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A fundamentação da justiça como responsabilidade pelo Outro em Emmanuel Lévinas
Bruno Luciano de Paiva Silva*
“A verdadeira vida está ausente”
(E. Lévinas)
Resumo: O presente artigo traz como tema a fundamentação da justiça como
responsabilidade pelo Outro no pensamento de Emmanuel Lévinas. Assim,
apresentaremos o movimento de transcendência como abertura à justiça e, num segundo
momento, a fundamentação da justiça em Lévinas. Com isso, propomos uma análise da
idéia de justiça a partir de um outro viés: a alteridade.
Palavras-chave: Infinito; Alteridade; Justiça.
Introdução
Entre os acontecimentos mais marcantes do século XX, estão: as duas guerras
mundiais, as revoluções socialistas que se tornaram ditaduras disfarçadas e até regimes
totalitaristas, a guerra fria e a crise da racionalidade moderna que acarretou, com efeito,
a crise das ciências humanas1. É neste contexto problemático e de injustiça que
Emmanuel Lévinas2 propõe uma filosofia da Justiça como abertura e responsabilidade
pelo Outro. Assim, o presente artigo, que traz como tema a fundamentação levinasiana
da Justiça, está dividida em dois momentos: a) no primeiro, mostraremos o movimento
de transcendência como abertura à Justiça; b) e, no segundo momento, apresentaremos a
fundamentação da justiça como responsabilidade pelo Outro. Desse modo, veremos que
a presença do Outro, como idéia de Infinito, provocou um “traumatismo” na totalidade,
o que irá, por sua vez, possibilitar uma real transcendência em que não existirá mais um
retorno a si mesmo, mas uma responsabilidade infinita pelo Outro, a qual produz
Justiça.
______________________
* Professor de Filosofia e Sociologia do Centro Universitário Newton Paiva. Atualmente
concluindo o seu mestrado em Ética na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
Contato: [email protected]
1. Da transcendência do pensamento solitário ao reconhecimento de outrem como
meu mestre: uma abertura à Justiça.
1.1 A redução do Outro ao Mesmo: uma crítica à Filosofia Ocidental
A crítica de Lévinas à filosofia ocidental é que ela foi, na maioria das vezes,
uma ontologia, isto é, uma redução do Outro ao Mesmo. Essa redução, mediada pelo
termo “Ser”, provocou totalidade / identidade, em que o Outro sempre se encontra no
interior do Mesmo. Neste sentido, a ontologia só pode relacionar com o ser
neutralizando-o. E ao fazer isso, ele pode compreendê-lo e abarcá-lo. Assim, a
alteridade é vítima de violência, de assassinato,3 pois sua exterioridade não foi
assegurada, respeitada. Essa relação se caracteriza pela posse, em que o Outro se torna o
Mesmo, em que a identidade do Outro se reduz a identidade do eu.
O primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: nada receber de outrem a não ser
o que já está em mim, como se, desde de toda a eternidade, eu já possuísse o
que me vem de fora. Nada receber ou ser livre. A liberdade não se assemelha à
caprichosa espontaneidade do livre arbítrio. O seu sentido último tem haver
com a permanência no Mesmo, que é a Razão. O conhecimento é o
desmembramento dessa identidade, é liberdade. O facto de a razão se no fim
de contas a manifestação de uma liberdade, neutralizando o outro e
englobando-o, não pode surpreender. A partir do momento em que se disse que
a razão soberana apenas se conhece a si própria, que nada mais a limita. A
neutralização do Outro, que se torna tema ou objeto - que aparece, isto é, se
coloca na claridade - é precisamente a sua redução ao Mesmo. (Lévinas, 1980,
p. 31)
Desse modo, a filosofia ocidental, para Lévinas, sempre foi um pensamento
como saber, ou seja, um pensamento no qual toda exterioridade encontra-se no interior
de uma consciência. Além disso, esse pensamento sempre privilegiou a relação que liga
o conhecimento ao ser como objeto do conhecimento. Assim, o ser se aprisiona no
campo do conhecimento (consciência intencional) e perde, consequentemente, sua
alteridade. Portanto, estamos diante de um pensamento solitário, de uma subjetividade
fechada, que não consegue se relacionar com a exterioridade.
Em “Ética e Infinito”, Lévinas afirma que a solidão como isolamento é a
marca do evento próprio do ser. O ser, através do saber, não consegue romper com a
solidão, pois o saber é imanência e não transcendência. Já no livro “Entre Nós: ensaios
sobre a alteridade”, Lévinas apresenta uma metáfora da Enéada, de Plotino, em que a
“unidade do Uno exclui, com efeito, toda multiplicidade” (Lévinas, 1993, p. 178). Esse
conhecimento em relação ao ser, que provoca redução do Outro (multiplicidade) ao
Mesmo (Uno), e que está presente no neoplatonismo, encontra-se conservado na
Filosofia de Descartes, Hegel e Husserl.
reencontram-se bem ampla e quase formais estruturas do esquema
neoplatônico do retorna e da união, do qual a filosofia moderna desde
Descartes
( ... ) conservou o quadro, e do qual, na outra parte de sua
história, na temática hegeliana e husserliana à qual tão visivelmente chega,
distinguem-se ainda claramente os contornos. Estas estruturas marcam, com
efeito, o retorno a si do pensamento absoluto, a identidade do idêntico e do não
idêntico na consciência de si, reconhecendo-se pensamento infinito, sem outro,
em Hegel (Lévinas, 1993, p.183)
Lévinas apresenta, ainda, a filosofia husserliana como conservação do esquema
neoplatônico do retorno e da união.
E, conforme outro registro, eles comandam a redução fenomenológica de
Husserl, na qual a identidade da consciência para traz nela, à guisa do ‘eu
penso’, entendido como intencionalidade - ego cogito cogitam - toda
transcendência, toda alteridade: ‘toda exterioridade’ se reduz ou retorna à
imanência da subjetividade que ela própria e em si mesma exterioriza,
(Lévinas, 1993, p. 183).
Portanto, o pensamento como saber, que provoca redução do Outro ao Mesmo, sempre
esteve presente na filosofia ocidental, A exemplo disso, apresentaremos a configuração
estrutural do paradigma da racionalidade moderna, feita por José Carlos Aguiar de
Souza4. Para ele, a racionalidade moderna é composta de três componentes estruturais: o
auto-relacionamento da consciência e a dupla afirmação de autonomia. O primeiro
componente estrutural da razão moderna é o auto-relacionamento da consciência, isto é,
a consciência se relaciona consigo mesma e cria sua natureza. Ela não necessita de algo
exterior para construir sua natureza de ser autoconsciência. Portanto, é nessa relação
consigo mesma que a subjetividade se fecha sobre si mesma, que o pensamento se torna
solitário. Assim, vemos que a solidão, que é inerente a racionalidade moderna, se
estende a todo modo de pensar ocidental. Já o segundo e terceiro componentes
estruturais do paradigma da racionalidade moderna consiste na dupla afirmação de
autonomia. A primeira afirmação da autonomia diz respeito ao status ontológico do
sujeito, isto é, trata-se da afirmação do sujeito da auto-consciência. O sujeito na era
moderna se coloca como fundamento de todo conhecimento, ele se coloca como uma
entidade autônoma. E a segunda afirmação da autonomia do sujeito está ligada a uma
dinâmica essencial: autopreservação.
A subjetividade fechada, solitária, conduz a imanência e a não
transcendência. A transcendência, isto é, a separação entre o Mesmo e o Outro, fica
afastada no pensamento como saber. Assim, a verdadeira vida estará ausente e,
consequentemente, também o sentido do humano. Portanto, é contra essa filosofia do
poder, contra essa filosofia da injustiça, que provoca violência ao tematizar o Outro, que
Lévinas propõe uma filosofia da justiça. É na crítica a essa filosofia, que tem uma longa
tradição no Ocidente, que Lévinas busca a verdadeira vida que está ausente e tenta, com
isso, encontrar na Ética como “filosofia primeira” o sentido do Humano.
1.2 A idéia de Infinito como evasão do pensamento solitário: um ateísmo
Como romper com a solidão do ser? Como fugir do delírio da solidão?
Como buscar a evasão do pensamento solitário? O ponto de partida de Lévinas é a idéia
de Infinito, descoberta na terceira meditação cartesiana. Ele aproveita o esquema formal
da idéia cartesiana de Infinito para mostrar que ela designa uma relação com o ser, que
conserva a sua exterioridade total em relação aquele que pensa. Portanto, a idéia de
infinito é excedente, isto é, o “eu penso mais do que pensa”. Ela não pode ser
tematizada, não pode ser pensada como objeto. O infinito é o Outro Absoluto, é o Outro
separado do Mesmo.
A noção cartesiana da idéia do Infinito designa uma relação com um ser que
conserva, e, sua exterioridade total em relação aquele que o pensa. Designa o
contato do intangível, contato que não compromete a interioridade daquilo que
é tocado. Afirmar a presença em nós da idéia de infinito é considerar como
puramente abstrata e formal a contradição que encenaria a idéia metafísica e
que Platão evoca no Parmênides: a relação como Absoluto tornaria relativo o
Absoluto. (Lévinas, 1980, p. 37)
Além disso, o infinito no finito, segundo Lévinas, se produz como Desejo: “O desejo
metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro”
(Lévinas, 1980, p. 21). Assim, o Outro na sua alteridade fará frente ao Mesmo, colocará
em questão o seu poder de poder. O que provocará na totalidade um “traumatismo”,
uma fissura, que resultará em ateísmo e religião. Ateísmo, para o filosofo, “é a
separação tão completa que o ser separado, se mantém sozinho na existência sem
participar no ser de que está separado”. (Lévinas, 1980, p. 46)
É desse modo que Lévinas realiza, na primeira seção de
“Totalidade e Infinito”, a separação entre o Mesmo e o Outro. Nessa separação, o Ser é
absoluto na relação, o que mantém a separação num sentido eminente. Assim, o Mesmo,
sem poder transformar o Outro em objeto de posse, se produz como interioridade,
psiquismo.
A separação do Mesmo produz-se sob a forma de uma vida interior, de um
psiquismo constitui um acontecimento no ser, concretiza uma conjuntura de
termos que não se definiam se chofre pelo psiquismo e cuja formulação
abstrata esconde um paradoxo. O papel original do psiquismo não consiste de
fato em refletir apenas o ser. É já uma maneira de ser, é resistência à
totalidade. O pensamento ou o psiquismo abre a dimensão que essa maneira
requer. A dimensão do psiquismo abre-se sob o impulso da resistência que um
opõe à sua totalização, é efeito da separação radical. (Lévinas, 1980, p. 42)
O psiquismo se apresenta como uma presença em sua casa, como habitação e economia.
A perspectiva que ele abre mantém a distância que separa o metafísico do Metafísico e
a sua resistência à totalização. O Mesmo em sua interioridade é morada, é acolhimento
desse outro enquanto outrem, É mulher - condição do recolhimento, de interioridade da
casa e da habitação.
Nenhuma relação humana ou inter-humana pode desenrolar-se fora da
economia, nenhum rosto pode ser abordado de mão vazia e com a casa
fechada: o recolhimento numa casa aberta e Outrem - a hospitalidade - é o
facto concreto e inicial do recolhimento humano e da separação coincide com
o Desejo de Outrem absolutamente transcendente. A casa escolhida é
exatamente o contrário de uma raiz. Indica um desprendimento, uma
vagabundagem, que o tornou possível e que não é não é um menos em relação
à instalação, mas um excedente da relação com Outrem e da metafísica.
(Lévinas, 1980, p. 154)
Em suma, é através a idéia de infinito - idéia essa que o eu pensa mais do
que pensa - que Lévinas propõe a evasão do pensamento solitário, do pensamento como
saber. Além disso, essa separação entre o Mesmo e o Outro é o primeiro passo para a
constituição de uma relação de alteridade.
1.3 A relação de alteridade como frente-a-frente
Ao provocar a separação entre o Mesmo e o Outro, a idéia de Infinito faz da
relação humana uma relação ética, em que ambos se mantém separados. Assim,
segundo Pivatto, “a ética torna-se o eixo fundamental precisamente porque contém e
revela a possibilidade e a realidade do além do ser e da identidade do mesmo como
transcender para o outro numa relação responsável que Lévinas chama de alteridade”
(Pivatto, 2000, p. 88). Essa relação é discurso, isto é, é uma relação original com o ser
exterior. “O discurso não é uma patética confrontação de dois seres que se afastam das
coisas e dos Outros (...). É a relação do mesmo com o Outro, é o meu acolhimento do
Outro,” (Lévinas, 1980, p. 63)
O pluralismo não é uma multiplicidade numérica... O pluralismo supõe uma
alteridade radical do outro que não concebo simplesmente em relação a mim,
mas que encaro a partir do meu egoísmo. A alteridade de lutar está nele e não
em relação a mim, revela-se, mas é a partir de mim e não por comparação do
eu com o Outro que eu lá chego. (Lévinas, 1980, p. 106)
Essa relação de estranheza dos interlocutores é também relação de
linguagem. A relação de linguagem supõe transcendência, separação radical entre o
Mesmo e o Outro. Ela instaura, na relação sujeito-objeto, uma relação irredutível: a
revelação do Outro. É nessa revelação que a linguagem se constitui. Desse modo, a
linguagem, para Lévi nas, terá a tarefa de se “encontrar em uma relação com uma nudez
liberta de toda a forma, mas que tem o sentido em si mesma. Tal nudez é o rosto.”
(Lévinas, 1980, p. 161) A nudez do rosto é revelação e, por isso, não pode ser
tematizada, pela consciência.
A relação com o rosto não é conhecimento de objeto. A transcendência do
rosto é, ao mesmo, a sua ausência do mundo em que entre, a expatriação de um
ser, e sua condição de estrangeiro, de despojado ou de proletário, A estranheza
que é liberdade é também estranheza-miséria. A liberdade apresenta-se como o
Outro; no Mesmo que, por seu turno, é sempre autoctone do ser, sempre
privilegiado na sua morada. O outro, o livre, é também o estranho. A nudez do
seu rosto prolonga-se na nudez do corpo que tem frio e que tem vergonha de
sua nudez. (Lévinas, 1980, p. 62)
A relação de alteridade é, para Lévinas, uma relação irredutível e
assimétrica. Ela é irredutível à totalidade.. Ela mantém a salvo, através do discurso, a
separação entre o Mesmo e o Outro.
A conjuntura entre o Mesmo e o Outro, em que já se mantém a sua
proximidade verbal, é o acolhimento de frente e de lado do Outro por mim.
Conjuntura irredutível à totalidade, porque a posição de ‘frente-a-frente’ não é
uma modificação do ‘ao lado de’. Mesmo quando tiver ligado Outro continua a
fazer-me frente, a revelar-se no seu rosto. A religião subtende esta totalidade
formal. (Lévinas, 1980, p. 67)
A revelação ética é ainda assimétrica, isto é, a relação frente-a-frente é uma relação
entre desiguais, uma relação irrecíproca. O Outro na sua alteridade é diferente,
desconhecido e não-familiar. Assim, sou responsável por outrem sem esperar a
reciprocidade. A reciprocidade é assunto dele, mesmo, segundo Lévinas, que isso me
custasse a vida. Portanto, a relação de alteridade é irredutível e assimétrica.
2. A fundamentação da justiça como responsabilidade pelo Outro.
2.1 O Rosto como resistência ética e apelo à responsabilidade
O rosto, para Lévinas, é a maneira como o Outro se apresenta, ultrapassando
a idéia de Outro em mim. Assim, a epifania do rosto se apresenta como uma relação
diferente do que caracteriza toda a nossa experiência sensível. O rosto não é tematizado,
capturado pelos nossos sentidos, ele ultrapassa a forma plástica. Além disso, o fato do
rosto manter, pelo discurso, uma relação comigo, não o inscreve na “totalidade”, não
reduz a sua alteridade ao Mesmo. Ele permanece absoluto na relação. O que vai
proporcionar o acolhimento do rosto.
A idéia de infinito, o transbordamento do pensamento finito pelo seu conteúdo,
efectua a relação do pensamento com o que ultrapassa a sua capacidade, com o
que a todo o momento ele aprende sem se chocado. Eis a situação que
denominamos acolhimento do rosto. (Lévinas, 1980, p. 176)
O rosto recusa-se à posse, a reduzir o Mesmo, a uma totalidade. Ele resiste
aos meus poderes, a tornar-se meu. Na sua epifania, na expressão, o sensível ainda
captável transformou-se em resistência total à apreensão. Ora, o rosto não é tematizado
pela consciência, ele ultrapassa meus poderes, ele está além do fenomênico. A
expressão que ele introduz no mundo desafia o meu poder. Nessa sua recusa de ser
objeto de uma consciência, o rosto - como meu mestre - exprime o seu ensinamento: “tu
não matarás”. Assim, ele paralisa o assassino, que só quer matar aquele “ente
absolutamente
independente,
aquele
que
ultrapassa
os
meus
poderes”.
(Lévinas, 1980, p. 177) O rosto, diante de uma consciência, é resistência ética, é uma
resistência à totalidade, de tornar-se objeto de uma consciência.
Há uma relação, não como uma resistência muito grande, mas com alguma
coisa de absolutamente Outro: a resistência do que não tem resistência - a
resistência ética. A epifania do rosto suscita a possibilidade de medir o infinito
da tentação do assassino, mas como impossibilidade - puramente ética - dessa
tentação e tentativa, (Lévinas, 1980, p. 178)
Diante do rosto que ensina “tu não mataras”, torno-me responsável pelo
Outro. Responsabilidade desinteressada. Responsabilidade entendida “como aquilo que
eu não fui eu que fiz, ou me diz respeito”. Não posso recusar a responsabilidade, fui
eleito, sou responsável pelo Outro sem esperar dele a recíproca. A recíproca é assunto
dele. Mas, nesse momento, surge um problema: não estaria o Outro passando à frente do
eu e, com isso, restaurando uma relação de violência do Outro sobre o Mesmo? Não
cairíamos na ditadura do Outro?
2.2 A justiça como Responsabilidade pelo Outro
Segundo Lévinas, a justiça consiste em reconhecer em outrem o meu mestre,
isto é, em se reconhecer responsável pelo Outro que ensina: “Tu não matarás”. Além
disso, para ele, a igualdade entre pessoas nada significa por si mesma, ou seja, só existe
Justiça se houver privilégio da assimetria sobre a reciprocidade. A relação entre o
Mesmo e o Outro deve ser uma relação entre desiguais, já que outrem é desconhecido e
diferente. Portanto, a Justiça nasce da transcendência, que permite a constituição da
relação de alteridade, em que me torno responsável por outrem. Assim, para surgir
Justiça é preciso transcendência, é preciso abertura para a alteridade - e nisto consiste a
grande novidade da proposta de Lévinas.
Justiça é proximidade. É a responsabilidade de um para o outro que chega até a
substituição. Agora, já não apenas a condição, outrassim a consciência de ser
refém não somente do outro, mas também do terceiro, que se aproxima cuja
originalidade expressa no rosto interpela e convoca a uma resposta da justiça.
Por isso, para Lévinas, não há justiça sem sofrimento e suplemento de
responsabilidade por parte de que a dispensa. Porque, por um lado, a igualdade
sustenta-se na desigualdade de todos, isto é, no excesso dos meus devedores
com relação aos meus direitos e, por outro, porque o eu será sempre mais, e
jamais suficientemente pela vida do outro. (Nodari, 2002, p. 216)
Essa é a fundamentação que Emmanuel Lévinas dá à Justiça. Mas falta responder a
questão: a filosofia levinasiana não cairia na ditadura do Outro? Cairia se existisse
apenas o eu e o Outro no mundo. A relação de alteridade não é apenas entre o Mesmo e
o Outro, é entre várias pessoas. Por isso, Lévinas desenvolve a noção de Terceiro. O
terceiro é o outro de outrem. É toda humanidade que nos observa. O terceiro abre a
humanidade à universalidade e é isso que permite anular a ditadura do Outro. Além
disso, segundo Paulo César Nodari, a relação com o terceiro é a contínua e incessante
correção da responsabilidade pela Justiça. É a incessante correção da assimetria da
proximidade.
A realização da Justiça como responsabilidade pelo Outro permite, a
princípio, duas coisas à Lévinas, A primeira é de afastar o perigo da totalidade, da
redução do Outro ao Mesmo. Afastar a filosofia entendida como ontologia. Vimos,
anteriormente, que a Justiça supõe transcendência, isto é, supõe uma separação entre o
Mesmo e o Outro, e por isso afasta do perigo da Identidade Absoluta, afasta o
pensamento como saber. E a segunda coisa que a realização da Justiça como
responsabilidade pelo Outro possibilita é tornar presente a verdadeira vida, em que o
Mesmo e o Outro não se reduzem a uma totalidade, mas se constituem uma relação
irredutível e assimétrica, ou seja, uma relação de alteridade. Portanto, a realização da
Justiça como responsabilidade do Outro permite à Lévinas encontrar o sentimento do
ser, o sentido do Humano.
Conclusão
Vimos que Lévinas critica a filosofia ocidental por ter realizado uma redução
do Outro ao Mesmo. Esta redução resultou na violência contra a alteridade. Por isso, ele
propõe, a partir da idéia de infinito, um “traumatismo” na totalidade, que resultará em
ateísmo, ou seja, na separação entre o Outro e o Mesmo. Assim, se constitui uma
relação ética, isto é, uma relação de alteridade como frente-a-frente. Na segunda parte,
vimos que é na relação assimétrica entre o Outro e o Mesmo que se apresenta a epifania
do rosto, que se recusa a qualquer forma de posse. É desta transcendência que nasce
com a Justiça. A justiça que permite, segundo Lévinas, desvelar o sentido do ser, o
sentido do humano!
Notas:
1- Para Pergentino Pivatto, a obra e o pensamento de Lévinas são melhores compreendidos quando
contextuados no horizonte dos acontecimentos marcantes do século XX.
2- Filósofo nascido em 12 de janeiro de 1906, em Kovno, na Lituânia, numa família judia. Ele se inicia
na Bíblia, na língua hebraica, na literatura russa e em Shakespeare. Durante a primeira guerra
mundial, sua família emigra para Karkhvov, Rússia, onde ocorre, em 1917, os eventos da revolução
comunista. Em 1923, se transfere para Estrasburgo, França, para iniciar seus estudos de Filosofia. E,
em 1928, segue as últimas aulas de Husserl, em Friburgo, a encontrar a pessoa de Heidegger. Mais
informações sobre a vida e a obra de Lévinas consultar: COSTA, Márcio Luis, Lévinas: uma
introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
3- Sobre este tema ver SOUZA, Ricardo Timm de. O delírio da solidão: sobre o assassínio e o fracasso
original. Veritas, Porto Alegre, V. 44, nº 2, p. 375-390, junho 1990
Neste artigo. O autor intenta caracterizar de que forma o fato de um assassinato real se constitui em
um fracasso definitivo em dois diferentes sentidos: 1) no que tange a impossibilidade do assassino de
romper a autocompreensão de sua solidão no sentido de uma relação ética com Outrem: 2) e no que diz
respeito ao fato de que o assassino não consegue anular aquilo que se propõe: a alteridade do outro.
4- Ver Souza, José Carlos Aguiar. A configuração estrutural do paradigma da racionalidade moderna.
Síntese Nova Fase, BH. V. 25, nº 82. p.391-401, 1998.
Referências Bibliográficas
COSTA, Márcio Luis. Lévinas: uma introdução, Petrópolis: Vozes, 200,
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa:Edições 70, 1980.
__________________. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1982.
__________________. Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1984.
__________________. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1993.
__________________. Humanismo de Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1994
NODARI, P. C. O rosto como apelo à responsabilidade e a justiça em Lévinas. Síntese,
Belo Horizonte, V. 29, Nº 94, 2002.
PIVATTO, Pergentino. Ética da alteridade. In: Manfredo A. de Oliveira (ORG),
Correntes Fundamentais de Ética Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000;
SOUZA, José Carlos Águia. A configuração estrutural do paradigma da racionalidade
moderna. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, V. 25, Nº 82, 1998.
SOUZA. Ricardo Timm de. O delírio da solidão: sobre o assassino e o fracasso
original. Veritas, Porto Alegre, V. 44. Nº 02. 1999;
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