análise teremos como referência intelectual o pensamento contemporâneo francês em comunicação. Da Silva (2003) nos alerta para dificuldade de se aglutinar uma plêiade de intelectuais franceses como Pierre Bourdieu, Edgar Morin, Paul Virilio, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Jaques Derrida, Pierre Levy sob o signo de uma escola francesa com pesquisas em comunicação. Diniz (2005b) esclarece que os franceses pensam a comunicação como intelectuais, não há uma teoria finalizada. Isso já é um indicativo da pluralidade intelectual existente sobre os estudos em comunicação no país. De certo modo, os franceses nunca chegaram a fechar questão sobre o “campo” da comunicação. (...) A comunicação é uma área disputada, estudada, atravessada por outras disciplinas: sociologia, antropologia, lingüística, filosofia, ciências políticas... (DA SILVA, 2001, p. 173). Essa amplitude intelectual no campo da comunicação nos proporciona um rico cabedal de análises. Wolton (2004) realça a importância da abrangência na questão cultural no universo da comunicação. Segundo o intelectual francês: “A investigação sobre a comunicação é, por natureza, uma investigação interdisciplinar”. (WOLTON, 2004, p. 484). Na concepção de Wolton, a comunicação não é uma disciplina ou uma teoria, e, sim, um cruzamento teórico e a mesma deve ser refletida em seu contexto social que, muitas vezes, dão sentido, cor e especificidade a procedimentos de comunicação aparentemente padronizados. Para Pierre Bourdieu, os estudos em comunicação estão 9 Grifo de Grupo de Entrevernes. 29 intrinsecamente ligados à sociologia da cultura. A questão cultural infiltra-se no mundo dos símbolos, das significações, tornando tênues as fronteiras entre as áreas do saber. Os processos comunicativos atravessam praticamente toda a extensão das ciências humanas (Martino, 2003b), sendo a comunicação humana, plural (Greimas, 1973). A comunicação se constitui em um conhecimento polissêmico atraindo atenção de diversos campos intelectuais. Isso se torna relevante uma vez que a produção da notícia é gestada num campo social impregnado de valores e significados. Como a axiologização é cultural, cada sociedade determina o que é positivo ou negativo em seu meio (Ghilardi, 1991). Assim, a contextualização dos acontecimentos é primordial para o bom entendimento da notícia. Em virtude desse quadro eclético, e como nosso corpus de análise são textos oriundos da mídia impressa, tendo como recorte abordagens culturais, costurando o laço ente sociedade e comunicação, vamos nos centrar nos semioticistas Algirdas Julien Greimas 10 e Eric Landowski 11 e o teórico da comunicação Dominique Wolton 12 . 10 Graduado em Letras e Estudos de Diatelogia Franco-Provençal, Algirdas Julien Greimas foi, a princípio, lexicólogo, tendo publicado vários dicionários. Seus estudos sobre semântica levaram-no a investigar o sentido que, conduziram-no, conseqüentemente a procurar constituir uma teoria da significação. Dentre suas pesquisas, reservou um espaço para estudar a mitologia lituana. Estudou Direito na Lituânia e Lingüística em Grenoble (1936-1939). Em 1939, voltou à Lituânia onde cumpriu o serviço militar, participando da Segunda Guerra Mundial. Em 1944, voltou para a França, doutorando-se em 1949 pela Sorbonne. Lecionou em Alexandria, Ancara, Istambul e Poitiers, e foi diretor de estudos na Ecole Pratique des Hautes Etudes em Paris. Em 1965, foi eleito Diretor de Estudos na Ecole Pratique des Hautes Etudes. A partir desse mesmo ano, encabeçou a pesquisa sêmio-lingüística, estabelecendo os fundamentos da semiótica e criando em 1966 o Grupo de Pesquisa Sêmio-lingüística, cujos seminários quinzenais realizam-se até hoje em Paris, sob a coordenação de Jacques Fontanille. Em 1978 criou a Associação para o desenvolvimento da semiótica e a revista Actes Sémiotique, que passou a chamar-se Nouveaux Actes Sémiotiques a partir de 1989 e é publicada até os dias atuais. Dentre suas obras destacam-se Semântica estrutural, Sobre o sentido: ensaios semióticos, Sobre o sentido II, Semiótica e ciências sociais, Semiótica das paixões e Da Imperfeição (seu último livro de autoria individual), dois dicionários de semiótica além de outros dicionários do francês antigo e médio, dentre outras. Em 1992, morre em Paris aos 75 anos. Suas cinzas repousam no cemitério de Kaunas (Lituânia). A influência das idéias de Greimas é notável em várias áreas do campo semiótico, indo da semiótica do espaço e da arquitetura à pintura, teologia, direito e ciências sociais até à ciência da documentação. Sua herança intelectual é mais viva do que nunca como atesta as palavras do semioticista mexicano Raúl Dorra: “A teoria greimasiana não é, a princípio, a única teoria semiótica de que dispomos nem, talvez, a mais original. Mas, sem dúvida, é a mais coerente e claramente desenvolvida, a que construiu um sistema mais complexo e fundou uma escola mais vasta e mais sólida”. 11 Eric Landowski é semioticista de longa data cunhou o termo sóciossemiótica, como campo de investigação no qual trata das “interações entre agentes do discurso” é Diretor de pesquisa do 30 1.3. A Semiótica Francesa Um dos pilares metodológicos que sustentam esta pesquisa ergue-se centrado em conceitos da Semiótica Francesa. Também conhecida como Semiótica da Escola de Paris, essa teoria da significação teve como principal idealizador o intelectual de origem lituana Algirdas Julien Greimas, e configura-se em um método de análise textual que auxilia na investigação dos meandros que percorrem um enunciado e a construção de seu sentido, como testemunha Barros (1988, p. 07): “A semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”. Uma “teoria da produção de sentidos”, como diria Greimas. A semiótica não se ocupa apenas com o signo, mas com a significação, pois de acordo com Greimas (1981, p. 48) “... a teoria da comunicação social generalizada deve colocar-se sob a égide não da informação, mas da significação”. Ocupa-se, portanto, com o estudo das manifestações de forma a buscar compreender como o enunciador constrói o seu texto provocando determinados efeitos de sentido sobre o sujeito receptor. Assim, ela se apresenta como modo de leitura do mundo dos outros, dos simulacros por eles construídos através dos signos. A significação real da linguagem não está na palavra, mas no discurso. As palavras podem dar nome às coisas mas, antes de os termos serem integrados em proposições, eles nada afirmam, nada evitam ou negam... nada dizem. (ECO apud PERUZZOLO, 2004, p.92) Centre National de la Recherche Scientifique (CEVIPOF-FNSP-CNRS), redator-chefe da revista “Nouveaux Actes Sémiotiques” (Université de Limoges). 12 Dominique Wolton é professor, teórico da comunicação e dirigente do Laboratório de Comunicação e Política do CNRS (Centro National de Recherche Scientifique). Sua prática em pesquisa se aproxima dos empiristas-críticos: “A sociedade jamais será justa ou igualitária mas, pelo menos, ela originou, por intermédio do valor da comunicação e graças às técnicas que levam o seu nome, instrumentos e referenciais que estão em conformidade com o ideal democrático”. (WOLTON, 2004, p. 124). Escreveu importantes obras na área de comunicação como Elogio do grande público – uma teoria crítica da televisão e Pensar a comunicação. Numa abordagem que centraliza as necessidades do estudo das Teorias da Comunicação como condição para a compreensão dos desafios políticos, culturais, técnicos e sociais, Wolton coaduna, junto com outros intelectuais, com o pensamento que estamos na era da comunicação total, da avalanche comunicacional. (Diniz, 2005b) 31 Para Greimas, as ciências da significação procuram compreender o homem e a sociedade considerando que suas atividades são apreendidas e organizadas seqüencialmente de modo a buscar resultados que permitam a transposição do individual para o social, interpretando as formas de manifestação de linguagens. O significado de um texto pode ser organizado de acordo com um percurso, como concebe a teoria semiótica. O percurso gerativo do sentido é um método capaz de atingir a sua estratificação, evidenciando, em diferentes níveis, os recursos utilizados pelo enunciador para fazer-crer o enunciatário e também como se dá a produção do significado, em um processo que vai do mais simples ao mais complexo. De acordo com Landowski (1992) ... o que a semiótica pretende captar são de fato, as estruturas e operações “sêmio-narrativas” mais profundas, aquelas que regem a própria produção e intercâmbio de significações. (LANDOWSKI, 1992, p.12) Quadro 1. Percurso gerativo do sentido Componente Sintáxico Estruturas sêmio-narrativas Estruturas discursivas Componente Semântico Nível profundo - Sintaxe fundamental Semântica fundamental Nível de superfície - Sintaxe narrativa Semântica narrativa Síntaxe discursiva Semântica narrativa Discursivização (actorialização, temporalização, espacialização) • Tematização • Figurativização Fonte: Fiorin (1989) Barros (1988) acrescenta que Para explicar “o que o texto diz” e “como o diz”, a semiótica trata, assim, de examinar os procedimentos de organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e recepção do texto. (BARROS, 1988, p. 08) 32 Na análise das reportagens que direcionam esta pesquisa, levantaremos no campo da semântica discursiva dois procedimentos: tematização e figurativização. Temas e figuras constituem-se no nível mais concreto da produção discursiva, descrevendo as ligações isotópicas de temas abstratos que podem ser ligados a figuras concretas. Com esta metodologia, o enunciador certifica a coerência semântica do discurso e institui efeitos de sentidos, principalmente, de realidade. Figuras e temas quando encadeados em percursos, combinam-se para construírem efeitos de sentidos nos textos. ... entre o desenvolvimento argumentativo – temas e figuras –, pode estar um mecanismo muito interessante e que se costuma chamar de polifonia, que é a estratégia discursiva de fazer ressoar o sentido que circula em outros campos, com o intuito (sempre) de construir o efeito de verdade do que se diz. Do ponto de vista da construção dos sentidos, todo texto é perpassado por vozes de diferentes enunciadores, ora concordantes ora dissonantes, o que mostra que o texto é uma composição essencialmente dialógica. Falar de vozes presentes no texto significa afirmar a natureza social dos significados e sentidos, que se formam e organizam sempre entre relações sociais. São esses significados e sentidos, produzidos em diferentes contextos de vivência humana, que se fazem vibrar nas superfícies do discurso. 13 (PERUZZOLO, 2004, p.182) Segundo Barros (1998, p. 68): “Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organizá-lo em percursos”. Todo enunciado, em seu nível discursivo, é tematizado. Dessa forma, examinam-se os percursos aplicando preceitos da análise semântica e, indicando os temas que se repetem (ou isotopia), torna-o coerente por revestir os mesmos traços semânticos. A figurativização pode ser entendida como procedimento de figuras do conteúdo que recobrem os percursos temáticos abstratos e atribuem-lhe características de revestimento sensorial. Pois, o enunciatário crê ou não no discurso, graças, em grande parte, ao reconhecimento de figuras de mundo. Assim, figurativizar é tecer uma imagem para referenciar as representações vividas, revestir os termos com traços de lembranças sensoriais (Peruzzolo, 2004). Para Barros (1988), as figuras são, por excelência, o lugar do ideológico no discurso sendo que 13 Grifos nossos. 33 Os efeitos de sentido de realidade resultam, portanto, de diferentes procedimentos discursivos e textuais de investimentos figurativo de conteúdos abstratos. (BARROS, 1988, p. 154) Com esse cabedal metodológico, ... a Semiótica trata de examinar tanto os procedimentos da organização textual (que na comunicação social são muitos) quanto os mecanismos enunciativos de produção e recepção do texto. Nesse sentido, o texto se conceitua por dois momentos que se complementam: primeiro, é uma organização, que faz dele um todo de sentido e, segundo, é algo colocado entre comunicantes. Como organização de sentido, o texto se apresenta como objeto de significação que permite o exame dos procedimentos e mecanismos que o tecem. Como meio de comunicar, o texto se apresenta na forma de objeto de relação, por meio de que ele se localiza entre os fenômenos culturais, inserido dentro de uma sociedade, fazendo parte de suas forças constitutivas. Nesse sentido, ele apresenta condições sócio-históricas de existência e produção. “Assim, todo discurso, antes de testemunhar as coisas do mundo, testemunha uma relação ou, mais exatamente, testemunha o mundo testemunhando uma relação” (CHARAUDEAU, 1997, p. 42 apud PERUZZOLO, 2004, p. 32-33) O quadrado semiótico é um importante instrumento de análise textual presente na semiótica francesa. Ele permite a indexação das relações diferenciais que determinam o nível profundo do processo gerativo do significado. El cuadrado semiótico debe ser entendido como un mecanismo, es decir, como un conjunto organizado de relaciones, capaz de dar razón de las articulaciones del significado. Gracias a ese “instrumento” podremos evaluar y ordenar todos los elementos cuyas relaciones rigen la manifestación Del sentido em un texto. La aplicacion del cuadrado semiótico a un texto deve permitirmos identificar las oposiciones y las relaciones pertinentes para ese texto y descubrir cómo se verifica el funcionamento de esas oposiciones y relaciones debe hacer posible representar, para um texto dado, la forma del sentido. (...) Para dar razón de esto, el cuadrado semiótico deve dinamizarse, ponerse en movimento. Habrá que considerarlo entoces como una serie de opraciones. A cada relación del modelo taxonômico va a corresponder una operación, y el cuadrado semiótico será considerado como un modelo sintáctico encargado de regular el orden de esas operaciones. 14 (GRUPO DE ENTREVERNES, 1982, p. 162-163) 14 Grifos de Grupo de Entrevernes. 34 A combinação das relações de identidade e alteridade, representadas no quadrado semiótico, constitui o modelo ou esquema a partir do qual se geram as significações mais abstratas da textualização. A representação pelo quadrado das estruturas elementares do texto permite visualizarem-se as relações mínimas que o definem, o denominador comum de cada texto. Assim, as categorias semânticas podem ser axiologizadas na instância das estruturas fundamentais tímica /euforia/ vs /disforia/ (Barros, 1988). O quadrado semiótico consiste na representação visual da articulação lógica de qualquer categoria semântica. Partindo da noção saussureana de que o significado é primeiramente obtido por oposição ao menos entre dois termos, o que constitui uma estrutura binária, representa-se no quadrado semiótico a combinatória das relações entre contrários e contraditórios. Este instrumento é de grande valia quando, na análise das reportagens, extrairmos os valores presentes no texto. No caso dos ataques sofridos pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, muitas reportagens mostram a dualidade na produção de sentidos externada por eixos eufóricos e disfóricos como: /Oriente/ vs /Ocidente/, /Civilizados/ vs /Bárbaros/, /Cristianismo/ vs /Islamismo/, /Moderno/ vs /Retrógrado/, /Moderados/ vs /Fundamentalistas/... Valores que adquirem o significado de seu enunciador e de seu universo cultural. 35 Esquema do quadrado semiótico S1 S2 S2 S1 Onde a Significação (S) se opõe a Não-Significação (S). Assim temos: Relação entre complementares (S1 / S2) Relação entre contraditórios (S1, S1 / S2, S2) De certa forma, o quadrado semiótico resgata a figura do “quadrado dos opostos” criado por filósofos durante a Idade Média, onde se podia visualizar as preposições segundo a qualidade, a quantidade, a modalidade e a relação. O poder operatório do quadrado semiótico é fundamental, aplicando-se a toda e qualquer instância significativa. Nele repousam todas as textualizações. Por um lado, o quadrado semiótico representa uma articulação das relações fundamentais estáveis de todo o processo gerativo. As relações de identidade encontram-se estabelecidas nas estruturas de profundidade. Por outro lado, possui uma dinâmica relacional que induz ao próprio processo gerativo. 36 O nível profundo, conceito que utilizaremos nesta pesquisa, almeja revelar o plano mais abstrato da produção, do funcionamento e da interpretação do texto, organizando a coerência do universo conceitual, ou seja, identificando o que é de mais elementar. ... las estructuras profundas se construyen (...) de las palabras, ordenando los factores que determinan la existencia de los conjuntos y de los programas. (...) ... a nivel profundo se estabelecen relaciones entre valores. (GRUPO DE ENTREVERNES, 1982, p. 139-167) No nível profundo aparece o tema global, a significação simbólica de uma narrativa (Nöth, 1996). Sua operacionalização ocorre através da oposição semântica de dois semas articulados pelas categorias de euforia (positivo) e disforia (negativo) e das operações sintáticas de negação e asserção. Com efeito, o nível profundo estabelece-se através da percepção das diferenças que captam “... ao menos dois termos-objetos, como simultaneamente presentes” e relaciona-os “de um ou de outro modo”, como afirma Greimas (1973, p.28), apontando como conseqüência a certeza de que “... um termo-objeto só não comporta significações” e estas, por sua vez, pressupõem a existência da relação, condição necessária para se estabelecer sentidos. 1.4. Comunicação: uma prática antropológica A técnica da comunicação é tão antiga quanto à própria humanidade. Sem a comunicação, o ser humano não teria progredido socialmente criando, ao longo do tempo e do espaço, a cultura como fato humano concreto transmissível de geração a geração, cumulativa, histórica, mutável e em processo constante de revisão e aperfeiçoamento. A comunicação permitiu, sem dúvida, a continuidade da vida social pela compreensão da subjetividade do outro. Pela comunicação foi possível pensar em ação coordenada em função de objetivos e metas presentes nos primeiros hominídeos orientados para a produção e reprodução das condições de existência. Sem um plano vivenciado, articulado, comum e socializado não teríamos chegado a resultados coletivos significativos. A experiência humana 37 jamais seria democratizada sem o desenvolver da comunicação. A cultura acumulada pela humanidade jamais seria apropriada pelo coletivo sem a criação dos meios de comunicação. O existir do homem só é possível por meio da Comunicação. Ela permeia toda a sua vida. Em qualquer momento e lugar, onde existe vida humana, existe Comunicação. Imaginemos que os tijolos só conseguem sustentar a parede se houver massa, de cimento ou barro, unindo-os firmemente. Se compararmos o mundo a uma imensa casa e as pessoas sendo os tijolos, então a massa que une esses tijolos é a Comunicação. De fato, o mundo que hoje conhecemos – cheio de problemas, mas também repleto de realizações para a vida – desenvolveu-se graças à Comunicação que ligou a humanidade. Antônio Carlos Moreira afirma que certo dia alguém contestou esta comparação, dizendo que o ser humano conseguiu o progresso do mundo com sua inteligência. E não está errada esta idéia, porém ela não é completa. Pois de nada adiantaria o homem ter capacidade de raciocínio se não houvesse criado formas de transmitir, comunicar suas descobertas, seus conhecimentos. (RABAÇA & BARBOSA, 2001, p. 157) Desde o momento em que os homens passaram a viver em sociedade, seja pela reunião de famílias, seja pela comunidade de trabalho, a comunicação tornou-se imperativa. Nesta condição, a análise dos instrumentos de comunicação passa, necessariamente, pelo conhecimento das sociedades. O mais importante na informação e na comunicação não são tanto as ferramentas e o mercado, e sim, os homens, a sociedade e a cultura (Wolton, 2004). Ampliando tal idéia, Wolton (2004) aduz que A comunicação é, antes de mais nada, uma experiência antropológica fundamental. Do ponto de vista intuitivo, comunicar consiste em compartilhar com o outro. Simplesmente não há vida individual e coletiva sem comunicação. E o que caracteriza cada experiência pessoal, como a de qualquer sociedade, é definir regras de comunicação. Não há seres humanos sem sociedade, como não há sociedade sem comunicação. E é por isso que a comunicação é, ao mesmo tempo, uma realidade e um modelo cultural. Antropólogos e historiadores definem progressivamente os diferentes padrões de comunicação, interpessoais e coletivos, que se sucederam na história. Jamais houve uma comunicação em si, ela está sempre ligada a um padrão cultural. Ou seja, a uma representação do outro, porque comunicar consiste em difundir, mas também interagir com um indivíduo ou uma coletividade. O ato banal de comunicação condensa em realidade a história de uma cultura e de uma sociedade 15 . (WOLTON, 2004, p.30) 15 Grifos de Dominique Wolton. 38 Refletir sobre a “experiência antropológica em comunicação” consiste-se em ter a sociedade no campo de análise. Nos primórdios da história da sociedade humana, o indivíduo se identificava basicamente com o clã e a aldeia em que vivia. As chances de conhecer valores e características diferentes eram reduzidas, dada a pouca freqüência do contato entre grupos. Esse relativo isolamento levou cada grupo a criar mecanismos próprios de sobrevivência, formas específicas de relacionamento, de transformação da natureza e da vivência em comunidade. Essas condições fizeram com que os diversos grupos desenvolvessem crenças, costumes, formas de comunicação, idiomas, manifestações artísticas, alimentação, surgindo assim, diversas culturas. Os contatos esporádicos entre os grupos ocasionaram tanto choques como assimilações culturais. Com o tempo, essas assimilações e choques intensificaram-se em virtude das migrações, das guerras, do desenvolvimento e do crescimento das atividades comerciais. Esses contatos possibilitaram, ainda, o surgimento de novas culturas, pois os povos, ao migrarem, também ocupavam áreas desabitadas e criavam seus próprios signos para externar seus costumes e crenças. Fiorin (1995, p. 42) expressa que: “Formas de dizer o discurso são aprendidas e estão de acordo com as tradições culturais de uma sociedade”. Da aproximação de duas ou mais culturas decorre, de modo geral, a avaliação recíproca, isto é, o julgamento do valor da cultura do “outro”. Normalmente, esse julgamento é feito a partir da cultura do “eu”. Assim, a análise da outra cultura tende a considerar a sua própria como a ideal e a mais avançada. Passa-se, então, a desprezar os valores, o conhecimento, a arte, a crença, as formas de comunicação, as técnicas, enfim, a cultura do “outro”. Mas quem é o “outro”? Landowski responde ao afirmar que ... a figura do Outro é, antes de mais nada, a do estrangeiro, definido por sua dessemelhança. O Outro está, em suma, presente. Presente até demais, e o problema é precisamente este: problema de sociabilidade, pois se a presença empírica da alteridade é dada de pronto na coabitação do dia-a-dia das línguas, das religiões ou dos hábitos – das culturas –, nem por isso ela tem necessariamente sentido, nem, sobretudo, o mesmo sentido para todos. (LANDOWSKI, 2002, p. XII) 39 Não tendo o mesmo sentido para todos, é crucial que o bom senso descortine a teia analítica e quebre o pensamento reducionista para se emitir juízo sobre determinada notícia ou cultura como aconselha Descartes (1996, p.65) “... não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes...” Vícios em fazer tábula rasa das informações colocando-as em uma mesma seara de informações como se o mundo e suas culturas fossem algo homogêneo. Virtudes em absorver e interpretar a notícia despindo-se de preconceitos nas análises, transpondo o bom senso para o significado. Significado que pode se transfigurar de acordo com o local em que é concebido e divulgado. Segundo Wolton (2004) o mundo assiste atualmente a “revanche da geografia”. A informação e o jornalismo libertaram-se das limitações impostas pelo tempo, mas tropeçaram no segundo termo, o espaço. A mesma informação não tem o mesmo sentido conforme as áreas culturais e os sistemas simbólicos. (...) Hoje, a informação confronta-se com o relativismo histórico e geográfico. (...) Quanto mais a informação é mundial, mais a noção de ponto de vista é essencial. (WOLTON, 2004, p. 266-267) Ampliando a análise de Wolton podemos dizer que hoje, mais do que nunca, o binômio espaço-tempo dilui-se numa só substância. O espaço geográfico não é algo despojado de conceito. Nele afloram-se civilizações, culturas... Cada cultura materializa suas concepções em uma base física. A contextualização no tempo só é possível quando a contextualidade no espaço fica estabelecida. Afinal, não existe tempo ausente no espaço, e espaço divorciado do tempo, uma vez que o real é a manifestação espaço-temporal. 40 Nas atuais condições de globalização, a metáfora proposta por Pascal parece ter ganho realidade: o universo visto como uma esfera infinita, cujo centro está em toda a parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes repetida, segundo o qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia... Como nos lembra Michel Serres, “(...) nossa relação com o mundo mudou. Antes, ela era local-local; agora é local-global (...)”. Recorda esse filósofo, utilizando um argumento aproximativamente geográfico, que “hoje temos uma nova relação com o mundo, porque o vemos por inteiro. Através dos satélites, temos imagens da Terra absolutamente inteira”. Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contrastes, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. Talvez, por isso mesmo, possamos repetir com Edgar Morin (...) que “hoje cada um de nós é como o ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que o contém”. (...) Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. (...) Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma maior individualidade. (...) Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente. (SANTOS, 1996b, p. 251-273) Em um mundo permeado pela multiterritorialidade como o nosso, a noção de ponto de vista é prerrogativa fundamental. Wolton (2004, p. 20) alerta que “no passado, a identidade era um obstáculo à comunicação, hoje em dia ela se torna a sua condição”. De um ponto a outro, de uma época a outra, as atitudes, as maneiras de falar e os códigos sociais mudam. As realidades culturais não apresentam a mesma face. A comunicação, que tende a homogeneizar o espaço, encontra, com efeito, três tipos de obstáculos: 1) a distância atrapalha o direcionamento das informações; 2) as trocas são interrompidas freqüentemente nos limites das áreas onde as mesmas convenções de comunicação são empregadas, os limites lingüísticos, por exemplo; 3) por causa dos valores reconhecidos e dos códigos morais adotados, certos grupos recusam o contato ou são construídas identidades tão fortes que rejeitam a maior parte da informação que recebem. (Claval, 2004). 41 Enriquecendo o debate, Martín-Barbero (2004) explica que Entender essas transformações exige, em primeiro lugar, uma mudança de categorias com que pensamos o espaço, pois, ao transformar o sentido do lugar no mundo, as tecnologias da informação e da comunicação – satélites, informática, televisão – estão fazendo com que o mundo tão intercomunicado se torne indubitavelmente cada dia mais opaco. (...) E atualmente o que se está unificado em nível mundial não é uma vontade de liberdade, mas sim de domínio, não é o desejo de cooperação, mas o de competitividade. Por outro lado, a opacidade remete à densidade e compreensão informativa que introduzem a virtualidade e a velocidade em um espaço-mundo feito de redes e fluxos e não de elementos materiais. Um mundo assim configurado debilita radicalmente as fronteiras do nacional e do local, ao mesmo tempo em que converte esses territórios em pontos de acesso e transmissão, de ativação e transformação do sentido de comunicar. E não resta dúvida de que não é possível habitar no mundo sem algum tipo de ancoragem territorial, de inserção no local, já que é no lugar, no território, que se desenrola a corporeidade da vida cotidiana e a temporalidade – a história – da ação coletiva, base da heterogeneidade humana e da reciprocidade, características fundadoras da comunicação humana, pois, mesmo atravessado pelas redes do global, o lugar segue feito do tecido das proximidades e das solidariedades 16 . (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 58-59) Para Moreira (2006), o lugar é hoje uma realidade determinada em sua forma e conteúdo pela rede global da nodosidade e ao mesmo tempo pela necessidade do homem de (re)fazer o sentido do espaço, ressignificando-o como relação de ambiência e de pertencimento. As identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Assim, tempo e espaço são coordenadas básicas de todos os sistemas de representações (Hall, 2005). As reportagens, via de regra, irão sempre costurar uma ancoragem para fortalecer o texto e, obviamente, o tipo de sentido que se deseja construir e estender ao leitor. Peruzzolo (2004), detalhando o processo de ancoragem, explica que 16 Grifos de Jesús Martín-Barbero. 42 Os efeitos de real, na sua maioria, são construídos pelo procedimento da semântica discursiva que se costuma denominar ancoragem. Trata-se de atrelar o dito a pessoas, espaços geográficos conhecidos, datas, fatos históricos, fotografias, simulações computacionais que o receptor reconhece como “reais”, como existentes. É um esforço codificante que visa tornar o sentido concreto, denotativo, de certo modo localizável, sensível, “iconizando-os”, como se fossem transcrições/cópias da realidade 17 . (PERUZZOLO, 2004, p. 166) O desprezo de uma cultura em relação à outra finca as colunas do pensamento fundamentalista. Nem sempre se conjuga corretamente o local com o global. Há uma equação inversa: a aproximação das distâncias físicas ilustra a amplitude das distâncias culturais. Assim sendo, o poder das identidades não deve ser menosprezado. Deve-se desarmar a armadilha da confusa (e enganosa) mistura entre tempo técnico e tempo social, visto que a cronologia de ambos é bem distinta. Semioticamente falando, só há espaço-tempo em função de competência específica de sujeitos que, para se reconhecerem, e antes de mais nada, para se construírem a si próprios enquanto tais, têm de construir também, entre outras coisas a dimensão “temporal” de seu devir e o quadro “espacial” de sua presença para si e para o Outro. 18 (LANDOWSKI, 2002, p. 67) A comunicação é um ato, e, por isso mesmo, acima de tudo, escolha. (Greimas, 1973). Todo produto midiático vende identidade. É preciso olhar para quem recebe as informações. O sentido dos fatos depende da trama em que estão inseridos. O saber de cada um a respeito do mesmo objeto é diferente, porque é condicionado pelo ponto de vista em que cada um se coloca para apreendê-lo, estudá-lo, analisá-lo. Tendo adquirido um saber a partir de uma certa perspectiva, cada um dos sujeitos atribui a seu conhecimento a marca da certeza que confere ao do outro a qualificação de equívoco, ou seja, cada um dos sujeitos considera seu saber como saber e o do outro como não saber. Isso leva a uma polêmica, a uma confrontação, em que cada um tenciona fazer o outro desqualificar o saber que havia adquirido anteriormente e aceitar o ponto de vista alheio como verdade. (FIORIN, 1989, p. 16) 17 18 Grifo de Adair Caetano Peruzzolo. Grifo de Eric Landowski. 43 Dificilmente um acontecimento é apreendido de maneira completa. O uso inevitável de filtros cognitivos, culturais, sociais, históricos, políticos, ideológicos, econômicos, institucionais entre outros, acaba levando a uma reconstituição parcial de um estado embrionário de discursividade. Nesse estado, ou de um discurso ainda em formação, vão se destacando diferenças sobre um fundo de uniformidade. Um signo para uma pessoa, uma comunidade, um grupo ou uma cultura não é signo para todos, indistintamente. Daí a importância do “estar no lugar de para alguém”. Tudo depende da informação que o signo dirige para alguém que, por sua vez, resulta da relação que se estabelece entre significante e significado 19 . (MACHADO, 2003, p. 281) O leitor vai extrair de sua relação com o texto não somente um sentido e, sim, uma significação. Uma diferença é algo que não poderíamos conhecer a priori, que se constrói no próprio processo do conhecimento através das palavras, no próprio processo do dizer. O que merece ser analisado agora é que os destinatários não recebem simples mensagens reconhecíveis a partir de códigos compartilhados. Recebem, isto sim, conjuntos de práticas textuais oriundas da cultura. Com isso, através da incorporação de contribuições advindas da semiótica da cultura, o modelo semiótico-textual veio possibilitar a apreensão do modo como, pela mediação da cultura, os dados sociológicos dos aparelhos dos mass media (fluxo unidirecional, centralização, formatos rígidos etc.) se transformam em mecanismos comunicativos que incidem sobre processos de interpretação, aquisição de conhecimentos e sobre os efeitos dos mass media. (SANTAELLA, 2001, p.58) Um texto jornalístico não trata apenas de um assunto, mas do que podemos saber sobre ele. Na sua compreensão estão embutidos os processos da produção discursiva, as decisões que o jornalista tomou ao escrevê-lo, as informações que ele conseguiu obter, o cuidado ao relatar certos fatos, os links causais que o jornalista fez ou deixou de fazer. Reza a teoria greimasiana que o texto parte de um saber-fazer (competência) para realizar o fazer-saber (informação) e tentar provocar um fazer-crer (credibilidade). O fazer-crer torna-se o objeto de desejo. Assim, engloba-se, segundo a semiótica francesa, quatro grandes categorias 19 Grifos de Irene Machado. 44 manipulação: tentação, sedução, provocação e intimidação. Alcançar e sustentar a credibilidade configura-se no eldorado do campo jornalístico. Afinal, como alerta Wolton (2004, p. 280): “Se o receptor não confia mais no jornalista, a informação perde parte de seu valor”. Sem credibilidade as palavras são apenas prisioneiras em um papel. Não produzem som nem efeito persuasivo. Ecoam-se no vazio da insignificância. As reportagens externam características sociais em seus textos. A informação não é neutra. Ela é selecionada, transmitida e aplicada segundo o ponto de vista e os interesses de países, empresas, partidos políticos, movimentos sociais, etc. Interrogações, por exemplo, podem não trazer respostas convincentes ou objetivas durante o ato enunciativo, mas instigam reflexões sobre as diversas categorias da linguagem, suas manifestações e interface com os atores sociais. Essas produções de sentidos ganham relevo principalmente quando o foco são as relações internacionais, como nos informa Steinberger (2005) A formação da opinião pública sobre fatos internacionais se dá com base em quatro fontes visíveis: a informação acadêmica, a indústria cultural, os depoimentos vivenciados e a informação jornalística divulgada através de revistas, jornais, televisões, rádios e Internet a principal fonte de referência para a formação de opinião. (STEINBERGER, 2005, p. 29) Joseph Goebbels, Ministro da Informação Popular e Propaganda Nazista dizia que: “É mais fácil distorcer a imagem daquilo que desconhecemos”. Em síntese: se não tivermos conhecimento necessário para emitir opinião, e nem bom senso em ampliar nosso repertório para melhor compreensão, aceita-se conceitos que nem sempre condizem com a realidade apresentada. De acordo com Greimas (1973) e Landowski (2002) ... o mundo humano se define essencialmente como mundo da significação. Só pode ser chamado ”humano” na medida em que significa alguma coisa. (GREIMAS, 1973, p. 11) ... a única coisa que, sob uma forma ou outra, poderia realmente nos estar presente, é o sentido. Nunca estamos presentes na insignificância 20 . (LANDOWSKI, 2002, p. IX) 20 Grifos de Eric Landowski. 45 E, é nessa esfera, que a mídia tem seu ponto nevrálgico. A linguagem jornalística é pródiga na utilização e emancipação de signos como atesta Steinberger (2005). Se a mídia é a maior articuladora de significações sociais imaginárias, isso não implica que seus produtos sejam inteiramente originais. Ao contrário, os discursos geopolíticos da mídia resultam, em sua maioria, de reconversões simplificadoras de outros discursos institucionais como o militar, o religioso, o diplomático, etc. A originalidade da mídia está na maneira como se apropria desses imaginários e trabalha-os em um modo de reciclagem. (STEINBERGER, 2005, p. 124) O sentindo não é jamais o simples produto de um pensamento diretamente confrontado com a realidade. Ele resulta sempre de uma negociação (Landowski, 2002). Um quadro, um poema são apenas pretextos, o único sentido que eles têm é aquele – ou são aqueles – que lhes damos. Eis aqui o nós erigido em instância suprema do sentido: é ele que comanda o filtro cultural de nossa percepção do mundo, é ele também que seleciona e ordena as epistemes que “se implicitam” nos objetos particulares – quadros, poemas, narrativas –, resultados de emaranhados do significante 21 . (GREIMAS, 1975, p.07-08) As trocas de mensagens se dão entre um destinador e um destinatário que se utilizam da linguagem para intercambiar valores que se articulam de modo a gerar significações permitindo o individuo ver e compreender o mundo, compartilhando modos de vida e comportamentos manifestados por um conjunto de regras que são adotadas através de convenções previamente definidas e representadas por signos que aglutinam expressão e conceito, capazes de mediar e expressar pensamentos. Não existe leitura que não seja interpretativa. Todo enunciado apresenta duas instâncias na enunciação: o enunciador, dotado de um fazer persuasivo, e o enunciatário de fazer interpretativo (Diniz, 2002). Compreender um enunciado não é somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar... (Maingueneau, 2004). A falta de conhecimento conduz para as águas rasas e envenenadas da desinformação. 21 Grifos de Algirdas Julien Greimas. 46 As sociedades tendem a olhar o mundo pelo prisma de suas culturas, de processos históricos construídos secularmente. A textura dos acontecimentos (e dos sentidos que os fazem existir discursivamente) pode variar de densidade conforme o local em que se manifesta. Conhecer as produções simbólicas das sociedades é de suma importância para compreensão da essência da notícia produzida. A premissa que define semiótica como disciplina para o estudo das mensagens, que entende produção, circulação e interpretação de mensagens como operação e intervenção com e no código – e, conseqüentemente, com e na linguagem, discurso e demais sistemas semióticos – não é descrição de um mecanismo. Trata-se da tradução da necessidade interna da cultura de organizar as informações em linguagens. Estamos lidando, portanto, com manifestações de cultura: mensagem, linguagem, comunicação, sistemas de signos que serão palavras vazias se não forem imersos na cultura. 22 (...) Portanto, vamos partir do pressuposto de que o mundo é produtor potencial de informações; contudo, se essas informações não forem organizadas em linguagem de modo a criar signos para os quais buscamos significações, não estaremos diante de objetos de cultura mas tão-somente de fenômenos físico-naturais. Por conseguinte semiótica aqui não pode ser pensada senão como disciplina para a compreensão dos sistemas de signos imersos na cultura 23 . (MACHADO, 2003, p. 283-284) Há sempre um antes e um depois da comunicação. Para comunicar é preciso reforçar as identidades, reencontrar o tempo e respeitar o que nos separa. E como ninguém é exterior a comunicação, a reflexão requer, ao mesmo tempo, esforço e distanciamento para chegar ao conhecimento. Segundo Wolton (2004) Hoje, tudo pode virar informação; não há mais limite para a produção e difusão da informação. Mas, por isso mesmo, corre-se o risco de haver saturação. Até que ponto o cidadão (...) pode absorver tantas informações, sendo que a maior parte não lhe interessa, nem lhe diz respeito? O limite está do lado da recepção. (WOLTON, 2004, p. 265) O engajamento de determinados veículos de comunicação irão nortear a cobertura por ele realizada. “Buscar na aparência a essência”. Essa máxima de sintetiza o que queremos dizer: o bom senso consiste em não aceitar prontamente 22 23 Grifos de Irene Machado. Grifos nossos. 47 as verdades, e sim, interpretá-las entoando a criticidade analítica e dissolvendo o venenoso pensamento reducionista. Comunicar é integrar; mas também pode fragmentar. Esta máxima ilustra que, num processo interregno, minado com desinformações plantadas propositalmente ou por equívoco, o arco-íris da informação pode conduzir ao sepulcro da insipiência. 48 CAPÍTULO 2: O DIA 11 DE SETEMBRO DE 2001, O JORNALISMO EM TEMPO REAL E O ALINHAMENTO MIDIÁTICO Nenhum romancista pode imaginar algo mais terrível que a verdade. Umberto Eco 2.1. Novo século, velhas histórias O século XX havia se esvaecido no horizonte histórico. Deixara a triste conquista de ter se tornado a centúria mais violenta que a história testemunhara. Mesmo com o caminhar do tempo, as nuvens de cólera que encobriram os últimos cem anos ainda não haviam sido totalmente dissipadas. O terror engravidou a história que no nono mês do recém-chegado século daria a luz a um novo ciclo de horror. O batismo do século XXI seria espargido com sangue. Com a velocidade de um raio, a flecha envenenada da violência dilacerava a poeira do tempo e atingiria o coração dos Estados Unidos com exímia pontaria. A hemorragia causada pelo golpe deixaria seqüelas no corpo da humanidade. A sangria dava contornos às letras que começavam a ser impressas no livro das clássicas tragédias mundiais. Nesse torpe enredo, as tintas da violência começavam a ganhar cores vivas e catastróficas. Um eclipse de pânico encobriria o território estadunidense. Expandindo-se, a sombria nuvem da violência carregaria o medo para outros países. Os ataques expuseram a vulnerabilidade dos Estados Unidos frente ao terrorismo, pois não se trata de um combate entre Estados, com território e forças armadas que possam ser identificadas. Os terroristas se tornam “invisíveis” ao se diluírem em ramificações internacionais e também não manterem compromissos com as leis internacionais, nem com qualquer convenção de guerra. 49 Podia-se perceber que o dia 11 de setembro de 2001 não findaria cronologicamente. As sombras e dúvidas impressas nessa data ultrapassariam as vinte quatro horas de um dia. Esta pesquisa analisará os discursos impressos pela mídia brasileira e que direcionaram as interpretações e os sentidos produzidos pelo megaevento terrorista de 11 de setembro de 2001. Contudo, os ataques aos Estados Unidos foram, em grande parte, transmitidos ao vivo para bilhões de pessoas. Através de um fato é que as mídias repercutem seu acontecimento e suas conseqüências. As imagens e intensa cobertura televisiva do 11 de setembro de 2001 nutriu de informações outros veículos midiáticos. Assim, neste capítulo, serão enfocados os primeiros momentos da cobertura jornalística em tempo real e os desdobramentos do estrondoso ataque terrorista sofrido pelos Estados Unidos e as invasões ao Afeganistão e ao Iraque onde a mídia seria convertida em um poderoso instrumento de guerra. Uma guerra de discursos e de verdades... 2.2. A águia imolada: os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono A realidade sempre ultrapassa a ficção. Jorge Luis Borges Terça-feira, 11 de setembro de 2001. O sol expandia seu brilho sobre os Estados Unidos. Nessa ensolarada manhã de outono a cidade de Nova York emitia seus ruídos. Passos apressados, fluxo constante de automóveis cortando as artérias urbanas, vozes que ecoavam nos estabelecimentos comerciais, nas residências, nas escolas, nos parques... Nova York refletia o dinamismo dos grandes centros urbanos, encampava a complexidade social típica das metrópoles de seu porte. A cidade seguia seu ritmo sem saber que, nas primeiras horas dessa manhã, dois aviões rasgariam o céu da “Big Apple” e mergulhariam para uma ação que abriria uma cicatriz no orgulho da maior potência do mundo contemporâneo. Alheio ao que o breve futuro lhe reservava, o edifício do Pentágono (Washington), assim como Nova York, seguia sua liturgia diária. Os 50 símbolos dos poderes econômico e militar estadunidenses seriam protagonistas de um novo período da geopolítica mundial. As relações internacionais ganhariam um novo formato, a já combalida paz mundial, incertezas. Nessa manhã, o brilho do sol coadunar-se-ia com a escuridão. As sombras projetariam suas trevas sobre o país. Os sons urbanos ecoados em Nova York e Washington seriam tocados com outra melodia. Dor, desespero, dúvidas, perplexidade e mortes seriam transformadas em acordes da ópera do terrorismo. O maestro Osama bin Laden regendo o grupo terrorista Al Qaeda (A Base, em árabe) com uma nota aguda cravava sua cimitarra em espaços-símbolos dos Estados Unidos. A afiada lâmina terrorista imolara a águia estadunidense em seu próprio altar. Em conjunto com as Torres Gêmeas e parte das estruturas do Pentágono, desabara a suposição de que os Estados Unidos eram invulneráveis a ataques de grande magnitude dentro de seu território. Se um grupo terrorista fora capaz de atingir três dos mais importantes símbolos dos Estados Unidos, nada mais parecia estar à prova do terror. Tabela 1. Os roteiros dos ataques aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 Os terroristas agiram a partir de três aeroportos, seqüestrando quatro aviões que decolaram num intervalo de doze minutos. A decolagem O ataque 1 – 07:59 (sic) – Boston 08:48 (sic) – Nova York O Boeing 767 da América Airlines decola para O avião bate na torre norte do World Trade fazer o vôo 11, direto para Los Angeles, com Center, na altura do 100º andar. 81 passageiros, nove comissários e dois pilotos. 2 – 07:58 (sic) – Boston 09:03 (sic) – Nova York O Boeing 767 da United Airlines parte com O avião choca-se contra a torre sul do destino a Los Angeles com 56 passageiros, conjunto de edifícios, à altura do 90º andar. sete comissários e dois pilotos, fazendo o vôo 175. 3 – 08:10 (sic) – Dulles – Washington 09:43 (sic) – Washington O vôo, um Boeing 757, da América Airlines, O Boeing é jogado sobre o Pentágono, a 3 parte com destino a Los Angeles, com 58 quilômetros da Casa Branca. passageiros, quatro comissários e dois pilotos. 4 – 08:01 (sic) – Newark 10:10 (sic) – Shanksville O Boeing 757 da United Airlines deixa o O Boeing cai numa área desabitada, a 130 aeroporto no início do vôo 93, com destino a quilômetros ao sul de Pittsburg, na San Francisco, com 38 passageiros, cinco Pensilvânia. comissários e dois pilotos. Fonte: Revista Veja (19/09/2001), p. 51. 51 2.3. Dificuldades de compreensão de um acontecimento na TV em tempo real Ao vermos um acontecimento, nem sempre o compreendemos de imediato. O flagelo terrorista contra os Estados Unidos em 2001 é um exemplo dessa afirmativa. Os atentados puderam ser vistos à exaustão por bilhões de pessoas. As cenas dos aviões chocando-se contra os edifícios do World Trade Center transformaram-se em um “marketing do terror”. As imagens geraram perplexidade não só nos Estados Unidos, mas no mundo. As reações foram múltiplas e distintas. Contribuindo à discussão, Wolton (2004) nos diz que A informação imediata não é mais fácil de se fazer hoje do que outrora, quando os meios técnicos eram mais rudimentares, pois o mais difícil continua sendo a análise e não a cobertura do acontecimento. Tudo está ao vivo, porém em desordem. Ao vivo não é sinônimo de verdadeiro, e o sentido fica mais difícil de se deduzir quando se está grudado nos acontecimentos. 24 (WOLTON, 2004, p. 285) As imagens do impacto das Torres Gêmeas foram geradas pela mídia estadunidense e reproduzidas por outros veículos midiáticos. Não obstante, a mídia brasileira foi alimentada, num primeiro momento, por imagens fornecidas pela imprensa estadunidense. Segundo os dizeres de Beirão (2001, p.66) “a rigor, tudo o que as outras emissoras fizeram durante a cobertura, inclusive as nossas, foi dublar a CNN”. Sendo a CNN (Cable News Network) uma emissora especializada em jornalismo, somado ao fato de que os atentados foram em seu país-sede, é natural o papel desempenhado por seus profissionais. Caso os atentados fossem no Brasil, Argentina ou França, as emissoras-pátrias é que teriam as primeiras informações. Posteriormente, um maior número de veículos jornalísticos se engajaria na cobertura dos fatos. Contudo, as agências estadunidenses ainda ditavam o ritmo e conteúdo das informações. 24 Grifos de Dominique Wolton. 52 Naturalmente que um evento dessa envergadura rechearia todos os meios de comunicação do mundo. A TV e a Internet realizaram a cobertura quase que simultânea dos atentados. Nos dias que se seguiriam, revistas e jornais se engajariam nessa horda de informações. Pelas dimensões dos atos terroristas e, por ter como alvo os Estados Unidos, à repercussão foi imediata e exaustiva. Os atentados agendariam quase que instantaneamente à imprensa mundial. A desinformação foi à protagonista no início da cobertura. Expressar corretamente o acontecimento, saber se haveriam ou não novos ataques eram os principais entraves. As imagens falavam por si, demonstravam o terror e espalhavam desespero e insegurança. Os meios de comunicação, em especial a TV, transformaram-se em referências. Nos Estados Unidos, pessoas dirigiam-se às suas residências ou a uma TV mais próxima na tentativa de saciar a necessidade de informações. Em determinado momento, o site da CNN estampava uma mensagem pedindo para aqueles que desejassem maiores subsídios que buscassem informações na TV. Até mesmo a MTV, que passa clipes 24 horas por dia, interrompeu a programação para retransmitir a cobertura das explosões em Nova York e Washington feitas pela CBS. (PIMENTA, 2001, p. 11) O evento de 11 de setembro de 2001 mostrou várias imagens carregadas de significados, sendo em um primeiro momento monossêmico. Posteriormente ele torna-se polissêmico produzindo outras interpretações. A intencionalidade em relação ao evento se desvela; brota uma trajetória de significações ao longo do desdobramento dos vários aspectos que emergem durante o período. De acordo com Barbeiro e De Lima (2005, p. 97): “O texto do telejornal tem sua estrutura de movimento, instantaneidade, testemunhalidade, indivisibilidade de imagem e som, sintetização e objetividade.” 53 Todavia, os atentados, particularmente a destruição das torres do World Trade Center, impuseram, de certo modo, uma ruptura entre imagem, texto e som na transmissão ao vivo. Por algumas horas, tinha-se a impressão de que a televisão ficara “imobilizada”, como suas câmeras, diante das Torres Gêmeas, e de que também ela fora seqüestrada e, como suas imagens, tornada como refém. Os responsáveis pelos atos terroristas não se limitaram a monopolizar as telas do mundo: também subverteram o funcionamento corrente do dispositivo televisivo e interferiram na relação habitual entre imagem e acontecimento. (Senra, 2003) A narrativa jornalística valoriza por princípio a irrupção do inesperado, do singular, do a-normal, para, depois, tornar a situar o sensacional no fio de uma história que lhe dá seu sentido e o traz de volta à norma, à ordem das coisas previsíveis... (LANDOWISKI, 1992, p. 120) No Brasil, a Rede Globo de Televisão precedeu as demais. Seu canal de jornalismo a cabo, Globo News, foi o primeiro a munir os telespectadores com imagens sobre os atentados. Como dissemos, a desinformação se destacou no começo da cobertura. Os primeiros instantes da transmissão deram vida ao que Serva (2001) qualifica como “desinformação informada”. Tinha-se a imagem, não a explicação para o que se estava mostrando. O texto narrado pela jornalista Leila Steremberg confirma tal afirmativa. Interrompemos a nossa programação para informar que o World Trade Center, em Nova York, está em chamas. Um avião atingiu uma das torres de um dos prédios mais altos do mundo. Foi um bimotor que atingiu as torres. Você vê imagens ao vivo. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 264) As primeiras informações apuradas eram as de que um avião bimotor tinha sido o responsável pelo choque com a Torre Norte do World Trade Center. As informações ainda eram imprecisas e, em minutos, uma nova imagem mudaria o rumo da cobertura. O jornalista Luis Ernesto Lacombe se relembra de um fato acontecido dias antes. 54 Na semana anterior, um piloto francês maluco havia pulado de parapente e ficou preso na Estátua da Liberdade. Para mim, outro maluco pegou um pequeno avião e se chocou contra a torre. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 265) O choque de um avião de pequeno porte, como se supunha de início, poderia ser uma terrível coincidência. No depoimento o jornalista qualifica de maluco o possível autor do choque. Expressão também compartilhada para um piloto francês que há alguns dias ficara preso junto à Estátua da Liberdade. Contudo, não se tratava de maluquice por parte do piloto, muito menos de um avião bimotor como protagonista do acidente. Informações mais sólidas viriam posteriormente indicando para uma gigantesca manifestação terrorista. A verdade ainda estava no subsolo. O choque inicial não fora apenas na Torre Norte. Ele foi transposto da tela para os jornalistas que faziam a cobertura em tempo real 25 . O espelho do nervosismo se refletiu na postura dos apresentadores. Estavam perplexos com o que viam. Não compreendiam a essência do fato. O depoimento a seguir ilustra esse ponto. 25 Os depoimentos abaixo confirmam essa idéia. “Depois do segundo choque, jornalistas e técnicos ficam boquiabertos. A dúvida é geral. Todos se perguntam: ‘O que aconteceu? Uma outra explosão?’. (Ricardo) Calil corre para a máquina de gravação, volta a fita, quer rever imagens. ‘Achávamos que era replay do primeiro choque, mas aí vimos que tinha sido na outra torre do prédio e tivemos a certeza que não era um acidente.” (...) “Os apresentadores, no estúdio, recebem, sem parar, novas informações dos editores pelo ponto eletrônico. E são avisados: a imagem da segunda explosão mostrava realmente o choque de outro avião na outra torre do World Trade Center. Por instantes, incrédulos, eles têm receio de confirmar no ar. ‘Eu achei que alguém tinha conseguido uma imagem do primeiro ataque, jamais passou pela minha cabeça que seria a imagem de um segundo avião’, lembra Leila (Steremberg). ‘Cheguei a pensar que era uma arte, mostrando como foi o primeiro ataque’, diz (Luis Ernesto) Lacombe”. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 266) 55 (Luis Ernesto) Lacombe lembra que, no meio da transmissão, ele e Leila (Steremberg) receberam um alerta dos editores que comandavam a transmissão. “O Dudu (Eduardo Marotta, editor-executivo) reclamou que nós estávamos narrando sem emoção e o Calil (Ricardo Calil, editor-chefe) entrou no estúdio com os seus quase 140 quilos num passo manso e começou a nos dar uma bronca, sem falar uma palavra sequer. Como estávamos no ar, ele batia no peito e fazia caretas. Foi uma espécie de bronca sem som, mas ele queria nos mostrar que precisávamos passar a emoção que estávamos sentido”. 26 (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 265) A compreensão era traída pela visão: visualizava-se o fato, mas não era possível compreendê-lo em sua totalidade. “Confio apenas naquilo que vejo” – esse saber popular foi colocado em xeque nos primeiros instantes da cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001. “Naquele momento, a ficção parecia ter se tornado realidade” (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 267). As imagens somadas à corpulência do acontecido ceifavam qualquer reação instantânea mais apurada e correta como apontam as seguintes palavras: “A segunda torre caiu! Desabou! Fala, Lacombe! A segunda torre caiu!”, avisa Dudu pelo ponto eletrônico. Lacombe no estúdio, faz sinal negativo com o dedo indicador. De novo, a mesma sensação: as imagens não são replay do primeiro desabamento? Lacombe não está convencido de que a imagem é real. Somente depois de alguns segundos de hesitação Lacombe e Leila conseguem narrar a queda da segunda torre. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 270) A Rede Globo de Televisão foi a primeira rede de TV aberta a entrar ao vivo. A bancada era comandada pelos então globais Carlos Nascimento e Ana Paula Padrão 27 . Tal como ocorrido na Globo News, o ruído no processo de comunicação norteou os primeiros instantes da cobertura como relatam Gomes e Miranda (2005) 26 A postura de Eduardo Marotta e Ricardo Calil entra em conflito com as recomendações do vicepresidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho. Para João Roberto: “No jornalismo em tempo real, também se devem evitar a todo custo reações indignadas, fruto de emoções do momento, uma saída fácil para quem precisa ter o que dizer durante muitas horas, mas o que resulta quase sempre leviana. E com uma agravante: pode incitar quem está diante da tela a atitudes igualmente impensadas. A função do jornalista não é expressar a sua indignação, mas tão somente informar”. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 08) 27 À época o jornalista Carlos Nascimento (atualmente no SBT) era o apresentador do telejornal Hoje. Ele é quem inicia a cobertura dos atentados pela TV Globo. A jornalista Ana Paula Padrão (pertencente também ao quadro de jornalistas do SBT na atualidade) ingressa na cobertura num segundo momento. 56 O vôo 175 atinge a Torre Sul entre o 77º e 85º andares. Milhões assistem à colisão pela TV. No Brasil, o jornalista Carlos Nascimento (...) comanda a transmissão ao vivo na tela da Globo. Ele lê trechos dos boletins das agências internacionais de notícias, de olho nas imagens da CNN. “Parece que agora temos imagens da primeira colisão”, diz. Seguem-se alguns segundos de silêncio. “Não. É um segundo impacto. É um segundo avião”, conserta. “Pensei que fosse replay”, diz Nascimento. (GOMES & MIRANDA, 2005, p. 30-31) Fruto do imediatismo, da grandeza dos atentados e da ausência de informações mais consistentes, as incertezas também permearam o comando da Central Globo de Jornalismo, como consta no depoimento abaixo. Já no primeiro momento, a equipe da Rede Globo se mobilizou para informar aos telespectadores tudo o que se passava. Ali Kamel lembra o episódio: “Quando cheguei à emissora, às 8h30 (sic), o (Carlos Henrique) Schoreder já estava na sala dele. Em frente à minha mesa, há cinco aparelhos de TV sintonizados em diferentes canais. Eu estava conversando com a minha mulher ao telefone, porque ela se esquecera de me lembrar de um compromisso assumido para aquela noite. De repente, vi na Globo News, às 9h48 (sic), uma imagem de um prédio que me parecia familiar pegando fogo. Desliguei rapidamente o telefone, a tempo de ouvir que de fato se tratava mesmo de uma das torres do World Trade Center. Um bimotor, por acidente, teria se chocado contra o prédio. Essa era a primeira versão. Corri para a sala do Schoreder, onde há 12 monitores de TV, e apontei para aquele com a torre em chamas. Eu era novo em televisão, estava ali desde de julho daquele ano. Nunca tinha visto uma cena como a que se seguiria. Schoreder deu um pulo ligou imediatamente para o Amauri Soares (durante as manhãs, depois do Bom Dia Brasil o comando operacional do Jornalismo fica em São Paulo, de onde é gerado o jornal Hoje): ‘Põe no ar o plantão, Amauri! O World Trade Center está pegando fogo! Põe no ar!’, dizia Schoreder”. A Rede Globo foi a primeira TV aberta brasileira a mostrar um flash do atentado terrorista nos EUA. Às 9h52 (sic) – apenas sete minutos após o choque do primeiro avião na Torre Norte – a emissora pôs no ar as primeiras imagens que chegavam da CNN, com narração de Carlos Nascimento. No início, todos achavam que se tratava de um acidente, e o primeiro plantão informou, apenas, que um avião se chocara com uma das torres do WTC. Ali Kamel conta que Schoreder logo pediu para o Centro de Documentação da TV Globo auxiliar Carlos Nascimento com informações. Quatro minutos depois do início do plantão, no entanto, sem aviso prévio, a transmissão foi encerrada. Kamel lembra: “Schoreder ficou muito irritado. Telefonou novamente para São Paulo e disse ao Amauri: ‘Por que tirou do ar? Deixa no ar, Amauri, deixa no ar! É o World Trade Center! Nem se sabem ainda as causas do incêndio. Põe novamente o plantão no ar, imediatamente!”’ Às 10h02 (sic), a vinheta de plantão interrompeu novamente a programação e Carlos Nascimento continuou a narração. Para Kamel, recém chegado à televisão, o episódio foi um aprendizado: “Eu pensei com meus botões: se estivesse em São Paulo, talvez também tivesse tirado o plantão do ar depois de quatro minutos. Na minha cabeça, naquele 57 momento, a notícia já tinha sido dada. Mas eu estava completamente errado. Não fosse a irritação de Schoreder e a sua decisão de mandar voltar o plantão, a Globo deixaria de ter transmitido, ao vivo, o choque do segundo avião contra a outra torre”. Schoreder fala sobre os motivos que o levaram tomar (sic) aquela decisão: “Naquele instante, sequer sabíamos a causa do choque do avião na torre. As informações eram contraditórias, não havia nenhuma razão para sair do ar. Na hora, é tudo muito rápido, você decide tudo rapidamente com os elementos que tem ao seu dispor. Uma coisa é certa: um incêndio como aquele não acontece todo o dia. Para mim não havia outra decisão senão manter o plantão”. (MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 337-338). O fluxo constante de mensagens é um fenômeno complexo, de difícil digestão. O bombardeio de imagens, não raramente, prejudica o raciocínio. As notícias são geradas pelo signo da velocidade e da renovação constante de informações. A imagem cinética é conectada ao componente passional que, neste caso em especial, transbordam no texto televisivo. Em movimento, a imagem e os recursos da cinética produzem o efeito de realidade, mimesis do mundo natural, conferindo ao produto final veracidade, impacto e autenticidade. (Diniz, 2005a, 2005b) Tais fatos edificam uma arapuca a respeito dos conteúdos recebidos: a produção brutal de informação na mídia televisiva gera uma tormenta à reflexão. Segundo Arbex Jr. (1999) A televisão não é como um livro, ou sequer como um jornal impresso, cuja leitura podemos interromper, refazer, submeter a reflexões demoradas. A dinâmica da imagem solicita respostas imediatas de quem a ela está submetido. As reações são reflexas, rápidas. Esse mecanismo é muito eficaz quando se trata de manter oculta a estrutura do texto ou concepção que está na base da disposição segundo a qual as imagens são apresentadas. (ARBEX JR, 1999, p.13) Bernard Langlois citado por Ramonet (2001, p.102) confirma o paradoxo dizendo que “quanto mais se comunica, menos se informa, portanto mais se desinforma”. Segundo Diniz (2005a, p.77): “Como o discurso é produzido pelo enunciador (com enunciatário previsto), sua construção está condicionada a todas as interferências que atuam sobre ele”. Nos primeiros momentos apenas as imagens se manifestaram. O discurso jornalístico foi-se construindo aos poucos. 58 Partiu-se de uma hipótese de acidente e chegou à categoria de ataque terrorista. Posteriormente, elevou-se à “guerra”, expressão utilizada ainda de forma precária, porque não havia até então um inimigo claramente reconhecível 28 . Para Pena (2005) O século XXI foi inaugurado pelo jornalismo. Com data e local bem definidos: Nova York, 11 de setembro de 2001. Nas análises sobre os atentados, veículos de comunicação da mais variada procedência foram unânimes em apontar o fato como marco oficial de um triste começo de século. (...) Não bastava atingir o símbolo do império capitalista, era preciso que o mundo fosse testemunha desse ato. E, assim, ele foi meticulosamente programado para que o segundo avião atingisse o alvo em um espaço de tempo suficiente para as câmeras de TV transmitirem ao vivo. O espetáculo do terror encontrou seu palco. (PENA, 2005, p. 10) Ressoando o bom senso cartesiano, não se trata aqui de criticar pura e simplesmente os meios de comunicação pela cobertura realizada ao vivo nos ataques de 11 de setembro de 2001, jogando o pesado fardo da culpabilidade da cobertura midiática logo nos primeiros instantes de maneira panfletária. Afinal, a cobertura em tempo real poderia ter sido diferente? Claro que para muitos a resposta será positiva. Contudo, em acontecimentos históricos da envergadura dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a cobertura ao vivo pode se transformar em exemplo a ser discutido nos procedimentos jornalísticos quando de um acompanhamento em tempo real. Mesmo que nesse acontecimento a desinformação sobre o que acontecia naquela manhã de terça-feira nos Estados Unidos tenha prevalecido tanto nos primeiros momentos como em seus desdobramentos marcados pelo calor do instantâneo – compreensível pela amplitude das ações –, a cobertura posterior encamparia pecados tão conhecidos e condenáveis no meio jornalístico, como veremos no item 2.4. Doutrina Bush, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque e o recrutamento da mídia e no capítulo quatro desta pesquisa. 28 A emissora CNN, às 10h43min, coloca no ar uma tarja preta na parte inferior da tela como os dizeres: “America under attack” (América sob ataque). A CNN estampou esses caracteres quando surgem as imagens do prédio do Pentágono em chamas. 59 O contrato de produção de sentidos e credibilidade é construído quando ... a instância enunciadora tece o discurso informativo (fazer-saber), engendrando outros elementos, capazes de persuadir seu enunciatário, para predispô-lo a /fazer-crer/, levá-lo a ter certeza na veracidade dos fatos. O crer conduz a um /fazer-fazer/, ou seja, o enunciatário introduzirá em seu próprio discurso as “verdades” veiculadas pelo enunciador. Entretanto, o processo do crer é bem mais complexo, ao envolver elementos da dimensão pragmática, cognitiva e patêmica... (DINIZ, 2002) Criou-se um vácuo entre a imagem e as primeiras construções do discurso jornalístico. A produção dos sentidos foi emoldurada, sobretudo, pelas imagens da torre norte em chamas e, posteriormente, a cena da segunda aeronave colidindo com a torre sul do World Trade Center. Essa produção de sentidos é resultado das novas tecnologias. Sem a técnica de transmissão em tempo real, possivelmente teríamos outros efeitos de percepção e de sentidos por parte da imprensa e, conseqüentemente, do enunciatário. Como citamos anteriormente, as recomendações do vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, instruem que No jornalismo em tempo real, também se devem evitar a todo custo reações indignadas, fruto de emoções do momento, uma saída fácil para quem precisa ter o que dizer durante muitas horas, mas o que resulta quase sempre leviana. (GLOBO NEWS: 10 anos, 24 horas no ar, 2006, p. 08) Hipótese delicada quando nos reportamos à concorrência entre emissoras pela informação imediata, pelo furo em busca da audiência. Não há mais distância entre o acontecimento e a informação. O sonho do ao vivo, que já se tornou realidade, está virando pesadelo. Ainda mais porque o problema da concorrência leva ainda mais a encurtar o intervalo entre um acontecimento e informação. (...) Não é necessariamente com o nariz colado no acontecimento que se produz uma melhor informação. (WOLTON, 2003, p. 303) A cobertura inicial dos atentados contra os Estados Unidos endossa que a informação converte-se em um produto modelado cada vez mais de impressões e sensações e que mesmos dotados de equipamentos ultramodernos, a compreensão dos fatos depende de análises que ultrapassem a “tirania do 60 instante”. O “espetáculo” da imagem não deve ferir nosso bom senso e nem cegar nossa capacidade reflexiva. Demonstrando o propósito de permitir a captação direta pelas câmeras de televisão dos atos terroristas e suas tenebrosas conseqüências, para que o mundo inteiro pudesse parar atônito para assisti-los, seus mentores e executores lograram pleno êxito em sua estratégia de obter a mais colossal repercussão midiática. Os arquitetos do terror deixavam seu rastro de sangue na história. 2.4. Doutrina Bush, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque e o recrutamento da mídia A guerra é a continuação da política por outros meios. Carl Von Clausewitz Justificando o “combate ao terrorismo” em escala planetária, o governo estadunidense criou o programa denominado “A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos”. O documento foi alcunhado de Doutrina Bush numa alusão ao presidente do país, George W. Bush. Por essa teoria os Estados Unidos justificariam suas ações contra países considerados hostis (os rogue states – “Estados vilões” – como os do “eixo do mal” integrados por Irã, Iraque e Coréia do Norte) 29 . A Doutrina Bush determina ainda o fortalecimento das alianças com outros Estados para combater o “terrorismo mundial”, além de se assentar sobre o princípio de “guerra preventiva”. Também estabelece que os Estados Unidos não permitirão a ascensão de qualquer potência estrangeira que rivalize com a enorme dianteira militar dos estadunidenses alcançada desde o fim da Guerra Fria 30 . Além da consolidação dos Estados Unidos como superpotência global, a Doutrina Bush procura defender os interesses econômicos do país e ampliar sua esfera geopolítica no planeta. Muitos desses interesses estão associados à garantia do fornecimento de petróleo. Os pilares dessa doutrina 29 Posteriormente, Cuba, Líbia, Síria e Palestina foram incluídos neste grupo de países hostis. A Guerra Fria foi um conflito político-ideológico-militar que dividiu o mundo em duas áreas de influência: a capitalista (liderada pelos Estados Unidos) e a socialista (capitaneada pela União Soviética). Com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, essa página da história chegava ao fim. 30 61 foram construídos em meio à atmosfera de pânico e incertezas constituída após os atentados terroristas. O presidente Bush deixava um aviso intimidador: “Cada país, em cada região, precisa decidir: ou está conosco, ou com os terroristas”. A “guerra ao terror” era elevada ao topo das políticas de segurança no cenário internacional 31 , desenhava-se um programa para anos, talvez décadas, que reuniria componentes para uma nova fase da geopolítica mundial. A comunicação, segundo o cientista político estadunidense Karl Deutsch, são “os nervos do governo”, especialmente em grandes Estados e acima de tudo em extensos impérios. (Briggs & Burke, 2006). Nesse cenário bélico almejado pelos artífices da Casa Branca, a mídia seria recrutada para alimentar o imaginário da opinião pública com informações plantadas estrategicamente para justificar os atos de guerra direcionados pelo governo. ... setores do Congresso queriam que Bush avançasse mais nessa área e sugeriam que ele reunisse os maiores especialistas em relações públicas e publicidade do país, além de roteiristas e diretores de Hollywood, para desenvolver “uma campanha adicional de marketing”. O apelo foi mais do que ouvido. No dia 11 de novembro (2001) um grupo de altos executivos de Hollywood encontrou-se num hotel de Beverly Hills com um assessor de Bush, Karl Rove. Este pediu que Hollywood participasse do esforço de guerra, que consistiria em três frentes: divulgação do conceito de “guerra ao terrorismo” nos Estados Unidos e no mundo, apoio às tropas mobilizadas e manutenção do moral público americano. De acordo com o relato da correspondente de O Globo, Ana Maria Bahiana, todos responderam com um entusiasmado “sim”. Mas somente três meses depois ficou conhecida a real extensão das atividades dos Centros de Influência Estratégica. O New York Times publicou reportagem revelando que o Pentágono “cogita” a divulgação de informações falsas para influenciar a opinião pública internacional. Entre as propostas estaria a de “plantar” informações falsas nas agências de notícias estrangeiras por meio de pessoas 31 A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no dia seguinte aos atos terroristas, pela primeira vez em seus cinqüenta e dois anos, invocou o artigo 5º de seu estatuto que reza: “As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, conseqüentemente, concordam em que, se tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido pelo artigo 51º da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte. Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em conseqüência desse ataque são imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais”. Fonte: http://www.nato.int/docu/basictxt/treaty.htm 62 que não tenham laços óbvios com o Pentágono. Outra proposta envolvia o envio de e-mails para jornalistas, líderes civis e estrangeiros para promover a visão americana ou ataques a governos inimigos. Os autores dessas mensagens não seriam militares americanos, mas pessoas e empresas supostamente desligadas do governo dos Estados Unidos. (DORNELES, 2003, p. 24-25) Contribuindo ao debate, Castells (2001) explica que a guerra ao terror pode ser ...definida em termos mais precisos: é a guerra das redes fundamentalistas islâmicas contra as instituições políticas e econômicas dos países ricos e poderosos, em particular dos Estados Unidos, mas também da Europa Ocidental – países estreitamente vinculados em sua economia, em suas formas de democracia e sua aliança militar. Na raiz dessa guerra, existe uma rejeição da marginalização dos muçulmanos e uma afirmação da supremacia dos princípios religiosos do Islamismo como sustentáculo da sociedade (se bem que em interpretação se choca com os ensinamentos do Alcorão). (CASTELLS, 2001, p. 08) O Afeganistão foi a primeira vítima do desígnio militar da nova doutrina. Os alvos eram as instalações do Talebã (Discípulos, em árabe), que dominavam 90% do país. O ataque começou às 13h30min do dia 7 de outubro de 2001. Dois meses depois, com a queda das últimas resistências na cidade de Quandahar, o Talebã foi dado como vencido. A queda da milícia afegã foi comemorada pelo grupo de países aliados e amplamente divulgada. Depois disso, as notícias sobre o país tornaram-se mais rarefeitas. Mas os problemas ainda existem. Não desapareceram nem diminuíram como as notícias, apenas foram simplificados, relegados ao segundo plano. E acontecimentos quando são reduzidos e analisados fora do contexto geram dúvidas e levam à tortuosa senda da desinformação. 63 O exemplo mais claro de como a simplificação da realidade local pelo jornalismo impede sua compreensão é a burca (roupa que cobre o todo corpo), que muitas mulheres islâmicas são obrigadas a usar. O noticiário internacional levou a crer que foi o Talebã que impôs o uso da vestimenta às mulheres afegãs. Em verdade, ele impôs seu uso a todas as mulheres (inclusive às habitantes de regiões urbanas, como Cabul) quando ela já era peça de uso corrente em diversas regiões do país. Por isso, para surpresa de muitos leitores, quando os adversários do Talebã conquistaram o poder em diversas cidades, muitas mulheres continuaram usando a burca, como faziam suas mães e avós, e talvez façam suas filhas e netas, já que esse é um hábito integrante da cultura de muitos grupos muçulmanos. (SERVA, 2001, p. 142) A situação política do Afeganistão permanece instável. O presidente Hamid Karzai, conduzido ao poder pelos Estados Unidos para chefiar o período de transição, tem poder limitado. Apesar das promessas estadunidenses de levar estabilidade e democracia ao país, as rivalidades entre os grupos étnicos que compõem a população ainda o dividem em numerosos bolsões, dominados por chefes de milícias locais e grupos armados. Forças da OTAN envolveram-se em encarniçados combates com guerrilheiros do Talebã. Também têm ocorrido atentados terroristas em Cabul, a capital afegã - o que até pouco não acontecia. Em 2006, ocorreram mais ataques contra as forças da OTAN do que em qualquer outro período desde que os Estados Unidos invadiram o país em 2001 32 . Hamid Karzai governa um país miserável, que reassumiu a posição de maior produtor mundial de heroína. Os índices de mortalidade infantil, desnutrição, analfabetismo entre outros indicadores sociais continuam entre os piores do mundo. A instabilidade política afegã, agravada depois da guerra, inviabiliza qualquer previsão mais otimista. Destino semelhante é compartilhado pelo segundo alvo da Doutrina Bush: o Iraque, país também localizado no Oriente Médio. A invasão ocorreu às 5h33min da manhã de 20 de março de 2003, originada pela suspeita dos Estados Unidos e Reino Unido de que o ditador Saddam Hussein ocultava armas de destruição em 32 Em reunião de cúpula realizada em novembro de 2006 na cidade de Riga (Letônia), os Estados Unidos pressionaram vinte e cinco governantes de países filiados à OTAN a reforçarem ou iniciarem suas presenças no Afeganistão. Os países em que os Estados Unidos mais concentraram seus esforços para que seus contingentes sejam deslocados para o sul do território afegão, onde são mais freqüentes e sangrentos os confrontos com o Talebã, foram Alemanha, Espanha, Itália e França. Trata-se de uma tentativa de remendar o rasgo político oriundo da ocupação ao Afeganistão. 64 massa em território iraquiano. Porém, tratava-se da expansão da Doutrina Bush no “combate ao terror” e controle estratégico no Oriente Médio 33 . A invasão ao Iraque, a primeira sob o título de “guerra preventiva”, teve forte resistência da comunidade internacional, particularmente da Alemanha e França. Os Estados Unidos e o Reino Unido pressionaram a ONU (Organização das Nações Unidas) a aprovar o uso da força para desarmar o Iraque. Como não alcançaram êxito na negociação, decidiram pelo ataque unilateral, sem o respaldo da ONU. Com todas estas pautas em jogo, uma guerra contra o Iraque parecia inevitável. A coletiva de imprensa de Bush em 6 de março de 2003 tornou evidente que ele estava pronto para ir à guerra contra o Iraque. Seus assessores orientaram-no a falar pausadamente e tirar da visão pública seu aspecto de machão do Texas, mas ele constantemente ameaçava o Iraque e evocava a retórica do bem e do mal que utilizou para justificar sua cruzada contra Bin Laden e Al Qaeda. Bush repetia as palavras “Saddam Hussein” e “terrorismo” incessantemente, e mencionou o Iraque como uma “ameaça” pelo menos dezesseis vezes, tentando relacioná-lo com os ataques de 11 de setembro e o terrorismo. Usou a palavra “eu”, como, por exemplo, em “eu acredito”, incontáveis vezes, e falava de “meu governo” como se ele o possuísse, mostrando um homem perdido nas palavras e na autoimportância, posicionando-se contra o “mal” contra o qual estava se preparando para travar uma guerra. Incapaz de produzir uma justificativa inteligente e objetiva para uma guerra contra o Iraque, Bush somente podia invocar o medo e uma retórica moralista, tentando apresentar-se como um forte líder nacionalista. A retórica de Bush, como a do fascismo, combina uma estratégia de desconfiança e ódio na linguagem, reduzindo-a a um discurso manipulador, falando em códigos, repetindo as mesmas expressões várias vezes. Isto é baseado num antiintelectualismo e ódio à democracia e aos intelectuais. (...) Apresentou toda a pobreza de argumentação para justificar a guerra contra o Iraque, pois não possuía argumentos convincentes, nada de novo para comunicar: simplesmente repetia os mesmos clichês cansativos. (KELLNER, 2004b, p.66) Assim, os Estados Unidos fizeram valer o dispositivo da Doutrina Bush que diz que o país não hesitará em agir sozinho, se preciso for, para fazer uso do direito de autodefesa, de maneira preventiva e antecipada 34 . Em apenas um mês derrubaram o regime de Saddam Hussein, que depois de fugir foi capturado, 33 Mesmo após a invasão não se comprovou a suspeita de que o Iraque possuía de fato armas de destruição em massa. Estados Unidos e Reino Unido foram acusados de falsificarem documentos para legitimar a invasão e desarmamento do país. 34 Em discurso proferido em 2004, o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, disse que não caberia à ONU e sim aos Estados Unidos a missão de libertar o mundo do terrorismo. 65 preso, condenado à morte, sendo enforcado em 30 de dezembro de 2006 por seus crimes contra a humanidade. Pena (2005) atenta que ... não foram só os terroristas que usaram a imprensa. Dois anos depois, a vergonhosa cobertura da mídia americana na Guerra do Iraque mostrou a que nível pode chegar a manipulação da informação pelos governos constituídos. Escaldada pela Guerra do Vietnã, quando corajosas reportagens e imagens aterrorizantes mudaram a opinião do país e forçaram a retirada das tropas do Tio Sam, a administração Bush inventou a mais ultrajante forma de cobertura da história da imprensa: os famosos repórteres embedded 35 . Ou seja, jornalistas que viajavam nos tanques do exército americano e, obviamente, só reportavam o que interessava aos comandantes guarda-costas 36 . (PENA, 2005, p. 10-11) Retratando o papel de parte da mídia no acompanhamento da invasão ao país 37 , Arbex Jr. (2003) e Kellner (2004b) suscitam provocação ao afirmarem que A cobertura da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em março de 2003, equivocadamente qualificada como “guerra” pela mídia – uma guerra pressupõe certa equivalência de poder destrutivo entre as forças em luta –, introduziu algumas novidades no campo do jornalismo. Uma delas foi a figura do jornalista embedded, ou “acamado”, em tradução livre do inglês. O jornalista embedded é aquele que aceitou se submeter a uma série de cinqüenta normas estabelecidas pelo Exército dos Estados Unidos, como condição para acompanhar as tropas. As normas previam, entre outras coisas, que ele não poderia reportar nada que não fosse aprovado pelos chefes do seu regimento, o mesmo valendo para as transmissões de imagens. Tampouco poderia se deslocar para áreas consideradas perigosas. Em resumo, não teria a menor independência, nem sequer observar os fatos. 35 O jornalista inglês Stephen Cviic define o termo embedded como “incorporado”. Contudo, sem nos prendermos tanto a tradução utilizada, o importante é destacar que termo designa o jornalista que acompanhou as tropas militares e assim, teve sua dependência atrelada ao comando do exército. 36 Segundo Kellner (2004b, p.67): “Desde o início, ficou claro que os repórteres comprometidos com sua emissora estavam de fato ‘dormindo na mesma cama’ de suas escoltas militares e, enquanto os Estados Unidos e a Inglaterra bombardeavam o Iraque, eles apresentavam relatos exultantes e triunfantes que superavam qualquer propagandista pago. Os repórteres comprometidos com as redes televisivas americanas eram entusiasmados líderes de torcida e apoiavam o ponto de vista dos militares norte-americanos e britânicos, perdendo qualquer verniz de objetividade”. 37 É importante ressaltar que uma das conclusões mais polêmicas registradas em estudo da Universidade de Colúmbia em relação à Guerra do Iraque mostra que na avaliação dos pesquisadores, os noticiários dos Estados Unidos não fizeram uma cobertura tão negativa do conflito. Ou seja, não foram tão contra a guerra, ou antipatrióticos, como alguns críticos do país fizeram questão de denunciar. Essa conclusão pode surpreender os observadores, mas, certamente, não surpreende os estrangeiros. (Brasil, 2007) 66 (...) A garantia de que os correspondentes fariam cobertura “adequada” foi providenciada pelos executivos das grandes corporações da mídia dos Estados Unidos. A CNN criou um sistema de script approval (aprovação do original) que obriga os seus repórteres a enviarem todos os seus textos a responsáveis em Atlanta (sede da emissora), antes de serem transmitidos ao mundo. A nova política da CNN foi sintetizada no documento Memorando da Política de Aprovação do Original (Reminder of Script Approval Policy), divulgado em 27 de janeiro: “Todos os repórteres devem submeter seus originais à aprovação. Os textos não podem ser editados até que os originais tenham sido aprovados... Todos os textos originados fora de Washington, Los Angeles ou Nova York, incluindo todas as redações internacionais, devem ser encaminhados a Atlanta para aprovação”. (ARBEX JR., 2003b, p. 09-14) Os comandantes militares dos Estados Unidos afirmaram que na incursão inicial em Bagdá, de 2.000 a 3.000 iraquianos foram mortos, sugerindo que as redes de transmissão realmente não mostravam a brutalidade e a carnificina da guerra. Na verdade, a maior parte do bombardeio das forças militares iraquianas era invisível e raramente se mostrava os iraquianos mortos. Um repórter comprometido da CNN, Walter Rogers, mais tarde relatou que a única vez que sua reportagem mostrou um iraquiano morto, o painel de comando da CNN “acendeu como uma árvore de natal”, com espectadores furiosos exigindo que a CNN não mostrasse nenhum morto, como se o público telespectador dos Estados Unidos quisesse negar a existência dos custos humanos dessa guerra. (KELLNER, 2004b, p.69) Cviic (2003, p.17) acompanha os raciocínios de Pena, Arbex Jr. e Kellner complementando que “o recente conflito no Iraque vem demonstrar mais uma vez que a guerra é a época mais problemática para a objetividade jornalística” 38 . Mas não foi apenas na invasão ao Iraque que a censura se manifestou, ela também foi recrutada para a missão contra o Afeganistão. Os jornalistas padeciam da “Síndrome de Marriot” conforme detalha Dorneles (2003) sobre as barreiras impostas aos jornalistas. 38 Para Kellner (2004, p. 70): “Em geral, as redes de TV americanas tenderam a apresentar uma visão filtrada da guerra, enquanto as canadenses, britânicas e outras européias e árabes apresentaram imagens de baixas de civis e os horrores da guerra. A cobertura americana foi direcionada para o patriotismo pró-militar, propaganda política e fetichismo tecnológico, destacando as conquistas e o heroísmo das tropas. Outras redes mundiais, entretanto, criticaram os exércitos britânico e americano e com freqüência apresentaram espetáculos altamente negativos dos ataques contra o Iraque, e o choque e a dor do massacre de alta tecnologia”. 67 É natural que a cobertura da guerra tenha ganhado um apelido sugestivo, dado pelos próprios jornalistas que estavam na frente de batalha: “Síndrome de Marriot”, nome do hotel que hospedava a imprensa em Islamabad, capital do Paquistão, e de onde os jornalistas só saíam para trabalhar em áreas previamente autorizadas pelos militares americanos – tinham permissão apenas para ir aos porta-aviões, para ver aviões decolando e pousando. Fotos e textos produzidos dentro dos navios foram censurados pelos militares, o que a imprensa americana chamou de “revisão”. Só então podiam ser enviados aos Estados Unidos. (DORNELES, 2003, p. 23) Contornar a liberdade por medo da verdade e espetacularização de conflitos não é novidade em guerras. A partir da Guerra do Golfo, a mídia internacional tende a se subordinar cada vez mais a desígnios políticos e comerciais. A hora de um bombardeio pode ser retardada para coincidir com o telejornal das oito. (STEINBERGER, 2005, p. 212) As táticas da desinformação e manipulação da informação orquestradas pelos Estados Unidos já tinham sido aplicadas no primeiro conflito com o Iraque (1990/1991). A mídia enquadrou essa guerra como uma narrativa emocionante, uma minissérie noturna, com conflito dramático, ação e aventura, perigo para as tropas aliadas e para os civis, maldade perpetrada pelos vilões iraquianos e ações heróicas cometidas pelos estrategistas estadunidenses, por sua tecnologia e suas tropas. Em certo sentido, a primeira guerra deflagrada contra o Iraque foi um evento cultural e político, além de militar. (Kellner, 2001). Nesse conflito, vendeu-se o conceito de uma “guerra sem sangue” 39 . As imagens transmitidas eram filtradas. A grande mídia dos Estados Unidos aliada as de outros países se transformaram em veículos obedientes da estratégia governamental com a manipulação da notícia, obscurecendo a opinião pública. 39 Contundente em seus comentários, Jean Baudrillard chegou a afirmar que a “a Guerra do Golfo não existiu”. O saudoso sociólogo francês procurou diagnosticar o caráter cirúrgico de uma guerra virtual. Para Baudrillard, o inimigo não era mais do que um número no computador. Para o jornalista José Arbex Jr. (2003b, p.12): “No caso da ‘guerra sem sangue’, apenas a cegueira produzida pelo preconceito, pelo ódio e pelo fanatismo religioso permite explicar que a opinião pública ocidental tenha acreditado na fábula absurda. Foi, de fato, insignificante o número de vítimas estadunidenses (menos de trinta, e todos militares): os ‘exóticos’ árabes não atingiram ainda, plenamente, o estatuto do humano, se é que algum dia chegarão lá, e por isso suas mortes não produziram impactos”. 68 Mas o grande fracasso moral na Guerra do Golfo não foi nossa ajuda tardia aos curdos e xiitas. Foi a recusa do Ocidente em reconhecer, ou até mesmo discutir, não a morte acidental de civis, mas até mesmo os 100 mil mortos entre os perfeitamente válidos alvos militares iraquianos. Katherine Boo, do The Washington Monthly, notou que, durante a guerra, a mídia americana criou grandes tabelas de perdas, que listavam numa coluna quantos soldados americanos haviam morrido e, em outra coluna, quantos tanques, blindados e aviões do Iraque haviam sido abatidos. Não se fazia menção a mortes entre iraquianos, como se o objetivo do exercício fosse destruir maquinaria sem afetar seres humanos. A famosa declaração de Powell sobre o Exército iraquiano – “vamos destroçá-lo e depois aniquilá-lo” – cortou claramente qualquer consideração em relação à condição humana do inimigo. Dúzias de vídeos foram divulgadas pelo Pentágono mostrando bombas inteligentes atingindo alvos inanimados, como plataformas de mísseis; mas, com certeza, nunca foi divulgada nenhuma imagem de batalha envolvendo seres humanos. Os censores enlouqueceram quando um comandante de campo permitiu que jornalistas vissem um vídeo com imagens transmitidas pela câmera de um míssil que atingiu um batalhão iraquiano. No tape adolescentes aterrorizados correm caoticamente, em todas as direções, enquanto tiros de canhão vindo de helicópteros que eles não podem ver cortam seus corpos em pedaços. O vídeo foi rapidamente tirado de circulação. Quando perguntei a razão a um oficial do Pentágono, ele respondeu: “Se permitirmos que as pessoas vejam este tipo de coisa, nunca haverá outra guerra”. (EASTERBROOK apud ARBEX JR., 1999, p. 63) O aforismo do ex-senador estadunidense Hiram Johnson que sentencia: “A primeira vítima quando começa a guerra é sempre a verdade”, revela o campo minado tateado pelo jornalismo em tempos de ações militares. Endossando esse pensamento Steinberger (2005) afirma que A censura alcança seu mais alto grau de perfeição e invisibilidade quando cada agente não tem mais nada a dizer além daquilo que está objetivamente autorizado a dizer. A estrutura do campo impõe formas de percepção e interiorização das associações expressão-conteúdo para todos os enunciados. A censura determina, também, a forma de recepção, sintaxe, léxico, referências pelas quais um tipo de discurso será reconhecido com base na forma que ostenta. São estratégias de formulação que quanto mais perfeitas, melhor as obras imporão suas próprias normas de percepção. Há uma violência simbólica que é suportada desde que permaneça desconhecida do receptor, isto é, reconhecida como legítima. (STEINBERGER, 2005, p. 160) 69 O cadafalso da censura é por si só a evidência de uma guerra de discursos e nítido controle da imprensa 40 . A trilha de espinhos seguida pela mídia estadunidense em tempos de Doutrina Bush foi objeto de denúncia e reflexão por parte dos próprios jornalistas como comentam Neto (2002), Carlos (2004) e Dorneles (2003). Surgiu nos Estados Unidos um novo jornalismo, mais patriótico e mais submisso às vontades do governo. (...) Juntamente com o novo terrorismo surgiu um novo jornalismo. Conhecendo a voracidade da mídia americana e seu fascínio por imagens de tragédias, o marketing do terror apostou na força de suas imagens e saiu vitorioso. (NETO, 2002, p. 109) ... estudo do centro de pesquisas Pew, dos Estados Unidos, constatou que 51% dos profissionais da informação acham que sua profissão “evolui em má direção”. Os escândalos com jornalistas do New York Times e do USA Today falsificando reportagens e as “dificuldades” da mídia em criticar o governo Bush depois dos atentados de 2001 provocaram “mal estar” entre jornalistas americanos. (CARLOS, 2004, p.09) No fim de 2001, no seu relatório anual, a organização Repórteres Sem Fronteiras incluiu os Estados Unidos como um dos países que prejudicam a liberdade de imprensa: “Desde o 11 de setembro se constata que a liberdade de imprensa está em perigo dentro dos Estados Unidos devido à censura oficial de imagens e opiniões e à autocensura motivada pelo patriotismo. Os Estados Unidos consideram que estão numa guerra declarada e que os jornalistas devem se converter em patriotas”. (DORNELLES, 2003, p. 26) Nas ações contra Afeganistão e Iraque a guerra de discursos foi intensificada; principalmente porque a CNN tinha uma concorrente no mundo árabe: a rede de TV Al Jazeera (A Ilha, em árabe). Conhecida como a “CNN árabe”, a emissora tem sua sede em Doha (Catar) sendo o primeiro canal de jornalismo 24 horas no Oriente Médio. Adotando o lema “al ra’î wal ra’î al’âkhar” (um ponto de vista e o outro), ela abre espaço aos opositores de todos os regimes árabes... com exceção notável do próprio Catar, cujo emir (xeque Hamad) é o dono do canal. (RAYES, 2003, p. 25) 40 Para Robert Fisk, repórter do diário The Independent: “O jornalismo está cada vez mais covarde depois do 11 de Setembro”. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (26/12/05), o jornalista e escritor Gay Talese afirma que o governo de George W. Bush “anestesiou a imprensa” e o jornal New York Times “enamorou-se com o poder”. 70 O regime Talebã, em 1999, autorizou a emissora a instalar uma sucursal na capital afegã, Cabul. A rede árabe trazia um ponto de vista diferenciado das demais agências internacionais de notícias. A Al Jazeera divulgava mensagens de Osama bin Laden ao povo árabe e também transmitiu as imagens ao vivo dos bombardeios dos Estados Unidos ao Afeganistão e posterior ataque ao Iraque. Durante a cobertura da invasão ao Iraque, a Al Jazeera sofreu retaliações por permitir a exibição de imagens de soldados estadunidenses capturados por iraquianos. A emissora foi acusada de violar a Convenção de Genebra. Contudo, muito pouco se falou quando as emissoras ocidentais mostraram as imagens de iraquianos detidos pelas tropas invasoras. Ou seja, a invocação da Convenção de Genebra só é válida para um dos lados? A Al Jazeera também teve sua redação no Iraque bombardeada pela coalização anglo-americana, fato que para muitos não foi apenas um erro militar, e, sim, uma ação intimidadora contra a emissora. Porém, a Al Jazeera também sofreu críticas de parcialidade. Para especialistas, assim como sua principal concorrente ocidental, a CNN, a rede árabe mostrava o que lhe era de interesse: imagens e opiniões contrárias aos Estados Unidos. Condoleezza Rice, na época assessora de Segurança Nacional, recomendava bom senso na exibição de imagens da Al Jazeera, pois temia que as mensagens proclamadas por Osama bin Laden tivessem códigos para os seguidores da Al Qaeda dispersos pelo mundo. Nos EUA traumatizados pelo terrorismo, algumas decisões editoriais da emissora eram de fato inconcebíveis: além de dar voz a Osama bin Laden, a rede tratava por “mártires” os homens-bomba palestinos e outros suicidas do islã. A explicação oficial era a de que esses homens tinham dado a vida por uma causa. Contribuiu ainda para chocar a opinião pública ocidental o uso de imagens que exploravam e emoção do telespectador ao exibir o drama dos alvos civis muçulmanos – algo que não era visto nos canais americanos e europeus. (SANCHEZ, 2007, p.77) Embora os combates entre os exércitos tenham acabado, os soldados estadunidenses ainda são alvos de uma intensa campanha de atentados e ações guerrilheiras. A resistência armada voltou-se também contra os grupos aliados, as organizações internacionais e os civis iraquianos que colaboraram com as tropas de ocupação. Vários jornalistas, diplomatas e cidadãos estrangeiros foram 71 seqüestrados e/ou mortos 41 . O número de baixas estadunidenses no Iraque supera o número de vítimas nos atentados de 11 de setembro e 2001 42 . Assim, em nome do “combate ao terrorismo” mais sangue irrigou o já manchado solo do Oriente Médio. Afeganistão e Iraque submergiram em um fervente caldo de conflitos e ceticismo. Ao centrar suas operações contra o terrorismo no Oriente Médio, os Estados Unidos sofreram com o reverso das circunstâncias. As atividades militares ao invés de conter, deram mais fôlego às práticas terroristas. A rede Al Qaeda, que não tinha presença no Iraque antes da deposição de Saddam Hussein, ganhou força com as presenças das tropas dos Estados Unidos e aliados. “Para os terroristas, a constatação de que o governo americano não sabia o que fazer com o que fora conquistado soou como música”. (KAMEL, 2007, p. 284) É preciso ter em mente que no combate ao terrorismo deve-se evitar qualquer ação discriminatória contra grupos étnicos ou nacionalidades às quais os grupos terroristas dizem representar. Os terroristas são membros de organizações minoritárias, que operam na clandestinidade, alheios aos interesses das sociedades onde se inserem. Lutar contra o terrorismo internacional supõe uma cooperação internacional em todos os níveis 43 . 41 Nesta triste lista consta o nome do representante especial da ONU, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, vitimado em um ataque com explosivos provocados por rebeldes à sede da organização no Iraque em 19 de agosto de 2003. 42 O número de mortos nos atentados de 11 de setembro chegou à cifra de 2.973 vítimas fatais registradas. No Afeganistão, desde a ocupação realizada em 2001, estima-se pelo menos 6.000 mortos. No Iraque calcula-se cerca de 50.000 mortos – embora existam estudos que apontem para 650.000 mortos. 43 Segundo dados da pesquisa "Violência e Extremismo" divulgada pela Fundação Bertelsmann em 21/11/2006, o número de atentados terroristas triplicou nos últimos cinco anos. Ao contrário da sensação generalizada, só a minoria foi impulsionada pelo fanatismo religioso. “Apesar de nossa percepção da ameaça ser outra, devido aos atentados de Nova York, Londres e Madri, a violência política geralmente ocorre onde é gerada, devido a injustiças sociais ou marginalização de grupos discriminados” informa o autor do estudo, Aurel Croissant, da Universidade de Heidelberg (Alemanha). Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2006/11/21/ult1808u79742.jhtm 72 Em vez de examinarem de forma honesta e sensata as raízes do radicalismo islâmico que ressurgia, a discussão das estratégias na guerra contra o terror tinha sido quase inteiramente dominada pelos “especialistas em antiterrorismo”, com sua linguagem de armamento de alta tecnologia, militarismo e erradicação. Isso pode ser útil para tratar o sintoma, mas não consegue, e jamais conseguirá, tratar a doença. (BURKE, 2007, p. 17) Ao declarar que “a nossa guerra não vai terminar até todo grupo terrorista global ter sido encontrado, parado e derrotado”, George W. Bush já mostrava a dimensão que sua “doutrina antiterrror” poderia alcançar: caberia aos Estados Unidos a missão de libertar o mundo do “ciclo de tiranias” e do “terrorismo”. O presidente estadunidense ousou simplificar perigosamente o cenário internacional em sua “guerra ao terror”. A invasão ao Afeganistão foi a primeira resposta do governo Bush à população estadunidense. Algo deveria ser feito, e logo! Contudo, o controle político no Afeganistão e depois a desastrosa tomada do Iraque não resolveriam o problema do terrorismo mundial – e, como vimos, nem dos próprios países –, mas sim jogaria uma cortina de fumaça sobre a questão na tentativa de saciar as expectativas e tolher a visão sobre os efeitos colaterais advindos com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Osama bin Laden não seria capturado, pois seu esconderijo é desconhecido e o fantasma do terrorismo ainda assombra o mundo; seu espectro está longe de ser exorcizado. 73 CAPÍTULO 3: TERRORISMO: UM LEGADO HISTÓRICO CARACTERIZAÇÃO NA PLATAFORMA MIDIÁTICA E SUA O ato terrorista não pode ser entendido nem analisado, portanto, como um súbito relâmpago no céu azul, uma atitude isolada, inesperada e inexplicável de algum grupo de fanáticos. José Arbex Jr. Era o dia 11 de setembro. Desviados de sua missão habitual por pilotos decididos a tudo, os aviões se lançam para o coração da grande cidade, resolvidos a abater os símbolos de um sistema político detestado. Imediatamente, explosões, fachadas que voam em pedaços, desabamentos num barulho infernal, sobreviventes aterrorizados, fugindo cobertos de escombros. E a mídia que difunde a tragédia ao vivo... Nova York, 2001? Não, Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973. Com a cumplicidade dos Estados Unidos, golpe de Estado do General Pinochet contra o socialista Salvador Allende e o palácio presidencial metralhado pelas forças áreas. Dezenas de mortos e início de um regime de terror que durou quinze anos. (RAMONET, 2003, p.45) Ao lermos o primeiro parágrafo redigido pelo jornalista francês Ignacio Ramonet, é quase que instantâneo nos reportamos ao dia 11 de setembro de 2001. Quando nos deparamos com a seqüência do texto, tudo se esclarece e retornamos à época da Guerra Fria, do patrulhamento dos Estados Unidos na América Latina, a caça aos governos comunistas, onde o “bem” era representado pelo capitalismo, pelo “Ocidente”... Os Estados Unidos usavam o terror para gerar terror. Foram vitais na derrubada de um governo democraticamente eleito que naquela terça-feira de setembro de 1973 pagava o preço por desafiar os estadunidenses e seguir uma ideologia diferente. A partir dessa data até 1989, o Chile mergulharia nas trevas do Terrorismo de Estado capitaneado pelo General Augusto Pinochet. Paradoxalmente, o país que se orgulha de se autodenominar “a maior democracia do mundo” e defender os “valores da civilização” patrocinava mais um golpe de Estado sacrificando os anseios democráticos tão valiosos a qualquer sociedade. 74 Atentados que disseminam o terror não são algo novo na história da humanidade. A palavra terrorismo remonta à Revolução Francesa, ao terror dos jacobinos e de suas guilhotinas. Na acepção atual, é um fenômeno que começou no final do século XIX quando os anarquistas começaram a jogar bombas, tornando-se instrumento corriqueiro após a Segunda Guerra Mundial, visando a obter resultados políticos através da criação de situações de pânico coletivo. Um valor disfórico presente em ações de terror é a intimidação da sociedade civil, seja ela executada pelo governo ou grupos insurgentes. Alguns veículos midiáticos se refutavam a usar a expressão “terrorismo” para designar a atuação política dos Estados Unidos contra outros países, mas se revestem dessa classificação quando os vitimados são os estadunidenses, na direção de sentidos que os “outros” são “terroristas”, nós, não 44 . Mesmo sendo conceito “técnico” presente nas ciências sociais, é inegável que a expressão “terrorista” é vestida pelo figurino ideológico, subjetivo, sendo ajustado segundo o efeito de sentido que se queira produzir no enunciatário. Mediante a isso, para melhor compreensão das notícias, é necessário responder: o que é terrorismo?, e conhecê-lo como processo político remoto e as faces com as quais se apresenta. 3.1. O terrorismo na história A prática terrorista tem uma longa história. Instigar o terror para alcançar fins políticos e criar raízes no poder é tão antigo quanto às primeiras sociedades. Muito antes que ataques contra civis, como artifícios para afetar o comportamento de nações e seus líderes fossem denominados de terroristas, a ação teve várias classificações. Do tempo da república romana até fins do século XVIII a prática era batizada de guerra destrutiva. Os próprios romanos geralmente usavam a expressão guerra punitiva. Não obstante, muitas campanhas militares 44 Comentando essa afirmativa, Arbex Jr. (2003, p. 52) faz uso de situações pela quais passou. “Sempre que eu levantava a argumentação (da amplitude das práticas terroristas), provocava uma indignação do ‘especialista’ debatedor, que, invariavelmente, declarava-se ‘perplexo’ por ter encontrado alguém que apoiava o atentado. De nada adiantava esclarecer que eu condenava qualquer ato terrorista, incluindo o 11 de setembro, só que por ‘qualquer ato terrorista’ eu entendia também o ataque nuclear a Hiroxima (sic) etc”. 75 romanas fossem de fato empreendidas como punição por traição ou rebelião, outras ações destrutivas afloravam do simples desejo de impressionar povos recém-conquistados com o temível poder dos romanos. Na Grécia antiga, o historiador Xenofonte já aconselhava a prática de assassínios em países potencialmente adversários para criar pânico entre a população virtualmente inimiga. Porém, mesmo colado à violência, o terrorismo já foi visto pelas lentes da justiça e redenção. No decorrer do século XIX, a palavra terrorismo ganha uma conotação francamente positiva nas obras dos teóricos do movimento anarquista. Guardada as peculiaridades do pensamento de cada um, o francês Pierre Joseph Proudhon e os russos Mikhail Bakunin e Piort Kropotikin observavam no terror um fato construtivo, uma forma eficiente de destruir o poder estatal. (MONDAINI, 2004, p. 230) O século XIX é simbólico por testemunhar a eclosão da violência internacional, interpretada como precedente histórico do terrorismo moderno. Os agentes dessa agressão eram geralmente classificados como anarquistas e faziam uso ostensivo do assassinato individual, além de bombas contra unidades militares, policiais e forças privadas de segurança industrial, como práticas para combater as crescentes disparidades entre as classes sociais resultantes das transformações advindas com a Revolução Industrial que aflorava em solo europeu. Tem-se assim, na prática terrorista, uma extensão de anseios políticos. A violência é utilizada como instrumento para alcançar determinados objetivos. Para ampliar seus tentáculos de pavor sobre povos e Estados, o terrorismo assume diversas fisionomias. 76 3.2. As faces do terrorismo A melhor arma política é a arma do terror. A crueldade gera respeito. Podem odiar-nos, se quiserem. Não queremos que nos amem. Queremos que nos temam. Adolf Hitler durante discurso para oficiais da SS em Kharkov, (19/04/1943). O terror tem muitas faces, contudo, um só pensamento: a anulação de seus opositores a qualquer custo. Existem terroristas que agem em nome de uma divindade (como os grupos extremistas islâmicos); os mercenários (como os milicianos que lutam na África, membros da Blackwater que atuam no Iraque); os nacionalistas (como o IRA – Exército Republicano Irlandês – e do ETA – Pátria Basca e Liberdade) 45 ; e, ainda, os ideológicos (como o grupo de Timothy McVeigh, responsável pela destruição do prédio de Oklahoma em 1995) 46 . Há ainda o terrorismo de Estado, que consiste na eliminação de minorias étnicas ou opositores a certo regime. Enquadram-se nessa prática, os regimes da Alemanha nazista, a Itália fascista, a União Soviética sob a sombra de Stálin, o Camboja de Pol Pot, a China de Mao Tse-tung, o Iraque sob os auspícios de Saddam Hussein, as ditaduras latino-americanas nas décadas de 1960 e 1970, o antigo regime de apartheid na África do Sul ou ainda os Estados Unidos à época da política marcarthista. 45 A percepção de que os atos de terrorismo são repudiados pela opinião pública, principalmente depois das ações da rede Al Qaeda em 11 de setembro de 2001, levou tanto o IRA quanto o ETA a repensarem suas formas de ação para que o apoio das sociedades que tais grupos dizem representar não fosse diluído por completo. O IRA depôs suas armas em julho de 2005. Após mais de quatro décadas de conflito, protestantes e católicos formaram, em maio de 2007, um governo de união para administrar a Irlanda do Norte – o Ulster. Histórico, o acordo determina a autonomia limitada do Ulster, que passa a legislar sobre questões como agricultura, educação e saúde. Mesmo com a consolidação do acordo, os militantes do IRA declararam que prosseguirão na sua busca pela independência, mas agora pelos trâmites políticos legais. Em março de 2006, foi à vez do ETA. Ambas as organizações optaram pela via política e institucional como caminho para atingir seus objetivos. Contudo, no dia 30 de dezembro de 2006, o grupo ETA rompeu a trégua ao explodir um carro-bomba no Aeroporto Internacional de Madri e em junho de 2007 declarou oficialmente o fim do cessar-fogo permanente estabelecido em março de 2006 e a retomada da luta armada em busca da "construção de um Estado livre". 46 José Arbex Jr. “Terrorismo: um legado da história”. Texto que circulou na Internet em sites de Ciências Sociais em outubro de 2001, sem maiores referências. 77 ... o terrorismo é, na verdade, a própria negação da política, pois representa uma contradição à existência desta. Desde sua origem, na polis (cidade-Estado) grega, o termo política traz em si as noções de “diálogo, persuasão, negociação, em suma, a razão”. Ora, com seu caráter “fanático-militar”, o terrorismo “se volta contra a própria racionalidade, logo, contra a política”. O terrorista é o extremista que “nada quer saber do diálogo, da argumentação”, já que “o seu único alvo é a imposição, pela violência, de suas próprias convicções”. Dessa forma, o terrorismo assinala a continuidade daquilo que existe de mais fanático na humanidade, ou, mais apropriadamente, o que há de mais fanático na anti-humanidade. (MONDAINI, 2004, p. 244) Inúmeras reportagens sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 colaram a expressão “terrorista” a manifestações islâmicas. É fato que adeptos do Islamismo utilizam-se desse artifício político para demonstrar seus anseios. Todavia, como vimos, o terrorismo tem inúmeras manifestações. O mesmo raciocínio é aplicado ao vocábulo “fundamentalista”, que foi gestado no ventre do Cristianismo. Considerar o terrorismo e o fundamentalismo apenas ou, sobretudo, como instrumentos políticos do Islamismo é reducionismo ou má-fé. A prática terrorista é fortemente repudiada por muito seguidores mulçumanos. Portanto, o terror “islâmico” não é o porta-voz de uma religião, cultura ou civilização. O radicalismo islâmico é impopular. A maioria dos muçulmanos não quer uma teocracia. As pessoas no mundo muçulmano viajam para ver o luxo em Dubai, não as madrassas de Teerã. Metade dos países muçulmanos do mundo – cerca de 600 milhões de habitantes – tem eleições. Nos últimos cinco anos os partidos ligados ao radicalismo islâmico raramente ganharam mais do que 7% ou 8% dos votos. (ZAKARIA, 2007, p. 91) Boff (2002) vai à raiz dos fatos e, aplicando a vacina da história, esclarece que O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo norte-americano, surgido nos meados do século XIX. O termo foi cunhado em 1915, quando professores de teologia da Universidade de Princeton publicaram uma pequena coleção de doze livrões que vinha sob o título Fundamentals. A testimony of the Truth (1909-1915). Neles propunham um cristianismo extremamente rigoroso, ortodoxo, dogmático, como orientação contra a avalanche de modernização de que era tomada a sociedade norte-americana. Não só modernização tecnológica, mas modernização dos espíritos, do liberalismo, da liberdade das opiniões, contrastando fundamentalmente com a seguridade que a fé cristã sempre oferecera. 78 A tese dos fundamentalistas no âmbito religioso é afirmar que a Bíblia constitui o fundamento básico da fé cristã e deve ser tomada ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Cada palavra, cada sílaba e cada vírgula, dizem os fundamentalistas, é inspirada por Deus. Como Deus não pode errar, então tudo na Bíblia é verdadeiro e sem qualquer erro. Como Deus é imutável, sua Palavra e suas sentenças também o são. Valem para sempre. (...) O Islamismo original não é guerreiro nem fundamentalista. É tolerante para com todos os povos, especialmente “os povos do livro” (judeus e cristãos). Ele vive de duas grandes convicções: a afirmação da absoluta unicidade e transcendência de Deus, a partir de onde tudo na Terra é relativizado, e a comunidade profética dos irmãos, pois todos são criaturas de Deus e devem se entreajudar. (BOFF, 2002, p. 12-29) A doutrina inicial era de paz, entretanto, muitos seguidores do Islamismo divorciaram-se da concepção original e se enveredaram para o caminho ungido de sangue. 3.3. Islamismo, fundamentalismo e terrorismo Atualmente o Islamismo (submissão à vontade de Alá 47 ) é a religião que mais cresce no mundo. A religião islâmica é originária da cidade de Meca (atual Arábia Saudita) e teve na figura do profeta Maomé a sua edificação. Seus ensinamentos estão materializados no Alcorão 48 , livro sagrado em que se encontram impressas as revelações feitas pelo anjo Gabriel a Maomé entre os anos 610 a 632 d.C. O Alcorão divide-se em duas grandes partes que correspondem às fases de atuação do profeta Maomé: a fase de Meca (anos 610622) e a fase de Medina (anos 622-632). A fase de Meca possui textos mais curtos e aborda fundamentalmente a doutrina e seus valores. Na fase de Medina, 47 Segundo Kamel (2007, p. 83): “... para o Islã, não existe, em nenhuma hipótese, conversão forçada. Islã (...) é uma palavra árabe que significa submissão, mas ela tem a mesma raiz da palavra paz. Infelizmente, hoje, vivemos desses períodos sombrios em que a minorias se sobressaem”. 48 O Alcorão não foi escrito por Maomé. Sendo o profeta analfabeto, as transcrições das revelações feitas pelo anjo Gabriel deve-se ao califa Otman, terceiro sucessor de Maomé no ano 652 da nossa era. Em língua portuguesa, grafa-se o livro sagrado islâmico de duas formas: “Alcorão e Corão”. Nesta dissertação, faremos uso do vocábulo “Alcorão”, pois segundo Kamel (2007, p.73-74): “Literalmente, Alcorão quer dizer ‘A Leitura’ (em português, deve-se dizer Alcorão, e não o Corão, porque a palavra entrou em nossa língua daquela primeira forma, assim, como outros três mil vocábulos, como, por exemplo, almofada, alfaiate, álcool, alfinete, etc.)”. Manteremos a grafia “Corão” quando a mesma for citada desta forma por outros autores. 79 o livro trata de orientações concretas do reto viver, da organização política e do sistema jurídico. Posteriormente, incorporaram-se à doutrina islâmica as narrativas de outros profetas (hadit), o consenso dos sábios (igma) e os argumentos por analogia (qiyas). O Islamismo é monoteísta e possui três ramos principais: xiitas, sunitas e sufistas. Os xiitas são tidos como a ala mais radical do Islã, não aceitando divisão entre o poder político e a esfera religiosa. Política e religião consubstanciam-se na formação do Estado Teocrático e atribuem ao líder religioso uma proteção sobrenatural contra o pecado e o erro. Os sunitas, a imensa maioria desse segmento religioso, são conhecidos por sua moderação, pela separação do poder divino do político-social. Consideram que a fonte essencial para a lei islâmica é a Suna, compilação da vida e do comportamento do profeta 49 . São quatro as escolas teológicas sunitas, que diferem fundamentalmente em detalhes de rito e código legal: Hanafi, Hanbali, Mãlaki, Shaãfi’í, sem falar na “reforma” ultra radical wahhabista do século XVIII – o wahhabismo é uma seita hoje majoritária na Arábia Saudita. (KAMEL, 2007, p. 101) Já os sufistas, constituem-se em uma corrente esotérica do Islamismo e se preocupam mais com as verdades espirituais da religião do que com as questões políticas e ortodoxas. Assim sendo, a interpretação do Alcorão não é a mesma para todos os islâmicos. Para os fundamentalistas 50 certos aspectos das sociedades ocidentais como a liberdade de expressão e de religião, a igualdade de direitos para homens e mulheres são incompatíveis com os ensinamentos do Alcorão. Para eles, o Ocidente, com seus valores, constitui uma ameaça à sociedade islâmica, devendo ser combatido. O ideal político desta manifestação fundamentalista é a implantação de um Estado Islâmico, um regime teocrático que traduza literalmente as antigas leis do Alcorão (balizados por uma interpretação radical dos textos). O chefe real desta 49 Mas, nem por isso, alguns membros dessa facção são mais tolerantes; basta lembrar que Saddam Hussein e milicianos no grupo Al Qaeda são de inspiração sunita. No Afeganistão, de maioria sunita, os xiitas, por exemplo, são considerados “párias”. 50 Convém ressaltar que esse grupo não se denomina fundamentalista e sim mujähidün (guerreiros da liberdade) e de defensores da jihad, a “guerra santa” contra os inimigos do Islã. 80 concepção de governo teocrático é Alá, sendo os demais guias religiosos apenas representantes que interpretam e aplicam a vontade divina. No que cabe às tradições, os fundamentalistas defendem o radical e urgente rompimento com tudo que pareça ocidental 51 . As mulheres emancipadas pelas leis secularizadas devem voltar a usar o chador ou burca, não devem ter acesso à instrução, nem ser atendidas por médicos. O ensino em qualquer nível deve priorizar o campo religioso e as leis comuns devem se acolher às regras estabelecidas pelo Alcorão. Socialmente, pode-se dizer que eles dão voz aos sentimentos dos setores mais pobres e mais desesperançados das comunidades do Oriente Médio, gente em sua maioria analfabeta que vive em subúrbios, nos campos ou nos desertos e que leva uma vida dura, sem alegrias ou confortos. O surgimento do fundamentalismo religioso também parece estar ligado tanto a uma tendência global como a uma crise institucional. Segundo a experiência histórica, sempre existiram idéias e crenças de todos os tipos à espera para eclodirem no momento certo. É significativo que o fundamentalismo, quer islâmico, quer cristão, tenha se difundido (e continuará a expandir-se) por todo o mundo no momento histórico em que redes globais de riqueza e poder conectam pontos nodais e valorizam os indivíduos em todo o planeta, embora desconectem e excluam grandes segmentos das sociedades. (CASTELLS, 2002, p. 59-60) Os movimentos fundamentalistas islâmicos têm sua origem na decadência do poder muçulmano no século XVIII, dentro do contexto da expansão do Império Turco-Otomano. Nesse período, os líderes espirituais eram obrigados a aceitar determinações do poder político imperial, que, apesar de professar o Islamismo, procuravam agradar povos não-muçulmanos dominados pelo império. Em razão da expansão do Império Turco-Otomano, ocorria uma troca de manifestações culturais que não era bem vista pelos líderes espirituais. A expansão do colonialismo ocidental foi um processo fundamental para o retrocesso da cultura islâmica. 51 Para Kamel (2007), classificar os xiitas de “fundamentalistas” é enobrecê-los. Segundo o jornalista, os líderes desses grupos se aproximam mais de Hitler do que de fanáticos religiosos como Jim Jones e devem ser chamados pelo que realmente o são: “totalitários do Islã”. 81 Com o domínio colonial europeu, a partir do início do século XX, os movimentos fundamentalistas ganharam impulso, alicerçados na defesa das leis e costumes islâmicos e na luta contra a dominação ocidental. O crescimento do fundamentalismo também precisa ser entendido como uma reação aos governos corruptos e ditatoriais de vários países do Oriente Médio, onde a conquista da independência política não significou a eliminação das interferências externas das grandes potências mundiais e onde as populações não vêem perspectivas para melhoria nas condições de suas vidas. Em muitos desses países, governantes acabam se reelegendo por meio de fraudes e manipulações. Em vista disso, parte da população muçulmana passa a depositar cada vez mais suas esperanças nas próprias raízes religiosas e culturais. A posição das grandes potências mundiais, sobretudo dos Estados Unidos, em relação aos governos desses países sempre foi ambígua, revelando, na verdade, um interesse no Oriente Médio exclusivo nas vantagens econômicas e geopolíticas que podem ter apoiando este ou aquele governante. Em tempos contemporâneos, o fundamentalismo islâmico começa a ganhar força na primeira metade do século XX. Em 1929, no Egito, surgiu a Irmandade Muçulmana, fundada por Hasan al-Banna. O grupo oferecia resistência armada ao colonizador britânico. A Irmandade também possuía características sociais desenvolvendo programas de alfabetização e de assistência médica à população carente do Egito. Os fundamentalistas queriam com isso reconstruir sua identidade nacional com base nos alicerces da religião islâmica, em oposição aos valores políticos e culturais do colonizador. Contudo, a Irmandade Muçulmana passou a ser perseguida pela monarquia egípcia, que tinha fortes laços políticos com a Inglaterra. A Irmandade manifestava na prática terrorista sua metodologia de ação. Seus militantes costumavam bradar palavras de ordem como: “Nós não temos medo da morte; nós a desejamos”. A sentença com que a Al Qaeda costuma finalizar suas declarações – “vocês amam a vida; nós, a morte” – tem no discurso da Irmandade Muçulmana a sua origem. O fundamentalismo islâmico voltou a ascender no cenário político internacional em 1979 com a Revolução Islâmica Xiita no Irã. Liderada pelo Aiatolá 82 Khomeini, a Revolução foi vista como uma canalização das potencialidades islâmicas adormecidas ou escorraçadas pela presença cada vez maior do “pecado da modernidade”. Na concepção fundamentalista, a salvação para esse pecado seria o resgate da “pureza islâmica”. 3.4. O surgimento do grupo terrorista islâmico Al Qaeda O Afeganistão, composto de uma variedade de etnias rivais, era uma monarquia desde 1933. Em 1973, sofreu um golpe de Estado, liderado pelo general Mohammed Daud, que transformou o país numa república e assumiu a presidência. No período da Guerra Fria, principalmente após a crise do petróleo de 1973, o país tornou-se estratégico, transformando-se num território de disputa entre as duas superpotências da época (Estados Unidos e ex-União Soviética). Os soviéticos aspiravam à dominação da região para controlar o acesso ao Golfo Pérsico, e os Estados Unidos buscavam inibir a expansão soviética na região do Oriente Médio. Em 1978, Mohammed Daud foi deposto e assassinado por membros do Partido Democrático do Povo (de orientação comunista). Esse episódio desencadeou a disputa pelo poder entre as facções do próprio partido e entre grupos guerrilheiros de etnias diversas, principalmente a islâmica. Hafizullah Amin, líder de uma das facções do Partido Democrático do Povo, acabou conquistando a presidência, mas não se mostrou capaz de contemplar os interesses soviéticos. No final de 1979, a União Soviética invadiu o país. O presidente Hafizullah Amin foi assassinado e o presidente nomeado, Babrak Karmal, passou a governar o Afeganistão com as forças soviéticas, que em pouco tempo chegaram a mobilizar grande contingente de soldados. A resistência contra o regime de Babrak Karmal, por parte dos vários grupos de mujähidins, foi implacável. Instaurou-se no país uma guerra civil que os soviéticos nunca conseguiram controlar. Estados Unidos, Paquistão, China, Irã e Arábia Saudita forneceram armas e dinheiro aos guerrilheiros que lutavam contra a ocupação soviética. Durante a década de 1980, os Estados Unidos estiveram 83 diretamente envolvidos no recrutamento e treinamento dos mujähidins, entre eles, Osama bin Laden. Ao fim da Guerra Fria, o exército soviético retirou-se do Afeganistão, e a guerra continuou entre as facções de grupos islâmicos que disputavam o poder entre si. Em 1994, o Talebã, grupo islâmico ultra-radical, assumiu o poder e o controle de 95% do território afegão e o país se transformou em abrigo seguro para o milionário saudita Osama bin Laden. Já no fim do jihad no Afeganistão (no fim dos anos 1980), a Al Qaeda (...), foi criada para atingir as seguintes metas: “Estabelecer a verdade, livrar o mundo de todo o mal e fundar uma grande nação islâmica”. (KAMEL, 2007, p. 213) Os mujähidins treinados pelos Estados Unidos para combater a expansão do comunismo soviético voltaram-se contra seu principal provedor de armas e de treinamentos. ... o aspecto mais assustador (...) era o fato de que quase ninguém a levava a sério. Era estranha demais, primitiva e exótica demais. Diante da confiança dos americanos na modernidade, na tecnologia e em seus próprios ideais para protegê-los do desfile selvagem da história, os gestos desafiadores de Bin Laden e seus sequazes se afiguravam absurdos e até patéticos. No entanto, a Al Qaeda não era um mero artefato da Arábia do século VII. Aprendera a usar ferramentas modernas e idéias modernas, o que não surpreendia, já que a história da Al Qaeda na realidade começara nos Estados Unidos, não tanto tempo atrás. (WRIGHT, 2007, p. 17) A rede Al Qaeda foi concebida nesse contexto histórico, com a fusão de facções islâmicas ultra-radicais, conexões espalhadas pelo mundo – inclusive nos Estados Unidos – país que seria o alvo do mais arrojado ataque executado pela organização. A Al Qaeda possuía o código genético do terrorismo, seu rastro de sangue e destruição ficaria mundialmente famoso em 11 de setembro de 2001. 84 3.5. A Al Qaeda e o “Terrorismo em Rede” 52 Com os atentados de 11 de setembro de 2001, o grupo terrorista Al Qaeda inaugurou uma nova forma de manifestação terrorista: o terrorismo em rede. Neste início de século, quatro atentados chocaram o mundo por sua crueldade: o de 11 de setembro de 2001 (em Nova York e Washington – Estados Unidos), o de 11 de março de 2004 (em Madri – Espanha), o de Beslan (Ossétia do Norte) cujo nefasto desfecho ocorreu em 3 de setembro de 2004 e os atos ocorridos em Londres (Inglaterra) em 7 de julho de 2005 53 . Os atentados sofridos pelos Estados Unidos, 52 A organização do espaço geográfico através das redes eliminou a necessidade de fixar as atividades políticas, econômicas e até terroristas, em determinados lugares. Isso vale para o grande número de atividades que podem ser executadas a partir de qualquer parte do mundo, bastando que esses locais estejam conectados. O espaço geográfico hoje tende a se tornar um meio técnico-cientifico informacional, impregnado pela tríade ciência, técnica e informação, o que resulta em uma nova dinâmica territorial (Santos, 1996a). Até pouco tempo, a superfície do planeta era utilizada de acordo com divisões produzidas pela natureza ou pela história, chamadas de regiões. Essas regiões correspondiam à base da vida econômica, cultural e política. Atualmente, devido ao processo das técnicas e das comunicações, a esse território se sobrepõe um território das redes que, em primeira análise, fornece a impressão de ser uma realidade virtual. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, não se trata de um espaço virtual. Para Castells (2002, p.565): “redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. Assim, as redes são realidades concretas, formadas por pontos interligados, que tendem se a espalhar por toda a superfície mundial, ainda que com desigual densidade, conforme os continentes e países. Santos (1996b, p.215) afirma que “a existência das redes é inseparável da questão do poder”. Essas redes se constituem na base da modernidade e na condição necessária para a plena realização da economia global. Elas formam e constituem o veículo que permite o fluxo das informações, que são hoje o mecanismo vital da globalização. Moreira (2006) aduz que a organização em rede vai mudando a forma de conteúdo dos espaços deixando-os simultaneamente mais fluídos e as distâncias perdem seu sentido físico diante do novo conteúdo social do espaço. Antes de mais nada, é preciso se estar inserido num lugar, para se estar inserido na geopolítica da rede. Uma vez localizado na rede, pode-se daí puxar a informação, disputar-se primazias e então jogar-se o jogo do poder. Enfim, a informação se torna a matéria-prima essencial do espaço-rede. Nesse cenário é que emerge a expressão “Terrorismo em Rede”, utilizada por Haesbaert (2002b). Para o geógrafo, o grupo Al Qaeda possui em sua estrutura bases ou “células” de uma organização ilegal – e a flexibilidade das redes com seus fluxos de várias ordens. Parte desta agilidade se deve ao acesso às redes técnico-informacionais contemporâneas e aos investimentos mantidos pelo grupo, especialmente em setores ilegais da economia. Pelo seu caráter mais difuso, fragmentado e descontínuo (mas nunca desarticulado) no espaço geográfico, o terrorismo da Al Qaeda constitui um dos âmbitos ilegítimo do processo de globalização. Cabe ressaltar que as conexões de uma rede como a da organização de Bin Laden vincula os territórios mais excluídos do movimento globalizador, como os do interior do Afeganistão, até centros do capitalismo mundial como Manhattan. 53 No dia 30 de junho de 2007, o governo britânico elevou o nível de alerta terrorista para "crítico” após o impacto de um carro em chamas contra um terminal do aeroporto de Glasgow, no sul da Escócia. A polícia escocesa afirmou que o ataque foi "um ato terrorista claramente vinculado" aos dois carros-bomba localizados pelas autoridades inglesas em Londres na sexta-feira (29/06). O "alerta crítico" não era acionado no Reino Unido desde 7 de julho de 2005, quando um atentado 85 Espanha e Inglaterra foram atribuídos à rede Al Qaeda e seus braços de execução. O da Ossétia do Norte, a um grupo separatista da Chechênia, região que luta por sua independência em relação à Federação Russa. Durante o século XX, proliferaram grupos terroristas em praticamente todas as partes do planeta com os mais diferentes objetivos: grupos de esquerda em luta contra governos capitalistas, grupos de direita contra governos de orientação socialista, grupos nacionalistas, grupos separatistas, lutas pela independência, descolonização... Neto (2002) atenta que as ações terroristas são determinadas por princípios básicos que assegurem o seu sucesso e aumentem cada vez mais o poder de destruição. Entre seus principais preceitos estão a) O princípio da surpresa: Atacar onde e quando menos se espera; b) O princípio do alvo certo: A escolha correta do alvo a ser atingido é determinante na promoção do medo e do terror; c) O princípio das externalidades: Valorizar não apenas o ato terrorista, mas, sobretudo, os efeitos de curto, médio e longo prazos das ações do terror; d) O princípio da tragédia: Quanto maior o número de vítimas, melhor. Vítimas para chocar é o preceito básico das ações terroristas; e) O princípio do efeito moral: Abater moralmente os inimigos, disseminando o medo e o pavor entre a população; f) O princípio das novas possibilidades: Sempre prometer novos ataques caso suas exigências não sejam cumpridas; g) O princípio da presença onipotente: Estar presente em qualquer lugar, em todo lugar, sempre disposto a agir, se for preciso; h) O princípio da ameaça latente: Tornar-se uma ameaça sempre presente na vida das pessoas, países e regiões; i) O princípio da eficiência destruidora: Sua eficiência e sua competência, mesmo a serviço do mal, são objetos de admiração; j) O princípio da redenção: A morte de seus seguidores é o ingresso na vida eterna; k) O princípio do exército de reserva: Divulgar adesões em massa ao movimento terrorista e deixar claro que “o que não falta são terroristas dispostos a morrer”; l) O princípio da onipresença: Fazer crer aos inimigos que dispõe de um exército de terroristas prontos para a ação em seu próprio território; m) O princípio do simbolismo destrutivo: Valorizar o efeito simbólico das ações. Destruir símbolos que significam poder, riqueza e intransigência; n) O princípio da martirização: Transformar seus adeptos em mártires; suicida matou 52 pessoas na capital inglesa. Muçulmanos que trabalharam no sistema de saúde do país são foco da investigação sobre plano terrorista em Londres e Glasgow, assim como se suspeita da participação de células do grupo Al Qaeda na elaboração dos atos. 86 o) O princípio da espetacularização: Fazer de seus atos verdadeiros espetáculos de destruição; p) O princípio do catastrofismo: Sempre prometer a anunciar uma tragédia maior; q) O princípio da inversão: Transformar a vítima em algoz; r) O princípio do estímulo à guerra total (o princípio da “jihadização”): Promover a guerra santa. Transformar os conflitos locais em choques de civilizações; s) O princípio da demonização: Seu inimigo é visto como o Grande Satã, causador de todos os males do mudo; t) O princípio da invisibilidade: Ser um inimigo invisível, sem cara nem movimentação; u) O princípio do anonimato: Cometer atos mantendo-se no anonimato; v) O princípio da reflexão induzida: Pelos atos praticados contra alvos cuidadosamente escolhidos, induz-se à reflexão: por que este ou aquele país foi escolhido como alvo das ações terroristas?; w) O princípio da bola da vez: Deixar seus inimigos pensarem que um deles será a próxima vítima a alvo do terror; x) O princípio do silêncio: Manter-se em silêncio para não se expor 54 . (NETO, 2002, p. 60-62) No entanto, atos terroristas de grandes proporções são elementos marcantes na ordem mundial pós-Guerra Fria e colocam em evidência a continuidade dessa estratégia de luta por grupos radicais frente ao Estado organizado, diante dos quais seriam impotentes num combate frontal. Trata-se de uma guerra assimétrica de grandes proporções, que amedronta e coloca a sociedade em permanente estado de tensão. O combate ao terrorismo não é uma tarefa a ser realizada em curto prazo. O terrorismo é um “inimigo invisível”, atua por meio de ataques surpresas e, muitas vezes, é indiferente ao alvo que será atingido. Sem dúvida, neste início de século, embora velhas táticas terroristas ainda sejam praticadas, pelo menos os atentados atribuídos à rede Al Qaeda, caracterizam-se pelo minucioso planejamento e profissionalismo, visando ações 54 Os itens “u” e “x” se fazem vivos quando nos reportamos às palavras de Osama bin Laden quando a este recaíam as suspeitas de ser o mentor dos atentados contra os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001: “Eu já disse que eu não estou envolvido nos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos. Como um muçulmano, eu dou o melhor de mim pra evitar contar uma mentira. Eu não tinha nenhum conhecimento desses ataques nem eu considero um ato aceitável matar mulheres inocentes, crianças e outros seres humanos. O Islã proíbe formalmente tais práticas, mesmo no curso de uma guerra”. (KAMEL, 2007, p. 240) 87 de proporções mundiais. Foram atos realizados em pontos estratégicos do capitalismo mundial. Quanto maior a violência da prática terrorista, maior será a cobertura dos meios de comunicação. Uma vez que é a imagem que determina a informação na atualidade (Vicente, 2005a), e “mesmo a desgraça perde seu sentido sem os refletores” (AUBENAS & BENASAYAG, 2003, p. 32). Nos atentados ao World Trade Center, depois do choque do primeiro avião na Torre Norte, as câmaras de televisão passaram a transmitir ao vivo o acontecimento e pessoas do mundo todo viram em tempo real o segundo avião chocar-se na Torre Sul. Foi também ao vivo que os telespectadores puderam acompanhar o desabamento das Torres Gêmeas e a população em desespero sob a poeira dos escombros produzidos. Segundo a Revista Veja (2001, p. 62), eles “queriam publicidade máxima de seus atos e agiram como se tivessem antecipado o cenário que construíram.” Na pauta desse novo terrorismo consta: • • • • • Criar catástrofes para gerar espaço; Despertar polêmicas para colocar-se como tema central; Mitificar o seu principal líder para dele fazer um dos principais produtos da mídia; Criar novas expectativas de ataques para manter a imprensa sempre em estado de alerta; e Fomentar um clima de guerra para despertar a atenção da mídia. (NETO, 2002, p. 107-108). Segundo Romano (2003, p.21) “com o Estado moderno, todas as artes e ciências se tornaram utensílios de propaganda”. Sem a atuação da mídia, os atentados de 11 de setembro de 2001 não teriam o impacto desejado. Ramonet (2001) nos alerta ... que hoje em dia a informação televisada é essencialmente um divertimento, um espetáculo. Que ela se nutre fundamentalmente de sangue, de violência e de morte. (RAMONET, 2001, p. 101) Cabe destaque à noção de tempo real manifestada pelos arquitetos do terror que projetaram os atentados. A resposta quase que instantânea por parte dos meios de comunicação era algo previsível e peça importante para a repercussão das ações terroristas. As cenas dos aviões se chocando contra os 88 edifícios do World Trade Center, transformaram-se em um “marketing do terror”. Os ataques tiveram como alvo os principais espaços-símbolos dos Estados Unidos: o econômico (Word Trade Center) e o militar (Pentágono). As imagens produzidas pelos ataques representariam à destruição dos ícones do capitalismo estadunidense. Assim, a mídia foi utilizada como instrumento de guerra pelos terroristas. De acordo com Neto (2002) e Eco (2002) Pelo clima de guerra criado, o terror vale-se da mídia para fomentar a sua própria “jihad”. É o marketing do terror que “jihadiza” a mídia. (...) O que fez a mídia senão cair na armadilha que lhe foi preparada pelo marketing do terror? (NETO, 2002, p. 107-108). A repetição, nos dias seguintes aos atentados, até 200 vezes consecutivas, do choque dos aviões, por um lado paralisou o mundo, mas, por outro, contribuiu de forma determinante para aumentar – e com euforia – a simpatia e a provocação de vários grupos ligados ao terrorismo. Isso transformou Bin Laden numa espécie de super-homem capaz de tudo, o que aumentou e incentivou o recrutamento de novos camicases. (ECO apud NETO, 2002, p. 108) O poder midiático serviu como instrumento para despertar a atenção da população à causa dos terroristas. O episódio reforçou o poder da imagem na produção dos sentidos. Quando se fala nos atentados de 11 de setembro de 2001, as cenas que nos vem à mente são as dos aviões se chocando com as torres do World Trade Center e suas estruturas sendo consumidas pelas chamas. O atentado ao Pentágono, não raro, cai no esquecimento, num primeiro momento, entre outros fatores, por não se ter às imagens do avião destruindo suas estruturas. Arbex Jr. (2003a, p.23) complementa o raciocínio sobre a utilização estratégica dos meios de comunicação afirmando que “... a mídia, na era tecnológica, é um instrumento estratégico de guerra. (...) Ela é um elemento do terror”. Osama bin Laden pode ser classificado como agente do novo terrorismo. Incitando a prática terrorista de maneira transnacional e não mais local como as ações do IRA e do ETA. A Al Qaeda, utilizando-se de maneira eficaz das tecnologias de informação, produz o terrorismo organizado em rede. No caso do 89 grupo Al Qaeda, a Internet, os laptops, os passaportes múltiplos e as facilidades de transporte mundial tornaram possível a organização terrorista operar como uma entidade virtual, fazendo eficiente uso do território organizado em rede, obtendo maior mobilidade e flexibilidade. Mas o terrorismo atual é diferente das formas anteriores. E os atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001, simbolizam muito bem este novo terrorismo, em especial, pelo planejamento, objetivos, sua natureza globalizada e uso inteligente da mídia. Neste aspecto, a Al Qaeda é uma organização perfeitamente adaptada à era da globalização com suas ramificações multinacionais, suas redes financeiras suas conexões com os meios de comunicação e informação, seus recursos econômicos, suas centrais de abastecimento, seus centros de formação, seus pólos humanitários, seus postos de propaganda, suas filiais e subfiliais... (RAMONET, 2003, p. 69) O velho terrorismo procurava eliminar figuras estratégicas do regime que combatia, evitando atingir inocentes. Já para o novo terrorismo não há inocentes, todos devem sofrer as conseqüências dos atos do regime sob o qual vivem e eventualmente apóiam. Nem mesmo as populações que, em tese, seriam "libertadas" ou "esclarecidas" pelos terroristas são afinal inocentes que devem ser poupadas; pois na lógica de sua argumentação existe a idéia de que "quem morre pela causa" deve se sentir glorificado. Além disso, a destruição de edifícios símbolos (como as torres do World Trade Center ou o Pentágono) e a matança de centenas ou milhares de pessoas é algo que chama a atenção da mídia e justamente esta é uma das grandes preocupações do terrorismo da rede Al Qaeda. Ele busca a cobertura por parte da mídia internacional, suas ações só têm sentido no contexto de sociedades democráticas onde a mídia em geral, e em especial a TV (que transmite imagens e sons e influencia uma parcela maior da população), é livre e procura dar uma cobertura imediata aos acontecimentos considerados "quentes" ou de grande importância. Podemos até dizer que existe uma relação simbiótica entre o novo terrorismo e a nova mídia: ambos são globalizados e visam à opinião pública internacional (que logicamente é mais intensa e influente nos países desenvolvidos), sem a qual não existiriam; ambos 90 preocupam-se com o sensacionalismo, com acontecimentos trágicos que têm que ser (re)produzidos constantemente para prender a atenção do público. Basta atentar para o fato de que, nos dias e semanas que se seguiram aos atentados terroristas nos Estados Unidos, algumas redes de televisão alcançaram altíssimos e atípicos índices de audiência em visível contraste com os preços das ações das empresas em geral que caíram bastante no mesmo período. A CNN que antes dos ataques aos Estados Unidos passava por séria crise, apostou alto na cobertura de guerra e, ancorada no estado de comoção pelo qual o país passava, a emissora bateu recordes de audiência, sendo das poucas empresas midiáticas com ações em alta na Bolsa de Nova York após os atentados (Dorneles, 2003). As principais modalidades do novo terrorismo são as seitas ou organizações fundamentalistas, apocalípticas e tradicionalistas. Essa é mais uma diferença essencial entre ele e o velho terrorismo. Este último, em especial o terrorismo anarquista, era de esquerda (e se considerava progressista) no sentido de lutar por igualdade social, de se opor violentamente não ao progresso em si, mas sim ao seu usufruto por somente uma minoria da população. Já o novo terrorismo é essencialmente conservador e, ao contrário do que muitos pensam, é radicalmente contrário aos ideais de igualdade e liberdade para todos. A bem da verdade, normalmente ele combate esses ideais democráticos, taxando-os de "ocidentais" (num sentido pejorativo) ou então de "artificiais" e "anti-naturais". O terrorismo da rede Al Qaeda não está preocupado com as desigualdades internacionais ou com a pobreza ou a exclusão de inúmeros povos e, sim, com a ameaça a certos valores tradicionais (religiosos ou não) que considera absolutos: por exemplo, a superioridade masculina e outros princípios de acordo com sua leitura do Islamismo, a destruição da ordem atual das coisas com vistas à construção de um mundo novo alicerçado em determinadas crenças religiosas. Sem dúvida que a situação precária dos palestinos, que piorou muito com os recentes governos de Israel e dos Estados Unidos, serviu como motivo mais imediato destes atos terroristas contra os estadunidenses, que foram praticados por grupos (uma verdadeira rede) extremistas islâmicos. Mas confundir isso com um protesto furioso contra a globalização ou contra as exclusões e desigualdades 91 em geral, como foi feito à época, é confessar ignorância total sobre os fundamentos de tais grupos terroristas e as suas motivações ou se utilizar da lente ideológica da miopia política para visualizar e apontar sofismas frente a um nevoeiro retórico 55 . Outro traço característico do terrorismo em rede é que ele não se limita a assassinatos ou explosões isoladas, que eram a tônica no velho terrorismo. Ele é global (convive e se alimenta da globalização) e dispõe de todo um sofisticado arsenal de financiamento e de artefatos: novos meios de destruição (químicos, biológicos, tecnológicos), contas bancárias numeradas na Suíça ou em "paraísos fiscais" e membros recrutados em vários países (e treinados em outros), alguns inclusive com um nível educacional elevado (pós-graduação ou até doutorado em microbiologia, química, eletrônica, sistemas de redes etc.). Ele é financiado tanto por contribuições dos membros e, principalmente dos simpatizantes (muitos dos quais milionários, pessoas muito bem inseridas no sistema global e como também 55 “Eu saúdo os atentados. Eles revelaram a fraqueza do imperialismo americano. Esses fundamentalistas islâmicos estão liderando e vão liderar por muito tempo a luta antiimperialista”. As eufóricas palavras embebidas em sangue de Armen Mamigonian (professor do Departamento de Geografia da USP que tem no comunismo sua orientação político-ideológica) proferidas durante uma palestra são um exemplo daqueles que adotaram como vingança (um popular “você mereceu”!) os atos terroristas de 11 de setembro de 2001. As ações terroristas contemplariam os anseios de substancial parcela do antiamericanismo. Os algozes do “Império” eram saudados como redentores. Mas esse discurso é opaco. A rede terrorista que orquestrou os atentados contra os Estados Unidos é conservadora e busca a consecução de um “Imperialismo Islâmico”. Por mais que se aclamem as violentas ações executadas contra os Estados Unidos, a ideologia defendida pelo professor Armen Mamigoniam também não se avolumaria em um possível mundo regido pelas leis do fundamentalismo islâmico. O próprio regime Talebã no Afeganistão é um exemplo de como os valores democráticos são sepultados sobre os escombros de massacres e severas punições à população do país. O ex-líder do Irã, Aiatolá Khomeini, em carta endereçada ao então dirigente da União Soviética, Mikhail Gorbatchov, dez anos antes do fim do Império Soviético, sentenciou: “Em dez anos, o comunismo, essa perversão do espírito humano, terá desaparecido da face da Terra. Já o Islamismo, que prega o amor e não o ódio, prosseguirá em sua campanha vitoriosa, pois nada nem ninguém pode bloquear nossa fé”. Pelo raciocínio de Khomeini o comunismo não teria futuro promissor na arena política do Islamismo fundamentalista. Contudo, Khomeini se engasga nas próprias palavras quando diz que o Islamismo prega o amor ao invés do ódio. De fato, como já mencionamos, o Islã original cativava sentimentos fraternos (e muitos seguidores ainda o fazem.). Mas a ala fundamentalista que Khomeini representou até sua morte e os xiitas têm uma estrábica visão desses valores. O egípcio Sayyid Quttb, ideólogo do grupo Irmandade Muçulmana, é autor da obra Sinalizações da estrada (texto considerado a “bíblia” do terror islâmico). Nessa obra, Qutb dispara contra o comunismo: “Hoje, o marxismo foi derrotado no plano das idéias, e não será exagero afirmar que nenhuma nação no mundo é verdadeiramente marxista. De maneira geral, essa teoria está em desacordo com a natureza e as necessidades humanas. Essa ideologia só prospera em uma sociedade degenerada, ou em uma sociedade que se tornou acuada diante de alguma forma de ditadura prolongada”. (Appud KAMEL, 2007, p. 206) 92 em alguns casos pela associação com o tráfico de drogas). Ele dispõe do indispensável apoio de alguns Estados que os escondem ou até que permitem (ou financiam em parte) os seus campos de treinamento: como se sabe, nos anos recentes esse papel foi desempenhado, em maior ou menor proporção, pelo Sudão, Somália, Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão. E o terrorismo global dispõe de novos e mais potentes instrumentos de ação: não somente os assassinatos e as explosões, mas também gases nocivos (como o sarim), agentes biológicos patogênicos (como o antraz) e talvez – desde que exista a ajuda de algum Estado com essa tecnologia, material radioativo e no limite armamentos atômicos 56 . Devido à grande sofisticação dos atuais meios de destruição, que mais cedo ou mais tarde acabam ficando à disposição de grupos que têm recursos para adquirilos, o terrorismo torna-se, pelo menos potencialmente, cada vez mais letal ou até catastrófico. 3.6. Terrorismo na mídia: um contrato semântico polêmico “Foi o maior atentado terrorista da história”. Essa sentença foi amplamente divulgada por telejornais, sites, rádios e meios de comunicação impressos quando se reportavam aos atentados ocorridos nos Estados Unidos naquela fatídica manhã de terça-feira. Mesmo que no decorrer das horas não se sabia a quem atribuir à culpa, o dia 11 de setembro de 2001 já tinha seu lugar assegurado na história. Floresceram críticas quanto à afirmação: Por que o 11 de setembro de 2001 seria o maior ato terrorista da história? Outro embate semântico e político suscitado à época: os ataques sofridos pelos Estados Unidos foram atos de terrorismo? Acendendo a chama da provocação, Arbex Jr. (2003) e Steinberger (2005) questionam 56 José William Vesentini. “Terrorismo e Nova Ordem Mundial - alguns comentários”. Texto que circulou na Internet em sites de Ciências Sociais em outubro de 2001, sem maiores referências. 93 Ninguém esclareceu qual critério, exatamente, fez do atentado de 11 de setembro algo pior ou pelo menos mais grandioso do que, por exemplo, a destruição de Hiroxima (sic) e Nagasáqui (sic), em agosto de 1945; ou do que o ataque a instalações civis no Sudão, ordenado por Bill Clinton, em 24 de agosto de 1998 (...) ou ainda, do que os bombardeios maciços dos Estados Unidos sobre as populações do Laos, Vietnã e Camboja nos anos 60 e 70, quando morreram pelo menos 3 milhões de civis. (ARBEX JR, 2003b, p. 49) O maior em número de vítimas? O maior em danos e prejuízos causados? O maior relacionado ao “menos provável”? Como a mídia divulgou tais avaliações menos de 24 horas depois do ocorrido, quando muito pouco se sabia a respeito de vítimas e danos? Qual a origem de tais modos de identificar e avaliar? (STEINBERGER, 2005, p. 225) Em entrevista à revista Veja, o consultor estadunidense para temas de combate ao terrorismo, Ian O. Lesser, ao responder tal questionamento afirma que É bastante possível. Certamente foram os mais dramáticos e letais da história moderna do terrorismo. A escala dos ataques foi catastrófica, mas não é comparável a um ataque nuclear de pequena escala nuclear numa área urbana. (LESSER, 2001, p. 14) Uma pista à polêmica pode ser acrescida: o que é terrorismo? Responder essa questão pode ser o primeiro passo para se chegar a uma conclusão. Embora a prática política do terrorismo seja antiga, o mesmo não acontece com o emprego da palavra para ilustrar tais atos. O verbete “terrorismo” foi empregado pela primeira vez para classificar o período de terror durante a Revolução Francesa ocorrida em 1789. O Dicionário da Academia Francesa, em sua edição de 1798, classifica o termo como “sistema ou governo baseado no terror”. Nesse período revolucionário, governos ditatoriais guilhotinaram doze mil pessoas de vários matizes ideológicos. O terrorismo entra na linguagem como “Terrorismo de Estado”, que já era sua forma quase exclusiva antes de seu “batismo ortográfico”. Embora seja uma palavra de uso disseminado, a definição de terrorismo é marcada pelo signo da controversa. A ONU procura desde a década de 1960 conceituar de maneira precisa a expressão. A frustração deve-se, em parte, a interesses geopolíticos de muitos dos países que integram a organização. Afinal, 94 os que são terroristas para uns podem ser considerados combatentes em prol da liberdade para outros 57 . A definição de terrorismo adotada pela União Européia demonstra bem essa fragilidade. Ao conceituar que “ato terrorista é aquele que produz vítimas civis”, define-o de maneira ampla e vaga. Seguir este pensamento é como colocar na mesma teia de análises os atentados de 11 de setembro de 2001 e ações realizadas por estudantes, pacifistas, operários e torcedores de futebol cujos movimentos de protestos resultassem em mortes involuntárias. Contribuindo com o assunto, Attali apud Neto (2001, p.22) classifica terrorismo como: “Antiqüíssima forma de violência política usada por grupos ultraminoritários decididos a conquistar pela força o poder sobre determinado território”. As palavras de Attali jogam luz na discussão. Ao mencionar a utilização da força política usada por grupos ultraminoritários, torna mais clara e delimitada a proposta dos grupos terroristas. Assim sendo, é possível construir um consenso, mínimo que seja, sobre o que é terrorismo: o uso sistemático da violência para produzir uma atmosfera de medo em que seus adeptos acreditem que será possível alcançar determinado objetivo político. Ao considerarmos que os ataques perpetrados em 11 de setembro de 2001 pelo grupo Al Qaeda externaram cálculo, estratégia, almejando ferir a moral política e social dos Estados Unidos, sendo movidos por claros motivos de 57 Ilustrando essa máxima, a revista Veja (2001, p. 112) atenta que: “Em um célebre discurso na ONU em 1974, o líder palestino Yasser Arafat defendeu a tese de que um povo que luta pela própria independência tem o direito de apelar para atos terroristas. Foi muito aplaudido. Impecável na teoria, o discurso de Arafat e o apoio que ele recebeu abriram a porta a abusos de toda ordem. Em dez anos o número de grupos terroristas de expressão mundial multiplicou-se por cinco”. Em 11 de março de 2006, a Conferência de Madri teve como pauta o terrorismo. O então secretáriogeral da ONU, Kofi Anan, clamou à comunidade internacional a conceber e adotar um novo tratado sobre o terrorismo, que tornará ilegal qualquer ataque a civis e estabelecerá diretivas para uma resposta coletiva à ameaça. Kofi Anan definiu o terrorismo como “Qualquer ato que tem como objetivo causar a morte ou provocar ferimentos graves em civis ou qualquer pessoa que não participa ativamente das hostilidades numa situação que visa intimidar a população ou compelir um governo ou uma organização internacional a fazer ou a deixar de fazer qualquer ato”. Para Chistopher Greenwood (London School of Economics – Londres) há “o grande risco de que sejam encontradas soluções arbitrárias, que respondam mais a interesses políticos do que à necessidade real de enfrentar a ameaça terrorista internacional”. Fonte: Folha de São Paulo, 20/03/2006, p. A24. 95 intimidação, vislumbrando a população civil como alvo e fomentando pânico nas sociedades estadunidense e mundial, temos peças que se encaixam na definição anterior: as ações contra os Estados Unidos podem sim ser classificadas como terroristas, embora não apenas esses atentados, e sim, todos aqueles que preenchem tais características, inclusive práticas políticas efetuadas pelos Estados Unidos ao longo do século XX. Contudo, da maneira como o termo é trabalhado, produzem-se sentidos diferenciados como nos alerta Dorneles (2003) O terrorismo no dicionário: 1) modo de impor a vontade pelo uso sistemático do terror; 2) emprego sistemático da violência para fins políticos, especialmente a prática de atentados e destruições por grupos cujo objetivo é a desorganização da sociedade existente e a tomada do poder; 3) regime de violência instituído por um governo; 4) atitude de intolerância e de intimidação adotada pelos defensores de uma ideologia, sobretudo nos campos literário e artístico, em relação aos que não participam de suas convicções (Dicionário Houssais da língua portuguesa, p. 2706). Mas a definição de terrorismo adotada pela imprensa é bem mais restrita. Massacres e crimes contra a humanidade praticados por um governo jamais são citados como “terrorismo”. Convencionou-se chamar de terrorista aquele que realiza atentados que não tem objetivo militar, mas sim como vítima a população civil. Porém, quando se trata de conflito do Oriente Médio, as definições, tanto dos dicionários como a convencional da imprensa, são utilizadas de forma ideológica, com objetivos claramente políticos. (DORNELES, 2003, p. 259) Embora as palavras sejam explicadas no dicionário, nunca exprimem um único significado quando integram uma frase de determinado texto. Cada órgão de imprensa utiliza o verbete de acordo com seu entendimento dessa violenta manifestação política. Isso somado ao uso consciente de determinadas palavras condiciona a produção de sentido que se queira causar no leitor. Visto que, São as palavras que explicam, ou tentam explicar, afinal a mortandade refletida nas imagens dos telejornais e nas fotos estampadas nos periódicos de todo o mundo. (...) As palavras pesam muito, e a luta por elas e em torno delas é intensa. (WAINBERG, 2005, p. 96-97) 96 Segundo Burke (2007), há múltiplas maneiras de se definir terrorismo, todas subjetivas. Vários exemplos ilustram este contraste semântico. A rede inglesa BBC impediu que seus correspondentes fizessem uso da palavra “terrorista”. Da mesma forma, o jornal estadunidense Minneapolis Star Tribune modificaria despachos do The New York Times alterando o vocábulo “terrorista” por “atacantes”. A imprensa árabe dispõe de rótulos para classificar os atos e atores que protagonizam a violência. Utilizam-se terroristas, suicidas e mártires, dando ênfase a este último termo. O jornal saudita Al-Sharq Al-Awsat prefere a expressão “atacantes suicidas”. (Wainberg, 2005) Na mídia brasileira o debate não é diferente, Wainberg (2005) ao comentar os sentidos atribuídos à expressão “terrorista” elucida que O ombudsman da Folha de S. Paulo teria de intervir igualmente num debate similar sobre o tema. (...) diz que a Folha costuma usar o termo “terrorista” “para identificar grupos armados, como a Brigada de Mártires de Al Aqsa e o Hamas, que resistem à ocupação da Palestina por parte de Israel”. Na visão do jornal, expressa em Nota da Redação, “a Folha considera terroristas grupos que atacam civis de forma deliberada”. Ao debater a linguagem utilizada nas notícias publicadas sobre o conflito entre as tropas israelenses e esses grupos, o ombudsman polemiza com a descrição do verbete “terrorista” do manual de redação do jornal, que orienta seus jornalistas a usar esse termo, e outros como “guerrilheiros”, “apenas em sentido técnico, evitando a carga ideológica positiva ou negativa”. O texto do manual é, na verdade, bastante claro. Diz: “o termo terrorista se refere a indivíduos, organizações e governos (não a Estados) quando praticam ações violentas contra alvos civis, ainda que não de maneira exclusiva (podem eventualmente atingir alvos militares). Seus objetivos são essencialmente de propaganda, mesmo que mantenham retórica militar. Senão for possível aplicar esses critérios adequadamente, empregue o termo extremista, que tem a desvantagem de ser menos preciso”. Aos olhos do ombudsman, “é praticamente impossível evitar esta carga ideológica” no termo “terrorista”. Ao pesquisar sobre o posicionamento de outros jornais brasileiros de referência sobre o tema, ele revela que O Estado de S. Paulo usa termos como “militantes”, “extremistas”, “radicais” para caracterizar os grupos palestinos, “para evitar cair no rótulo aplicado por um dos lados”. Diz o editor internacional de O Estado, Paulo Eduardo Nogueira, que “esse padrão é utilizado pela esmagadora maioria da imprensa de qualidade mundial”. A posição de O Globo, do Rio de Janeiro, varia. “Nós usamos o bom senso”, segundo a editora internacional Sandra Cohen, “de acordo com o fato que relatamos. Na maioria das vezes, nós nos referimos ao Hamas e às Brigadas como grupos extremistas e radicais. Usamos o termo ‘terrorista’ para relatar atentados ou ações específicas levadas a cabo por esses grupos contra a população civil em Israel”. (WAINBERG, 2005, p. 100-101) 97 Nesses rápidos exemplos, internacional e nacional, podemos ter a dimensão do amplo emprego da isotopia “terrorista” nos meios de comunicação. Escrita com as tintas da geopolítica e muito disseminada após os ataques de 11 de setembro de 2001, o uso da expressão “terrorismo” continha a superposição de vários níveis semânticos convertendo-se em uma pluri-isotopia. O sema estampava a ideologia do veículo que a empregava; externava o discurso de seu enunciador. 3.7. Contextualização para entendimento A leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo. Paulo Freire Provavelmente, nunca se chegue a um consenso de que os atos terroristas de 11 de setembro de 2001 foram os maiores da história (ou se as ações da Al Qaeda contra os Estados Unidos podem ser assim classificadas). Entretanto, o episódio garantiu lugar cativo nas principais tragédias que macularam a humanidade. Se não foi o maior ataque em números de vítimas, é inquestionável a proeza em sua elaboração e seu poderoso apelo midiático. A astúcia dos terroristas e a ampla cobertura da mídia elevam o ataque de 11 de setembro de 2001 ao funesto pódio de um dos maiores atentados já produzidos pela mente humana até os dias atuais. Se foram ações terroristas, não foram as únicas; se foi a maior em estratégia e apelo midiático, não foi a maior em número de civis mortos... Embora com características diferenciadas, um fator se faz presente em qualquer ação dessa natureza: a intimidação e sacrifício da população civil em honra de determinados valores. O flagelo sofrido pelos Estados Unidos inaugura o “batismo de fogo” do novo terrorismo. As interrogações são frutos da multiplicidade de análises e distintas interpretações como corrobora Arbex Jr. (2003b) 98 Claro: sempre se poderá dizer que uma coisa é um ato armado por um grupo terrorista contra alvos civis; outra coisa são os “atos de guerra” determinados por um Estado, outra coisa, ainda, é o funcionamento de uma certa ordem econômica, que nada tem a ver com a intenção de matar alguém (se as crianças morrem, é porque as coisas são assim mesmo, ora bolas). Essa argumentação é, no mínimo, questionável. Primeiro, porque, do ponto de vista da vítima civil inocente, tanto faz se o sujeito que disparou a bomba foi Osama bin Laden, estudantes da Brigada Vermelha, militantes do ETA basco ou algum burocrata confortavelmente instalado na Casa Branca; segundo, porque, mesmo que se considerasse a hipótese de separar “terrorismo” de “atos de guerra” (embora ataque a populações civis não se enquadre em nenhuma das convenções sobre atos de guerra aprovadas pelas Nações Unidas), ainda assim teríamos de considerar que os atentados terroristas, como o 11 de setembro, acontecem como resultado de uma história concreta de horror, repleta de “atos de guerra” que banalizaram ao extremo a violência e reduziram a visão humana a nada; terceiro, porque, políticas econômicas não “caem do céu”, mas são orquestradas por seres humanos com interesses específicos (...) No mínimo, portanto, teria de ser dito e repetido que “o maior atentado terrorista da história” faz parte de uma tradição sedimentada ao longo do século 20, que inclui o Gulag stalinista, Auschwitz, Hiroxima (sic), Vietnã etc. (ARBEX JR. 2003b, p. 52-53). O discurso de Arbex Jr. entoa as idéias de Durkheim (2006) no tocante a fatos históricos e sociais. Fatos históricos são grafados por sua singularidade, são únicos, não se repetem e causam grande impacto na sociedade devido a sua excepcionalidade. Os fatos sociais, por sua vez, estão no cotidiano de cada sociedade, são ações perpetradas em suas práticas políticas ao longo de sua história. Assim, o 11 de setembro de 2001 caracteriza-se por ser um fato histórico – a história registra diversos atentados, mas apenas um 11 de setembro de 2001. Mas ações da magnitude dos ataques contra os Estados Unidos não acontecem por acaso, decorrem da insatisfação e de conflitos ideológicos presentes na arena política internacional (“história concreta de horror, repleta de ‘atos de guerra’ que banalizaram ao extremo a violência”, nos dizeres de Arbex Jr.). Os fatos sociais diários como os conflitos no Oriente Médio, as políticas unilaterais dos Estados Unidos frente a outros países, vão sedimentando as estruturas do edifício terrorista, até se materializar em atos como os da rede Al Qaeda em setembro de 2001. 99 Analisar um acontecimento histórico é condição primeira para superar a simplificação dos fatos. Pode não ser tarefa fácil libertar-se de conceitos previamente concebidos. Entretanto, goste-se ou não, é um exercício de análise, além de necessário, honesto e de bom senso. No pensamento kantiano, o real para o homem é o que ele organiza, ou seja, a linguagem não é uma tradução do real mas uma organização dele. A simplificação da realidade é enganosa; eficiente quando se pretende ocultar fatos, mortal quando se quer ter visão panorâmica dos acontecimentos e consistente compreensão de um evento. Endossando esse pensamento, Steinberger (2005, p. 89) afirma que: “Quando falta contextualização a uma notícia, por exemplo, o leitor pode se ressentir de uma compreensão precária”. Não raro as notícias são afetadas pela carência de localização temporal. São relatadas como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros. Brotam como fatos pontuais, às vezes sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências. Existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não mais forem transmitidos. Ofertam o mundo inteiro em um instante, mas o fazem de tal maneira que o “mundo real, holístico” desaparece, restando apenas fragmentos de uma realidade desprovida de raiz no tempo e no espaço. Os usos referentes à expressão “terrorismo”, o conhecimento do mundo islâmico, as políticas externas, sobretudo a dos Estados Unidos, ao longo da história, são elementos indispensáveis para que, de posse do bom senso, emitamos juízo sobre determinados acontecimentos. A contextualização dos fatos no propicia, em princípio, essa condição analítica. A conseqüência natural desse sistema é que, ao apresentar retratos dos fatos de forma isolada e descontextualizada, os meios informativos simultaneamente negam ao seu consumidor uma apreensão mais completa da notícia e produzem uma percepção alterada dos acontecimentos ao longo do tempo – e por decorrência do fluxo da história –, ao gerar uma falsa sucessão de fatos novos e independentes. (SERVA, 2001, p. 126) As notícias produzem sentidos, expõem valores, transformam-se em instrumentos geopolíticos. Os extratos presentes em uma reportagem não devem ser entendidos como um fim em si. A redução de um fato cria uma barreira ao seu 100 pleno entendimento, gerando assim a “desinformação funcional” 58 (Serva, 2001). Se somos parte de um processo histórico, não é possível nos situarmos fora dele. O que nos resta é a consciência desse procedimento e a interpretação do que nos condiciona como seres no mundo. É preciso pensar a comunicação em seu contexto, ou seja, entender que não há comunicação sem sociedades e são esses contextos sociais que, muitas vezes, dão sentido, cor e especificidade a procedimentos de comunicação aparentemente padronizados. (WOLTON, 2004, p. 119-120) Dependendo do receptor, um mesmo fato pode ter várias interpretações, não raro, divergentes e antagônicas. Segundo Diniz & Zaniratto (2002): “... tudo no mundo é representação. Cada indivíduo interpreta os fatos segundo seus filtros perceptivos, ou seja, sua maneira de ver e julgar”. Assim, qualquer interpretação deve ser contextualizada para uma melhor análise. Mesmo porque, um fato não existe isoladamente, é resultante de uma série de eventos. A compreensão plena de fatos históricos como os ataques aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 passa pela contextualização. Ao contextualizarmos, expandimos as teias de análise; munimo-nos do mínimo necessário para alimentarmos nossa percepção. Os ataques contra os Estados Unidos não podem ser reduzidos unicamente à destruição ou danificação de edificações, e nem mesmo ao óbito de grande número de pessoas. Trata-se de ações simbólicas, dotadas de sentidos. Nesse raciocínio, é preciso ir além do 11 de setembro de 2001 como evento bárbaro e isolado, cujos responsáveis devem ser combatidos a todo custo, e analisá-lo como parte de um processo maior num contexto histórico complexo. Os atentados resultaram de um complexo emaranhado de razões históricas, sociológicas, econômicas, religiosas... A proeza em nossos dias não é mais ter acesso aos acontecimentos, mas, acima de tudo, entendê-los. Os amargos frutos das ações terroristas foram semeados e colhidos no solo da história. Assim sendo, não podemos nos afastar 58 Para Serva (2001, p. 71): “A desinformação funcional (...) corresponde a um fenômeno definido pelo fato de que as pessoas consomem informações através de um ou mais meios de comunicação, mas não conseguem compor com tais informações uma compreensão do mundo ou dos fatos narrados nas notícias que consumiram”. 101 desse instrumento de análise sob pena de um diagnóstico empobrecido. É pela memória que se puxam os fios da história. O rompimento dessa capilaridade produz mais calor do que luz. 102 CAPÍTULO 4: COBERTURA DOS ATENTADOS CONTRA OS ESTADOS UNIDOS EM 11 DE SETEMBRO DE 2001 EM QUATRO VEÍCULOS DA MÍDIA IMPRESSA BRASILEIRA As mídias não são a própria democracia, mas são o espetáculo da democracia. Patrick Charaudeau 4.1. Valor e efeito de verdade no universo midiático Reportagem é a melhor versão da verdade possível de se obter. Carl Bernstein Uma mesma música pode ser tocada com outras partituras, ainda mais na sinfonia polissêmica regida pelos meios de comunicação. Afinal, Polissêmica é a análise crítica e reflexiva do texto e, mais, o enunciado de um juízo sobre ele. Passa-se da impressão subjetiva para significações mais profundas do texto, realizando um detalhamento inventário dele. Que tipo de juízo? Sempre um juízo semiótico, isto é, amparado no jogo significante, conduzindo por processos semiológicos. A leitura semiológica é sempre descobrir, desentranhar uma situação-problema a partir da questão do signo. É por isso que certas questões que dizem respeito à natureza e aos estudos dos signos são também referentes à natureza e ao estudo dos textos. (PERUZZOLO, 2004, p.123) Em ambientes democráticos, a pluralidade de opiniões é regra, um direito. Segundo Wolton (2004, p. 18) “não há comunicação sem democracia, e ambas estão ligadas”. O caleidoscópio democrático produz a sadia multiplicidade de opiniões que, quando transpostas às mídias, garantem à sociedade um farto 103 cardápio de notícias e análises dos mais diversos matizes. Assim, um acontecimento único é registrado e interpretado de múltiplas maneiras 59 . Sabemos, da mecânica quântica, que o olhar do observador altera a trajetória até mesmo de um elétron. Não apenas o olhar do observador é seletivo quanto ao evento presenciado, como ao relatar um evento o observador seleciona, hierarquiza, ordena informações expostas, fazendo aí interferir as suas estratégias de narração. Mesmo a mais impessoal de todas as narrativas, a demonstração de um teorema, não é feita de maneira idêntica por dois matemáticos: eles seguem caminhos distintos para demonstrar o mesmo teorema, e nisso se revela seu estilo. (ARBEX JR., 2001a, p. 106-107) É próprio do ser humano ter a sua verdade entre as verdades que o cercam. Verdades estas, que norteiam sua existência e, de certa forma, dirigem sua conduta. Contudo, muitos fazem de sua verdade “a verdade”, como algo inquestionável, um dogma, o que estreita a compreensão do mundo, então cada nação, cada indivíduo tem sua concepção de valores e, essa concepção é materializada por suas crenças e verdades. Recorrer às mídias é quase um lugar-comum quando sentimos carência sobre determinada informação. Utilizando os veículos midiáticos, procuramos através do seu discurso, saciar a sede por melhores informações. Todavia, não podemos nos esquecer que os conteúdos veiculados na mídia são um recorte, uma versão dos acontecimentos em forma de notícias. Nem sempre os discursos da mídia diluem-se na mesma interpretação que temos sobre determinados eventos. Descrever um fato é ao mesmo tempo interpretá-lo. O efeito da subjetividade jornalística choca-se, muitas vezes, com a compreensão que temos dos fatos e de nossa concepção de mundo. Assim, o edifício da contradição é erguido nos controversos pilares da “forma que desinforma” (Serva, 2001). Na concepção de Charaudeau (2006) a verdade se estrutura em dois vértices: valor de verdade e efeito de verdade. Para o intelectual francês, o valor de verdade se caracteriza por construir algo verdadeiro, exterior ao homem, baseado na construção explicativa com auxílio da instrumentalização científica, 59 Essa questão foi detalhada no Capítulo 1: A comunicação, o bom senso e a pesquisa (Item: 1.1. A notícia e teia social, p.23). 104 tornando-se real pela evidência mesmo que se discorde quanto à avaliação das causas que os produziram. Já o efeito de verdade aflora da subjetividade do sujeito em contato com o mundo, como o ser humano interpreta os acontecimentos a sua volta, almejando a conquista de credibilidade. Ao aplicarmos esses conceitos em nossa pesquisa, temos os atentados terroristas sofridos pelos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 como um valor de verdade já que sua ocorrência é inquestionável. Bilhões de pessoas puderam acompanhar ao vivo o choque do segundo avião na Torre Sul do World Trade Center e posterior queda das Torres Gêmeas e observar parte das estruturas do Pentágono arder em chamas. No entanto, os discursos produzidos pela mídia para explicar a ação terrorista se transformam em efeitos de verdade. Os textos seriam redigidos e publicados segundo as lentes subjetivas tão comuns no meio jornalístico, materializando uma guerra de discursos. Cada veículo midiático produziu a sua “verdade” sobre as práticas terroristas sofridas pelos Estados Unidos. Cada leitor compreenderia as notícias pelo filtro da sua “verdade”. Segundo Wolton (2004, p. 289): “Falar ao mesmo tempo da mesma coisa, da mesma maneira, não é mais obrigatoriamente uma prova de verdade”. As mídias, no papel de enunciadoras, ao realizarem o fazer persuasivo, pretendem obter a credibilidade do enunciatário (receptor), ou seja, fazer com que este acredite e aceite a veracidade das notícias veiculadas (o produto). Seduzido pelos argumentos persuasivos do enunciador, o enunciatário é levado a considerar como verdade inquestionável os conteúdos noticiados. A partir do momento que o enunciatário recebe o enunciado (as notícias) e crê em sua autenticidade, um tratado de confiança é estabelecido com o enunciador e o contrato fiduciário é assinado. Passada a tormenta inicial, os dias seguintes construiriam novos retratos sobre os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. O imediatismo somado a grandiosidade dos fatos estabeleceram ruído no processo de comunicação num primeiro momento. 105 A mídia impressa dispôs de maior tempo para colher e construir análises em relação às ações terroristas. As revistas semanais chegariam às bancas quatro dias após o ataque sofrido pelos Estados Unidos. As mensais, nos primeiros dias de outubro. Os feitos planejados por Osama bin Laden e seus artífices praticamente monopolizaram a pauta dos meios de comunicação. Percebia-se que, frente à estrondosa ação, um fim de semana, um mês não seriam suficientes para esgotar o assunto. O 11 de setembro de 2001 já tinha cadeira cativa reservada na história. Agora, era chegado o momento de compreender os motivos que garantiram tal posição para os terroristas. Recorrer às mídias era inevitável para se obter as informações que guiassem os turvos caminhos surgidos após a poeira dos escombros se assentarem. Embora a poeira houvesse se dissipado, ainda pairava no ar nuvens de incertezas. Invocar-se-ia a “Lei do Talião” contra os atores do terror? Quais as primeiras medidas do presidente George W. Bush para subtrair o medo e anseios da população dos Estados Unidos? Os terroristas acenderam o estopim que eclodiria a Terceira Guerra Mundial? Na reposta dessas e de outras questões a mídia assumiria função vital. Era à imprensa que a sociedade recorreria para se alimentar de novas informações sobre a orquestração terrorista. Enquanto as emoções afloravam por todos os poros, a mídia estadunidense ancorada na ideologia bélica de seu presidente, já deixava claro seu posicionamento. George W. Bush não inventou o controle da mídia, não foi o precursor na política de supremacia dos Estados Unidos, não foi o primeiro a promover guerras mantendo a imprensa contra a parede, não foi o único a bombardear outros povos para aumentar o prestígio junto à população e nem foi o arauto do desrespeito às organizações internacionais. Mas George W. Bush certamente foi o primeiro a fazer tudo isso ao mesmo tempo e com tamanha eficiência. O 11 de setembro, e seus horrores, deu a Bush condições de implantar seu projeto político de maneira mais rápida. A mídia colaborou intimamente. A imprensa pediu guerra e foi atendida. Ignorou massacres, desrespeito aos direitos humanos e às liberdades individuais, a destruição de um país miserável pela maior potência militar do planeta e deu vazão ao patriotismo como senha para a obediência ao poder. Numa guerra em que os americanos jamais combateram em solo, a mídia descreveu um conflito diferente, muito mais limpo e heróico. 106 (...) A imprensa gosta de guerra, mesmo de uma como a do Afeganistão: guerra de press-release, de transcrição de informes do Pentágono, de fontes de um lado só. Guerra em que a imprensa foi sempre uma espectadora passiva. E foi algumas vezes por passividade e outras tantas por cumplicidade que a imprensa fez a cobertura que interessava ao governo americano. Mesmo que o governo dos Estados Unidos estivesse sendo comandado por um homem que iria à guerra de qualquer maneira, a imprensa americana tomou a frente desde o início, assumindo uma posição belicista e criticando a “lentidão” da resposta 60 . (DORNELES, 2003, p. 17-27) Os semas disfóricos contra a atuação da mídia estadunidense assinalados por Dorneles (2003) encontrariam eco na mídia de outros países. Os Estados Unidos, vítima principal dos atos de setembro, também seriam alvos de críticas por parte da imprensa. Cada mídia, ao seu modo, reportou os fatos. A construção do discurso e a produção de sentidos externada será o cerne das análises na romaria midiática informação x desinformação. 4.2. Identidade, cultura e a construção da notícia: o caso do Islamismo A notícia é a matéria-prima do jornalismo; sendo narração do acontecido, sua construção é afetada pelo olhar do observador e sua trama envolve personagens que dão vida ao texto. A repercussão dos atentados de 2001 contra os Estados Unidos, tendo o Islamismo como fio condutor, povoou as páginas da mídia impressa. A religião criada pelo profeta Maomé, juntamente com inúmeras interpretações sobre os ataques a Nova York e Washington, agendaram as pautas das redações. Os enredos produzidos seguem a toada “nós” e os “outros”. Frente aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, substancial parcela da mídia reforçou esteriótipos contra o mundo islâmico, não raro, homogeneizando toda uma manifestação cultural. 60 Um exemplo dessa tendência fica clara na entrevista do âncora Dan Rather a David Letterman nos dias seguintes aos atentados. Ambos os jornalistas não contribuíram para o telespectador compreender a razão das tenebrosas ações contra os Estados Unidos. Foram ao ar críticas à inveja árabe em relação ao padrão de vida dos estadunidenses, versos patrióticos e profissões de fé ao país. Tudo isso temperado com soluços e lágrimas. Essa questão foi detalhada no Capítulo 2: O dia 11 de setembro de 2001, o jornalismo em tempo real e o alinhamento midiático (Item: 2.4. Doutrina Bush, as invasões ao Afeganistão e ao Iraque e o recrutamento da mídia, p.57). 107 Quanto a isso, Said (2003) adverte que (...) não há um único Islã, mas vários. A diversidade é uma característica de todas as tradições, religiões ou nações, mesmo que alguns de seus membros tenham futilmente tentado traçar fronteiras ao ser redor e demarcar o seu credo. (SAID, 2003, p. 138) A compreensão do Islamismo passa, necessariamente, pelo conhecimento de outra cultura, de povos que forjaram sua identidade em contratos sociais diferentes daqueles impressos em outras sociedades. A cultura é uma lente pela qual o homem vê o mundo (Laraia, 2005). Assim, ... as realidades não são as mesmas vistas de ângulos diferentes. Elas são diferentes porque construídas com relações conceituais e em situações comunicacionais diferentes. (PERUZZOLO, 2004, p. 208) A identidade constitui-se em uma importante fonte de significado e experiência de um povo. Trata-se de um processo de construção de sentidos com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais interrelacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. (Castells, 2000a). Mesmo em determinada sociedade possuindo sua característica cultural, não se descarta a conexão com outras, uma vez que: a “afirmação de identidade não significa necessariamente incapacidade de relacionar-se com outras identidades...” (CASTELLS, 2002, p. 58). Assim sendo, no universo das ciências sociais, e ampliando-se aos meios de comunicação, a noção de identidade cultural se caracteriza por sua polissemia e fluidez. Baccega (1998) relata que as mediações constroem os mais diversos sentidos. Houve um reforço da categorização sobre os islâmicos após os atos terroristas de 11 de setembro de 2001. Parte substancial da imprensa associou uma manifestação cultural como sinônimo de terrorismo. Prova disso é que os islâmicos cunharam a expressão “islamofobia” para mostrar o auto grau de racismo existente na mídia do Reino Unido 61 . 61 O periódico inglês The Guardian, foi um dos poucos jornais no mundo ocidental que procurou resistir ao rolo compressor da mídia dos Estados Unidos, inclusive tecendo críticas a onda de “islamofobia” em seu país. 108 O jornalista Tim Gopssil citado por Fraga (2004, p. A-21) afirma que “sem dúvida há racismo na mídia britânica contra minorias étnicas”. Para minimizar o fato foram editadas cartilhas que objetivam fornecer para jornalistas informações sobre a cultura islâmica. A intenção é que preconceito não seja o delineador dos textos que citam o universo muçulmano 62 . A jornalista italiana Oriana Fallaci mirou sua fúria contra islâmicos de maneira indiscriminada admitindo a superioridade da civilização ocidental sobre a islâmica até no conjunto arquitetônico ao bradar que: “Nossas igrejas e catedrais são mais belas que suas mesquitas”. Guiada por sua posição altamente disfórica amparada no preconceito, a jornalista italiana seguia em frente contra o Islamismo. Mas só quando seu livro foi publicado ficou conhecida toda a extensão do pensamento racista da jornalista. Ela chamou os imigrantes muçulmanos na Europa de “delinqüentes, violadores, prostituídos e portadores de Aids”. E mais: “Eles urinam nos batistérios e multiplicam-se como ratos”. O Corão, ela chamou de livro “abjeto”, que jamais pregou outra coisa “a não ser o ódio”. (DORNELES, 2003, p. 154) Esse equívoco também germinou em solo brasileiro. Segundo informações de Casado (2001, p. 102), os atentados em Nova York e Washington acentuaram a discriminação contra os muçulmanos. Carolina Raad, de 20 anos, foi agredida em Foz do Iguaçu. Tal fato ilustra o sentido que a religião maometana provoca(va) em algumas pessoas alimentadas pela desinformação. Jogando luz no fato, Cuche (1999, p. 177) nos diz que: “a identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão”. A prática de discursos disfóricos sobre o mundo islâmico acabaria sendo uma constante. Não seria a primeira vez que se reportaria aos árabes (quase 62 Segundo a versão online do jornal The NYT News Servive de 22/06/07, o Reino Unido quer proibir o uso de véus muçulmanos. Está cada vez mais comum ver as mulheres muçulmanas do Reino Unido levando os filhos às escolas ou andando pelas ruas cobertas, da cabeça aos pés, com vestes negras esvoaçantes que só contam com uma estreita abertura para os olhos. Algumas das mulheres, especialmente as jovens, que adotaram a vestimenta recentemente, admitem que o traje é uma expressão direta de identidade islâmica, que elas adotaram após o 11 de setembro de 2001, como forma de rebelião contra as políticas do governo do ex-primeiro ministro Tony Blair no Iraque e no Reino Unido. 109 sempre travestidos de “maus” pelo inconsciente coletivo) a culpa por atos dessa natureza como comenta Arbex Jr. (1996) Em 19 de abril de 1995, um atentado a bomba destruiu completamente um edifício na cidade de Oklahoma, Estados Unidos, causando a morte e ferimento de centenas de pessoas. Fora, até aquela data, o pior ato terrorista praticado em território americano. Imediatamente após as primeiras notícias sobre a tragédia, os meios de comunicação (a televisão, o rádio e depois jornais impressos) passaram a especular sobre quem teriam sido os responsáveis. Surgiram, então, relatos de testemunhas que teriam visto perto do local pessoas “com aparência de árabes” – homens de estatura mediana, cabelos e barbas negros, olhos castanhos – mais ou menos na hora que a bomba explodiu. Em pouco tempo, disseminou-se na opinião pública a “certeza” de que o atentado fora planejado e executado por uma dessas seitas de “fanáticos muçulmanos que estão espalhando terror pelo mundo”. Dois dias após o atentado, políticos, jornalistas e intelectuais americanos já clamavam por “atos punitivos” dos Estados Unidos contra “países que dão cobertura aos grupos fundamentalistas fanáticos”, em particular, como sempre, Irã e Líbia. Muita gente ficou decepcionada quando a polícia constatou, quatro dias depois, que nenhum islâmico estava envolvido no atentado. O ato terrorista fora integralmente planejado e praticado por um grupo genuinamente americano... (...) Não surpreenderia ninguém, por exemplo, a descoberta de que o atentado de Oklahoma fora obra de um certo Hassam ou Ibrahim; mas causou surpresa a prisão de Timothy McVeigh... “Queríamos que fossem estrangeiros, iranianos, iraquianos, não importa, mas jamais um americano”. (Frase do lojista Nick Pagoins, de Oklahoma). O preconceito aparece quando se observa que todos os estrangeiros citados pelo lojista são de países de maioria islâmica. (ARBEX JR., 1996, p. 07-08) É de conhecimento geral que a modernidade tem seu quebra-vento em países islâmicos – embora algumas medidas ilustram que um fecho de luz começa a penetrar pelas brechas das paredes do obscurantismo. O mundo mulçumano assume espectro negativo frente à maioria da sociedade estadunidense, e não raro, prolongando-se para outros países 63 . Os culpados são forjados no inconsciente. Não raro, a identidade coletiva é a nós apresentada no singular, ou seja, reduz o conjunto coletivo a uma personalidade impregnada de adjetivos depreciativos. Mesmo o fundamentalismo islâmico capitaneado por Osama bin Laden ter sido o responsável pelos condenáveis eventos terroristas, transformar o 63 O então primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, à época dos atentados, em um discurso fortemente disfórico ao Islamismo, sentenciou: “O Ocidente continuará a conquistar povos, mesmo que isso implique um confronto com a civilização islâmica, empacada onde estava há 1400 anos”. 110 Islamismo em sinônimo de terrorismo é simplificar o debate, quando não, envenená-lo. 4.3. Corpus da pesquisa 4.3.1. Veja A revista Veja, pertencente ao Grupo Abril (comandado pela família Civita), é a maior revista semanal da América Latina e a quarta do mundo (ficando atrás somente de Time, Newsweek e U.S. News). O periódico possui linha editorial colada ao conservadorismo e manifestações liberais sendo direcionada principalmente aos segmentos mais abastados da sociedade (classes A e B). A expressiva tiragem do periódico sempre ultrapassa a quantia de um milhão de exemplares por semana. A tiragem da edição de 19 de setembro que estamparia em suas páginas os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 atingiria a cifra de 1.335.391 exemplares. 4.3.2. CartaCapital Além da periodicidade semanal, CartaCapital assemelha-se com Veja em outro ponto: o jornalista Mino Carta, criador de ambas as publicações. A revista é uma publicação da Carta Editorial Ltda. cuja tiragem gira em torno de 70.000 exemplares. Bem modesta se comparada com Veja. Outro ponto de diferença é a linha editorial adotada pela CartaCapital. A revista opta por uma linha considerada mais crítica, com postura progressista quando comparada à publicação semanal da Editora Abril. 111 4.3.3. Superinteressante Superinteressante é uma publicação mensal da Editora Abril S.A. É a maior revista jovem do Brasil com 3,1 milhões de leitores; possui uma tiragem de 380 mil exemplares por mês; 95% dos leitores a tem como uma revista séria, rigorosa e confiável 64 . Procurando atingir, sobretudo, o público jovem, a abordagem dos assuntos é feita de maneira didática desmistificando temas mais áridos, ofertando assim, outros tipos de análises sobre a notícia. 4.3.4. Caros Amigos A revista Caros Amigos é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela. O periódico tem uma tiragem menor do que as outras analisadas: média de 50.000 exemplares mensais, sendo 20.000 comercializados em bancas. Os resultados de uma pesquisa quantitativa realizada em agosto/2001 indicam o seguinte perfil dos leitores deste periódico: 72% são homens com idade entre 20 e 49 anos; 91% têm superior completo, 19% pós-graduados. Este nível de escolaridade se reflete nas classes econômicas A (17%), B (49%) e C (30%). Pouco mais da metade são solteiros (55%) e trabalham (67%); 75% têm acesso à Internet, 22% recebem o “Correio Caros Amigos” semanalmente e 32% visitam o site com certa regularidade. A pesquisa levantou também a forma como a revista é encarada pelos leitores: 89% consideram uma publicação "objetiva", 87% a avaliam como "independente", 86% como "verdadeira" e 79% como "indispensável" 65 . Caros Amigos procura seguir uma linha editorial “independente”, analisando os principais eventos que permeiam o Brasil e o mundo, tecendo críticas a outras mídias que, segundo a revista, colaboram para manutenção do sistema capitalista. 64 65 Fonte: www.superinteressante.com.br Fonte: http://www.carosamigos.terra.com.br/ 112 A revista abraça o marxismo como ideologia, sendo mais à “esquerda” que as demais. Numa posição “terceiro-mundista”, os países desenvolvidos são retratados como os vilões na arena geopolítica mundial. 113 Tabela 2. O espaço editorial destinado à cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001 no corpus da pesquisa Revistas Número de páginas da edição Número de matérias assinadas Número de matérias sem assinaturas Veja Semanal Abril 142 16 05 11 CartaCapital Semanal Carta Editorial Ltda. Abril Casa Amarela 66 44 22 22 00 98 46 16 19 08 19 06 18 02 01 Mensal Mensal Editora Número de reportagens sobre o 11/09/2001 Número de páginas destinadas à cobertura do 11/09/01 70 Superinteressante Caros Amigos Periodicidade 114 4.4. Temas presentes nos discursos dos periódicos O tema central que moldou os discursos das revistas foi o ataque terrorista sofrido pelos Estados Unidos na manhã de 11 de setembro de 2001. Para externar sua visão dos fatos, os enunciadores recorreram a uma série de outros temas conectados por um conjunto de isotopias aos atentados perpetrados pela rede terrorista Al Quaeda. Assim, o percurso temático apresenta-se como o processo gerativo da argumentação, responsável pelo encadeamento das frases e permitindo a construção de um texto com sentido. Neste espaço da dissertação, serão analisadas essas ramificações temáticas marcadas pelo discurso das quatro revistas de nosso corpus. 4.4.1. Veja As reportagens sobre os atos terroristas obtiveram expressivo espaço na revista como demonstrado na tabela 2. De todas as reportagens que preenchem as páginas da Veja, a ampla maioria não possui assinatura e, em estilo editorial, expressam a opinião da revista frente ao martírio estadunidense acontecido dias antes. Seguindo o critério de análise esboçado na introdução desta pesquisa, serão analisadas as seguintes reportagens 66 : 1. 2. 3. 4. 5. Carta ao leitor – O que incomoda o terror; A descoberta da vulnerabilidade; O inimigo número 1 dos EUA; Assassinato em nome de Alá; A cultura do Apocalipse. Em apresentação à edição especial, a “Carta ao Leitor” do periódico traz como título, “O que incomoda o terror”. Juntamente com o texto, a seção insere duas figuras que, embora separadas pelo tempo, representam o orgulho 66 A revista Veja, em algumas reportagens, aponta dois títulos: um no sumário e outro para o mesmo artigo no corpo da edição. Optamos por enfocar o título presente nas páginas de revista. 115 estadunidense. A primeira imagem faz alusão a fuzileiros cravando a bandeira dos Estados Unidos no Monte Suribachi, em Iwo Jima, no ano de 1945 (época da Segunda Guerra Mundial). Esta imagem está em preto-e-branco e ocupa a maior parte do box de notícias. A segunda imagem, em tamanho menor, embora colorida, mostra gesto semelhante realizado por bombeiros nova-iorquinos sobre os escombros das torres gêmeas. (tema: heroísmo e patriotismo estadunidenses) Ambas as imagens, ao mostrar as figuras (soldados e bombeiros) e ancoragens territoriais (Iwo Jima e Nova York) ilustram o patriotismo estadunidense frente a dois períodos distintos de sua história. Um de glória – vitória obtida durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – e outro que tenta cicatrizar as feridas abertas pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Como uma dobra do tempo, passado e presente parecem encontrar-se em situações distintas, embora em ambas as situações externem a bravura dos sujeitos (soldados e bombeiros) representantes do povo estadunidense. As ilustrações dão o tom do texto inserido no box. As palavras emitidas pela Veja têm como alvo principal o mundo islâmico evocando de certa forma a idéia de “choque de civilizações” defendidas por Samuel P. Huntington 67 . O caminho trilhado pela revista parte da premissa de que os atentados aos Estados Unidos, acima de tudo, foram práticas contra a democracia e o sistema capitalista. O verdadeiro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na semana passada não foram as torres gêmeas do sul de Manhattam nem o edifício do Pentágono. O atentado foi cometido contra um sistema social e econômico que, mesmo longe da perfeição, é o mais justo e livre que a humanidade conseguiu fazer funcionar ininterruptamente até hoje. Não foi um ataque de Davi contra Golias. Nem um grito dos excluídos do Terceiro Mundo que, de modo trágico mais efetivo, se fez ouvir no império. Foi uma agressão perpetrada contra os mais caros e mais frágeis valores ocidentais: a democracia e a economia de mercado. 67 Samuel P. Huntington é professor de Relações Internacionais além de ter atuado como estrategista durante a Guerra do Vietnã. Em 1993, publicou artigo na revista Foreing Affairs apresentando a idéia de um choque entre civilizações. Posteriormente o artigo foi ampliando e transformado no livro O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, em que defendia a tese que no mundo pós-Guerra Fria os conflitos seriam fundamentalmente culturais: a civilização ocidental contra a islâmica, e esta contra a hinduísta etc. Mais adiante retomaremos a discussão. 116 O que realmente incomoda a ponto de exasperação os fundamentalistas, apontados como os principais suspeitos de autoria dos atentados, não é só a arrogância americana ou seu apoio ao Estado de Israel. O que os radicais não toleram, mais que tudo, é a modernidade. É a existência de uma sociedade em que justos podem viver sem ser incomodados e os pobres têm possibilidades reais de atingir a prosperidade com o fruto de seu trabalho. Esse é o verdadeiro anátema dos terroristas que atacaram os Estados Unidos. Eles são enviados da morte, da elite teocrática, medieval, tirânica que exerce poder absoluto em seus feudos. Para eles, a democracia é satânica. Por isso tem de ser combatida e destruída. (REVISTA VEJA, 2001, p. 09) O texto traz para a arena de discussões a idéia do conflito entre Ocidente e Oriente. Ao evocar que os atos terroristas tiveram como escopo “a democracia e a economia de mercado”, Veja alude que os atentados visavam além dos Estados Unidos, todos os países que têm esses valores como alicerce social. O discurso da revista cola a figura terrorista às ancoragens medieval e feudos, produzindo o sentido de atraso, valores divorciados da modernidade. (tema: choque de identidades, retrógrado x moderno) No nível profundo do texto, Veja unge com euforia os semas /Democracia/ e /Ocidente/ e joga nas trevas a disforia de valores contrários aos defendidos pela revista. Ao sublinhar a vitória dos Estados Unidos em Iwo Jima, o discurso do periódico imprime a supremacia do país (representando o Ocidente) sobre o Japão (Oriente). No texto /Democracia/ e /Ocidente/ ornam com modernidade, com valores “civilizados”... E arremessa no fosso concepções que ofendem a axiologia defendida pelo periódico. (tema: exaltação aos valores ocidentais) No discurso da revista o oposto de /Democracia/ é representado por /Teocracia/. Em um regime Teocrático – sistema de governo em que o poder político se encontra fundamentado no poder religioso – as liberdades são asfixiadas e a rede econômica é precária. Assim, o texto faz a seguinte passagem: A /Democracia/ é apresentada com seus valores eufóricos, que, em seguida, são negados, quando se passa para a /Não-Democracia/, que representa a /Teocracia/, movimento apontado pelas setas no quadro semiótico apresentado em seguida: 117 Democracia Ocidente Teocracia Oriente Não-Teocracia Não-Oriente Não-Democracia Não-Oriente Tal manifestação política ocorre em países situados no Oriente. O que cria o segundo sentido de apresentado no texto: Ocidente → Não-Ocidente → Oriente. Assim, o Oriente se torna algo divorciado dos valores ocidentais defendidos pela Veja: a democracia e a economia de mercado (sistema capitalista). A aplicação do quadrado semiótico evidencia a visão maniqueísta e redutora do texto em análise pois, assumir isso como verdade, é fazer tábula rasa das engrenagens que movem as políticas internacionais. Uma vez que, na linguagem dos signos, a própria geografia é sacrificada: chama-se Ocidente, “mundo ocidental” os países econômica e politicamente definidos como capitalistas, de forma que o Japão termina “ocidentalizado”. Geograficamente ocidental, Cuba, por sua posição política acaba afastando-se desses valores. Mesmo não adotando valores democráticos e plena economia de mercado, Cuba não deixa de figurar no “mundo ocidental”. Igual raciocínio é válido para a China, país oriental que, mesmo tendo forte controle do sistema político, sua economia cada vez mais cria laços com o sistema capitalista. Ocidente e Oriente não formam uma massa homogênea, com valores absolutos 68 ·. (tema: depreciação aos valores orientais) 68 Para saudoso intelectual palestino Edward Said: “A geografia não é só uma batalha de tecnologias cartográficas e regimes de verdade; é também um confronto entre diferentes modos de ver o mundo”. (SAID apud STEINBERG, 2005, p. 190) 118 Quando expõe que “O que os radicais não toleram, mais que tudo, é a modernidade”, a revista ignora que uma das contribuições da modernidade é o avanço tecnológico. Os autores dos atentados tanto toleram a modernidade que se utilizam de suas ferramentas para disseminar sua cultura e arquitetar seus planos 69 . Sem conhecimento das novas tecnologias uma ação como a de 11 de setembro de 2001 seria inviável. (tema: intolerância) O segundo texto em nosso cabedal de análises tem como título “A descoberta da vulnerabilidade” (p.48-58). Trata-se da matéria que abre a seção especial destinada à repercussão do 11 de setembro de 2001; veiculado sem assinatura, o texto reflete a opinião da revista. Na primeira parte, o texto retoma o questionamento que tanto povoou as indagações no dias seguintes: e agora? Tinha que se estabelecer uma meta para aquilo que o presidente George W. Bush classificou como “Ato de Guerra”. Para o Subsecretário de Defesa dos Estados Unidos, Paul Wolfowitz: Não se trata apenas de capturar essas pessoas e fazer com que paguem pelo que fizeram. É preciso eliminar os santuários, os sistemas de apoio e acabar com os Estados que patrocinam o terrorismo. (REVISTA VEJA, 2001, p.48-50) Combater os países que amparam terroristas foi outra opinião amplamente divulgada. O texto se utiliza da ancoragem territorial para dar contornos de que o terrorismo é um mal patrocinado por terceiros. Os “santuários” e “Estados que patrocinam o terrorismo” são um indicativo de condolência ao terror executado por países contrários às políticas defendidas pelos Estados Unidos. As palavras procuram conduzir o leitor a deduzir o “complô” arquitetado contra o país. Todavia, os Estados Unidos têm sua impressão digital na infra-estrutura de grupos dessa natureza. Uma reavaliação da condução da política externa do país seria bemvinda no discurso da revista. (tema: causas dos atentados de 11 de setembro) Jogar sementes descontextualizadas ao ar pode fazer germinar uma produção de sentidos equivocada no leitor. Serva (2001) classifica como “redução” a técnica de simplificar fatos. Isso ajuda a passar uma idéia de “notícia fora do 69 Detalhamos essa questão no capítulo 3: Terrorismo: um legado histórico e sua caracterização na plataforma midiática (Item: 3.5. A Al Qaeda e o “Terrorismo em Rede”, p.85). 119 lugar”. Quando essa prática é utilizada, o sentido eufórico perpetrado pela mídia é devolvido por uma percepção disfórica por parte do enunciatário. Isso acontece no seguinte trecho do artigo Não é de se espantar que, após os atentados, o tom do discurso americano tenha mudado. Desapareceu como por mágica o relativismo cultural e seu corolário, o respeito por aquilo que possa ser considerado politicamente correto. O relativismo cultural, teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo americano Melville Jean Herskovitz, preconiza que nenhuma cultura é superior a outra. Que cada uma deve ser entendida dentro de seu próprio contexto e, por isso mesmo, não cabem comparações entre elas. (...). É dessa perspectiva que alguns estudiosos acham possível justificar, por exemplo, a prática de muçulmanos africanos de extirpar o clitóris das adolescentes. Do relativismo cultural nasceria na década de 80 o discurso politicamente correto, que aboliu do vocabulário palavras e expressões que soam pejorativas a minorias étnicas, homossexuais e portadores de deficiência física. Com os atentados, o relativismo sofreu um abalo: por alguns dias, pelo menos, o mundo voltou a ser dividido entre países civilizados e nações bárbaras. E, contra os bárbaros, políticos e analistas pediram “vingança”. 70 (REVISTA VEJA, 2001, p. 52) Os trechos em itálico são exemplos evidentes da edição parcial do texto da Veja. A revista, utilizando-se da figuração “muçulmanos africanos”, expõe um exemplo forte e totalmente deslocado de seu contexto (a extirpação do clitóris) para causar no leitor a sensação de que o "relativismo cultural" é um conceito equivocado aguçando disforia ao Islamismo. A estratégia de figurativização é um indicativo desse desejo. Em seguida, ao citar as ancoragens territoriais “países civilizados” e “nações bárbaras”, procura provar que o mundo agora está novamente dividido entre civilização e barbárie, em outras palavras, “nós” (os civilizados) e “eles” (os bárbaros). (temas: a cultura do “Outro”, o mundo em conflito) Cabe salientar que a extirpação do clitóris não é algo inato ao Islamismo e nada tem a ver com o Alcorão e sim com hábitos locais, costumes tribais 71 ... Essa forma de mutilação – praticada, por exemplo, no oásis Buraimi, nos Emirados 70 Grifos nossos. Em dezembro de 2006, foi realizada no Cairo (Egito) a conferência "A Proibição da Violação do Corpo Feminino pela Circuncisão”. Nessa conferência, muçulmanos de alto escalão concordaram que a mutilação genital feminina é irreconciliável com o Islamismo. Embora a circuncisão seja muitas vezes defendida com razões supostamente religiosas, não existe justificativa religiosa para essa prática. O renomado e notório clérigo e jornalista egípcio, Yusuf al-Qaradawi, concordou que o Alcorão afirma ser proibido mutilar a criação de Deus. 71 120 Árabes e países africanos – teve seu berço na África paleolítica. Opta-se pelo enunciado “muçulmanos africanos” para reforçar a disforia quanto ao posicionamento, que tudo indica, ser intencional, pois, a revista Veja, empregou esse exemplo para provocar repulsa e ativar preconceitos contra os povos islâmicos sem explicar ao seu leitor as nuances do rito. Essa construção enunciativa traz, ao leitor que não é integrado a determinadas passagens históricas e culturais, a concepção que os muçulmanos africanos, iranianos, europeus ou americanos, o mesmo sentido: de que a prática é intrínseca a todo o Islã. (tema: compreensão limitada e parcial do mundo islâmico) O tema da segurança mundial também foi outra vertente explorada no texto. Um ataque das proporções do 11 de setembro de 2001 na maior potência de nosso tempo indicava quão frágil estariam os demais países que não dispõem dos recursos militares do porte dos Estados Unidos. (tema: insegurança global) Estaria surgindo uma nova ordem internacional pós-Guerra Fria? Essa idéia somada à preocupação com a segurança é citada na seguinte passagem: “Com o fim das ideologias e depois dos atentados, o planeta está agora obcecado pela segurança” (p.53). Nessa afirmação, Veja tropeça no processo histórico quando grafa a expressão “o fim das ideologias”; sendo que a própria sentença “fim das ideologias” tem substância ideológica apontado para a superioridade de um sistema sobre outros. “Fim das ideologias”, “fim da história” foram expressões corriqueiras em discursos construídos após o terremoto político que aniquilou as estruturas do socialismo no leste europeu e da extinta União Soviética marcando o fim da Guerra Fria. À época, um dos principais protagonistas dessa discussão foi o cientista político estadunidense Francis Fukuyama, autor da obra “O fim da história e o último homem”. Para Fukuyama o fim da Guerra Fria solidificava a vitória final da ordem liberal do Ocidente e as disputas futuras seriam travadas nas arenas comerciais da concorrência econômica. Esse seria o “estágio final” das sociedades. Assim, de certa forma, Veja corrobora que as outras ideologias estariam mortas, não tendo mais futuro, só passado. Novamente, a revista grafa 121 que “nosso” sistema econômico (o capitalismo) é superior aos sistemas econômicos dos “outros”. Em outro fragmento a revista navega no mar de interrogações que afogava os Estados Unidos após o 11 de setembro de 2001. Os americanos gastam 30 bilhões de dólares por ano em inteligência, e só a CIA, o serviço de espionagem, tem 2.000 agentes no exterior. O sistema caríssimo de vigilância eletrônica por satélites é capaz de fazer fotos tão detalhadas que se podem identificar pontas de cigarros jogadas fora pelos guerrilheiros no Afeganistão. A rede de vigilância envolve ainda aviões, navios e 5.000 pontos de captação de informações no mundo inteiro. A tecnologia empregada permite rastrear uma ligação de celular em qualquer lugar. Como nada disso funcionou? Nenhum dos treze órgãos encarregados de monitorar, receber e analisar todo tipo de informações relacionadas à segurança conseguiu evitar a entrada no país e a comunicação entre os terroristas. (REVISTA VEJA, 2001, p. 54) Em síntese: como foi possível um ataque desse porte perante todo o aparato de segurança dos Estados Unidos? Como os Estados Unidos (principal expoente do mundo ocidental) falharam tão bisonhamente na defesa de seu território 72 ? Não raro, o silêncio é mais contundente que a pergunta. (tema: fragilidade do sistema de segurança dos Estados Unidos) O Islamismo ainda ganharia mais linhas no texto “A descoberta da vulnerabilidade”. 72 Segundo Burke (2007), mesmo dotada de espetacularização, os meios utilizados nas ações de 11 de setembro não foram novidades: “Os meios utilizados no ataque não eram novidade. Embora até então ninguém tivesse executado com sucesso um ataque utilizando aviões como armas ofensivas, essa tática fora freqüentemente discutida por militantes islâmicos. Em 1994, Ramzi Youssef e um cúmplice tiveram a idéia de seqüestrar um avião e voar para a sede da CIA, em Langley, no estado da Virgínia. No mesmo ano, membros do GIA tentaram forçar os pilotos de um jato da Air France que tinham seqüestrado em Argel a jogá-lo contra a torre Eifel. Em 1996, agentes da inteligência norte-americana receberam a informação de que um grupo ligado ao xeque Abdel Omar Rahman planejava levar um avião do Afeganistão aos Estados Unidos e lançá-lo sobre a Casa Branca, e que um grupo iraniano pretendia seqüestrar um avião japonês sobrevoando Israel e faze-lo cair sobre Tel Aviv. Durante 1998 e 1999, os serviços norteamericanos de inteligência receberam informações sobre planos semelhantes. Tais planos iam do projeto de um grupo turco de lançar um avião sobre o túmulo de Kamal Ataturk durante uma cerimônia oficial até um ataque do tipo camicase contra o palácio presidencial do Egito numa asadelta carregada de explosivos, planejado por um grupo de egípcios com base no Afeganistão. Também se acredita que indivíduos mais próximos a Bin Laden tenham planejado operações semelhantes. Até ideólogos radicais sonhavam com ataques desse tipo. Numa fatwa publicada no verão de 2001, Ahmed Abdallah al-Ali, proeminente clérigo wahhabita kuwaitiano, discutiu a legalidade da morte de um mujahed falecido ‘quando lançava um avião sobre uma cidade importante’.” (BURKE, 2007, p. 244) 122 Há mais de um bilhão de muçulmanos espalhados pelo mundo. Na maioria, são moderados. A minoria radical, no entanto, tem uma disposição fanática para matar e morrer e se une num ódio incontrolável contra os Estados Unidos, em sua opinião um país satânico. Em sua visão, atacar o demônio americano garante ao fiel um lugar de honra no paraíso. Como se pode lidar com terroristas cujo objetivo é retornar ao século VIII? (REVISTA VEJA, 2001, p.56-57) O texto é recoberto pelas figurativizações muçulmanos, moderados, radical, fanática, demônio americano, paraíso e terroristas. Quando separados, os semas parecem figurar no dicionário de significados disfóricos comuns quando destinados ao Islamismo. O mesmo ocorre quando isolamos do texto as ancoragens territoriais país satânico e século VIII. Podendo funcionar como figura ou ancoragem a expressão país satânico acaba sendo incorporada como sinônimo de Estados Unidos, o grande inimigo dos extremistas islâmicos e, sempre procurando colar o rótulo do atraso como feito na referência temporal século VIII. (tema: fundamentalismo islâmico) Na passagem em questão, depois de mencionar a cifra de muçulmanos existentes no planeta, o processo de editorialização do texto destina uma curta frase para dizer que a maioria dos islâmicos são moderados, sem entrar no mérito da classificação. Espaço diferente é ofertado para demonstrar o lado mau do Islamismo, indicando sua tenebrosa profissão de fé. Pode-se entender que, devido aos atentados terroristas, passa a ser natural evidenciar apenas o lado fundamentalista do islamismo 73 – sobretudo quando se quer enfatizar apenas esse grupo para expandir o teor disfórico dos sentidos –, sempre em qualificação negativa. E de fato o é, mas nada impede um sadio equilíbrio nas análises das duas principais facções islâmicas. Na parte derradeira do artigo temos o seguinte comentário. A oposição à globalização já existia como fenômeno ambientalista, de minorias, das ONGs e dos sindicatos. Agora deve também levar em conta essa nova complicação: o Islã como fonte de preocupação para a paz mundial. A globalização incomoda a turma do turbante pela modernidade que traz no bojo. O fundamentalismo islâmico é, em boa medida, a manifestação de uma elite que exerce sobre seus povos uma tirania milenar, baseada na religião e nos costumes imutáveis. Se é contra a civilização ocidental é porque não pode conviver com 73 Embora algumas facções sunitas também optem por práticas terroristas. 123 seus princípios básicos, notadamente a liberdade política e individual. O universo dos fundamentalistas é aquele em que se queimam livros, se proíbem filmes e música. As mulheres são cobertas de véu e devem submissão ao poder masculino. (REVISTA VEJA, 2001, p. 58). As figurativizações do texto trazem à tona aspectos condenáveis do fundamentalismo islâmico: submissão da mulher, queima de livros, traços tirânicos... Essas figuras de linguagem reforçam a opinião da revista quanto aos valores defendidos pelos terroristas. Contudo, o fundamentalismo religioso foi gestado no ventre do protestantismo estadunidense 74 , não sendo assim, uma criação islâmica (por mais que seja comum a utilização de tais práticas por seus seguidores). A tenebrosa ação de queima de livros não é um pecado exclusivo do fundamentalismo islâmico, ditadores como Adolf Hitler e o Tribunal da Santa Inquisição também o fizeram. Mas essas informações são omitidas pela revista! Nas três frases que abrem a citação anterior, Veja embaralha determinados conceitos produzindo sentidos contrários ao Islamismo. Primeiro porque coloca numa mesma teia de análises movimentos ambientalistas, ONGs e sindicatos ao lado da rede terrorista islâmica, dando a entender que todos oferecem o mesmo grau de periculosidade à globalização. Isto é, em sua prática enunciativa, por exemplo, tenta colocar no mesmo nível de sintonia a atuação de um movimento ambientalista e o terrorismo islâmico, como se ambos fossem concebidos do mesmo ventre. Em segundo lugar, cita o Islã (como um todo, sem ressaltar suas subdivisões) como um perigo à paz mundial. Da maneira como os semas são construídos no texto, tem-se todo o Islamismo como risco, e não apenas os fundamentalistas que realmente podem pôr em xeque a segurança mundial como vimos nos atos de 11 de setembro de 2001. (tema: compreensão limitada e parcial do mundo islâmico) Outra generalização perigosa é a terceira frase onde aparece pintada com forte tom pejorativo a figurativização “turma do turbante”. Numa clara alusão à vestimenta típica dos islâmicos, Veja destila preconceito de maneira incisiva. Afinal, os moderados também usam a tradicional roupa, não apenas os 74 Esse aspecto foi detalhado no Capítulo 3: Terrorismo: um legado histórico e sua caracterização na plataforma midiática (Item: 3.2. As faces do terrorismo, p. 77). 124 fundamentalistas. O tom disfórico usado na construção textual induz o leitor a crer que todos os adeptos dessa religião são contra a modernidade e, por extensão, terroristas. Nesses tipos de declarações a revista cola ao Islamismo emblemas de atraso e fanatismo. Palavras inteiras, porém verdades recortadas com a perigosa lâmina editorial. (tema: depreciação dos valores islâmicos) No terceiro texto “O inimigo número 1 da América” (p. 68-72), Veja traça um perfil do até então principal suspeito de arquitetar os ataques aos Estados Unidos: Osama bin Laden. A figurativização dos personagens é o eixo central do texto. Ao longo da história, o mal exibiu várias feições. Ele já teve os traços de Átila, o Huno, do mongol Gêngis Khan, do austríaco Adolf Hiltler, do soviético Josef Stalin, do cambojano Pol Pot e do ugandense Idi Amin Dada. (REVISTA VEJA, 2001, p. 68) Para o leitor pouco versado na ciência histórica, as figuras citadas podem não ter diferenças, sendo unidas pela cola do mal. Bin Laden seria mais uma figura a entrar para história por suas perversas práticas – sobretudo contra as ações que tiveram os Estados Unidos como alvo. (tema: figurativização do mal) Junto com o terrorista saudita, a reportagem traz três desafetos dos estadunidenses: Saddam Hussein, Muamar Kadafi e Aitolá Komeini – todos islâmicos. Para cada um dos clássicos inimigos, a reportagem reproduz uma frase pronunciada contra os Estados Unidos. Osama bin Laden, em 1998: “Juramos todos os americanos de morte, sem distinção entre militares e civis”. (p.69) Saddam Hussein, 1991: “Os americanos vão nadar em seu próprio sangue”. (p. 71) Muamar Kadafi, em 1986: “Humilhamos a América”. (p.71) Aiatolá Khomeini, em 1979: “Os Estados Unidos são o Grande Satã”. (p. 72) No processo de editorialização, todos os enunciados – construções disfóricas em relação aos Estados Unidos – aparecem em grande destaque nas páginas da revista indicando o ódio cultivado e disseminado contra os estadunidenses. (tema: crítica ao antiamericanismo) 125 Veja permite que o leitor conheça mais sobre Osama bin Laden, nome até então ignorado por grande parte do público, e suas ações terroristas contra os Estados Unidos. Laden seria o responsável pelos atentados simultâneos às embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia, em 1998, que causaram a morte de 224 pessoas. Ele também teria perpetrado a explosão de um navio americano na costa do Iêmen, em outubro do ano passado, que resultou em dezessete marinheiros mortos. Credita-se a Laden, ainda, o suporte técnico, por assim dizer, ao primeiro atentado ao World Trade Center, em 1993, que contou seis vítimas fatais. (REVISTA VEJA, 2001, p. 68) Um currículo escrito com sangue. Ações que, nas incertezas dos primeiros dias após os atentados, colocavam Osama bin Laden como principal suspeito dos ataques. As ancoragens Quênia, Tanzânia, Iêmen e Word Trade Center (Estados Unidos), simbolizam o quão global são as atividades terroristas da Al Qaeda. O texto recorre ao xadrez político da Guerra Fria para informar como Bin Laden começou a ascender no terrorismo islâmico sob os olhos complacentes e oportunistas dos Estados Unidos. ... ele começou sua vida de militante islâmico em 1979, quando o Afeganistão se viu invadido por tropas soviéticas. Muçulmanos de diferentes procedências juntaram-se aos guerrilheiros fundamentalistas do Talebã e de outras facções na defesa do país contra a superpotência comunista. Como não poderia deixar de ser, dentro da lógica maniqueísta da Guerra Fria, o enfrentamento com a União Soviética recebeu apoio dos Estados Unidos. Nesse ponto reside uma grande ironia: o atual inimigo número 1 dos americanos pode ter recebido treinamento da CIA, que gastou 3 bilhões de dólares para ajudar os rebeldes afegãos. (REVISTA VEJA, 2001, p.70-71) As ancoragens Afeganistão, União Soviética e Estados Unidos, presentes no texto contextualizam geograficamente o mundo bipolarizado que, juntamente com as figuras representadas por militante islâmico, tropas soviéticas, guerrilheiros fundamentalistas do Talebã, fornecem ao enunciatário recursos para se entender as condições históricas que colaboraram para a emergência de Bin Laden no terrorismo internacional. Nessa época, o “outro”, o inimigo a ser combatido eram os países comunistas. 126 Na passagem: “Como não poderia deixar de ser, dentro da lógica maniqueísta da Guerra Fria, o enfrentamento com a União Soviética recebeu apoio dos Estados Unidos”, Veja procura amenizar o fato de que no passado Bin Laden serviu aos Estados Unidos, para depois jogar incertezas na argumentação ao fazer uso do sema /pode/, semeando dúvidas à ligação do passado entre os estadunidenses e o até então principal suspeito dos ataques. (tema: surgimento de Osama bin Laden no cenário internacional) A vitória sobre a União Soviética foi um estímulo à propagação de grupos fanáticos islâmicos. Se fora possível a derrota do império comunista, Israel e seu grande aliado, os Estados Unidos, também poderiam ser tombados. Em 1998, em entrevista à rede inglesa BBC, Bin Laden já deixava claro suas intenções. Os americanos nunca fizeram distinção entre civis e militares. Eles não jogaram a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki? Não apoiaram os massacres de crianças e adolescentes na Palestina: Nossa fatwa (sentença de morte) se dirige, então, a todos os americanos. Nós não os diferenciamos por trajes. (REVISTA VEJA, 2001, p. 72) Em seu discurso, Bin Laden externa as figuras civis e militares, crianças e adolescentes como defesa em sua argumentação. Para o saudita, os Estados Unidos nunca se preocuparam com a classe etária de suas vítimas. Igual raciocínio vale para as ancoragens Hiroshima, Nagasaki e Palestina. As duas cidades japonesas foram vitimadas em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, por bombas nucleares lançadas pelos Estados Unidos ao fim da Segunda Guerra Mundial, em que a maioria de civis foi morta. Já a Palestina, é evocada como vítima do algoz Israel, país aliado aos Estados Unidos e que pratica ataques constantes à região citada por Bin Laden. Fiel a seu raciocínio, Bin Laden não via injustiça em possível sentença contra os estadunidenses. A fatwa de Bin Laden contra os Estados Unidos não era um exercício retórico. Seria concretizada em 11 de setembro de 2001. (tema: causas dos atentados de 11 de setembro) No texto, o discurso da revista peca em mais alguns aspectos. Ao trazer como nota de chamada logo após o título a frase: “Depois de Khomeini, Kadafi e Saddam Hussein, o mundo islâmico produz outro pesadelo para os Estados Unidos: o terrorista Osama bin Laden”. (p. 68), procura-se produzir o sentido de 127 que os inimigos dos estadunidenses são sempre os islâmicos quando nem todos o são. Outro reducionismo presente na frase é tributar apenas ao mundo islâmico a produção do terrorista Osama bin Laden. Quando já se sabe da participação dos Estados Unidos em sua trama. Hoje, tudo parece muito claro sobre as ações sofridas pelos Estados Unidos e os mentores dos atentados. À época da publicação da edição analisada ainda pairavam no ar dúvidas sobre os responsáveis. As declarações que reproduzimos indicavam que, naquele momento, o sangue escorria na direção de Osama bin Laden, porém ainda sem se ter plena certeza disso. No artigo, Veja procura criar um efeito de verdade ao tributar a culpa a Bin Laden. O título da reportagem é incisivo: “O inimigo número 1 da América”. Contudo, nas primeiras linhas do texto, a revista já traz a dúvida para a discussão ao afirmar que: “Ele (Bin Laden) está sendo apontado como provável cérebro por trás do ataque ao coração do império americano”. (p. 68). Até então era o mais provável, mas não o culpado como viria à tona posteriormente. Mesmo afirmando a dúvida no começo, na parte final novamente aponta o terrorista saudita como “... o atual inimigo número 1 dos americanos 75 ”. (p. 71). O discurso da revista aponta mais para um desejo de seu corpo editorial do que para um fato real e seguro. O quarto texto, “Assassinato em nome de Alá” – (p. 80-85), sem perder de vista o horizonte histórico, colocando o passado no presente, inicia-se serenamente e, procurando separar o joio do trigo, procura caracterizar o “outro”, trazendo as seguintes informações: Com o surgimento dos primeiros indícios de que a onda de terror nos Estados Unidos foi obra de radicais islâmicos, uma questão tornou-se inevitável: quem é essa gente que se suicida jogando aviões contra edifícios? Que se veste de bombas e se explode em supermercados e pizzarias de Israel? Que estoura carros recheados de explosivos contra muros de quartéis? Quem é, enfim, essa gente que se mata em nome de Alá? Atualmente, calcula-se que exista em torno de 1,3 bilhão de muçulmanos no mundo, divididos em diversas correntes religiosas – e apenas uma parcela pequena está disposta a entregar a vida pela causa. São muçulmanos que integram ramificações extremistas da religião, como os sunitas do Afeganistão e os xiitas do Líbano, para os quais o suicídio em nome de Alá, normalmente cometido aos gritos de “Deus é grande”, é uma forma suprema de entrega ao 75 Grifos nossos. 128 amor divino. A maioria dos mulçumanos, no entanto, repudia os ataques suicidas e os considera pecado extremo, uma ofensa contra Alá, na medida em que atenta contra o dom da vida – um dom divino. “O primeiro equívoco comum entre ocidentais e cristãos é considerar todo islâmico um extremista suicida e, por extensão, um terrorista em potencial”, adverte a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo. O segundo equívoco, e até mais freqüente que o primeiro, é julgar que todos os muçulmanos são árabes, quando a maioria, na verdade, é formada por povos não árabes. Somando-se um erro ao outro, produz-se uma generalização tão deformada quanto a de alguém que supõe que todos os católicos são irlandeses e, portanto, todos são radicais. (REVISTA VEJA, 2001, p. 81) O discurso é construído em tom cauteloso, atribuindo responsabilidade a quem lhe é de direito. O texto é levantado sobre argumentos de uma historiadora, recurso utilizado para atribuir credibilidade à reportagem. Atravessado pelas figuras radicais islâmicos, sunitas, xiitas, Alá, ocidentais e cristãos, o enunciado sintoniza as diferenças que recortam os islâmicos, atentando para a diversidade da religião de Maomé. Evidencia-se que não são todos os muçulmanos adeptos da liturgia terrorista. (tema: divisões do mundo islâmico) As ancoragens Afeganistão e Líbano quando unidas às figuras sunitas e xiitas, clareiam as diferenças entre os dois principais setores do Islamismo, alertando que as análises não devem ser precipitadas e nem ecoar o senso comum para determinadas colocações. Nesse trecho do enunciado – e também em seu desdobramento – Veja omite uma importante informação. Os xiitas são tidos como a ala mais radical do Islamismo cabendo aos sunitas a característica de moderados. Todavia, não se trata de uma verdade absoluta, os sunitas do Afeganistão, o ex-ditador Saddam Hussein e os próprios membros da Al Qaeda assumem perfil fundamentalista mesmo não pertencendo à facção xiita. Ou seja, são líderes que almejam o poder independentemente da facção. A religião é apenas um caminho para sedimentar seus objetivos. A não explicação dessa passagem pode trazer confusão ao leitor que no texto vê os semas /sunitas/ e /xiitas/ como representações fundamentalistas produzindo o sentido de que todo o Islã é um conjunto terrorista. Não há diferenças entre os “outros”. (tema: fundamentalismo islâmico) 129 Em determinado momento do texto, Veja novamente traz à superfície o já decantado “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington como possível explicação para atos como o 11 de setembro de 2001. A explicação sobre o que move esses extremistas, segundo alguns especialistas, talvez esteja num dado mais sutil: o choque de civilizações. “Os Estados nacionais permanecerão como os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos globais ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações”, aposta o professor Samuel P. Huntington, especialista em estudos internacionais da Universidade de Harvard e autor de um livro dedicado ao assunto. “O choque de civilizações será a linha divisória das batalhas no futuro”. Nem todos os estudiosos do assunto concordam com a tese de Huntington, mas não há como negar que, num mundo cada vez menor, cada vez mais próximo, a religião também funciona como um instrumento de afirmação de identidade nacional. E a globalização crescente é um processo que se desenrola sob o comando inequívoco do mundo ocidental – em especial, do império americano. As potências ocidentais não trilham sua trajetória segundo parâmetros da Bíblia, da fé cristã, dos ensinamentos de Jesus, mas, mesmo assim, elas acabam por se contrapor, culturalmente, aos países muçulmanos, muitos dos quais se pautam pelo Corão, pela fé islâmica, pelos ensinamentos de Maomé. Com 1400 anos de rivalidade, o cristianismo e o islamismo vêm alterando auges e colapsos. (REVISTA VEJA, 2001, p. 83) Veja relata no trecho uma das teorias muito discutida à época dos ataques e já por nós mencionada: “o choque de civilizações”. A postura do enunciado materializada pela revista, coloca-a como simpatizante da tese, mesmo quando o periódico procura vestir o manto da imparcialidade. O texto até chega a mencionar que “nem todos os estudiosos do assunto concordam com a tese de Huntington”, mas não cita um contra-argumento que mostre posição adversa a do intelectual estadunidense. Assim, só a visão de Huntington é externada. Tal como Francis Fukuyama e seu “fim da história”, Samuel P. Huntington criou um paradigma para explicar a ordem mundial pós-Guerra Fria: os conflitos seriam fundamentalmente culturais, principalmente no confronto com ancoragem entre Ocidente e Oriente. Uma visão panorâmica mune de razão e credibilidade a tese de Huntington, sobretudo, após o 11 de setembro de 2001. Mas quando aproximamos a lente analítica a suas idéias, fraturas aparecem. Huntington ancorou sua teoria numa análise do sistema internacional acreditando que a geopolítica poderia ser deduzida a partir das estruturas culturais profundas que 130 moldam as civilizações. Ignorou a complexidade da rede de interesses dos Estados e os emaranhados políticos e culturais das sociedades contemporâneas. “Identidades”, “civilizações” não são entidades lacradas, mas um enredo de trocas, compartilhamento. O “choque de civilizações” está na mente de Huntington, mas não no cenário das relações internacionais e nem na sobreposição de uma cultura sobre a outra 76 . (tema: choque de civilizações) Na parte que encerra a citação, a revista reforça a tese de Huntington ao produzir o sentido de rivalidade entre os mundos cristão e islâmico. Na passagem textual, o mundo cristão é ungido pelas figuras Bíblia, fé cristã, ensinamentos de Jesus, enquanto o mundo islâmico tem sua figurativização em Corão, fé islâmica, ensinamentos de Maomé. Tem-se nessa iconização o efeito de realidade de que o mundo ocidental e seus valores cristãos são superiores ao mundo islâmico; atribuem-se ainda aspectos teocráticos aos Estados islâmicos e posições laicas aos Estados cristãos. Ao afirmar que “As potências ocidentais não trilham sua trajetória segundo parâmetros da Bíblia, da fé cristã”, Veja aposta no desconhecimento da história por parte de seus leitores, uma vez que o “império americano” (como citado no texto) fez uso em seu passado de argumentos divinos, assim como George W. Bush repetiu tal gesto no presente para combater o terrorismo, para justificar e consolidar a política expansionista dos Estados Unidos 77 . (tema: fundamentalismo religioso) 76 Edward Said (2003) classifica a tese de Samuel P. Huntington como “choque de ignorância”. O ex-presidente dos Estados Unidos, Willian McKinley justificou sua decisão de invadir as Filipinas em 1898, durante a Guerra Hispano-Americana como um pedido feito por Deus enquanto rezava. O escritor Hernan Melville, autor do clássico Moby Dick, expressou certa vez que: “Somos o povo peculiar, escolhido, o Israel de nosso tempo. Carregamos a arca da liberdade do mundo”. Outro episódio de como a “inspiração divina” norteou a política estadunidense estão nas palavras de George W. Bush: “Deus me disse para atacar a Al Qaeda, e eu ataquei. Então ele me deu a ordem de atacar Saddam, e foi isso que fiz”, explicou o presidente. A raiz do “Destino Manifesto” foi plantada pelos puritanos no século XVII. Em sua jornada através do Atlântico, esses imigrantes se comparavam aos hebreus do Velho Testamento, cruzando o deserto em busca da Terra Prometida. (Fuser, 2006). O presidente George W. Bush classificou os atentados sofridos por seu país como “diabólicos”, evocando o imaginário religioso em sua explicação. Em discurso proferido no dia seguinte aos atentados sentenciou: “Mesmo que eu andasse pelos vales das sombras e da morte não sentirei medo porque o Senhor está comigo”. Trata-se de uma evocação de uma passagem presente no capítulo 23 do livro dos Salmos (Antigo Testamento). Nunca é demais lembrar que em tribunais dos Estados Unidos é comum à prática de testemunhas prestarem juramento com uma das mãos sobre a Bíblia. 77 131 Mais adiante, as informações do próprio texto se encarregam de fragilizar o “choque de civilizações” ao mostrar que valores ocidentais conseguem conviver (e bem!) em países islâmicos. No Irã, há grandes anúncios de produtos ocidentais pelas ruas de Teerã, existem mulheres procurando cirurgiões plásticos, num sinal de vaidade antes inadmissível, e é muito expressivo o contingente feminino que freqüenta a universidade – uma raridade em algumas nações islâmicas que confinam a mulher aos limites do lar. “Há aspectos do capitalismo ocidental que são plenamente aceitos pelas populações muçulmanas”, diz um diplomata brasileiro que serviu por oito anos no Líbano. “As cadeias de fast food, como o McDonald’s, fazem sucesso do Marrocos ao Líbano”, diz ele. (REVISTA VEJA, 2001, p. 84) As figurativizações expostas em produtos ocidentais, vaidade, cirurgiões plásticos, universidade atrelando valor à figura mulheres mostram a compatibilidade de aspectos ocidentais em território muçulmano. Da mesma maneira que, a figura McDonald’s (um dos símbolos do capitalismo estadunidense) quando atrelada em tom eufórico pelo sema sucesso às ancoragens territoriais Marrocos e Líbano (países islâmicos), faz tombar a generalização precipitada de conjugar duas culturas como incompatíveis, de que somente com o extermínio de uma que a outra pode florescer. (tema: harmonia entre culturas) “A cultura do Apocalipse” (p. 130-141) é a matéria que fecha o ciclo de reportagens sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 da revista. O texto destaca que o enredo de tragédias está no cerne na cultura dos Estados Unidos desde os tempos dos pioneiros. O medo do “outro” sempre foi algo fincado no imaginário da sociedade estadunidense. O “outro” fora estigmatizado na figura do comunista, alienígena, estrangeiro, terrorista (sobretudo de origem islâmica)... Várias faces que demonstram uma única imagem: o perigo contra os Estados Unidos e, principalmente, contra os valores ocidentais. E, invariavelmente, são os Estados Unidos que salvam o mundo do perigo; sempre que alienígenas chegam à Terra e desejam falar com o líder do planeta, é ao presidente estadunidense que eles são conduzidos. Temos que, a necessidade do inimigo, de se ter o “outro” como referência torna-se instrumento político destinado às revitalizações sociais, econômicas e/ou instrumento político para justificar práticas governamentais que 132 podem ser julgadas impopulares. O legado dessa ação está encravado na história dos Estados Unidos e também na própria humanidade. (tema: medo como instrumento político) A reportagem tem como fio condutor à cultura da tragédia quando põe em cena o famoso episódio em que Orson Welles, em 1938, narra como se fosse uma notícia, passagens do livro A Guerra dos Mundos (na obra, marcianos invadem a Terra e disseminam pânico e destruição). Muitos acreditaram que a narração via rádio era de fato verdadeira e o planeta estava sob ameaça. Um clássico exemplo de como a mídia pode iludir e produzir sentidos na população. Os veículos midáticos moldam nossa percepção, nossos sentidos. Quando se fala em guerras, ataques, sempre temos uma imagem de referência. Para Steinberger (2005, p. 268) “... a nossa imagem de guerra é construída segundo estereótipos do cinema e da televisão”. Sobre o sentido que as imagens produzidas pelo choque dos aviões nas Torres Gêmeas, Veja atenta que: A cultura americana já imaginou incontáveis vezes a sua própria destruição. A tal ponto que imagens únicas em seu horror, como as do desabamento das torres do World Trade Center, pareceram estranhamente familiares ao ser vistas pela TV. A impressão de que tudo se assemelhava a um filme deve-se ao fato de que estúdios de Hollywood produzem ano após ano fitas em que Nova York e outras grandes cidades dos Estados Unidos são submetidas a ataques terroristas, explosões nucleares, devastação por meteoros, monstros e alienígenas. (REVISTA VEJA, 2001, p. 130) Ou seja, a “cultura da tragédia” é alimentada pela indústria do entretenimento. A ficção parece inspirar a agir sobre a realidade aguçando os sentimentos dramáticos presentes no imaginário social. (tema: destruição como componente social) Dentre a imensa produção cinematográfica dos Estados Unidos, o texto cita dois filmes que parecem assumir o dom da profecia. Duas fitas dos últimos tempos foram proféticas no que toca à tragédia do World Trade Center: Em Nova York Sitiada, estrelada por Denzel Washington e Bruce Willis, a cidade é crivada de bombas por fanáticos muçulmanos, que pretendem com isso pressionar o governo do país a libertar um de seus líderes – indisfarçavelmente calcado na figura de Osama bin Laden, o principal suspeito de ser o responsável pelos atentados da semana passada. Já a transformação de um 133 avião comercial em bomba voadora pode ser vista em Momento Crítico, com Kurt Russel, no qual terroristas islâmicos tomam uma aeronave de carreira e ameaçam jogá-la sobre Washington. (REVISTA VEJA, 2001, p. 140-141) Duas ancoragens territoriais presentes no enunciado reforçam o sentido de profecia: Nova York e Washington – as duas localidades foram os alvos dos atentados de 11 de setembro de 2001. Os recursos figurativos representados pelos semas fanáticos muçulmanos, avião comercial, bomba voadora e terroristas islâmicos, também conduzem a efeitos de realidade que se fariam presentes naquela trágica terça-feira de setembro. (tema: terrorismo como gênero cinematográfico) Na ficção tem-se a certeza de que tudo terminará bem. Todos os momentos de perigo que assolam a população serão transformados em vitória. Mesmo se o inimigo vencer, tudo bem! Trata-se apenas de filme! Contudo, o roteiro da vida real não é tão simples. São extremamente complexas atitudes como as ações terroristas de 11 de setembro de 2001. No entanto, em discurso onde procura explicar os motivos do ataque o presidente George W. Bush, encobrindo os olhos com o véu patriótico, de forma reducionista, dispara: A América tornou-se um alvo porque somos o mais brilhante farol da liberdade e da oportunidade no mundo. Ninguém impedirá essa luz de brilhar. Eles não vergarão o aço de nossa vontade. (REVISTA VEJA, 2001, p.141) O texto externa os semas eufóricos bradados pelo presidente estadunidense. Tem-se a projeção de duas vertentes /liberdade/ vs /opressão/. O sema /liberdade/ é atrelado aos valores dos Estados Unidos. Por sua vez /opressão/ representa o oposto do que é externado por George W. Bush, sendo valor atribuído aos seus desafetos. Se nos filmes o bem e o mal são substâncias bem definidas, fora da ficção isso não acontece. A luz do “brilhante farol da liberdade” parece ter cegado o presidente Bush. A realidade pode sim vergar o aço da política externa dos Estados Unidos. Afeganistão e Iraque que o digam. (tema: exaltação dos valores estadunidenses) 134 4.4.2. CartaCapital Ao contrário de Veja, todas as reportagens e opiniões da CartaCapital contém assinaturas, inclusive sua “Carta ao Leitor”. O número de matérias sobre os ataques de 11 de setembro de 2001 é menor do que as apresentadas pela Veja, como fora apontado na tabela 2. Segundo a metodologia de análise, enfocaremos as seguintes reportagens: 1. 2. 3. 4. 5. O ataque e a idéia – Mino Carta E o mundo mudou – Flavio Lobo (colaboração de Rodrigo Haidar) Caminho para a intolerância – Darc Costa Não entendemos o mundo árabe – Entrevista concedida por Michel T. Klare Os culpados de sempre – Ana Paula de Sousa Na apresentação de sua “Carta ao Leitor”, a revista estampa matéria publicada na edição de 1o de agosto de 2001. A reportagem tinha como título “O príncipe da morte” e fazia referência ao saudita Osama bin Laden e sua metodologia de terror. Com semas eufóricos, a legenda enaltecia: “Leia antes que aconteça: na edição de 1º de agosto, CartaCapital vislumbrava as ameaças que rondavam os EUA” (p.5). Trata-se, obviamente, de uma autopropaganda em que o periódico anuncia ter, anteriormente, veiculado informações a respeito do perigo antes da consumação do terror. Com isso, os enunciadores procuram produzir o efeito de eficiência/credibilidade em seus leitores. (tema: autopropaganda) Tendo como título “O ataque e a idéia”, a seção “Carta ao Leitor”, assinada pelo jornalista Mino Carta, primeiro texto a ser analisado, diz que As grandes ideologias estão mortas, diz o pensador italiano Alberto Asor Rosa, nestes dias de passagem pelo Brasil. As grandes ideologias, com interpretações do mundo e da vida, nos mais diversos domínios e manifestações. E estão mortas porque o mundo mudou e, na mudança, as tornou, de certa forma, obsoletas. Não morreu, é claro, a capacidade do homem gerar idéias, a despeito da manipulação a que submete a chamada cultura de massa, cada vez mais determinada no propósito de lhe servir soluções prontas e acabadas. Se ainda não surgiram ideários políticos adequados aos tempos novos, é admissível que venham a brotar, avisa Rosa. Uma idéia, independentemente de juízos de valor, está por trás do ataque camicase desferido contra os Estados Unidos em seu próprio território, algo assim 135 como o fruto envenenado da globalização. A qual não é, em si, expressão do Bem ou do Mal. Benéficas, ou daninhas, podem ser as políticas aplicadas para enfrentar o fenômeno. O que se viu, até o momento, foi a transferência para o plano global da injustiça social outrora reservada aos cenários nacionais. Ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres. A velha história, brutalmente ampliada, dilatada, elevada ao quadrado, ou ao cubo. Lamentável, condenável, a morte dos inocentes, nesta tragédia que espanta o mundo. Mas quais foram as guerras que não chacinaram inocentes, a começar pelos próprios combatentes, buchas de canhão? Esta Edição Especial de CartaCapital busca os significados do ataque ao Império, quem sabe o começo de um conflito sem precedentes na história da humanidade. Às vezes, o homem não percebe já estar vivendo em guerra. Quente. (CARTA, 2001, p. 05) Mergulhando no nível profundo do texto de Mino Carta temos as oposições /Igualdade/ vs INão-Desigualdade/ e /Desigualdade/ vs /Não-Igualdade/ que são revestidas, no nível discursivo, por expressões ou termos (que representam figuras do mundo natural), e que no nível narrativo tomam a forma de “mudança de estados” de sujeitos (homem, mundo, globalização, guerras, inocentes...) que passam por transformações . No enunciado da revista, o oposto de /Igualdade/ é concebido como /Desigualdade/, resultante das engrenagens presentes no sistema capitalista. Desse modo, a /Igualdade/ torna-se um valor sufocado pelo capitalismo que, em sua fase globalizante, acentua os problemas socioeconômicos em diversos países. Essas disfunções sociais são representadas nos semas “ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres”; tendo sentido que os ataques sofridos pelos Estados Unidos foram conseqüências do “fruto envenenado da globalização”, conforme defende o enunciatário. Assim, os valores disfóricos grafados em /Igualdade/, conduzem a /Não-Igualdade/, interpretado por /Desigualdade/, conforme demonstra os movimentos das setas que integram o quadrado semiótico a seguir: 136 Igualdade Não-Desigualdade Desigualdade Não-Igualdade O texto de Mino Carta em nenhum momento faz referência ao terrorismo ou as redes suspeitas do atentado. Nos argumentos contidos no texto, mais do que o terrorismo, a disjunção contida nos semas /Igualdade/ e /Desigualdade/ remete aos ombros do sistema capitalista a culpabilidade pelas engrenagens que moveram as ações sofridas pelos Estados Unidos, principal expoente desse valor econômico. “O fruto envenenado da globalização” – /Desigualdade/ seria a penetração e dispersão das desigualdades e injustiças sociais, levando, como diz o texto, “a ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres” - /NãoIgualdade/. O jornalista também procura diminuir o efeito negativo sobre o número de óbitos da ação terrorista no trecho: “Mas quais foram as guerras que não chacinaram inocentes, a começar pelos próprios combatentes, buchas de canhão?” (tema: crítica ao sistema capitalista) O “outro”, o “diferente” para o jornalista se traduz em uma ideologia socioeconômica – o capitalismo – e o combate a seus princípios filosóficos, seria um dos vetores explicativos para os atentados de 11 de setembro de 2001. Quando sentencia que “às vezes, o homem não percebe já estar vivendo em guerra. Quente”, Mino Carta, apresenta a idéia que episódios como o de 11 de setembro de 2001 são ápices de eventos diários gerados pela face podre do 137 mundo globalizado. Para o jornalista, o protagonista é o sistema capitalista e as injustiças geradas por este. (tema: causas dos atentados de 11 de setembro) A seção “Carta ao leitor” da CartaCapital oferta ao leitor sentido de disjunção de valores quando comparada a Veja. Para a revista do Grupo Abril, os ataques terroristas foram ações direcionadas contra os valores defendidos pelo sistema capitalista. O sistema capitalista assume efeito de conjunção: capitalismo é colado com o Ocidente, representado os mais límpidos anseios do mundo moderno. Por sua vez, o texto de abertura de CartaCapital expressa valores disjuntivos ao sistema capitalista e seus sintomas negativos à sociedade. Para a revista, o capitalismo seria o responsável por ações como a de 11 de setembro de 2001 pela desigualdade e males embutido em sua filosofia. (tema: crítica ao sistema capitalista) Ao tecer críticas ao capitalismo, Mino Carta se mantém fiel à linha editorial da revista (tendência progressista) em trazer à tona a disforia /capitalismo/ vs /comunismo/. Contudo, o texto peca em omissão de informações jornalísticas básicas: em momento algum são apontados os autores, ou aos menos os suspeitos, da barbárie terrorista. A cor ideológica prestou um desserviço aos leitores que os textos seguintes procurariam corrigir em páginas futuras. O ciclo de reportagens da CartaCapital inicia-se com o segundo texto que analisaremos, “E o mundo mudou” (p.06-10), escrito por Flavio Lobo com a colaboração de Rodrigo Haidar. Na reportagem, narra-se o cenário dos Estados Unidos antes e depois dos atentados daquela triste terça-feira de setembro de 2001. Seguindo o tom questionador que norteou outros órgãos de imprensa, é levantada a dúvida de como foi possível um ataque de tamanha envergadura na maior potência mundial. Os vultosos investimentos em defesa foram vencidos por utensílios simples e um grandioso planejamento. Todo o aparato defensivo mostrou-se inócuo frente às ações terroristas. (tema: fragilidade do sistema de segurança dos Estados Unidos) Também foi prática comum (e compreensível) a especulação dos possíveis responsáveis pela orquestração terrorista. Abrindo-se as cortinas, CartaCapital apresenta os principais atores. 138 A lista de suspeitos é grande. Primeiro, espalhou-se a notícia de que a facção radical Frente para Libertação da Palestina teria assumido a autoria, o que logo foi negado por seus líderes. Osama bin Laden, o terrorista considerado inimigo número um dos EUA, que sempre esteve no topo do quadro de apostas, declarou na quarta-feira (12/09) não ter nada a ver com o episódio. Já seu auto-intitulado porta-voz, Omar Bakri, que reside na Inglaterra, afirmara no próprio dia 11, que somente Bin Laden e seu grupo teriam recursos e fé suficientes para perpetrar tais ações. “No mundo islâmico, hoje é um dia de festa”, diz Bakri, na edição do dia 12 do jornal italiano La Repubblica. No dia do atentado, em meio ao tiroteio de informações, contra-informações, declarações e desmentidos, um interlocutor anônimo do grupo extremista japonês Exército Vermelho reivindicava a autoria dos atentados “para vingar os mortos de Hiroshima e Nagasaki”. A notícia, veiculada pela France Press e reproduzido pelo portal brasileiro Terra, parece não ter sido levada a sério. Outra hipótese apontava para milícias ultradireitistas americanas. (LOBO, 2001, p. 08-09) Ao apresentar as figuras Frente para Libertação da Palestina, Osama bin Laden, Exército Vermelho e milícias ultradireitistas americanas o texto traz a público possíveis indicações das mentes que poderiam ter planejado os ataques. As duas primeiras figurativizações remetem ao mundo islâmico. As ancoragens territoriais Hiroshima e Nagasaki trazem ao presente o ataque nuclear sofrido pelo Japão em 1945. Entre as hipóteses, alertava-se também que o ato poderia ter partido de facção política endêmica aos Estados Unidos, mostrando que o fantasma de Timothy McVeigh ainda assombrava o imaginário estadunidense. De todas as sentenças, a de Omar Bakri seria pega pelo braço da verdade. Pode causar espanto a recusa inicial de Osama bin Laden e da rede Al Qaeda sobre a autoria das operações de 11 de setembro e 2001, uma vez que os Estados Unidos sempre foram o desafeto preferido do terrorismo islâmico. Mas trata-se de uma técnica comum entre os seus. A rede Al Qaeda sempre negava seus atentados ou, no mínimo, demorava em fazê-lo. A exceção foi nos atentados de Madri, na Espanha, em 11 de março de 2004. O ato foi assumido rapidamente porque o então primeiro-ministro José Maria Aznar vendeu à imprensa a declaração que as ações teriam sido realizadas pelo grupo ETA 78 . 78 A agência EFE conhecida por suas posições independentes embarcou no imbróglio. El País, El Mundo e a TVE, maior grupo de rádio e TV do país seguiram os mesmos passos. Tempos depois, El País dedicou uma página à justificação do ato falho, transferindo a culpa para Aznar, acusando o ex-primeiro-ministro de mentiroso pelas informações caluniosas fornecidas. Assim, para que seus 139 A comoção pelo desespero e mortes de pessoas na operação terrorista de 2001 foi um sentimento compartilhado por muitos. Nada parecia justificar tamanha atrocidade, condenável sob todos os aspectos. Contudo, o texto mostra que houve quem destoasse à canção: islâmicos que sofrem em seus territórios com a política externa dos Estados Unidos e seus aliados viram no 11 de setembro de 2001 um ato de desagravo, uma benção de Alá. (tema: causas dos atentados de 11 de setembro) Do outro lado, quem sentia a chaga terrorista lhe corroer a pele, entoava a cantilena da vingança. Palestinos, efusivamente, diante das câmeras, saúdam o golpe sofrido pelo “irmão mais forte” de seus opressores israelenses. Ódio e desespero transformaram-se em júbilo diante da morte de milhares de inocentes. Como, aliás, se viu – na “trincheira oposta” – durante a Guerra do Golfo. No dia seguinte aos atentados, o prefeito Rudolph Giuliani afirma que agressões a pessoas de origem árabe e asiática têm ocorrido em Nova York. Giuliani pede aos nova-iorquinos para que não ajam como os “loucos” que os atacaram. Em um artigo intitulado Simply Kill These Bastards (Simplesmente Mate Esses Bastardos), veiculado no site do jornal New York Post, um certo Steve Dunleavy defende que as cidades ou países que hospedam esses “vermes” sejam bombardeados“ até virarem quadra de basquete”. (LOBO, 2001, p. 10) Com a sensibilidade à flor da pele, muitos viram no Islamismo um mal a ser combatido, sem atentarem que não se trata de uma massa homogênea, a profissão de fé do terrorismo não é celebrada por todo mundo muçulmano. CartaCapital falha ao não explicar esse ponto importante na reportagem, e também não a contrapõe com a visão de uma autoridade islâmica moderada, criando assim um reducionismo a respeito do Islamismo. A agressão não ficara apenas em palavras como se evidencia no discurso de então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. Os julgamentos em relação ao estrangeiro, ao “outro” fora consumado em violência física. objetivos não fossem relegados ao esquecimento (queriam que a Espanha retirasse as tropas enviadas ao Iraque), o grupo assumiu publicamente suas as ações terroristas realizadas na cidade de Madri. 140 Quando expõe o discurso eufórico (para os terroristas, disfórico para os demais) de Omar Bakri afirmando que “No mundo islâmico, hoje é um dia de festa”, caberia o dever de detalhar o quão abrangente é este mundo. O sema disfórico /vermes/ usado por Steve Dunleavy em seu artigo é um indicativo de desinformação e caracterização preconceituosa do “outro”. Curiosamente o desejo de Dunleavy é verbalizado na figurativização “quadras de basquete”, um ícone do esporte estadunidense. Esconde-se por trás da declaração o desejo de domínio e imposição de uma cultura sobre a outra. (tema: reação eufórica de facções islâmicas, ódio ao mundo islâmico) O terceiro texto a ser analisado em CartaCapital, “O caminho para a intolerância” (p. 41), é assinado pelo Coordenador da Escola Superior de Guerra e Diretor do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos do Rio de Janeiro, Darc Costa. ... uma sociedade ameaçada é uma sociedade que tende a se isolar, um processo indissociável da valorização do que é seu, mas que raramente escapa de resvalar na desvalorização sistemática do que é dos outros. Uma sociedade que procura marcar forte a alteridade. Esses novos atributos, postos em hegemonia, podem criar razões de insegurança bem maiores que as atuais. Podem construir um mundo de dúvidas e de riscos. Aí está o maior dos crimes que foi perpetrado nos ataques terroristas a Washington e Nova York: levar a que se reconstrua no mundo o espaço da completa intolerância. Não haverá mais espaço para posturas antiamericanas sem que isso seja visto como terrorismo. O maniqueísmo voltou com todo o seu trágico séqüito. (COSTA, 2001, p. 41) No texto, Darc Costa alerta para o uso político que os estadunidenses e seus simpatizantes poderiam fazer nas medidas antiterrorismo: confundir qualquer manifestação contrária aos Estados Unidos ou ao sistema capitalista como indicativos de simpatia ao terror. O cenário que emergia após os atentados fornecia a oportunidade de reforçar os valores da cultura estadunidense ao mundo, mesmo que as origens dos ataques estejam veiculadas a esta imposição cultural e econômica dos Estados Unidos sobre outros países, sobretudo, os do Oriente Médio. (tema: imposição cultural) 141 Assim, os valores representados pelo sema /antiamericanismo/ coadunam com os de /terrorismo/. O /antiamericanismo/ seria negação dos valores defendidos pelos Estados Unidos – /não-americanismo/. Desta forma, a ideologia terrorista apresenta-se contrária a axiologia estadunidense como mostra a seguinte passagem: Americanismo → Não-Americanismo → Antiamericanismo. Sendo o /terrorismo/ o sentido resultante da afirmação dos valores contra os Estados Unidos. Em suas palavras, Darc Costa atenta que após os atentados terroristas sofridos pelos Estados Unidos poderia se erguer uma atitude social contrária às posturas antiamericanas. Os valores culturais abrigados pelo país poderiam ser, mais uma vez, impostos a outras culturas. A intolerância aos valores do “outro” – tudo o que é contrário aos ideais estadunidenses – apresentar-se-ia como um dos sentimentos do governo dos Estados Unidos nas políticas de retaliação, como ilustrou a sentença do presidente George W. Bush: “Cada país, em cada região, precisa decidir: ou está conosco, ou com os terroristas”. Seria novamente desfraldada a bandeira do pensamento único em defesa de um modo de vida. (tema: intolerância) À guisa de conclusão, Darc Costa destila sentimentos eufóricos ao Brasil. Para o autor, o valor disjuntivo que impulsiona o terrorismo – a intolerância – não se perpetua no Brasil, alijando o país de possíveis ataques dessa natureza. Historicamente filho da intolerância, o terror não encontra solo fértil no Brasil. Mantendo nossa tolerância, nosso sincretismo, nossa miscigenação – porque ser tolerante não é ceder na essência da identidade –, haveremos de permanecer fora das rotas do terror. (COSTA, 2001, p. 41) Ser tolerante e saber distinguir a diversidade cultural não significa perder a identidade e sim valorizar a riqueza que o contato, a troca de experiências proporciona ao enriquecimento das civilizações. (tema: tolerância) “Não entendemos o mundo árabe” (p. 43), traz entrevista com o Michael T. Klare, Diretor do Programa de Estudos de Paz e Segurança Mundial. 142 O título da entrevista demonstra o percurso das idéias de Michael T. Klare: a dificuldade de compreensão de outra cultura por parte da sociedade estadunidense. O americano comum acredita que o que nós fazemos é para o bem do mundo inteiro, não entende que existem outras pessoas que interpretam as nossas ações como hostis. (...) Se for confirmado que esses atentados têm origens islâmicas ou árabes, eu temo que realmente possa haver uma reação violenta contra os árabes americanos. Aqui se diz que esses acontecimentos são como Pearl Harbor, e depois desse ataque o governo americano prendeu americanos de descendência japonesa em campos de isolamento. É um precedente grave. (KLARE, 2001, p. 43) O discurso de Michael T. Klare revela valores disfóricos em relação a outras culturas presentes no imaginário de parcela da sociedade estadunidense, uma vez que existe a dificuldade de reconhecer o “outro”, procurando desvalorizá-lo. Quando declara que “O americano comum acredita que o que nós fazemos é para o bem do mundo inteiro”, Klare indica o quanto os valores do Destino Manifesto 79 ainda povoam a cultura dos Estados Unidos. (temas: exaltação dos valores estadunidenses e intolerância cultural) Na reportagem “Os culpados de sempre” (p. 54-55) de Ana Paula Sousa, as revistas Veja e CartaCapital se encontram ao trazerem para os leitores a contundente relação entre o cinema e a cultura árabe 80 na produção dos sentidos e depreciação dos valores. 79 O Destino Manifesto é a uma sentença que expressa a crença de que o povo dos Estados Unidos é eleito por Deus para comandar o mundo, e por isso o expansionismo estadunidense é apenas o cumprimento da vontade Divina. Os defensores do Destino Manifesto acreditaram que expansão não só era boa, mas que era óbvia ("manifesto") e inevitável ("destino"). Em 1997, Madeleine Albright, Secretária de Estado estadunidense durante o governo de Bill Clinton, procurando justificar o lançamento de mísseis contra o Iraque, bradou: “Se nós temos que usar a força, é porque somos a América. Somos a nação indispensável. Nós temos estatura. Nós enxergamos mais longe em direção ao futuro”. 80 Um grupo americano de defesa dos direitos dos muçulmanos protestou em janeiro de 2007 contra um episódio da série de TV “24 horas”, afirmando que a história promove estereótipos preconceituosos que prejudicam o Islamismo. O episódio questionado pelo Conselho de Relações Islâmico-americano (CAIR, sigla em inglês), exibido no domingo passado, nos Estados Unidos, conta como terroristas islâmicos explodem uma bomba nuclear perto de Los Angeles. “O impacto emocional de cenas de ficção, que incluem mortes em grande escala e destruições com uma grande amplitude nos Estados Unidos, podem ter efeitos negativos sobre a atitude frente às liberdades civis e religiosas, assim como as relações entre as religiões", afirmou o Conselho em um comunicado. "A relação estabelecida repetidas vezes pelo programa de atos de terrorismo com 143 O filme Nova York Sitiada, dirigido por Edward Zwick mais uma vez é citado como exemplo. O enredo do filme narra a investigação de um agente do FBI sobre uma série de atentados terroristas causados pela prisão, nos Estados Unidos, de um líder muçulmano. O fato serve de pretexto para a militarização da cidade de Nova York contra o inimigo de origem árabe e islâmica. Quando do lançamento do filme (1997) a comunidade árabe protestou acusando a obra de estereotipar sua cultura e associar de maneira irresponsável Islamismo e terrorismo como valores intrínsecos. (tema: depreciação dos valores islâmicos) O texto traz em suas linhas referências ao professor da Universidade de Los Angeles, Douglas Kellner que, em parceria com Michael Ryan, analisou o fenômeno no livro Camera Politics: The Politics and Ideology of Contemporany Hollywood Film que ilustram tal preconceito. No levantamento realizado por Douglas Kellner (...) em pelo menos 21 filmes produzidos pelos Estados Unidos entre 1984 e 1986 os árabes receberam praticamente o mesmo tratamento que o cinema nazista dispensou aos judeus. Segundo ele, em filmes como Protocolo, Jóia do Nilo e Setembro Vermelho, os árabes são apresentados como verdadeiros ícones do mal. “Eles são constantemente demonizados nos filmes de Hollywood, ocupando o lugar dos comunistas como os inimigos da sociedade americana...” De acordo com Kellner, os árabes são mostrados sempre de modo estereotipado: como milionários grosseiros ou pobretões ignorantes. “Essa demonização é deplorável e perigosa, criando inimigos internos e externos que podem provocar reações como o destrutivo ato terrorista que acabamos de vivenciar”, avalia o autor. (SOUZA, 2001, p. 54) O texto mostra de maneira clara os valores disjuntivos destinados aos “outros”. As figurativizações construídas pelos semas /árabes/, /milionários grosseiros/ e /pobretões ignorantes/, /verdadeiros ícones do mal/ se constituem em uma rede isotópica depreciativa à cultura do outro, forjando inimigos tanto externa como internamente. A produção de sentidos negativos aos árabes é reforçada ainda pela associação de valores entre a prática nazista de propaganda o Islã acabará apenas no agravamento dos preconceitos antimuçulmanos em nossa sociedade", contesta o Conselho. Fonte: http://televisao.uol.com.br/ultnot/2007/01/19/ult32u15954.jhtm 144 durante a Segunda Guerra Mundial, época em que os judeus foram perseguidos, presos e mortos pelo governo alemão. (tema: depreciação dos valores islâmicos). Em geral, os filmes antiárabes dos últimos anos combinam ideologias racistas e chauvinistas que apresentam os árabes como a encarnação do mal, e os americanos, como a personificação do bem. Essa visão repete o que Edward Said (1978) descrevia como “orientalismo”: estabelece as virtudes do Ocidente por meio da delineação das diferenças entre o Ocidente “civilizado” e o Oriente “selvagem”, que é pintado como irracional, bárbaro, subdesenvolvido e inferior ao Ocidente racional, refinado e humano (KELLNER, 2001, p.119-120). Essa liturgia de sentidos disjuntivos prepara o terreno para inimigos préproduzidos, grupos responsáveis pelos problemas que ameaçam os estadunidenses. Trata-se de uma estratégia, pois, para Wolton (2004, p. 350) “... a ideologia nunca é tão forte como quando é banal e cotidiana”. Toda vez que o temor foi destaque contra os Estados Unidos, o cinema sempre optou por fatores exteriores, aos “diferentes”, os “outros”. Comunistas, árabes, alienígenas ou a própria natureza já protagonizam a encarnação do “mal” nas telas do cinema. 4.4.3. Superinteressante O distanciamento dos atentados da data de publicação de um veículo midiático tem duas faces. A revista, sendo mensal, tem um tempo maior de apuração dos fatos, além de poder relatar novos direcionamentos do ato. Por outro lado, corre-se o risco de saturação de notícias, como a revista Superinteressante deixa claro em sua carta ao leitor. Como lidar, em uma revista mensal, com uma notícia desse porte? A imprensa online, a diária e a semanal esmiuçariam o fato à exaustão. A ponto de as imagens mais espetaculares jamais registradas por uma lente – o mergulho suicida do Boeing e subseqüente colapso das Torres Gêmeas do World Trade Center – virarem, em questão de horas, um lugar-comum insuportável. (SILVA, 2001, p.09) Despindo-se dessa saia-justa, a revista opta por investigar o funcionamento da mente dos terroristas e combater a idéia de que todos eles são doentes mentais, as origens remotas do terrorismo e embaralha as cartas entre o “bem” e 145 o “mal”, aproximando o “nós” dos “outros”. Na tentativa de que não se confunda toda uma manifestação cultural como fanáticos pelo terror, Superinteressante também fornece aos leitores seções que explicam as faces históricas do terrorismo e do mundo islâmico. Abaixo seguem a lista de reportagens analisadas 81 . 1. 2. 3. 4. 5. O Islã é maior que o terror – Jomar Morais Terror na cabeça – Rodrigo Cavalcante De Judas a Bin Laden – Denis Russo Burgierman A globalização do medo – Leandro Sarmatz Existe terrorismo bom? - Denis Russo Burgierman A seção “Supernovas – Conhecimento e curiosidade à velocidade da luz”, tem como característica ofertar aos leitores às novidades sobre o mundo. Nesta edição, a cartografia do mundo islâmico é pintada com cores vivas. Mesmo quando a revista apresenta assuntos desconectados do 11 de setembro de 2001, são impressas frases reflexivas sobre guerras entre os textos. “Não espere pelo Juízo Final. Ele acontece todos os dias”. Albert Camus (p.21) “Guerra não é aventura. É uma doença”. Antonie de Sanit-Exupéry (p.23) “Nunca houve uma guerra boa ou uma paz ruim”. Benjamin Franklin (p.24) Em comum, as sentenças trazem semas disfóricos em relação às ações bélicas. Assim, Superinteressante assume postura contrária à guerra optando pelo tom conciliador e reflexivo em suas páginas mostrando os valores disfóricos entre /paz/ e /guerra/. (tema: não alinhamento à guerra) Com chamada de título “Separando o joio do quibe”, “O Islã é maior que o terror” (p.18), de autoria de Jomar Morais, é o texto que abre a seção “Supernovas”. 81 Superinteressante aponta dois títulos para suas reportagens: um no sumário e outro para o mesmo artigo no corpo da edição. Optamos por enfocar o título presente nas páginas de revista. 146 Uma semana depois de os Estados Unidos terem sofrido o maior atentado terrorista da história, o presidente George W. Bush visitou o Centro Islâmico de Washington e, pés descalços, exortou os americanos a não confundirem os terroristas com as pessoas pacíficas que professam o Islã, a religião que mais cresce no planeta. Mesquitas têm sido apedrejadas e muçulmanos, agredidos no mundo todo, no rastro de uma confusão antiga que atingiu seu ápice sob a comoção provocada pelo terror: a completa incapacidade dos ocidentais de entender as peculiaridades e as dessemelhanças culturais que compõem o fascinante mundo islâmico. Visto pelos olhos de um americano – ou de um brasileiro –, um muçulmano de Dubai, árabe, e outro de Teerã, persa, pensam e agem de forma idêntica. Errado. Os 1,3 bilhão de seguidores do profeta Maomé (1,5 milhão no Brasil) não são um bloco homogêneo. Como os cristãos, dividem-se em correntes e seitas que interpretam diferentemente os textos do Corão, o livro sagrado islâmico. Os muçulmanos sequer se limitam aos países de etnia árabe, como muitos imaginam. A maior nação islâmica do mundo – a Indonésia – não é árabe. Entre os 56 países em que o Islamismo é a religião predominante, há até dois vizinhos do Brasil – a Guiana e o Suriname. Na lista, estão desde países tolerantes como Marrocos e Tunísia, que aderiram à economia global e mantêm acordos com a União Européia, até economias agrárias, como Moçambique e Afeganistão. No pequeno Dubai, 200 empresas de alta tecnologia – inclusive a IBM e Microsoft – dão o tom da abertura ao Ocidente. Já a Malásia ostenta, no horizonte de sua capital, um par de torres bem mais altas que as que desabaram em Nova York. A face mais conservadora do Islã se apresenta nos Estados teocráticos, onde as normas religiosas constituem ou norteiam o sistema legal e governos são dominados pelo clero. Mas países assim são absoluta exceção. Um deles é o Irã, transformado em república Islâmica em 1979 (e que, nos últimos dois anos, está adotando posturas mais flexíveis). Outro é o Afeganistão, onde há cinco anos a milícia Taleban – que George W. Bush achava que era uma banda de rock – impôs sua interpretação fundamentalista do Corão. Em ambos os países há milhões de pessoas que condenam a ditadura teocrática e são contrárias ao terrorismo. Mesmo assim, à revelia da maioria da população, os governos têm apoiado militar e financeiramente organizações violentas como o Hezbollah (no caso do Irã) e o Al Qaeda de Bin Laden (no caso do Afeganistão). “A maior parte dos movimentos políticos islâmicos não utiliza a força”, diz a professora de relações internacionais Norma Breda dos Santos, da Universidade de Brasília. O Islamismo não professa o ódio. Aliás, os árabes, assim como os judeus, cumprimentam-se desejando paz uns aos outros (salam em árabe, shalom em hebraico). A opção pelo terrorismo, minoritária nessas nações, é um fenômeno recente que nada tem a ver com a essência da crença em Alá. Foi graças à força do Islamismo que a humanidade viu surgir, há 13 séculos, o maior império do mundo – o árabe. Durante sua expansão militar, esse sofisticado povo levou para a Europa, até então mergulhada nas trevas da Idade Média, inovações como a medicina, a história, as universidades, a ciência e a justiça. Nós, ocidentais, devemos tudo isso ao Islã. (MORAIS, 2001, p. 18) 147 O texto identifica elementos conjuntivos entre valores islâmicos e ocidentais e sinaliza que é possível a coexistência pacífica entre ambos. Do outro lado, preconceito e desinformação são semas disfóricos que se unem em uma axiologia negativa sobre o assunto em questão. (tema: compreensão do mundo islâmico) O enunciado é repleto de ancoragens territoriais. Este recurso semiótico aplicado ao texto ilustra a amplitude alcançada pelo Islamismo contornando a estreita idéia de que o mesmo se finca apenas em solos do Oriente Médio. Os argumentos elencados por Jomar Morais demonstram a fragilidade do conceito de “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington. Mostram as várias faces do Islamismo, ilustrando que o mesmo não pode ser reduzido a fanáticos terroristas, além de relembrar a contribuição histórica do Islã para o Ocidente. Afinal, o mundo “ocidental” recebeu a herança greco-romana e a difusão dos sistemas de irrigação existentes no norte da África através dos árabes; a arquitetura românica européia tem raízes árabes, sendo a basílica de São Marcos, em Veneza, possuidora do traço bizantino. Assim, ao analisarmos o nível profundo do enunciado, temos a relação de contrários expostas em /Tolerância/ vs /Intolerância/. A disjunção /Intolerância/ se enfraquece com apresentação das ancoragens territoriais que ampliam a geografia islâmica e figurativizações que colocam muçulmanos, judeus e cristãos em um tom conjuntivo. Constrói-se o sentido como é ilustrado no quadrado semiótico abaixo. Tolerância Não-Intolerância Intolerância Não-Tolerância 148 Ao edificar os argumentos que esclarecem que não são todos os islâmicos fanáticos e expandindo a ancoragem territorial para além das fronteiras do Oriente Médio, tem-se a seguinte passagem na produção de sentidos: Intolerância → NãoTolerância → Tolerância. Afloram-se no texto valores conjuntivos com a cultura do “outro”, quebrando as engrenagens que rodam o reducionismo ao colocar todo o Islamismo sobre um mesmo manto de interpretação, principalmente negativa. (tema: tolerância à cultura islâmica) Além de jogar luz à discussão, o enunciado usa de ironia para criticar o despreparo de George W. Bush ao comentar que o presidente estadunidense pensava que a milícia Talebã era um grupo de rock. Essa sentença irônica reforça as dúvidas do êxito e uma incursão chefiada pelo presidente dos Estados Unidos, reforçando a tese de não alinhamento à guerra proposta pela revista. O texto também procura desfraldar a bandeira da paz. Quando descreve a visita de George W. Bush a mesquitas e relata o depoimento do presidente que consiste na separação de facções terroristas do Islamismo em geral. Contudo, as atitudes posteriores de George W. Bush ofuscariam seu discurso apaziguador. O sangue de civis iria irrigar as invasões estadunidenses no Afeganistão e posteriormente no Iraque. Da atitude politicamente correta o presidente George W. Bush partiria para o famoso e bélico aforisma: “Olho por olho, dente por dente”. (tema: não alinhamento à guerra) O segundo texto analisado “Terror na cabeça” (p. 40-44), assinado por Rodrigo Cavalcante, ilustra o raciocínio terrorista à luz da ciência e quebra estereótipos construídos pelo senso comum em relação ao “outro”. A reportagem argumenta que é possível a existência de psicopatas no nicho terrorista, mas é um engodo achar que todos os terroristas são psicopatas ou loucos. (tema: compreensão do raciocínio terrorista) “A idéia de que terroristas são mentalmente doentes não correspondem à realidade”, diz Philip Schorodt, especialista em terrorismo da Universidade de Kansas, Estados Unidos. “Eles não são pirados que ouvem vozes do além. São pessoas que acreditam estar agindo certo e farão de tudo para atingir seus objetivos”. Quando perguntado sobre por que alguém daria a própria vida por uma causa, qualquer que seja ela, Schorodt diz: “Procure a lista de soldados 149 americanos que ganharam medalhas de honra na Guerra do Vietnã e você vai encontrar dezenas de homens que morreram em ações suicidas pela mesma lealdade ao grupo que moveu as pessoas que cometeram o atentado”. Apesar de reconhecer que há uma clara diferença entre uma guerra e um ato terrorista – o ato terrorista é inesperado e, por isso, mais covarde, atingindo bem mais inocentes –, ele diz que a mente dessas pessoas funciona como a de um soldado. “Na cabeça deles, a guerra existe, eles estão do lado do bem e não conseguem enxergar civis inocentes. Para eles só há inimigos”. O historiador de assuntos religiosos Philip Jenkins, da Universidade da Pensilvânia, também nos Estados Unidos, tem uma visão parecida. Ele costuma perguntar para os seus alunos o que acham dos pilotos americanos que derrubaram as bombas atômicas que mataram mais de 120.000 civis – 20 vezes mais que as cerca de 6.000 vítimas no ataque a Nova York e Washington – em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. “Como havia uma guerra e eles representavam uma nação inteira, ninguém poderia chamá-los de extremistas”, diz Jenkis. “Terroristas também acham que estão numa guerra e representam uma causa, mesmo que essa batalha não seja entre nações”. Assim como os kamikazes japoneses e os soldados americanos que sabiam que não voltariam de suas missões no fronte ocidental, os seqüestradores que atacaram Nova York também acreditavam que estavam destruindo um inimigo em nome de uma causa justa. “Dentro da sua lógica, não havia inocentes nas torres do World Trade Center”, diz Jenkins. (CAVALCANTE, 2001, p. 41-42) Entoando a melodia contraria à posição bélica e revanchista dos Estados Unidos, o texto procura construir o efeito de eficiência/credibilidade utilizando-se de argumentos de especialistas para reforçar sua posição. A ancoragem territorial iconizada pelo país dos especialistas reforça essa produção de sentidos: ambos são dos Estados Unidos. Tem-se nessa constatação, a posição defendida pela revista. Como os atentados sangraram os Estados Unidos, posições favoráveis à vingança e justificativas para tal ato (como tantas que apareceram nesse período) seriam até compreensíveis vindo de cidadãos estadunidenses. As figurativizações contidas em kamikazes japoneses e soldados americanos ilustram que a cultura da guerra é colada a outros povos. A guerra dos terroristas é constante e, não raro, é alimentada por atos belicosos praticados no passado contra suas pátrias. A reportagem sobrepõe às opiniões dos especialistas em um exemplo prático feito com Mohamed Atta, que pilotou o Boeing 767 que colidiu com a torre norte do World Trade Center. O depoimento de Chaille Wendt, ex-colega de estudo do terrorista, realça a tese. 150 “Ele era gentil, calmo e extremamente educado. (...) Seu trabalho de conclusão de curso – um projeto sobre o planejamento da cidade síria de Aleppo – mereceu elogios dos professores”. (CAVALCANTE, 2001, p. 41) Desta feita, a reportagem distingue os sentimentos que movem o psicopata e o terrorista, destacando a opinião do psiquiatra Henrique Del Nero que declara: “Só pelo olhar dele, desconfio que Osama bin Laden seja o único psicopata da ação de Nova York” (p.42). É fato real que os líderes terroristas jamais se imolam em missões “santas”, de cunho libertador e divino. Sempre recrutam pessoas para tal ação que, além da promessa do paraíso, sua família recebe dinheiro pela tarefa realizada. O uso da religião como contexto ou pretexto para práticas de sacrifício é algo estável entre fundamentalistas, sempre que se discute eventos dessa natureza. As benesses pós-morte prometidas pelo ritual de sangue é um canto que seduz muitos: transformar-se em mártir seria a prova de fé definitiva e o ponto áureo de uma vida de devoção. Nesse ponto, brotam os problemas das interpretações das escrituras sagradas, muitas vezes usadas como normas políticas, seu conteúdo se ajusta conforme a necessidade e visão de quem o lê. Assessor de assuntos bíblicos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o padre Johan Konings (...) diz que a suposta dor física no Cristianismo não passa de uma má interpretação dos textos da Bíblia. “Quando Jesus diz: ”Se um olho lhe faz pecar, arranca-o”, as pessoas não podem interpretar isso como um incentivo à automutilação, mas como um conselho de que devemos cortar o mal pela raiz”. (...) Já no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, há uma passagem que diz que aqueles que morrem em defesa de Alá irão para o mais alto nível do paraíso, o sétimo, ao lado dos profetas, com direito a mulheres delicadas e cálices cheios. “Essas palavras são uma forma de explicar aos homens que o paraíso é um lugar maravilhoso”, diz o xeque Jihad Hassan Hammadeh, líder da religião islâmica em São Paulo. Mas ele lembra que não há nenhuma promessa de paraíso para aqueles que usam a violência. “O texto é claro: quem mata um homem inocente age como se estivesse matando toda a humanidade”, diz o xeque. “O Alcorão somente permite o uso da violência como legítima defesa, e ainda assim, na mesma proporção do agressor, nunca incitando mais violência”. Por essa visão, Mohamed Atta e os outros terroristas que participaram do atentado de 11 de setembro podem esquecer o paraíso islâmico pelo qual provavelmente decidiram morrer. (CAVALCANTE, 2001, p. 43) 151 Recorrendo às figuras de linguagem (Bíblia, Alcorão, padre, Jesus, Alá, xeque...) e sentenças religiosas (”Se um olho lhe faz pecar, arranca-o”, “aqueles que morrem em defesa de Alá irão para o mais alto nível do paraíso, o sétimo, ao lado dos profetas, com direito a mulheres delicadas e cálices cheios”...) o texto resgata passagens que demonstram o risco que as más interpretações das escrituras sagradas nutrem nos ideais do fanatismo tanto cristão como islâmico, jogando assim com valores semelhantes como os “nossos” – Cristianismo – e os “deles” – Islamismo. (tema: fundamentalismo religioso) A reportagem em seu arremate aponta para o perigo do anseio belicista que moldava substancial parcela da sociedade estadunidense e que tinha na mídia seu forte expoente. Até mesmo a revista Time, geralmente tão equilibrada em suas tomadas de posição, escreveu um editorial dizendo que não era hora de os americanos se consolarem, era hora de eles aproveitarem o ódio para responderem com fúria aos ataques. Alguns especialistas vêem um risco nisso. “O discurso americano está cada vez mais parecido com o discurso dos fundamentalistas islâmicos”, diz Roberto Ziemer, especialista em psico-história – uma maneira de estudar história à luz da psicologia. Ziemer diz que, no fundo, o fundamentalismo – e seu filho, o terrorismo – é apenas uma forma simplista de os homens personificarem num inimigo o mal que existe em todos. (CAVALCANTE, 2001, p. 44) Os semas /ódio/ e /fúria/ expõem o desejo de vingança defendido pela mídia dos Estados Unidos contra o terror. A emoção se sobrepunha à razão. Razão em saber exatamente a quem se deveria atacar em uma retaliação. A passagem do enunciado alerta para o próprio fundamentalismo que se colava à parcela substancial dos estadunidenses. Nessa passagem, procura-se mostrar que “nós” somos tão fundamentalistas como os “outros”. O conceito de “mal” é um valor disfórico presente em todas as sociedades – embora se possa discutir as concepções que cada um tem sobre esse sentimento – mas para a grande maioria dos estadunidenses, em especial seus governantes, ele sempre está encarnado no “outro”, principalmente estrangeiros e pessoas que não estejam perfeitamente conectadas à cultura defendida pelos Estados Unidos. (tema: o “outro” como culpado) 152 Entre as abordagens realizadas pela revista Superinteressante a contextualização sobre o terrorismo como processo político e histórico ganha relevo em duas reportagens: “De Judas a Bin Laden” (p.45-46) e “Existe terrorismo bom?” (p.49-50), ambas assinadas por Denis Russo Burgierman. Os textos elucidam que os ingredientes para conflitos são sempre temperados por um inimigo externo ou interno; alguém que represente características disjuntivas a determinado segmento social: o “outro”. “De Judas a Bin Laden” procura analisar as raízes do terrorismo, situando-o no tempo e no espaço. As palavras iniciais parecem descrever a atualidade do Oriente Médio. A Palestina está ocupada por uma nação poderosa. Em meio à população oprimida surge um grupo de terroristas que começa a empreender atentados contra os invasores, exigindo que eles deixem a cidade sagrada de Jerusalém. (BURGIERMAN, 2001, p. 45) As ancoragens territoriais Palestina e Jerusalém induzem o leitor à região asiática castigada por conflitos entre dois povos: israelenses e palestinos. Figurativizações como população oprimida, grupo de terroristas e invasores... criam o efeito de contemporâneo no enunciatário. Contudo, trata-se de um episódio antigo como é esclarecido na seqüência. Não, não estamos falando do terrorismo muçulmano nos territórios ocupados por Israel. Essa história é muito mais antiga que o Islamismo – data do ano 6, quando Jesus ainda era menino. Os judeus não são invasores, mas os oprimidos. É deles que parte o terrorismo. (...) O terrorismo é tão antigo quanto o homem – desde sempre há pessoas usando o medo, a ameaça, a intimidação para alcançar seus objetivos. Mas coube a Sicarii, um grupo radical de militantes judeus, a discutível honra de ser o primeiro grupo terrorista organizado da história. Para protestar contra a ocupação do Império Romano – uma espécie de Estados Unidos da época –, os Sicarii matavam romanos e judeus colaboracionistas nas ruas, de forma a criar pânico. Os assassinatos eram cometidos a punhaladas (daí o nome Sicarii, ou “homens do punhal”, em grego). O sobrenome do apóstolo Judas, Iscariote, é interpretado por alguns estudiosos como uma corruptela de Sicarii e um indício de que Judas pertencia ao grupo. (...) A palavra “terrorismo” só veio surgir bem depois, para designar o período mais sanguinolento da Revolução Francesa – entre 1793 e 1794 sob o comando de 153 Robespierre (...) cabeças rolaram das guilhotinas, sem julgamento público ou advogado de defesa. “Ao contrário do terrorismo praticado pelos Sicarii e pelos Nizarins, o terror revolucionário francês se exercia de cima para baixo”, diz Gayle Olson-Raymer especialista em história do terrorismo da Universidade Humboldt, na Califórnia. (BURGIERMAN, 2001, p. 45) A estratégia de enunciação utilizada no intróito da matéria sublinha o quão antiga é a manifestação terrorista forjando um cenário aparentemente moderno. Esclarece que a paisagem agressiva tão comumente associada ao Oriente Médio data de tempos vetustos, mostrando a antigüidade do terrorismo como ação política e, ao se associar os semas /terrorismo/ com /judeus/, constrói-se o sentido de que não são apenas os islâmicos que fazem uso dessa coerção contra povos. O texto reforça que o terrorismo é um processo histórico e, mesmo o sema “terrorismo” tendo sido gestado há pouco mais de dois séculos, durante um marco da História Contemporânea (Revolução Francesa), sua manifestação política remonta à Antigüidade. As estratégias de atuação também são distintas e, ao mencionar que “o terror revolucionário francês se exercia de cima para baixo”, deixa claro que se tratava do “Terrorismo de Estado” em que se produzia pânico visando à intimidação da sociedade civil. (tema: terrorismo como processo histórico) A matéria fornece como complemento uma síntese indicando os principais atos terroristas dos últimos cem anos; uma vez que, mesmo antigo, foi no decorrer no século XX que o terrorismo se arvorou no cenário político internacional. 154 Tabela 3. Século do Terror: os principais atentados dos últimos 100 anos 1901: O anarquista Leon Czolgosz mata a tiros o popular presidente americano William McKinley. A onda de atentados anarquistas que começara na Rússia e chega à América. 1914: Francisco Ferdinando e sua esposa Sofia são assassinados pelo terrorista sérvio Gavrilo Princip. O crime deu início à Primeira Guerra Mundial. 1930: Ocorre o primeiro seqüestro de avião, no Peru. A partir dos anos 50, à medida que voar ficou mais comum, essa nova modalidade de terrorismo espalho pânico pelo mundo. 1946: Extremistas judeus detonam duas minas no Hotel King David, em Jerusalém. O atentado matou dezenas de civis e apressou a retirada das tropas britânicas e a criação do Estado de Israel. 1972: O grupo palestino Setembro Negro invade a vila olímpica de Munique, seqüestra a delegação israelense e mata nove atletas. 1995: O extremista americano Timothy McVeigh explode um prédio do governo em Oklahoma, mata 168 e assusta os americanos, ao mostrar que o terrorismo pode vir de dentro. 2001: O pior atentado da história, dois dos maiores prédios do mundo são derrubados, o centro militar americano é maculado e cerca de 6.000 pessoas morrem 82 . Fonte: Revista Superintessante (outubro/2001), p. 46. (adaptado) O início do texto seguinte, “Existe terrorismo bom?” (p.49-50), segue a mesma metodologia de seu antecessor ao jogar com a produção de sentidos do enunciatário. Rolihlahla criou uma milícia em seu país, apesar da oposição dos companheiros, que condenavam a violência. Ele vestiu-se com trajes militares, escondeu-se com seus homens na mata e distribuiu armas. Seu grupo começou a explodir bombas, sabotar fábricas, atirar em guardas desprevenidos e espalhar o pavor entre a população civil. Rolihlahla incitava a violência contra membros da elite e muita gente acabou sendo assassinada na onda de atentados que se seguiu. Até que prenderam Rolihlahla. Sujeito horrível esse Rolihlahla, não é? Terrorista da pior espécie, não há dúvida. Por sorte, ele foi condenado à prisão perpétua. Aliás, talvez você já tenha ouvido falar dele. Ele é mais conhecido pelo nome inglês que adotou depois do batismo cristão: Nelson. Nelson Mandela. (BURGIERMAN, 2001, p. 49) Ou seja, com fina ironia, constrói-se o perfil de um terrorista que, por suas ações, é compreensível que tenha tido a prisão perpétua como sentença. Quando o quebra-cabeça é concluído e descobre-se que se trata de Nelson Mandela, a surpresa é quase que certa 83 . 82 À época dos atentados não se tinha um número preciso de mortos. Estipulavam-se entre 5.000 e 6.000 mortos. Posteriormente, chegou-se ao número de 2.973 vítimas fatais registradas. 83 Mais uma vez ressalta-se a importância do contexto para análise dos fatos. Nelson Mandela teve tal atuação no combate ao regime do apartheid que negava os direitos civis a maioria da população negra na África do Sul. Nelson Mandela fazia uso de práticas terroristas para combater o Terrorismo de Estado contra um segmento da sociedade sul-africana. 155 Uma questão feita como subtítulo da matéria endossa a produção dos sentidos na manifestação terrorista. Ao questionar “Violência contra civis é uma tática horrível. Mas será que no fundo, você não simpatiza com ela?” expressa que a dubiedade entre o bem e o mal depende do ponto de vista em que se analisa o processo político e que “nós”, em nosso inconsciente, até podemos compactuar com práticas que condenamos nos “outros”, desde que ajustadas as nossas intenções. Com tom instigante o percurso textual cria um emaranhado de sentidos; mostra-se que quatro “(ex-)terroristas” já foram abençoados com o Prêmio Nobel da Paz. Nelson Mandela, Menachem Begin, Yasser Arafat e Henry Kissinger em determinados momentos de suas vidas fizeram da prática terrorista (de Estado ou de guerrilhas) uma extensão de seus pensamentos. Sem arrependimentos garantem que foram forçados a fazer do terrorismo um instrumento de ação para uma “boa causa”. O enunciado põe à reflexão e à prova se a violência é a única via a ser trilhada contra o inimigo quando cita Mahatma Gandhi. Gandhi foi protagonista da independência indiana pregando a resistência pacífica aos colonizadores ingleses. O pacifista Mahatma Gandhi nunca foi agraciado com o Nobel da Paz. Euforia e disforia tornam-se sentimentos dotados de efeitos distintos de acordo com certos objetivos e valores culturais. (tema: ideologias terroristas) No texto “A globalização do medo” (p.47-48), Leandro Sarmatz toca as trombetas da história ao entoar o fim de uma era: “Em 11 de setembro, um mundo morreu e outro nasceu” (p.47) diz o autor, em tom eufórico, no subtítulo. Sarmatz credita aos ataques terroristas perpetrados contra os Estados Unidos o marco zero de uma nova ordem mundial que será marcada “pela paranóia” (p. 47). (tema: conseqüências dos atentados contra os Estados Unidos) O enunciado relata o manto do medo que repousava sobre o planeta pouco tempo após o 11 de setembro de 2001. Sarmatz aponta que os novos conflitos mundiais não serão mais apenas entre Estados-Nações, uma vez que os grupos terroristas ganharam papel de destaque nessa nova formatação militar. Assim, a munição a ser utilizada contra o terrorismo é composta pela cooperação entre 156 Estados, organizações sociais e religiosas, transformando-se em uma aliança global contra a ameaça do terror que assombra o mundo. (tema: caminhos alternativos no combate ao terrorismo) A decapitação de direitos civis em nome da segurança nacional e internacional gerava pavor nos cidadãos e organizações sociais além de fomentar o sentimento do preconceito em relação ao “outro”. “O grande perigo que nós corremos é o de constrangermos ainda mais pessoas que pareçam diferentes, ou seja, de pele mais escura”, afirma (Christoper) Kutz. O que seria apenas transportar a intolerância e o fanatismo dos grupos extremistas para as sociedades democráticas. (...) Membro do Conselho Diretivo da John Birch Society, um dos bastiões mais conservadores do espectro político americano, e editor da publicação The New American, órgão porta-voz dos republicanos, o jornalista Willian Norman Grigg procura adotar um discurso mais moderado em relação à perda de direitos civis em nome do combate ao terrorismo e à possibilidade de uma guerra. “Ao contrário de um endurecimento das liberdades individuais e de uma guerra, seria maravilhoso se a América se inspirasse nesta tragédia para se devotar mais uma vez aos valores não-intervencionistas”, afirma. Grigg diz ainda que uma aliança global antiterrorismo poderá servir como uma luva a países como Rússia e China, dispostos a aniquilar movimentos separatistas islâmicos nos territórios da Chechênia e de Xinxiang, velhos causadores de enxaquecas nos intransigentes governos locais. (SARMATZ, 2001, p. 47-48) A existência de grupos que contestam a ordem vigente foi colocada sobre a lente da severa vigilância. Os atentados terroristas forneceriam o atestado para mutilação das liberdades justificando perseguições contra os “outros”. Mesmo os países onde a possibilidade de ataques terroristas era pequena ou nula escapariam da onda de espionagem. No Brasil, ainda em setembro de 2001, uma divisão da CIA foi instituída no consulado dos Estados Unidos em São Paulo destinada a investigar a lavagem de dinheiro de grupos terroristas no continente. (tema: redução das liberdades) Nos Estados Unidos às opiniões se digladiavam sobre o ar de incertezas que os estadunidenses respiravam depois da execução terrorista sobre o país. Mas o governo do país não se devotou aos valores não-intervencionista, muito pelo contrário, a Doutrina Bush pregaria o oposto das intenções de Willian Norman 157 Grigg, esguichando ainda mais sangue no desdobramento do 11 de setembro de 2001 e esmaiada solução para a problemática do terrorismo mundial. (tema: conseqüências dos atentados contra os Estados Unidos) 4.4.4. Caros Amigos Os atentados de 11 de setembro de 2001 mereceram páginas de destaque na edição de outubro da Caros Amigos. A composição da capa já era um indicativo do teor que delinearia as notícias da revista. Em um fundo negro os dizeres disfóricos contra a revanche dos Estados Unidos: “A Guerra de Bush”. O modelo de sumário utilizado pela revista difere dos demais veículos analisados. A revista opta por citar o nome do jornalista e um comentário sobre o texto ao invés do título da matéria. O sumário, que já é uma amostra da posição editorial da revista, referente à edição de outubro, foi às bancas assim 84 . 1. 2. 3. 4. 5. A grande interrogação José Arbex Jr. mostra o que está por trás da Guerra de Bush Sérgio Kalili, do Arizona, conta como é viver no meio da nova paranóia macarthista Georges Bourdoukan e a Nona Cruzada Luis Fernando Novoa Garzon destaca a importância do “inimigo” para o sistema americano Em apresentação da edição ao leitor, na seção “Carta ao Leitor”, sobre o título “Grande Interrogação”, a revista se equivoca em suas palavras ao afirmar: “Esta é uma publicação atípica de Caros Amigos, como têm sido as de todas as publicações no mundo desde 11 de setembro” (CAROS AMIGOS, 2001, p. 03). Por qual motivo a presente edição seria atípica? Os atentados aos Estados Unidos abalaram as estruturas da política internacional. Nessa condição, é perfeitamente normal que todos os veículos de comunicação, inclusive Caros Amigos, retratassem os atos terroristas. Seria uma edição atípica se a revista optasse pela omissão. Omitir-se aos atentados sofridos pelos Estados Unidos seria um pecado mortal para qualquer meio de comunicação. Nesse sentido, a 84 Estamos nos referindo apenas às reportagens que versam sobre os atentados de 11 de setembro de 2001. Caros Amigos também não cita os títulos de seus textos no sumário. Faremos isso no decorrer das análises. 158 edição de outubro da Caros Amigos apenas seguiu os procedimentos de outros veículos: criou seu valor de verdade, ao retratar de modo particular, o terrorismo desferido aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. Não há nada fora do comum em retratar um ato permeado pela barbárie que entrou para a história. Trata-se de puro procedimento jornalístico. “Carta ao Leitor” termina seu texto com um pensamento do saudoso professor Milton Santos que afirma: “... haverá ‘uma globalização vinda de baixo para cima, com emoção, com menos cálculos’ e ‘com novas instituições internacionais’”, e uma interrogação: “Estaremos assistindo o despertar da periferia global”? (p.03). Com esses questionamentos, Caros Amigos tenta creditar que os atentados foram uma manifestação de protesto da periferia do sistema capitalista, ou seja, um ato dos países subdesenvolvidos, alimentando o efeito disfórico entre /Desenvolvimento/ e /Subdesenvolvimento/ que na dinâmica dos eixos do quadrado semiótico que assim se apresentam. Desenvolvimento (Centro) Não-Subdesenvolvimento Subdesenvolvimento (Periferia) Não-Desenvolvimento No enunciado da Caros Amigos, o valor eufórico apresenta-se na isotopia /Desenvolvimento/ que traz em seu ventre o capitalismo presente no centro da economia mundial (países desenvolvidos). Assim, o /Subdesenvolvimento/ estaria na raiz das diferenças impostas pelos países capitalistas centrais aos países periféricos. E caberia a esses países a transformação da conjuntura mundial. O 159 sentido de /Desenvolvimento/ defendido pela revista só tem sentido na transformação do capitalismo ou extinção deste. Dessa forma, “o despertar da periferia global” seria uma atitude de transformação mundial em que os países subdesenvolvidos teriam papel decisivo para uma outra globalização, fincada em valores justos para todos, já que /Desenvolvimento/ expressa relação entre contraditórios gerando o /Não-Desenvolvimento/ que resulta na operação de contrários, em /Subdesenvolvimento/. Isso conduz a transformação dos sentidos produzidos como demonstrada no esquema: Subdesenvolvimento → NãoSubdesenvolvimento → Desenvolvimento, seguindo os sentidos de conjunção que a linha editorial que Caros Amigos defende como valores eufóricos do capitalismo ao comunismo. Realmente, a voz de comando ecoou de um líder islâmico que residia (ou ainda reside) no mundo subdesenvolvido. Mas trata-se de lideranças políticas que mantém o poder a custo da submissão do povo, não se tratando de uma atitude coletiva. Os inimigos muitas vezes estão em seus próprios territórios. Utilizam-se do recurso de apontar as causas de todos os males aos “outros” (no caso em questão aos Estados Unidos). Além do que, os terroristas suicidas que se lançaram sobre Nova York e Washington eram homens educados, de classe média, não pobres refugiados que padecem de condições básicas de existência. O questionamento também não leva em conta que os governos de muitos países periféricos (inclusive o brasileiro) se posicionaram contrários aos atos terroristas e se solidarizaram com os Estados Unidos. A tentativa de blindar seus argumentos com o pensamento de Milton Santos, quando passada ao nível mais profundo de análises também se esvai. A globalização proposta por Milton Santos 85 é ungida pelos ares da democracia e extermínio das desigualdades que maculam o mundo. O geógrafo realiza profunda reflexão sobre o processo do capitalismo globalizado; avalia as conquistas tecnológicas e também os limites do próprio processo buscando identificar nos movimentos populares da Ásia, África e América pontos de sustentação para a materialização de uma sociedade justa. Como já 85 Esse pensamento pode ser visto em sua totalidade no livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2003 que citamos em nossas referências. 160 discutimos 86 os ideais de grupos como a rede Al Qaeda confrontam-se com esses valores e visam à instalação de uma teocracia islâmica. O terrorismo da Al Qaeda não tem em sua agenda a erradicação da pobreza e garantir direitos sociais. Se assim o fosse, a fortuna de Bin Laden seria destinada a causas sociais e não para financiamento de grupos terroristas como o milionário saudita faz há tempos. Além do que, a rede terrorista chefiada por Bin Laden se aproveita do fluxo capitalista mundial para “lavar” seu dinheiro. Contudo, o pensamento do grupo liderado por Osama bin Laden e seus mecanismos lubrificados no fundamentalismo islâmico não são discutidos pela revista em seus textos futuros, limitando o debate a respeito do cabedal ideológico fincado na mente dos terroristas e complexidade que os rodeia. (temas: protesto anticapitalista e não alinhamento à guerra) Caros Amigos deixa claro em sua apresentação – e reafirma em suas páginas futuras – quem é o “outro” para a publicação. O grande vilão da história são os próprios Estados Unidos. Os atos terroristas seriam uma conseqüência das políticas internacionais perpetradas a outros países. (tema: causa dos atentados de 11 de setembro) As páginas seguintes do periódico constituem em um manifesto contra os Estados Unidos. No primeiro texto, “O reichstag de Bush”, o jornalista José Arbex Jr. comenta que “ninguém lucrou tanto quanto Bush junior (sic) com o atentado de 11 de setembro, por várias razões” (p.10). Arbex Jr. expõe que o presidente dos Estados Unidos obteve legitimidade no comando do país, uma vez que sua eleição foi uma fraude; os movimentos contrários à globalização iriam diminuir; o controle do petróleo no Oriente Médio iria ficar mais próximo já que o Afeganistão (país invadido em retaliação) ficaria sob comando dos Estados Unidos aumentando a influência do país na região; a geopolítica estadunidense se fortaleceria pelas invasões e guerras preventivas asseguradas pela Doutrina Bush e, conseqüentemente, a indústria armamentista lucraria como nunca. Países como a Rússia e a China, por exemplo, poderiam justificar ataques contra povos supostamente hostis (os “outros”) em nome da defesa contra a ameaça terrorista, 86 Ver Capítulo 3: Terrorismo: um legado histórico e sua caracterização na plataforma midiática (Item: 3.5. A Al Qaeda e o “Terrorismo em Rede”, p.85). 161 além dos Estados Unidos encontrarem respaldo para ampliar seu círculo geopolítico contra outras áreas do planeta. (tema: conseqüências dos atentados de 11 de setembro) No entanto, em seus comentários Arbex Jr. não levou em conta (pelo menos não os discutiu mais detalhadamente) que os Estados Unidos teriam dificuldades na concretização das “benesses” de George W. Bush. Países como França e Alemanha no continente europeu, China e Rússia na Ásia, por exemplo, colocar-se-iam como obstáculos em determinados momentos da retaliação instigada pelo governo dos Estados Unidos. Cada país, obviamente, analisaria o que seria melhor para si nessa atmosfera geopolítica que se respirava na arena política internacional. Além do que, a própria complexidade das sociedades do Oriente Médio seria um entrave aos Estados Unidos. O caldeirão fervente em que o Iraque se transformou é uma prova concreta. Arbex Jr. ainda construiria um paralelo histórico entre Adolf Hitler e a Alemanha às vésperas da Segunda Guerra Mundial e George W. Bush e sua política no pós-11 de setembro. ... Bush e seus asseclas devem estar secretamente comemorando os efeitos do atentado de 11 de setembro. Não poderia receber melhor notícia. Irresistível, nesse ponto, fazer uma analogia com o incêndio da sede do parlamento alemão (Reichstag), na noite de 28 de fevereiro de 1933. Enquanto o prédio ardia, Adolf Hitler, que acabara de assumir o poder, fez um dramático discurso: “Vocês têm aqui um exemplo do que a Europa e nós devemos esperar do comunismo. Sobre este cairá agora o punho duro e poderoso”. Imediatamente, foram presos 4000 militantes comunistas e outro tanto de social-democratas e liberais. Hitler, com grande senso de oportunidade política, aproveitou o momento para consolidar o poder nazista. Começava a sua ditadura. Hitler responsabilizou os comunistas, antes de qualquer comprovação (como Bush, devidamente ancorado pela mídia histérica); também falou em nome da “Europa”, contra o inimigo universal comunista (como Bush fala em nome da “civilização” e da “democracia” contra o Islã); e, finalmente, fez do julgamento uma farsa para justificar a sua própria ditadura. Até hoje existem dúvidas quanto à autoria do incêndio do Reichstag. Ao que parece, foi um ato isolado do comunista holandês Van der Lubbe, embora existam suspeitas de que tenha sido obra dos próprios homens de Hitler. Não há, obviamente, evidências de que os “homens de Bush” armaram o atentado em Nova York e Washington. Mas nada prova o contrário. (ARBEX JR., 2001, p. 11) 162 O processo de ancoragem histórica identificado no texto externa o desejo de comparação do jornalista para unir dois fatos históricos pelo mesmo verniz ideológico: Nazismo e Doutrina Bush. Dois atentados de grande repercussão em seus respectivos países fortaleceriam os governantes a concretizarem suas ambições políticas. Hitler se propôs a falar em nome do continente europeu; Bush iria além, falaria em nome dos valores democráticos e ocidentais. As figurativizações identificadas com disjunção em comunismo, socialdemocratas e liberais (Nazismo) e conjunção em civilização e democracia e disjuntivo em Islã (Doutrina Bush), apontam valores que os líderes dizem defender em seus territórios. Se para o Nazismo o “outro” era aquele permeado pelas doutrinas comunista, social-democrata e liberal (sem nos esquecermos dos judeus, ciganos, homossexuais e portadores de doenças...) o “outro” sob o signo da Doutrina Bush seria representado pelo Islamismo (estendendo-se a todos que pudessem de alguma forma ameaçar a hegemonia dos Estados Unidos). Os “outros” ganhavam assim um formato, seriam palpáveis; tinha-se alguém a ser combatido. (tema: construção do inimigo, justificativa para guerra) Na seqüência, é apresentado o artigo “Más notícias” (p.14) de autoria do jornalista Sérgio Kalili. Com esse texto, a revista passa a seus leitores o sentido de eficiência/credibilidade, uma vez que o autor se encontra em Nova York, cidade vitimada pela barbárie terrorista. As palavras do jornalista têm méritos por noticiar fatos pouco divulgados pela grande mídia. Estando in loco, tem-se a vantagem de acompanhar os acontecimentos com maior riqueza de detalhes além de ser um antídoto para a “reportagem sem repórter” (Künsch, 2006). O texto-depoimento de Sérgio Kalili externa ao leitor o clima de pânico que se assentava sobre a sociedade estadunidense, a paranóia abria suas asas na órbita dos Estados Unidos. 163 Políticos e estações de televisão conservadoras, como a Fox (o canal favorito da atual administração), aproveitam a cegueira de um povo traumatizado para reforçar preconceito, discriminação, patriotismo exacerbado e paranóia. (...) O terror espalhou tensão e violência. Logo nas primeiras horas após o massacre em Nova York, mesquitas sofreram atentados, sites árabes foram fechados pela quantidade de mensagens de ódio, imigrantes xingados na rua. Alguns do Oriente Médio apanharam nas universidades, outros tiveram o carro queimado na garagem. A polícia visitou casa de imigrantes no sul da Ásia e Oriente Médio oferecendo proteção. (...) Diz a polícia que, em uma mesma noite, o feroz Frank Silva Roque rodou a cidade atrás de presas. Tentou acertar um libanês com uma de suas pistolas semiautomáticos, um descendente de afegãos e obteve sucesso após atirar e matar um homem por causa da cor escura, da barba longa e do turbante característico de um sikh. Ato consumado, Roque gritou: “Sou patriota!” O irmão da vítima foi à televisão para explicar que, apesar da aparência, são americanos. No dia seguinte, o pequeno mercado em frente a minha casa, propriedade de uma família de indianos, pregou a bandeira americana na porta. Minhas vizinhas do Japão colocaram a gravata do Tio Sam. É proteção contra loucos. Como disse o presidente Bush: “Ou estão do nosso lado ou do lado dos terroristas”. A agressão não pára e quem a pratica não tem vergonha, seja no Brasil onde algum os chamam de “assassinos”, seja aqui, onde árabes são encarados na rua, ameaçados, revistados e retirados de aviões por causa da roupa, da cor, dos olhos, do rosto. (KALILI, 2001, p. 14) As incertezas dos primeiros dias pós-11 de setembro de 2001 sinalizariam para o sinuoso caminho do preconceito. O “outro”, o “diferente” era o inimigo mais próximo, que poderia ser tocado, visto e percebido, para assim se desferir a ira pelos ataques terroristas. As ancoragens territoriais Oriente Médio, Japão e sul da Ásia somadas as figurativizações sikh, libanês, afegãos, imigrantes, cor escura, barba longa, turbante, indianos, árabes e aos semas /preconceito/, /discriminação/, /patriotismo exacerbado/ e /paranóia/ resultam em uma cadeia isotópica o forte sentimento disfórico ampliado nos Estados Unidos contra o “outro”. Mesmo que esse “outro” fosse estadunidense de nascença, o traço físico diferente seria a senha e o principal fator para se destilar o preconceito. (tema: intolerância) Mas é importante lembrar que esses sentimentos não nasceram depois dos atentados. É algo já presente no inconsciente dos estadunidenses que apenas aflorou depois da terça-feira negra. 164 Em seu texto, Sérgio Kalili destila críticas a postura e a falta de preparo de George W. Bush para ocupar o cargo de presidente dos Estados Unidos e alerta que o país pode se tornar um “Estado Policial”, retrocedendo à sombria época do macarthismo 87 . (tema: críticas às políticas estadunidenses contra o terror) Fechando o texto, o jornalista menciona a frase dita pelo ex-jogador de futebol, o argentino Diego Armando Maradona: “Choremos pelos mortos, mas não precisamos seguir tudo o que Bush diz”, para defender a idéia que não se devia seguir todas as determinações do presidente dos Estados Unidos por conta do 11 de setembro de 2001. George W. Bush saiu da mediocridade para a condição de respeitado estadista. A rápida ascensão, balizada por uma tragédia, daria ao líder dos estadunidenses, grande poder de decisões nas políticas que julgasse conveniente para combater o terrorismo, inclusive o sacrifico das liberdades individuais e insensatez para com os “outros”. George Bourdokan dedica seu texto “A nona cruzada” (p.20) à defesa dos códigos do Islamismo, mostrando resistência em aceitar que islâmicos estivessem envolvidos nos ataques terroristas, impetrando culpabilidade aos próprios estadunidenses. Confesso que reluto em crer que o terrível atentado contra o TWC (sic) tenha sido praticado por muçulmanos. Acredito que ele seja mais uma obra de fundamentalistas americanos ligados a McVeigh, o acusado de explodir o prédio de Oklahoma, porque um dos preceitos básicos do Islamismo diz que, durante uma luta, as mulheres e crianças são sagradas e devem ser poupadas. E o que não pode ser transportado não deve ser destruído. (BOURDOKAN, 2001, p. 20) Entretanto, o jornalista empobrece suas palavras ao transferir responsabilidades aos “fundamentalistas americanos” e omitir uma explanação necessária das facções islâmicas, em especial, a sua versão fundamentalista. George Bourdokan procura criar no leitor o sentido de que o mundo muçulmano é construído de maneira homogênea. Já ilustramos em outros comentários que o 87 O macarthismo configurou-se em um movimento iniciado nos Estados Unidos em 1951 pelo senador Joseph McCarthy. Foi caracterizado pela perseguição a pessoas acusadas se simpatizarem com o movimento comunista e de realizarem atividades pretensamente contrárias aos Estados Unidos. Ao substituir o termo comunismo por terrorismo, para muitos, teríamos a reedição do movimento macarthista. 165 Islamismo é uma religião com subdivisões, e, assim, cada grupo faz a sua própria interpretação dos textos sagrados. Quando escreve que “um dos preceitos básicos do Islamismo diz que, durante uma luta, as mulheres e crianças são sagradas e devem ser poupadas”, o jornalista expõe a face moderada da religião, como se não fossem parte integrante do mundo muçulmano as crenças dos islâmicos fundamentalistas, em especial a fatwa, que não são mencionadas em nenhum momento do texto.(tema: enaltecimento do mundo islâmico) Além de fornecer apenas as informações que lhe interessavam sobre o Islamismo, George Bourdokan faz uso da disforia quanto cita a economia capitalista e as desigualdades geradas por esta. Para o jornalista, as ações terroristas trariam benefícios à máquina econômica do capitalismo e para os Estados Unidos, seu principal expoente. (tema: conseqüências dos atentados) Dentro do condomínio de críticas comuns ao capitalismo, um lote sempre é destinado à imprensa, instrumento considerado omisso em divulgar as desigualdades ou fazê-lo com o verniz da brandura, sem a acidez necessária. Os ícones que produzem essa “desinformação” se fixam nos países desenvolvidos e influenciam as mídias periféricas. Hoje, vivemos sob a ditadura dos veículos de comunicação, cuja representante maior é a empresa norte-americana CNN. É, sem dúvida, a maior empresa de press release do mundo. (BOURDOKAN, 2001, p. 20) A CNN é um alvo comum nas críticas destinadas aos meios de comunicação devido a sua grande influência no campo do jornalismo em tempo real. Embora com embasamento, esse tipo de julgamento peca pela parcialidade resultante dos interesses de quem o emite. Os países socialistas, assim como os islâmicos – particularmente os fundamentalistas – comungam desse mesmo procedimento de censura e edição de notícias conforme a conveniência. Assim, isso configura-se em um vício da própria mídia, não sendo exclusividade desta ou daquela cultura em específico. A mídia “deles” também é tão pecadora como a “nossa” (tema: parcialidade midiática) As mãos de George Bourdokan também tocam no embate entre Ocidente e Oriente, mostrando que este é historicamente dotado de complacência. 166 A luz vem do Oriente, já diziam os sábios. Talvez por se lembrarem do governante muçulmano Jalaluddin Muhamad (1542-1605), um filósofo, que transformou o Industão (seus limites iam do Afeganistão até a baía de Bengala, e do Himalaia até o rio Godâvari) na Andaluzia do Oriente. Isso, para citarmos apenas um exemplo. Jalaluddin, que passaria para a posteridade com o nome de Akbar (o grande), além de responsável pela tradução do Mahabharata, abriu as portas de seu império para os pregadores do zoroastrismo, do jananismo e, num exemplo único de tolerância religiosa, pediu a seus escribas que traduzissem o Novo Testamento, na mesma época em que cristãos se matavam entre si. Os católicos assassinando protestantes na França, os protestantes assassinando os católicos na Inglaterra, enquanto Giordano Bruno ardia na fogueira em Roma. (BOURDOKAN, 2001, p. 20) O texto exalta euforicamente valores presentes da cultura islâmica deixando o lado disfórico para o Cristianismo e sua política inquisitória. Cria-se assim, uma dualidade de valores entre /Cristianismo/ e /Islamismo/, onde o primeiro tem essência disjuntiva, enquanto o segundo valores conjuntivos. Para Bourdokan, o “outro” se traduz no cristão, nos valores ocidentais. Mesmo se pautando em mostrar o brilho da cultura islâmica, as lacunas editoriais do enunciado mostram que o jornalista padece do mesmo fundamentalismo de que acusa os Estados Unidos e os capitalistas. (tema: depreciação dos valores ocidentais) “A coreografia macabra do inimigo invisível e do império onipresente” (p.23), de autoria do sociólogo Luís Fernando Novoa Garzon, aponta para uma nova geometria de poder assumida pelos Estados Unidos. Os ataques terroristas teriam sido “benéficos” para os interesses expansionistas tão comuns aos estadunidenses e, em decorrência disso, alguns valores seriam invertidos: “A partir do 11 de setembro, guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força” (p. 23). (temas: conseqüências dos atentados de 11 de setembro) Garzon destaca importância para os Estados Unidos de terem “inimigos”. O risco constante alimenta a poderosa indústria bélica do país, além de propiciar situações para que a tão conhecida polícia externa estadunidense se espalhe para outros países. 167 ... se o inimigo é capaz de tudo e pode estar em qualquer lugar, a única forma de submetê-lo é constituir um império mundial totalitário e onipresente. (...) Foi com base nessa associação esquizofrênica entre regras morais superiores e violência heróica que se vislumbrou o “destino manifesto” dos EUA. Por merecimento e superioridade, os norte-americanos (brancos) devem governar e liderar o mundo. (GARZON, 2001, p. 23) O sociólogo aponta que essa nova etapa da legitimação da força foi possível graças a Osama bin Laden que, junto com seus asseclas, absorveram todas as mazelas capitalistas. Os mecanismos estadunidenses são a incorporação do mal na visão de Garzon que aponta que qualquer semelhança do histórico expansionista dos Estados Unidos “com o arianismo nazista não é mera coincidência” (p.23). Ou seja, tal como Arbex Jr., o sociólogo procure estreitar as práticas nazistas com as da Doutrina Bush. Para obter êxito, um inimigo que justifica as ações militares e expansionistas é vital. (tema: insegurança global) Assim, a existência do “outro”, independentemente da feição que este assuma, torna-se um símbolo tão significativo na história estadunidense quanto seu hino ou sua bandeira. (tema: construção do inimigo) 168 4.4.5. Quadro demonstrativo dos temas dos periódicos analisados Revistas Veja CartaCapital Superinteressante Caros Amigos Temas que integram os discursos dos periódicos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Heroísmo e patriotismo estadunidenses Choque de identidades Retrógrado x moderno Exaltação aos valores ocidentais Depreciação aos valores orientais Intolerância Causas dos atentados de 11 de setembro A cultura do “Outro” O mundo em conflito Compreensão limitada e parcial do mundo islâmico Insegurança global Fragilidade do sistema de segurança dos Estados Unidos Fundamentalismo islâmico Fundamentalismo religioso Compreensão limitada e parcial do mundo islâmico Depreciação dos valores islâmicos Figurativização do mal no Islamismo Crítica ao antiamericanismo Surgimento de Osama bin Laden no cenário internacional Divisões do mundo islâmico Choque de civilizações Harmonia entre culturas Medo como instrumento político Destruição como componente social Terrorismo como gênero cinematográfico Exaltação dos valores estadunidenses Autopropaganda Crítica ao sistema capitalista Causas dos atentados de 11 de setembro Fragilidade do sistema de segurança dos Estados Unidos Reação eufórica de fanáticos islâmicos Ódio ao mundo islâmico Imposição cultural Intolerância Tolerância Exaltação dos valores estadunidenses Intolerância cultural Depreciação dos valores islâmicos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Não alinhamento à guerra Compreensão da cultura islâmica Tolerância à cultura islâmica Compreensão do raciocínio terrorista Fundamentalismo religioso O “outro” como culpado Terrorismo como processo histórico Ideologias terroristas Conseqüências dos atentados contra os Estados Unidos Caminhos alternativos no combate ao terrorismo Redução das liberdades Crítica ao sistema capitalista Não alinhamento à guerra Causas dos atentados de 11 de setembro Conseqüências dos atentados de 11 de setembro Construção do inimigo Justificativa para guerra Intolerância Críticas às políticas estadunidenses contra o terror Enaltecimento do mundo islâmico Parcialidade midiática Depreciação dos valores ocidentais Insegurança global Construção do inimigo 169 CONSIDERAÇÕES FINAIS A sabedoria consiste em não acreditar em tudo sem reflexão. Cícero Narciso acha feio tudo que não é espelho. Caetano Veloso - Sampa “Entre quatro paredes” é uma peça de teatro escrita pelo filósofo francês Jean Paul Sartre. Nesse texto, Sartre narra a história de três personagens que ao desencarnarem têm suas almas conduzidas ao inferno. Assim que chegam ao seu destino, os três, são trancados numa sala onde existem adereços simples, tudo muito rústico, e ali permanecem condenados a uma vigília eterna. O enredo da peça gira em torno da insuportabilidade do outro, caracterizando que, o inferno é, para cada um dos três, os outros dois. Dessa trama, Sartre conclui, naquela que é, provavelmente, sua sentença mais célebre: “O inferno são os outros”. A expressão sartreana ilustra a dificuldade de convivência com o “outro”, com as diferenças, com aquilo que nos é estranho... A mídia inverte a sentença sartreana ao mostrar que o “paraíso são os outros”. A presença do “outro” ampara e reconforta, expõe — como um discurso do avesso — o que somos e não queremos saber que somos. Ao mesmo tempo em que o “outro” é o insuportável, tem-se a paradoxal constatação da impossibilidade de se viver sem ele. Impossibilidade assentada no conforto de se ter alguém para tributar culpas, descarregar nossos sentimentos de frustrações e ira. Enfim, um “inimigo útil”, aquele que podemos utilizar sempre que necessitamos desviar, camuflar uma situação que nos põe em xeque. No primeiro capítulo desta pesquisa, evocamos as palavras de René Descartes. O texto do filósofo francês é atravessado por uma rede de isotopias que versam sobre a aplicação do bom senso para uma sadia interpretação dos fatos que nos são apresentados. Fatos sempre acompanhados de pesada malha persuasiva. Ancorado na persuasão, procura-se manipular o receptor e prender este a determinado sistema de valores. A “guerra de discursos” no mundo 170 jornalístico também é de verdades, onde a vítima, além dos leitores, é o próprio conceito de verdade. Este é o jornalismo pós-moderno: tem estilo, é muito bem escrito e repleto de boas histórias. Só tem um problema: elas não são verdadeiras. O sagrado território do jornalismo agora se confunde com o do entretenimento: em vez de mudar o mundo, passou a ser somente a arte de contar uma boa história. E, para contá-la, nada como uma boa mentira. Os fatos, assim como a verdade, muitas vezes só atrapalham. (BRASIL, 2007, p.72) O discurso não se constitui apenas de um fio temático, mas em uma teia onde, ao se costurar esses fios, constrói-se uma rede de significados e sentidos. O enunciador, de acordo com sua intencionalidade, faz uso de determinados recursos persuasivos para convencer o enunciatário quanto ao conteúdo do que está sendo enunciado é verdadeiro. Em muitas passagens sobre os atentados de 11 de setembro de 2001, a mídia reproduziu – e ampliou – determinados estereótipos que, via de regra, pouco elucidaram a questão e tão somente refletiram os valores de quem os proferem, jogando o fardo de todos os males na direção dos “outros”. “A propaganda tem que quebrar a principal linha de defesa do inimigo antes que o exército avance”. Esse pensamento de Joseph Goebbels ecoou em fatias substanciais das mídias mundiais e, claro, na brasileira que, em grande parte, seguiu os passos da mídia estadunidense e sua produção de sentidos. “Quebrar a linha de defesa”, traduz-se nas estratégias de persuasão utilizadas pelos veículos de comunicação em justificar a guerra, produzindo efeitos de sentidos contra os “outros”, deformando sua cultura, transformando o denso conteúdo da política internacional em um “conto de fadas”, onde os efeitos de valores são guiados nas disforias /bem/ vs /mal/, /heróis/ vs /vilões/, /sagrado/ vs /profano/, /moderno/ vs /atrasado/... Construindo assim uma cadeia isotópica assentada na dualidade onde se amplia o valor da alteridade. Entretanto, como mostramos no decorrer desta pesquisa, os valores presentes nas diversas sociedades não se configuram em um único dogma. Seus significados assumem feições diferenciadas de acordo com o universo cultural que os abriga. Ao homogeneizar culturas, fertiliza-se o 171 terreno para que as sementes da intolerância e do ranço se frutifiquem. Em determinados momentos, a arma do medo parece inerente à mídia. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. (DESCARTES, 1996, p. 65) As análises sobre os tenebrosos ataques de 11 de setembro de 2001 atravessaram o tempo. Pelo impacto da estrondosa operação e seus desdobramentos (invasões ao Afeganistão e ao Iraque, Doutrina Bush, ações terroristas em Madri e Londres...), a data sempre seria lembrada como referência primeira de uma trama geopolítica desenhada a partir dos atentados aos Estados Unidos neste começo de século. O tempo parecia ser um bom conselheiro para análises mais cometidas, ao distanciar-se do calor emocional do momento e transformar as dúvidas em repostas concretas, certo? Nem tanto! Imprecisões, preconceitos, desinformações, ódios, manipulação de informações e servidão ainda marcariam relatos sobre a tragédia estadunidense. O trabalho da mídia depois do 11 de setembro só reforçou a sua capacidade de ditar rumos. Por cumplicidade ou por omissão, mas sem inocência. (DORNELES, 2003, p. 271) Com a aplicação do quadrado semiótico em nossas análises, pudemos depreender a geometria de sentidos presentes nos enunciados das revistas analisadas, e assim transpor a rede de significados que emergiram nas entrelinhas da notícia e a carga de sentidos presentes nestas. Entre as revistas analisadas nesta pesquisa, Veja foi quem mostrou maior alinhamento ideológico aos valores defendidos pelos Estados Unidos. Grande parte dos textos do periódico que retratam os atentados não contém assinaturas, inclusive os cinco enunciados que integraram nossas análises. Veja procurou ocultar sua parcialidade apresentando seus discursos com o rótulo de 172 “reportagens” ao invés de textos opinativos (embora a revista possua colunistas que externam suas opiniões sobre diversos temas). O discurso da revista Veja exalta os valores capitalistas e ocidentais como ícones da civilização, e exala preconceito contra o Islamismo. Para Veja, os “outros” são os árabes, islâmicos, antiamericanos, os contrários aos valores “ocidentais”. Já em sua chamada de capa, a revista evoca o pensamento de Samuel P. Huntigton sobre o “choque de civilizações” confrontando em campos distintos /Ocidente/ vs /Oriente/. Os enunciados da revista quando se reportam à religião do profeta Maomé são atravessados por isotopias disfóricas sempre atrelando-a ao /atraso/, /totalitarismo/, /fanatismo/... como valores presentes apenas no mundo islâmico, encobrindo a presença desses componentes no mundo ocidental. Em linhas gerais, quando se constrói o discurso sobre o mundo islâmico, as diferenças entre moderados e fundamentalistas se diluem em um caldeirão aquecido pelo fogo do preconceito. Usa-se da estratégia enunciativa de afirmar que a guerra não era contra todo o Islã, mas no texto criticava-se tudo que tem relação ao Islamismo. O mundo árabe é retratado como /autoritário/, /retrógrado/... Quando enunciadas, as exceções (exemplos da diversidade islâmica, de ares democráticos respirados em alguns países) ganham espaço diferenciado, cabendo-lhes poucas linhas, litros de água frente a um oceano de fatores disfóricos. Ancora-se na tese do “choque de civilizações” e do caos, para dizer que “o mundo está em guerra”. Os Estados Unidos e seus aliados são a cavalaria que salvarão o mundo do mal encarnado no “terrorismo”. No plano profundo, a edição da revista Veja ao repercutir os atentados, concebe os ataques de 11 de setembro de 2001 como uma atitude “isolada”, feita por fanáticos gestados na incubadora terrorista no mundo árabe e, em especial, no Islamismo contra o mundo capitalista e ocidental. Uma trama narrativa que indaga ao leitor: e você, de que lado está?! 173 CartaCapital procurou seguir outra linha editorial, afastando-se em alguns momentos dos valores discursivos impressos nas páginas da Veja. Todos os enunciados que integram a revista são assinados – inclusive a seção “Carta ao Leitor”. Na rede de argumentos construída pelo periódico os ataques de 11 de setembro de 2001 são conseqüências das desigualdades inerentes ao sistema capitalista elevadas ao nível planetário. Os atentados serem direcionados aos Estados Unidos não fora por acaso, e sim, dotados de sentidos. Afinal, trata-se da maior potência capitalista de nossos tempos, “um Império” como tantas vezes a revista classificou o país. Os contrários /igualdade/ vs /desigualdade/, seriam os protagonistas do grande enredo político mundial. A /desigualdade/ converte-se no motor de propulsão que impulsionaria as sociedades atravessadas por essa disforia a lançarem-se contra o sistema vigente – o capitalismo – e suas políticas de exclusão. O “outro”, o “diferente” para revista, é personalizado em uma ideologia socioeconômica – o capitalismo – e, de maneira indireta, aponta para os próprios Estados Unidos seu rincão de responsabilidade. CartaCapital também alude que a influência dos Estados Unidos no mundo pós-11 de setembro poderia se ampliar. O país, em nome da “guerra ao terrorismo”, imporia suas políticas a outros povos e/ou as reforçariam nos ambientes que já as abrigam. Assim, o sentimento de antiamericanismo poderia se fragilizar ao ser comparado com caráter conjuntivo com o terrorismo. Todavia, a revista apresenta visão estreita do mundo islâmico. Quando o mesmo é citado sublinha-se as facções fundamentalistas, não ampliando as análises sobre a diversidade muçulmana. Superinteressante foi das revistas analisadas a que mostrou maior comedimento em seus enunciados. Em suas páginas procurou mostrar posição contrária à “guerra total” defendida pelos Estados Unidos e desejada por outras mídias. Mostrou elementos conjuntivos entre valores islâmicos, contextualizou o terrorismo como instrumento político há tempos presente na história (Veja também fez uso desse procedimento editorial, mas acabou perdendo efeito perante o tom 174 usado nos demais textos), apontou caminhos alternativos de combate ao terror, procurou clarear a compreensão do raciocínio de um terrorista... Deslizou em classificar o 11 de setembro de 2001 como o maior atentado terrorista da história sem discutir os motivos que comprovavam tal título. Mesmo assim, a revista, no âmbito geral, apresentou serenidade, destoando positivamente das demais. Procurou fornecer a seus leitores enunciado mais "objetivo" do ponto de visto jornalístico, Os enunciados presentes na revista Caros Amigos são de maneira inconteste opinativos. Os valores defendidos por seus articulistas estão às claras, sem maquiagem nas opiniões editoriais. O periódico euforicamente se classifica “independente”. A independência que Caros Amigos afirma ter está baseada em destoar dos padrões de outros veículos de comunicação, ofertando-se como abrigo para o pensamento crítico. Quando, o que a revista faz, é defender seu ponto de vista como o verdadeiro, assim como os demais periódicos. Muitas das críticas tecidas as outras mídias também lhe cabem. A crítica feroz aos Estados Unidos foi a escolha da Caros Amigos, mantendo-se fiel a sua ideologia marxista e expandindo este valor à arena política mundial. A revista se utiliza do atentado para ampliar a crítica aos Estados Unidos e ao sistema capitalista, contudo, seus discursos não são dogmas, e, sim interpretações de como os mecanismos sociais funcionam. Sendo produção humana, sua mensagem também é exposta às falhas, e, isto mostra, que, assim como outras mídias, a revista apenas forneceu sua visão dos fatos, o que, obviamente, não significa, em absoluto, a verdade suprema. Passaram-se seis anos dos ataques a Nova York e Washington, mas algumas feridas são eternas, serão sempre sentidas. A linha do tempo pode até minimizar as chagas, costurando-as, mas não tem a força necessária para apagálas ou fechar essas cicatrizes. E, as mídias, eternizam-nas ou as ampliam criando outras enfermidades. Quando analisamos as informações contidas nos enunciados de quatro, cinco ou seis veículos de comunicação, não raro temos a sensação de que o mundo em que vivemos transformou-se em outros mundos diferentes, resultado 175 do enunciados e filtros cognitivos utilizados pelas mídias para atingir e cooptar seus leitores; uma vez que o jornalismo global é dominado pelas agências de noticiais ocidentais, que têm no capitalismo existente, os Estados Unidos como seus aliados e pontos de vistas deste como valores absolutos. O jornalista francês Ignacio Ramonet (2004) comentando o poder midiático e suas conseqüências, defende em comunicação, uma expressão chamada “ecologia da informação”. Segundo o jornalista, tal como o meio ambiente que se encontra contaminado por impurezas resultante de uma hiperindustrialização que produziu o desastre ambiental, a informação está contaminada por uma série de interesses, ideologias, mentiras e por isso é preciso descontaminá-la. Descartes nos aconselha que “e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam”. Comungando desse pensamento, Wolton (2004) indica caminhos para essa problemática. A solução consistiria em fazer o contrário do que geralmente se empreende. Diminuir a velocidade em vez de acelerar, organizar e racionalizar em vez de aumentar os volumes de informação, reintroduzir intermediários em vez de suprimi-los, regulamentar em vez de desregulamentar. (WOLTON, 2004, p. 267) Claro que não se trata aqui de sermos ingênuos e acharmos que com um toque de mágica a mídia abandone vícios intrínsecos a sua prática, descontaminando-se. As manipulações enunciativas sempre estarão presentes nas linhas das notícias, propagando sentidos conforme os interesses e valores do enunciador. Mas é necessário nos agarrarmos aos fios que tecem a utopia para tentar se vislumbrar um futuro menos sombrio para o discurso jornalístico, quebrando o reducionismo do “jornalismo Control-C (copia) e Control-V (cola)” (Dimas, 2005). O bom senso está em saber que o conhecimento da informação no mundo moderno se associa ao julgamento dos eventos que o regem. Temos assim, um jogo de valores, onde o bom senso converte-se em uma ferramenta analítica tanto para o enunciador quanto para o enunciatário apreciarem criteriosamente as notícias que lhes são fornecidas diariamente. 176 “Não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”, recomenda-nos Descartes. O direito à comunicação constitui-se um prolongamento lógico do processo democrático, devendo ser entendido como valor vital aos direitos humanos mais originais e orgânicos. Todos podem – e devem – ter idéias, anunciá-las, defendê-las... Entretanto, como idéias, pontos de vistas, e não travestidas em princípios fundamentais de uma doutrina, apresentados como valores certos e indiscutíveis, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar. Aplicando-se às coberturas midiáticas a máxima de que “a história se repete duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda com farsa”, comprova-se que, cada vez mais, é difícil saber qual foi uma e qual será a outra. Tão perto e, mesmo assim, tão longe! 177 REFERÊNCIAS ABRANCHES, Sérgio. O vôo da águia vingadora. In: Revista Veja, Editora Abril, São Paulo, 19/09/2001, pp.73. ACCARDO, Alain. A liberdade de fazer “como se deve”. In: Revista Caros Amigos, n.º 39, São Paulo, junho de 2000, pp.20-21. ALENCASTRO, Luiz Felipe. A trilha do terror. In: Revista Veja, Editora Abril, São Paulo, 19/09/2001, pp.22. ARANTES, Paulo Eduardo. Notícias de uma guerra cosmopolita. Bauru: Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, 2004. ARBEX JR, José. 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