ROLAND CORBISIER, INTELECTUAL DA CULTURA NO ISEB E NO MEC HEMIPLÉGICO, NAS DÉCADAS DE 1950-60 Ivan Aparecido Manoel – UNESP 1 Antônio Marques do Vale – UEPG 2 Eixo temático 6. Intelectuais, pensamento social e educação. 1. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é apresentar resultados de pesquisa em torno ao intelectual brasileiro Roland Corbisier e à sua particular relação com o tema cultura nas décadas de 1950-60. Paulista nascido em 1914, deslocou-se para o Rio de Janeiro no final de 1953. Professor de filosofia e pensador, ele carregava na bagagem ampla formação nessa área do conhecimento, bem como um histórico de várias iniciativas de ordem intelectual e organizativa devidas a um dinamismo incansável. Na evolução de seu pensamento se contam, de um lado, as influências de diferentes correntes e, de outro, a constância na leitura, na reflexão e na atividade político-cultural. Mudanças que foi assumindo nas próprias perspectivas filosóficas não o desprestigiam como pensador; pelo contrário, reforçam a impressão antiga de que a sua inquietação o tornava cada vez mais produtivo e atento à realidade. O referencial pelo qual abordamos Corbisier e sua obra é dialético. Ele mesmo foi abraçando muitos pontos de vista do marxismo, tendência já bem presente em discussões importantes no País na década de 50. Especialmente depois de 1960, em seguida à reflexão sobre o tema do trabalho em Hegel e Marx, e por força das conjunturas brasileira e latino-americana, ele buscou aprofundar, sob um novo perfil, a crítica político-econômica em torno ao desenvolvimento nacional. Para abordar o tema cultura brasileira no Corbisier daquele período, servem a este trabalho as abundantes referências nas obras do mesmo. Para apoio das análises, os autores 1 Livre-docente em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Docente da UNESP, Franca-SP. 2 Doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Docente da UEPG, Ponta Grossa-PR. 2 desta pesquisa seguem criticamente o pensamento de Antonio Gramsci, o qual, por seu lado, se defrontou com as questões da formação cultural italiana, do papel do intelectual e da educação, atendendo aos interesses de unificação nacional, libertação contra o fascismo, afirmação estratégico-política na Europa, desenvolvimento industrial. Das obras de Gramsci, foram estas as de maior manuseio: Os intelectuais e a organização da cultura (1982); Maquiavel, a política e o Estado Novo (1984). Em ambas, importantes reflexões críticas sobre a cultura e sobre a participação na construção de um Estado italiano soberano e mais justo. 2. BIOGRAFIA DE UM FILÓSOFO DA CULTURA 2.1 Alguns Dados Biográficos Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier nasceu na cidade de São Paulo em 09 de outubro de 1914. Aí residiu até 1953. Fez o curso secundário no Colégio São Luís e no Ginásio São Bento. Em 1932, muito jovem, se encontrava na Ação Integralista Brasileira, que praticamente abandonou em 1937. Bacharelou-se em 1936 pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e também cursou Filosofia na Faculdade de Filosofia de São Bento e na Faculdade de Filosofia do Estado. Lecionou no Colégio do Estado desde 1939. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), surgido em 1950, ele se tornou seu Diretor de Cursos e Conferências. Aí no IBF, bem como no Museu de Arte Moderna, ensinou a Introdução Geral à Filosofia e à Estética de Hegel. Fundou também o Instituto de Sociologia e Política (ISP) em junho de 1952. Mais liberal e crítico a essa altura, preocupava-se com os problemas econômicos, sociais e políticos, e ia adiante de outros, preconizando superação do atraso econômico, melhor distribuição da riqueza e justiça na repartição do produto social. Uma crise familiar foi o motivo maior que o fez partir, no começo de 1954, para o Rio de Janeiro, onde, com amigos intelectuais que com ele já haviam formado o Grupo do Itatiaia e o IBESP, pôde participar diretamente, em julho de 1955, na fundação do ISEB e ficar como seu Diretor. Tendo trabalhado com entusiasmo na campanha de JK, o apoiou sempre através de seus trabalhos no Instituto, ou lecionando Filosofia no Brasil e dando conferências sobre cultura e desenvolvimento. Viu saírem do ISEB importantes membros, e ele mesmo, ainda Diretor, se afastou em 1961, especialmente para assumir a militância política e partidária. A circunstância do Brasil, os estudos, a maior aproximação com Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré e a UNE, 3 aprofundaram suas afinidades com o marxismo. Deputado à Assembléia Constituinte e, a seguir, deputado federal – 1963, até abril de 1964 –, contatou mais de perto o povo simples e as favelas do Rio. Dois meses de detenção pelos militares não o impediram de continuar cultivando uma filosofia crítica, e pôde, em atitude crítica, fazer uma série de conferências sobre Hegel, em 1970, para comemorar o bi-centenário da morte do grande filósofo alemão (cf. VALE, 2001, p. 35-37). Corbisier, que residira quase sempre no Bairro do Botafogo, faleceu em 10 de fevereiro de 2005, aos noventa anos de idade. 2.2 A Hemiplegia do MEC e o Tema da Cultura Na sua Autobiografia filosófica (CORBISIER, 1978), Corbisier explicita que, chegado de São Paulo ao Rio de Janeiro, em março de 1954, morou sozinho em um apartamento; a esse pretexto, citou Kierkegaard, para quem “existir era escolher e apaixonar-se”. De fato, aos trinta e oito anos, sem dinheiro e sem emprego, deixando atrás de si uma dolorosa crise familiar, ia recomeçara a vida; mas, como escreveu, trazia entusiasmo no coração. Entrou num grupo para o qual a cultura contava como categoria importante. Sentira-se pouco à vontade em São Paulo, explicou ele; também porque a cidade ia tornando-se desfigurada e hostil, eriçada de arranha-céus, misturando provincianismo e cosmopolitismo. Vindo para o Rio de Janeiro, cidade vibrante por outros aspectos, encontrou apoio nos amigos Hélio Jaguaribe e Augusto Frederico Schmidt e no Ministério da Educação, sob a gestão de Antônio Balbino. Sobre os trabalhos e desafios, escreveu Corbisier: “Deixando de ser Ministério da Educação e Saúde para tornar-se Ministério da Educação e Cultura, MEC, ficara este hemiplégico, por assim dizer, pois não tinha, no setor de Cultura, os órgãos simétricos e correspondentes aos da Educação” (1978, p. 88). Então se criou a ATEC (Assistência Técnica de Educação e Cultura), em cujo conselho consultivo se ressaltavam as presenças, entre outros, de Alceu de Amoroso Lima, Dom Helder Câmara, Anísio Teixeira, Adonias Filho, Pedro Calmon e Hélio Jaguaribe. Jaguaribe elaborava projetos pelos quais se criou, entre outros órgãos, o efêmero Colégio do Brasil, germe do futuro ISEB (1978, p. 87-88). Corbisier entrou na ATEC como assessor e, por contrato, graças ao apoio de Anísio Teixeira, ofereceu serviços também à CAPES, a qual lhe solicitou elaborar um trabalho sobre a filosofia no Brasil. 2.3 Concepção Básica em Torno a uma Cultura 4 Em tempos de notáveis mudanças, no pós-Guerra, o Brasil procurava os meios de se afirmar como um País de cultura urbana e industrial, uma vez que não poderia permanecer como pura civilização da madeira e do carvão. Necessitava principalmente da base energética e da rede eficiente de transportes para a nova industrialização (CORBISIER, 1976b, p. 100;102). Enquanto muitas outras nações mal conquistavam a sua independência política e uma determinada autonomia num mundo de fortes resquícios coloniais, Corbisier e os companheiros de São Paulo, e a seguir os do ISEB, procuravam refletir sobre a cultura no Brasil e reexaminar o velho colonialismo. Sobretudo, influenciava sobre eles o impulso crítico de Sartre, em cujo pensamento se destacava a tomada de consciência nacional. Era tempo de todos se desprenderem da condição de consumidores insaciáveis dos produtos culturais elaborados nas metrópoles (CORBISIER, 1978, p. 57). Se o Brasil já não constava como colônia, efetivamente sua condição era a de semicolônia, e os brasileiros não haviam experimentado a liberdade de decidir sobre seus destinos, nem nos aspectos político e econômico, nem no aspecto cultural. Na verdade, ainda viviam todos voltados para a Europa e suas vidas ainda ficavam nas mãos das antigas metrópoles; a própria leitura do passado era impingida por estas, que escolhiam para as nações submissas um destino conforme interesses unilaterais. O Brasil não tinha um povo, não era uma nação, pois os brasileiros, além de receberem de fora os bens materiais, consumiam também a cultura de europeus e norte-americanos. As duas primeiras décadas do Segundo Pós-Guerra, portanto, foram marcadas por uma reflexão sobre a cultura na obra de Corbisier e de outros isebianos. O que havia, então, de unificar o País? Era urgente continuar pensando na “forçosidade” do que foi dado à nação, e que se transmutava em tarefa: aí, de certo, o mais positivo dos elementos que a filosofia da existência despertava (1978, p. 59). Para essa reflexão haviam fundado, no Rio de Janeiro, o ISEB, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O ISEB nascia para corrigir a hemiplegia do Ministério da Educação e Cultura. O Ministério sempre cultivara aspectos educacionais, planejando educação, mas cogitara muito vagamente em elaborar e promover uma cultura brasileira emancipada. E Corbisier foi o principal isebiano a trabalhar para definir qual seria a ideologia do desenvolvimento nacional apta a aglutinar todos as classes e grupos sob a meta de construírem a nação brasileira unificada por uma cultura. Surgido sob os auspícios do MEC, o Instituto devia ajudar a formar essa cultura. Corbisier deu preferência a tal categoria, que achava mais interessante que a de civilização, conforme afirmou na Revista do Clube Militar (CORBISIER, 1957, p. 31), num texto que, 5 dois anos após, foi origem de um pequeno livro editado pelo ISEB (CORBISIER, 1959). Formar a cultura, ele escrevia, era formar o Brasil como nação e processo histórico, e como consciência pela qual se acumularia o passado no presente (memória) e se anteciparia o futuro (1959, p. 32-33). O problema era o de poder trabalhar e, também, poder consumir o que se produziu. Na raiz dos problemas, o fato de que as vias de comunicação tinham estado sempre dirigidas para a metrópole, submetidas a uma estrutura colonial que punha a terra em contato com o exterior e não consigo mesma (Ibid., p. 35). Pensamento dessa ordem, já exposto por ele no Nordeste brasileiro em 1954, e melhor elaborado para as primeiras conferências isebianas do segundo semestre de 1955, ainda foi expresso em publicação de 1959. Corbisier repetia desde os inícios: “... o desenvolvimento nacional requer (...) um planejamento global, cuja elaboração implica a formulação prévia de uma ideologia.” (CORBISIER, 1959, p. 86). E desafiava a inteligência do País a intervir para mudança cultural: “Pensando ‘em situação’, estamos convocados a elaborar a ideologia que nos permita decifrar o Brasil” (1959, p. 87). Nessa década, a opção classista de Corbisier muito acanhada, por causa da aliança com a burguesia industrializante; suas análises careceram de um potencial crítico transformador: faltavam os referenciais que atendessem com maior realismo às necessidades de tipo sócio-político e histórico-econômico. Se, porém, prevalecia um determinado idealismo nele e nos outros fundadores “históricos” do ISEB, eles, entretanto, remexiam grandes temas, e, tendo-os aprofundando ora mais ora menos, realizavam uma obra arrojada de conquistas intelectuais e práticas. Nos textos do autor, cultura e ideologia (do desenvolvimento) são categorias que se encontram bem, que se “casam” bem. Até o final da década de 50, cultura equivale a uma estrutura de apoio, supostamente generalizado, consciente e consentido, a envolver o trabalho e a favorecer um projeto da burguesia urbana: progresso acelerado para o País, modernização e industrialização, soberania nacional. 3. LIDERANÇA RECONHECIDA DE CORBISIER: CULTURA E PAIXÃO 3.1 Depoimentos de Valor Em Filosofia política e liberdade de Corbisier, o erudito prefaciador Alceu de Amoroso Lima, pseudônimo Tristão de Athayde, apresentou o autor como “uma das inteligências mais brilhantes da chamada geração modernista” e dele afirmou: “começou, 6 penso eu, pela participação; isto é, pela responsabilidade (...), fugindo sempre ao academicismo” (LIMA, apud Corbisier, 1975, p. 11). No entanto, apesar dos elogios, o prefaciador confessou ter visto em Corbisier, o prefaciado, um homem de “autêntico trabalho filosófico” somente após haver este alcançado a superação de algumas etapas: na primeira, ele teria sido um integralista, para depois se revelar um nacionalista e, enfim, um trabalhista. Aqui, o personagem insigne da intelectualidade brasileira, Tristão de Athayde, manifesta a própria marca exigentemente intelectualista. Quando se teria configurado a etapa do Corbisier filósofo, no pensar de Athayde? Somente com o movimento de 1964, com a ida para o ostracismo, ostracismo de duras conseqüências pessoais, de frustrações, injustiças e problemas político-econômicos. Só então, no recolhimento do estudioso, num “isolamento para melhor participar”, pôde surgir o filósofo (hegeliano) de 1970, capaz de melhor participação e assimilação histórico-cultural e de elaboração mais fecunda de sua filosofia política (1975, p. 12-13). Naquele prefácio, Athayde assumiu um tratamento franco, realista e crítico, mas cheio de muito apreço. Era o predomínio de um respeitoso diálogo de pessoas respeitáveis. Demonstra-se aqui. O ano seguinte, 1976, em nova obra, Filosofia e crítica radical, o prefácio coube ao próprio autor Corbisier, que procurou como que debater com a posição de Athayde sobre o existir de um filósofo. No frontispício, Corbisier escreveu uma dedicatória certamente muito sincera: “A Tristão de Athayde, impenitente peregrino da esperança, com estima, admiração e reconhecimento”. Corbisier, contudo, reservando-se a autoria do prefácio, e mostrando-se, por este viés, mais dialético do que o velho amigo, opunha como que uma réplica sobre o ser-filósofo: “A figura do filósofo, enclausurado na torre de marfim, solitário e ensimesmado, avesso ao diálogo e à participação, que procura adivinhar a realidade a domicílio, reiterando sistemas pretéritos ou pretendendo inventar novos sistemas originais, essa figura se tornou anacrônica, inviável, e se acha definitivamente ultrapassada” (1976b, p. 13). De fato, Corbisier já preferia categorias de mudança, e, insistindo, desembocava numa destacada fidelidade a Hegel. Migrou, ele próprio, mais vezes, de uma filosofia a outra – e desde cedo foi filósofo, como ele admitiu ser chamado – graças à inquietação reflexiva e sincera que o fazia posicionar-se ante o mundo e participar. Humilde nas suas buscas, porém, e digno, se manteve sempre grato perante o amigo. Na Autobiografia filosófica saída em 1978, em seguida ao prefácio de Nelson Werneck Sodré, Corbisier inseriu a Carta ao Autor enviada por Athayde. Ali, não obstante claras divergências religiosas, Athayde continuava a explicitar concordâncias “no uso da 7 paixão como forma de conhecimento profundo do mundo e de nós mesmos” (1978, p. 30); complacente e solidário, ele fazia por descobrir, em Corbisier, a “finíssima farinha de cultura”, provinda de intermináveis leituras e de meditação autógena que se convertiam em “unidade cultural que está começando (...) a ser o fundamento de uma Crítica da Paixão Pura” (p. 27). Athayde falava de paixão, porque sabia ser, o velho conhecido, como que um pequeno vulcão ambulante em estado de contínua erupção, que agora se fazia “conhecimento ligado e não desligado (...), razão unida ao sentimento e não isolada”. Afinal, terminavam concordando entre si que o filósofo não podia aceitar isolamento de espécie nenhuma. E Corbisier, o intelectual filósofo, teimava: “A filosofia não é exterior ao mundo” (1976b, p. 15), nem se compraz como “exegese de si mesma” (p. 15): era a persistência naquilo que Athayde chamou a sua “filosofia passionalista da vida” (1978, p. 29; o grifo consta no texto de Athayde, a Carta ao Autor). 3.2 Do Pauperismo ao Progresso, da Não-Cultura à Cultura Uma pesquisa bem documentada, a de Guerreiro Ramos, outro “histórico” isebiano, marcou um anseio de progresso para o Brasil (cf. RAMOS, 1951). Investigação iniciada na Bahia. Tratava do pauperismo, às vezes fazendo pouco do homem simples dos interiores, a um tempo em que educação se ligava muito com a saúde e eram, junto, submetidas ao mesmo Ministério. Com esse tema, Ramos lamentava a condição de atraso nacional; mas depois, com maior empenho, criticou a sujeição do País a modelos culturais europeus ou norte-americanos (cf. RAMOS, 1953). Em Corbisier, já despontava uma determinada consciência e espírito crítico, ao citar que, no interior do Brasil de 1948, “o caboclo é subnutrido, desdentado, analfabeto e mora em casas de pau-a-pique”. Preferia, porém, acentuar a importância de preservar a cultura e o espírito (resistência explícita à propaganda marxista) e até a necessidade de aprender dos europeus (CORBISIER, 1955, p. 29-30). No mesmo sentido vago, transbordaram dele íntimas tendências conservadoras quando, depois de visita jornalística à Suíça, com Hélio Jaguaribe, se perguntou quando o brasileiro iria cultivar aquele tipo de ordem e limpeza que lá os impressionara (1953, p. 62). É sabido que o tema da unidade se destacou de longe nos textos de Corbisier, por influências indiretas de Hegel, ou através da inclinação política nacional. E ele passou a escrever de cultura emancipada, a seguir. Para compreendê-lo, há que, primeiro, tomar o exame crítico sobre a alienação cultural a partir do método fenomenológico (de Ortega y 8 Gasset), que força a tomar consciência da circunstância; e, segundo, partindo já de Hegel, quando este fala do trabalho. Se em 1947, por exemplo, Corbisier falou dos benefícios de aprender com a Europa, em 1950 já ponderava em termos de progresso, que pode unir os “membra disiecta” do País, da Nação. Ulteriormente, Corbisier trata da semicolônia e da cultura, segundo a filosofia de Hegel, e introduz a reflexão sobre o trabalho, reconhecendo o direito, a quem produziu, de consumir do próprio produto. E cultura significa, então, o esforço e o trabalho do homem sobre a natureza e o produto daí advindo. Ser colônia, pois, define Corbisier, é importar produtos acabados, depois de exportar matérias-primas; é manutenção de um domínio que supõe estas implicações: “a estrutura do aparelho de produção, as instituições políticas e culturais reoperam sobre as estruturas de base, consolidando o poderio das classes dominantes” (CORBISIER, 1960, p. 27). Se o brasileiro não consome, é porque são mantidas estruturas de dominação e alienação. A alienação é entendida, agora, como pura importação. Ela implica a imposição não só de produtos manufaturados – a matéria-prima que regressa transformada ao País –, mas também “as crenças, as idéias, os valores, que devem justificar e dar cobertura ao estatuto de dominação” (1960, p. 29) Sob a inspiração de Hegel, Corbisier pode resumir cultura no Brasil: cultura é trabalhar, e isso quer dizer negar o “instinto”, reprimir o desejo de consumir ao natural e sem trabalho; quer dizer, pois, preparar o consumo. Assim a cultura, no Brasil, deve ser o trabalhar para o brasileiro mesmo consumir (1976, p. 21; 30). Chegou-se aí ao entendimento sobre a saída da alienação para emancipação e adiantamento o progresso. A construção de Brasília, a nova Capital, não foi um símbolo qualquer do progresso; foi o símbolo brasileiro, porque símbolo da emancipação de toda alienação cultural (1960, p. 62-63). As obras posteriores de Corbisier revelarão, nele, um avanço crítico pela influência do marxismo. Não homogêneo, porém. A sua análise sobre a desalienação – entendida esta ao modo de Hegel –, cresce até uma tímida reflexão sobre a luta de classes, mas a principal proposta continua sendo o progresso segundo a burguesia industrial. Portanto, nada de estranhar que, mesmo após a crise entre os isebianos sobre o nacionalismo (final de 1958), o discurso gire em torno à formação de uma ideologia nacional do desenvolvimento sob a liderança da burguesia. O homem dinâmico, porém, que era Corbisier, chegando a ver de perto a miséria das favelas, inchadas aceleradamente pelo “milagre econômico” que os ditadores militares garantiram, pôs os pés no chão da realidade sócio-econômica em 9 movimento. O conceito de cultura, por outro lado, estava mais ausente do seu discurso: o progresso desunia e empurrava a perceber as diferenças. 4. À GUISA DE CONCLUSÃO Por ocasião de seu falecimento, em 10 de fevereiro de 2005, diferentes intelectuais se manifestaram, comentando a importância de Corbisier na história recente do Brasil. Cândido Mendes, o antigo companheiro de ISEB, destacou que Roland ficava à vontade em nossa filosofia, nas perguntas sem rodeios, na recusa em fazer concessões à subcultura (MENDES, 2005). Roland foi a “inquirição à flor da pele” e, ao mesmo tempo, buscava um horizonte para um “que fazer” que envolvesse novo sentido para o projeto nacional (Ibid.). Para Monteiro (2005), a sua biografia intelectual “permite passar em revista as grandes concepções filosóficas e políticas do século XX” (...) tornando-se ele “crítico implacável do capitalismo, da alienação cultural, da indigência filosófica das nossas elites e da massificação embrutecedora da indústria cultural”. Carlos Pompe (2005), afirmou que “livre e criador”, Roland Corbisier foi “um brasileiro de pensamento e de ação”. Esta pesquisa conclui afirmando que o trabalho realizado por Corbisier nas décadas de 50 e 60 autoriza a ver nele um homem de projeto, que, através de uma busca constante e teimosa, pretende construir um Brasil onde pensamento, política e liberdade produzem transformação em favor de todos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORBISIER, R. Situação e problemas da pedagogia. Revista Brasileira de Filosofia, v. 2, n. 2, p. 219-235, abr.-jun. 1952. ______. A introdução à filosofia como problema. Revista Brasileira de Filosofia, v. 2, n. 4, p. 668-678, out.-dez. 1952. ______. 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