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ALETHEIA
Revista de Psicologia
Nº 45 - Set./Dez. 2014
ISSN: 1981-1330
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Revista de Psicologia da ULBRA
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(jan./jun. 1995). – Canoas : Ed. ULBRA, 1995v. ; 27 cm.
.
Semestral, jan./jun. 1995-jul./dez. 2009; quadrimestral, jan./abr.
2010 - ISSN 1413-0394
1. Psicologia – periódicos. I. Universidade Luterana do Brasil.
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Aletheia, revista quadrimestral editada pelo curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, publica artigos originais, relacionados à Psicologia,
pertencentes às seguintes categorias: artigos de pesquisa, artigos de atualização,
resenhas e comunicações. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores, e as
opiniões e julgamentos neles contidos não expressam necessariamente o pensamento dos
Editores ou do Conselho Editorial.
Sumário
7
Editorial
Artigo internacional
9
The role of education in narrative identity construction of young people: Focusing on young
adoptees
O papel da educação na construção da identidade narrativa em jovens adultos: focando
em jovens adotados
Andre Guirland Vieira; Leanete Thomas Dotta; Claudio Farias; Margarida Rangel
Henriques
Artigos empíricos
24
Avaliação do repertório de habilidades sociais em crianças com fissura labiopalatina
Assessment of the social skills repertory of children with cleft lip and palate
Francislaine da Silva; Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues
42
Composição de um grupo de trabalho de apoio às equipes da rede básica de saúde: análise
em uma situação de desastre
Composition of a working group support teams of basic health network analysis in a disaster
situation
Manoela Fonseca Lüdtke; Daniela Kaufmann Seady; Vânia Maria Fighera Olivo
56
Fatores associados ao uso de drogas: depoimentos de usuários de um CAPS AD
Factors associated with the use of drugs: Statements from users of a CAPS AD
Ana Kelen Dalpiaz; Maria Helena Vianna Metello Jacob; Karen Daniele da Silva; Melissa
Pereira Bolson; Alice Hirdes
72
A percepção dos usuários sobre a abordagem de álcool e outras drogas na atenção primária
à saúde
The users’ perception on the approach of alcohol and other drugs in primary health care
Maristela Person Cardoso; Rafaela Dall Agnol; Carina Taccolini; Karen Tansini; André
Vieira; Alice Hirdes
87
Fatores associados ao início da vida sexual ativa de escolares em uma cidade do sul do
Brasil
Associated Factors in the initiation of sexual activity of students in a city in southern
Brazil
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts; Giani Terezinha da Costa Scarin Ottoni; Gehysa
Guimarães Alves; Lílian dos Santos Palazzo; Ana Maria Pujol Vieira dos Santos
101
Comportamentos antissociais e delitivos em adolescentes
Antisocial and delictive behaviors in adolescents
Camila Dias; Nancy Ramacciotti de Oliveira-Monteiro; Maria Aznar-Farias
114
O que vai acontecer quando eu estiver na universidade? Expectativas de jovens estudantes
brasileiros
What will happen when I will be in college? Expectations of young Brazilian students
Pedro Fabião Moreno; Adriana Benevides Soares
128
Imagem corporal, atividade física e estado nutricional em adolescentes no sul do Brasil
Body image, physical activity and nutritional status in adolescents in southern Brazil
Carine Garcia Daniel; Gehysa Guimarães; Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts; Sofia
Rieth; Rafael Reimann Baptista; Maria Helena Vianna Metello Jacob
139
Apoio matricial em saúde mental na percepção dos profissionais especialistas
Matrix support in mental health: Building a new paradigm
Maria Rosalia Gerhardt Net; Tássita Stefani Selau Medina; Alice Hirdes
156
Relacionamento conjugal e violência: sair é mais difícil que ficar?
Marital relation and violence: Is leaving harder than staying?
Josiane Razera; Denise Falcke
168
Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados em usuárias de um Centro
de Referência de Assistência Social de Canoas/RS
Prevalence of common mental disorders and associated factors in women attending a Social
Assistance Reference Center of Canoas/RS
Letícia da Silva Kaspper; Lígia Braun Schermann
177
O corpo (im)possível através da intervenção cirúrgica: uma revisão sobre imagem corporal,
obesidade e cirurgia bariátrica
The (im)possible body through surgical intervention: A review on body image, obesity and
bariatric surgery
Artigos teóricos
Fabiana Brum Schakarowski; Viviane Ziebell de Oliveira
190
Múltiplas definições de ser fumante e diagnóstico de tabagismo: uma revisão sistemática
Multiple definitions and diagnosis of Smoking: A systematic review
Arianne de Sá Barbosa; Layrianne de Sá Barbosa; Lidiane Rodrigues; Karla Loureto de
Oliveira; Irani Iracema de Lima Argimon
202
Hardiness em profissionais de primeira resposta: uma revisão sistemática
Hardiness in first responders: A systematic revision
Mariana Esteves Paranhos; Irani Iracema de Lima Argimon; Blanca Susana Guevara
Werlang
222
Símbolos, complexos e a construção da identidade na psicoterapia com crianças
Symbols, complexes and the construction of identity in children psychotherapy
Clarice Haubert; André Guirland Vieira
Relato de experiência
Resenha
238
Reabilitação neuropsicológica na prática clínica
Rita de Cássia Silva da Rosa; Silvana Soriano Frassetto
243
Instruções aos autores
249
Instructions to authors
255
Instrucciones a los autores
6
Aletheia 45, set./dez. 2014
Editorial
Prezado leitor, temos o prazer de publicar mais um número do nosso periódico.
Agradecemos a colaboração dos membros do Conselho Editorial, professores, comunidade
científica e, principalmente, dos autores que escrevem em nossa revista. Gostaríamos de
convidá-los para continuarem submetendo artigos ao nosso periódico e avisar que estamos
recebendo estudos para as próximas edições. Seguindo a linha editorial consolidada pela
Aletheia, neste número contamos com um artigo internacional, além de artigos de pesquisa,
estudos de atualização, um relato de experiência e uma resenha.
O estudo internacional dos autores Andre Guirland Vieira, Leanete Thomas Dotta,
Claudio Farias e Margarida Rangel Henriques aborda o papel da educação na construção
da identidade narrativa em jovens adultos focando em jovens adotados.
Entre os estudos de pesquisas nacionais, contamos com o artigo dos autores
Francislaine da Silva e Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues, que trata sobre a avaliação
do repertório de habilidades sociais em crianças com fissura labiopalatina. Já os autores
Manoela Fonseca Lüdtke, Daniela Kaufmann Seady e Vânia Maria Fighera Olivo falam
sobre a composição de um grupo de trabalho de apoio às equipes da rede básica de
saúde, análise em uma situação de desastre incêndio como na boate Kiss, que vitimou
242 jovens, em Santa Maria/RS.
Também contamos com dois artigos abordando o uso de substâncias, que são
dos autores Ana Kelen Dalpiaz, Maria Helena Vianna Metello Jacob, Karen Daniele
da Silva, Melissa Pereira Bolson e Alice Hirdes, trazendo depoimentos dos usuários de
um CAPS AD, e o trabalho dos pesquisadores Maristela Person Cardoso, Rafaela Dall
Agnol, Carina Taccolini, Karen Tansini, André Vieira e Alice Hirdes, sobre a percepção
dos usuários sobre a abordagem de álcool e outras drogas na atenção primária à saúde. Os
autores Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts, Giani Terezinha da Costa Scarin Ottoni,
Gehysa Guimarães Alves, Lílian dos Santos Palazzo e Ana Maria Pujol Vieira dos Santos
apresentam um estudo transversal com objetivo de investigar a prevalência do início da
vida sexual e fatores associados em escolares da 7ª série da rede municipal de ensino.
Contamos, também, com o estudo de C. Dias, M. Aznar-Farias e N. R. OliveiraMonteiro sobre comportamentos antissociais e delitivos em adolescentes. Seguindo a
temática dos jovens, Pedro Fabião Moreno e Adriana Benevides Soares falam sobre
as expectativas de jovens estudantes brasileiros ao entrarem na universidade. Os
pesquisadores Carine Garcia Daniel, Gehysa Guimarães , Denise Ganzo Aerts, Sofia
Rieth, Rafael Reimann Baptista e Maria Helena Vianna Metello Jacob trazem uma
pesquisa quantitativa sobre a imagem corporal, atividade física e estado nutricional em
adolescentes no sul do Brasil.
Neste número, apresentamos também o estudo dos autores Maria Rosalia Gerhardt
Neto, Tássita Stefani Selau Medina e Alice Hirdes abordando a temática do apoio matricial
em saúde mental na percepção dos profissionais especialistas, além do trabalho Josiane
Razera e Denise Falcke, um estudo qualitativo com delineamento de estudo de caso
único com o título Relacionamento conjugal e violência: sair é mais difícil que ficar?
Por fim, apresentamos o trabalho de Letícia da Silva Kaspper e Lígia Braun Schermann
Aletheia 45, set./dez. 2014
7
sobre a prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados em usuárias de
um Centro de Referência de Assistência Social de Canoas/RS.
Quanto aos artigos de atualização, contamos com o estudo de Fabiana Brum
Schakarowski, Viviane Ziebell de Oliveira fazendo uma revisão sobre imagem corporal,
obesidade e cirurgia bariátrica; já as pesquisadoras Arianne de Sá Barbosa, Layrianne
de Sá Barbosa, Lidiane Rodrigues, Karla Loureto de Oliveira e Irani Iracema de Lima
Argimon apresentam uma revisão sistemática de artigos que trataram sobre as definições
de ser fumante, dependente químico de cigarro e tabagista e os elementos associados a
cada definição. Por fim, os autores Mariana Esteves Paranhos, Irani Iracema de Lima
Argimon e Blanca Susana Guevara Werlang trazendo como temática o Hardiness em
profissionais de primeira resposta: uma revisão sistemática.
No relato de experiência, temos o trabalho dos pesquisadores Clarice Haubert e
André Guirland Vieira, que versa sobre símbolos complexos e a construção da identidade
na psicoterapia com crianças. Encerrando este número, publicamos a resenha das autoras
Rita de Cássia Silva da Rosa e Silvana Soriano Frassetto abordando a reabilitação
neuropsicológica na prática clínica.
Profa. Dra. Fernanda Pasquoto de Souza
Editora
Profa. Dra. Aline Groff Vivian
Editora Associada
8
Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, p.9-23, set./dez. 2014
The role of education in narrative identity construction
of young people: Focusing on young adoptees
Andre Guirland Vieira
Leanete Thomas Dotta
Claudio Farias
Margarida Rangel Henriques
Abstract: During the period of adolescence, the need arises for the individual construct an identity
enabler of a productive interplay with the surrounding world. The process of identity construction
embeds the development of a sense of unity and purpose that mediates the equilibrium between the
society demands for the individual to fit and the individual’s psychological well-being. Throughout
this process, the formal school education plays a critical role. The current study examines the
role school education held in three adopted youths’ construction of narrative identity and search
for psychological well-being. Life narratives have been utilized in three case studies with young
adopted. The narratives were analysed in reference to the Narrative Matrix Analysis System. All
three narratives emphasized the school education period as the chronological benchmark that
organized and influenced their identity construction and search for support towards belonging and
adapting to the society demands.
Keywords: Adolescent health, adoption, health promotion.
O papel da educação na construção da identidade narrativa
em jovens adultos: focando em jovens adotados
Resumo: A adolescência é o momento em que surge a necessidade de construção de uma identidade
que permita à pessoa uma relação produtiva com o mundo. O processo de construção da identidade
está relacionado ao desenvolvimento de um sentido de unidade e de propósito diante das demandas
da sociedade e ao sentimento de bem-estar. Neste sentido, a educação formal ocupa um lugar de
destaque. O presente estudo examina o papel da educação escolar na construção da identidade
narrativa em três jovens adultos com história de adoção. Foram utilizadas narrativas de vida em
três estudos de caso com os jovens adotados. As narrativas foram submetidas a uma análise baseada
no Sistema de Análise da Matriz Narrativa. As três narrativas enfatizam o papel da escola como
referência cronológica, que organiza e influencia a construção das identidades, bem como a busca
de pertença a um grupo e adequação às demandas sociais.
Palavras-chave: Saúde do adolescente, adoção, promoção da saúde.
Introduction
Previous investigation stressing the critical role that school experiences detain on the
construction of narrative identity in young adoptee (Vieira & Henriques, 2013a) is at the
basis of the current research work. The present study aims at extending comprehension
on this thematic through a focus on the relationship of young adoptees with the school
context. This study lies on a comprehensive paradigm with the intent of adding to the
discussion about the role of the school in the development of adolescents and young
adults, in particular the adoptees.
The construction of narrative identity in adolescence
During the adolescence period the individuals are urged to construct an identity that
allows them a productive relationship with the world (Erikson, 1968; McAdams, 2001;
Habermas & Bluck, 2000). It is also the time when people gather sociocognitive conditions
for the construction of coherent autobiographical narratives (Fivush & Buckner, 1998;
Fivush & Haden, 2003; Fivush & Baker-Ward, 2005; Fivush, 2008; McAdams, 1985;
Habermas & Bluck, 2000). McAdams refers to the process of identity construction as
the development of a sense of unity and purpose in face of the demands of the world and
society. It is a process in which young people reorganize and reconstruct their life story
in order to produce an autobiographical narrative. The construction of a narrative identity
involves the making of consistent stories with the purpose of creating and communicating
a sense of identity and meaning (Reese, Yan, Jack, & Hayne, 2010). By adolescence,
people in our modern society begin a process of reviewing the past, understanding the
present and planning the future from the creation of narratives about themselves, which
have a function to build a minimum of unity and purpose in their own lives and with
the world. Life stories are co-constructed with people with whom they live, as well as
in reference to the embedding sociocultural context. These situated stories, to use the
term coined by McLean, Pasupathi and Pals (2007), not only shape, but also maintain
the identity of its author. These narratives build an integrative configuration of the self in
the adult world. They have the ability to integrate different diachronically life situations
experienced over years in stories full of meaning. They also have the ability to organize
the beliefs and attitudes towards life in terms of a process of change and transformation:
previously I thought and acted in such a way, but now I think and act differently. Life
stories have also a function of synchronous integration, organizing the different roles,
forms of relationship and the associated feelings and thoughts in a way that they can
be seen and understood as a part of the same configuration of the self (McAdams &
McLean, 2013).
Narrative identity, adoption and well-being
The organization of a narrative identity through a coherent life story is related
to the construction of a balanced personality, able to deal with negative events in a
constructive way and therefore with a high level of coping skills, resilience and wellbeing (McAdams & McLean, 2013). In an investigation of the narrative construction
of the self in young people with a history of neglect followed by adoption, Fitzhardinge
(2008) found the organization of coherent narratives as a key element in building a
resilient self. Youth adopted people tended to construct life narratives focused on the
theme of attachment and interpersonal relationships. The presence of coherent narratives
seems to indicate that they were managing to cope with the traumatic and disruptive
elements in abandonment situation through a resignification of adverse experiences.
The narratives of the resilient group had three common characteristics: the skill of
reflection on oneself and others, the feeling that they could be active in relation to the
circumstances and be able to influence their own future, and the acknowledgment of the
importance of interpersonal relationships. Fitzhardinge concludes that the construction
10
Aletheia 45, set./dez. 2014
of life narratives is the foundation of the sense of self. What made the difference in
building a resilient self was the way young people have provided renew meaning to the
adverse events. The association between the construction of coherent life stories and
coping is also shown in the study of Habermas e Bluk (2000). Studies such as Baerger
and McAdams (1999) and Adler, Skalina and McAdams (2008) showed there is an
association between well-being and production of coherent life stories, especially in
stories where the protagonist has an active role in resolving the difficulties and problems.
According to McAdams (2006), life stories that describe a life trajectory from a situation
of social, emotional or relational instability to a situation where the difficulties are
overcome (which he called ‘redemptive stories’) are associated with high levels of
well-being. The life stories where narrators find redemptive meanings in suffering and
adversity and that feature the theme of personal agency tend to enjoy higher levels of
mental health, well-being and maturity (McAdams & McLean, 2013).
School and identity
There is some consensus in literature around the critical role that the adolescents’
school experiences (Lannegrand-Willems & Bosma, 2006; Fereira, Farias, & Silvares,
2009), the nature of the school environment (Gonçalves, 2012), and the relationships
involving teachers and peers (Gonçalves, 2008) exert in the youngsters’ self-image
and identity construction. This relates in particular with the perspective of identity
construction expressed by the interrelationship between the individual and the surrounding
others through socio-cultural and linguistic practices (Lopes de Oliveira, 2006). In the
adolescents’ everyday lives a considerable amount of time is spent at school grounds.
Consequently the school ‘meddles’ into their external environment in the sense that
friendships built therein spread beyond the academic context. Thus, depending on the
complexity of the relationships established at school, either individually and pedagogically,
it can potentially represent either a source of satisfaction as stress for the youngsters
(Ravens-Sieberer, Freeman, Kokonyei, Thomas & Erhart, 2009).
In the course of social interactions the adolescents devise an image of their self
through the feedback on their behaviours and thoughts provided by peers. In turn, this
feedback either confirms or prompts a change in their perception of self. Based on the
nature of the feedback collected they may need to re-shape their identity in order to
fit in and be approved in the particular socio-cultural context where they are situated
(Sugimura & Shimizu, 2011). Gonçalves (2008) drawing over Honneth (2003), suggest
that striving for recognition from peers is a key-element in the identity construction of
adolescents. Throughout the process of identity construction people internalize standard
schemata of social recognition through which they learn to identify themselves as
members of a particular social group. However, the lack of social recognition or sense
of not belonging to a particular social group can potentially inflict frustration, shame
and humiliation to individuals with adverse effects on their identity construction. In
this sense, establishing an interconnection, particularly with peers, is much about the
search for belonging through the interplay with community members, by building
references and values, replicating behaviour standards and reaching for relational power
equilibrium (Sarmento, 2002).
Aletheia 45, set./dez. 2014
11
The teachers themselves, along with the underlying pedagogical relationships with
students evolving during academic interplay also play an important role in the construction
of adolescent identities. In fact, both the relationships of adolescents with their peers
as with their teachers are integral in the complexity of the school climate. The school
climate comprises also of the school characteristics and the plethora of relationships
occurring between teachers, students, administrators and parents. Because the nature of
these interactions dictates the positioning of subjects in relation to the school itself, it
has been argued that school climate holds critical influence on the identity construction
of young students (Adeogun & Olisaemeka, 2011). For example, some theoretical and
empirical postulates argue that students who take their teachers as role models do better
in academic demands, show higher levels of self-esteem, are more resilient to adversity
and thus, show higher confidence toward upcoming challenges (Rich & Schachter, 2012).
Ultimately, it has been advocated that the school setting represents a key cultural societal
institution to which students have to commit to during the process of co-construction of
narrative identity in adolescence (Vasconcelos & Valsiner, 1995).
Nevertheless, regardless of the recognized key role that school experiences and the
nature of the relational interactions during the adolescents’ academic lifespan hold in their
identity construction there is a glaring lack of studies examining this phenomenon. Indeed,
the few existing studies were either shown to be somewhat inconclusive or revolved
around issues concerned with gender, multiculturalism and integration of minority groups
(Lannegrand-Willems & Bosma, 2006). Despite the particular relevance of the life
stories of adoptees, often impregnated by traumatic experiences and marked by adversity
(Fitzhardinge, 2008), surprisingly the research in this area is particularly scarce, especially
with regard to the narrative construction of identity in young adopted adults.
Therefore, the purpose of this study was to investigate the development of life stories
by young adopted adults through a narrative construction of identity with reference to the
schooling context. The study’s main interest concerns the role that school holds in the
construction of narrative identity in young adults, focusing on adoptees.
Methodology
The life stories were taken from the database of the Research Group Webs of
Meaning from the Faculty of Psychology and Educational Sciences of the University of
Porto. The database was built from previous studies, already published (Vieira, 2012;
Vieira & Henriques, 2013a).The participants were three young girls between 20 and 22
years old with a history of adoption in childhood.
The first step taken in this research was to contact and invite a group of families
to participate in the research project. During step two the project was presented to the
families. The participants were invited to attend to an individual interview only after well
clarified over the study’s goals. It was applied the interview protocol of elicitation of Life
Narrative. All interviews were recorded for later transcription.
After transcription, life stories have been divided into narrative sequences, according
to the model of Adam (1985; 2008). The life narratives were submitted to a descriptive
analysis of structure, process and content based in the code system of Gonçalves,
12
Aletheia 45, set./dez. 2014
Henriques and Cardoso (2006a); Gonçalves, Henriques, Alves and Rocha (2006b) and
Gonçalves, Henriques, Soares and Monteiro (2006c) and Gonçalves, Henriques, Alves
and Soares (2002). In each narrative sequence was identified and described the organizing
theme of the sequence, the characters, the scenarios, the action itself, the evaluation, and
finally the elements of narrative process. The next step was the identification of logical and
chronological organization of narrative and of the episodes set throughout the history. After
this first organization the life narrative was described in a case study.
From the life stories were prepared three case studies, in a multiple case studies
design (Yin, 2001). The names given to each case study are fictitious in order to protect
the privacy of research subjects.
Findings
Beatrice
The life narrative of Beatrice is organized chronologically and divided into two
major thematic blocks that evolve in close interdependence. The first one portrays the
pathway from life with the biological parents to life after being integrated in the new
family. The second thematic concerns Beatrice’s school path. Here, her life story develops
from abandonment and subsequent adoption to the quest for love and caring which was
ultimately encountered through integration with the new family, school, and friends.
Beatrice is 22-years old. She was adopted when she was nine and quite aware
on the details of her route from the biological parents’ house, passing through the host
institution until meeting adoption. She recalled leaving with the biological parents, affected
by alcoholism, to the age of eight. The altercations among her parents were very vivid
in her mind as the neglect over her and her six siblings. In the children’s age range she
was at the middle. The precariousness of the family condition increased after the birth
of the younger brother. One of his legs was dislocated at birth which forced him to an
early use of plaster splints. The lack of care for the baby caught the attention of health
professionals at the hospital. From that moment the family was marked as being at risk
and the children found suitable for adoption. The baby was the first to be adopted. He did
not return home after one of the medical appointments. The second youngest was next.
Later she and her younger sister were taken by social care workers to an institutional
refuge. The departure from home did not represent however an immediate rupture with
the biological family as the two sisters continued to visit their parents at the weekends.
The real divide came after the situation went public.
The life-changing moment which marked a new stage in Beatrice’s life narrative
came to surface when she met her adoptive mother. In this point in time there is a
disconnection between her background as an abandoned child and the outset of a renewed
life story that embraced acceptance, affection and love. From that moment on Beatrice
start to visit the new family at the weekends to get familiar with all family members who
were very welcoming. She spent progressively more time with the new family until the
day arrived of formalizing the adoption process. This was a particularly memorable and
joyful moment.
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In the Beatrice’s life narrative the process of family integration progressed closely
attached to the course of her school path. At the initial stage of adoption and through the
process of bonding with her new adoptive mother she was offered a chance to enrol in
a private school. Beatrice felt no discrimination at school for being an adoptee. Given
that her mother was single, she was characterized as having no father. Thus, Beatrice
re-defined the self as fatherless character. By being adopted Beatrice was distinguished
from their school peers for enclosing a different life experience. This was critical in
the construction of the self as someone who was different from others. According to
her point of view this opened a window for potential discrimination which at the end,
didn’t materialize. Ultimately the adoption was experienced as a minor difference in
her life story.
The adoptive mother was vital to her school life. On year one of adoption, she
failed in school for not being able to deal with the emotional disturbance resulting from
the adoption process. At that point she considered the possibility of dropping out school.
However the support from the foster mother was crucial and for that she remains deeply
grateful to this day. The thought of having a degree was completely unrealistic before
adoption. Nevertheless, Beatrice was ‘fed’ by her mother’s believe on her potential
throughout the victory over the challenges posed in the day-by-day school course. For
that reason she appointed her foster mother for conducting the academic ritual when
she gained her degree. The mere thought of having a degree was completely unrealistic
before adoption. The graduation day was a particularly exciting time shared with her
mother. The sharing of joy and the real meaning of that degree was a benchmark in her
family’s coalescence. Beatrice closes her narrative expressing her sense of achievement
underlining what at the end of the day matters the most: “It is wonderful to be loved... it
is great, truly great... really wonderful.”
Amanda
Amanda is twenty years old. She was adopted with two and a half years and holds
no pre-adoption memories. She develops her life story narrative through memory flashes,
either regarding painful, pleasant or simply amusing indelible episodes. Her narrative
structure follows a temporal chronology, from childhood to college. The thread of her life
story and her school career are referenced to interchangeably. Amanda shows a remarkable
spontaneity and self-possession throughout her discourse. Her choice to laugh frequently
and report singular episodes marked the entire narrative.
The first memory she holds is the arrival at her adoptive parents’ house. She ran
upstairs calling every woman there her mother. She remembers she was quite aggressive
and restless those days and particularly hated the baby bed. It was an impossible business
to force her to slip behind those bed bars. As her next-door neighbour took care of children,
she baby-sit her when her mother went to work. Her care taker had a daughter a few years
older than Amanda thus they become good friends playing games and messing around
all the time. However being so young meant she was hurt quite frequently. In several
moments she fall down and cut her head. Precisely on the day she was getting baptized
she made a deep cut in her head which forced her to have some stitches at the hospital.
Went to the hospital with the adoptive mother and the nanny and got some stitches. The
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Aletheia 45, set./dez. 2014
nanny always took care of her in the small accidents and diseases and continues to do
so to this day. Also she would often pick her up from school when the adoptive mother
had some appointment.
Amanda remembers she was very disobedient and talked aloud frequently at the
private catholic school at which she was physically punished by the nuns on regular
basis. She remembers one day she wrote that boys were rude and aggressive and beat
up the children at the playground. As she wasn’t allowed to speak badly of the school
the mother superior forced her to re-write the essay. Amanda summoned vividly into her
mind the school’s summer recess and the feelings of freedom in the farm, playing with
her friends, taking hose showers and wetting her feet in the tank. She also recalls less
pleasant moments like when she fractured her coccyx and fainted. As she was in severe
pain at the back bone the nuns carried her to the clinic where she waited for two hours
before the doctor send her to the hospital. That day when her parents came to pick her up,
no one knew of her whereabouts, fortunately a colleague told them she was hospitalized.
While her parents panic and felt outraged, Amanda felt much mistreated at that moment.
She also confided how she and her best girlfriend innocently nurtured the habit of sharing
boyfriends every other day at the private school.
In the seventh year she left the catholic school to be enrolled in the public school.
She was shocked with the social-economic and behaviour differences. While before she
was ‘the rebel girl’, in public school she was the prissy girl at everyone’s eyes. Despite
the initial impact she end up deeply enjoying her life at the public school and during that
course she made some of her best friends ever. She particularly enjoyed playing pranks
in the classroom to tease the teachers. She remembers one teacher in particular who got
absolutely furious with the pranks, which led her to accentuate even more the misconduct.
She recalls how all students surrounded that teacher jumping around, which turned her
red angry and how it was a treat for Amanda and her colleagues.
After junior high, she listed arts in the high school. Amanda spent some of her best
years at this school, enjoyed the people there, the studies, and made good friends. From
there she decided to study design and communication at the university. However, unlike
the previous school experiences, the college was an immense disappointment. Amanda
was shocked with the smallness and meanness of some colleagues. She remembers how
everyone was highly competitive and hided the school work for avoiding exchanging
ideas. Some of them even brag for never having read a book or gone to an exhibition.
Amanda mentions some specific episodes where the professors asked students how
many books they possessed to which some answered ‘one or two’. On other occasions
some students would launch damaging rumours regarding certain colleagues to make
them barely seen by professors. This particular confluence of factors alongside with the
existence of a low demanding culture regarding the school tasks prevent her to identify
with the college. In spite of the bad experience Amanda is strongly committed to carry on
studies by registering in a master degree and to find a job. She feels somewhat immature
at this point and acknowledges she has still much to learn. Nevertheless, Amanda is
willing to take what day-by-day life provides and will always continue to follow life’s
free flow. The issue of adoption arises when Amanda asks the interviewer if she should
not have talked about adoption. She told adoption is not a problem for her and clarify
Aletheia 45, set./dez. 2014
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with a situation in which her physical education teacher questioned the age of her parents
and Amanda spoke with great tranquility that she was adopted.
Freda
The Freda’s life narrative is organized chronologically revolving around the stream
of her school life. The themes emerging in her narrative evolve throughout a pathway
that begins at the elementary school and follows all the way to the present day, her life
as it is currently at the college. Along the course of her narrative Freda selects several
key events or striking episodes which are both key references in time as ‘landmarks’ in
the construction of her narrative identity.
Freda has twenty-two years old and went through adoption when she was five months
old. Her life narrative begins by acknowledging the critical role that life in school had on
her development as a human being emphasizing the feeling of care she holds from the
educational institutions. Freda highlights how much she has grown through the various
different life stages she experienced during school time. The most significant episode,
she recalls, was the moment their adoptive parents went through the divorce. This was
a particular traumatic event and a significant family crisis which was overcome, largely
due to the support of the staff members at the school. She was very fond of her adoptive
father, thus, even though she was only six, she requested to live with her father. That did
not happen, although Freda kept a close relationship with her father with her mother’s
concordance and support. Freda conveys that her brother, one year younger, went up to
three years before realizing their parents had a divorce.
Although Freda recalls not having any conversation on the subject with her parents,
she always knew she was adopted. Unlike many other adoptees, Freda takes this fact very
smoothly and shows no problems in discussing the thematic. She confessed the desire
to meet her biological mother by mere curiosity over her provenance. She is curious on
whether she resembles physically with her and wonders if there are any brothers and
how this other family looks like.
During high school at the private school, Freda’s representation of a rebellious
teenager overlapped with a period she was struggling with nervous anorexia. She was
fifteen and started to miss classes, to leave school unauthorized, and to smoke cigarettes
and have lunch at the cafe. She progressively skipped meals to the point she was
hospitalized. At that moment she experienced a powerful insight showing her that was
not the right path to follow. This event projected her into a long journey towards full
recovery.
Shortly after this significant occurrence her adoptive parents decided she should
change school, thus she was enrolled in a public school when the new school year
began. This particular event was a remarkable turning point in her life course as she was
introduced to a new and broader world she was unaware of. The ground zero in the new
public school was difficult and somewhat painful. This was because the school structure
was enormous and Freda was not familiar with the new routines and student viewpoints.
By the fact she dressed and act differently from everybody else her peers disliked her
immediately and she was rapidly discarded under the condition of being ‘the private
school’s girls’ or the ‘Barbie’. In the course of this sinuous and initial adaptation, Freda
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Aletheia 45, set./dez. 2014
went so far as wanting to drop out school. Fortunately, she was gradually adjusting
and mingling with her colleagues to the extent that currently these are some of her best
friends.
The second year in the public school was shown to be a particularly problematic
time to Freda as her first and major best friend, who was her refuge and connection to the
new school environment, changed schools. Freda was highly disturbed and felt she was
left alone once again which led her to request class changing. However her colleagues
did not accept it well, they felt disregarded which sparked a flurry of discussions.
Nonetheless, at the ‘end of the day’ they were reconciled and resumed a friendship that
lasts to this day.
Freda’s integration in the new public school was however coincident with a series
of ruptures with former friendships she prized highly from the previous life at the private
school. At the time of one of these meaningful ruptures Freda was on school holidays in
Algarve hosted in the beach house of a recent friend and school colleague. From there
she made friends with a beach volleyball group of adolescents. She learned an important
lesson, when a friendship ends a new one is about to arise. Freda confesses that nobody
is replaceable, but a new friendship can somehow help fill the void left by a friendship
that ended. In that same school year, traumatically, two of Freda’s best friends passed
away due to cancer and a car crash. This was a particularly disturbing time for Freda in
which the support of her school colleagues was paramount.
To be enrolled in the university represented an additional milestone in Freda’s
life narrative. Again she made several friends with whom she lost contact for having
changed universities at the second year. After two years studying in the new university
she was diagnosed with depression. Freda assures however she learned a lot by facing
that health condition and is today a better human being at its expense. Freda learned
more about friendships and how going through painful life experiences can help in the
scrutiny of true friendships. At that point her ‘true’ friends step forward and took care of
her. Some of them used to step by her house pushing her out of bed to a have a coffee and
a small chat. Freda feels these moments were critical to her recovery. She also learned
how to follow her own thoughts and to value her own will over the others. While before
depression she acted in function of the others’ viewpoints afterwards she started to act
more accordingly to her own will.
Freda concludes his biographical narrative stressing that every day her subconscious
reminds her that she is and always will be an adoptee. This identity landmark is particularly
emphasised at the time of her birthday. Frequently, she is convinced that her biological
mother still thinks of her, even though she avoided meeting her by fear of rejection.
Nowadays Freda prefers to live on the illusion rather than taking a chance. However,
it is quite possible that any day Freda will contact a social worker to help her find her
biological mother.
Discussion
The case studies were organized around three different situations arising in the
researching field. One adopted youth had a late adoption after the age of nine. The
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17
adoption took place at two and a half years old in the second case, while in the third case
the adoption occurred at five months age, being the youngster diagnosed with mental
health condition. Such situations seem to correspond to those faced by health professionals
who work with adoption.
In the first situation, case Beatrice, the young later adoptee, has constructed very
intense affective narratives. The memory of abandonment, of the abuse and of the
period in which she lived in residential care was very vivid and traumatic. In the case of
Beatrice, this experience is integrated. The affects, though intense, are arranged in a way
that turns her life history into a rich learning experience. In a previous study (Vieira &
Henriques, 2013a), we argued how this affects can appear in a raw manner. They disturb the
narrative, drawing a circularity that repeatedly jumps between past and present, building
a fragmentary history. Beatrice accepts abandonment as something that was inevitably
imposed to her which caused an antagonism against the way of living of the biological
family. The meaning given to life story was quite significant in the construction of narrative
identity. In Beatrice’s narrative we found both a consciousness about the damaging past
as a strong identification with the adoptive family. Another important element in the
construction of narrative identity in this case was the fear to be perceived as different by
peers. The voice of classmates and friends appear here as a kind of standardization that
cannot be evaded. In the case of Beatrice this fear was not confirmed given that her school
colleagues saw her has someone carrying a different life experience rather than someone
different. Ultimately, it is important to note that in this case the theme of abandonment
and adoption has been central in the life narrative. It emerged as a key issue with which
the protagonist had to understand and make sense of. Adoption also appears as a landmark
in the identity, a theme always full of conflicting emotions.
In the case where the girls were adopted between five months and two and a half
years old the life narratives followed a trajectory given by culture: the school career. In
the narratives of Freda and Amanda the elements of narrative identity crossed the school
career, giving it a particular colouring corresponding to personal characteristics, so this
course was marked by the unique way each one lives (narrates) their experiences. The
personal issues were bounded to the narrative course, giving it a particular flavour. In the
case of Amanda, the critical point was the conflict with authority figures, on face of that
she reacts with defiance and irreverence. Irreverence by expansiveness appeared also in
additional situations as a significant element of the narrative identity of Amanda.
In both cases the theme of adoption was very peripherally addressed. In Amanda’s
case the issue arises when she asks the interviewer if she should not have talked about
adoption. On this account she refers to a specific moment when her physical education
teacher questioned her about their parents’ age over which she articulated quite easily
about adoption. In both Freda and Amanda cases, adoption does not appear as a problem
or as an important issue. Although in the case of Amanda, who was adopted at the age
of two and a half, the abandonment may have left marks, this does not appear in her life
narrative.
In the case of Freda the diagnosis of psychological condition appears as
complexification of the narrative by creating new episodes were the protagonist had to
overcome the difficulties and limits imposed by the diseases. In the case of Freda, several
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critical episodes affected her wellbeing, nervous anorexia, depression and mourning
two close friends. Each of these situations has unleashed a new narrative course, which
tended to resolve itself into a state of renewal and learning, in which new elements were
added to her worldview. The challenges posed by diseases were defining elements in the
construction of her narrative identity. Such diseases have created unique situations which
cause reactions and attitudes that marked the action of the protagonist in her life narrative.
On the other hand, some situations have arisen from the very own ethos of the character,
which gave momentum to the challenging overcoming of her own psychological conflicts,
self-imposed limitations or prejudice of others. It is remarkable that in this case the issue
of adoption emerges as a curiosity to know where she came from, although Freda puts it
on suspension for fear of rejection by her biological mother.
When we examine all the three cases at once for finding commonalities we can
suggest that each of life narratives is marked by questions and personal characteristics that
not only emerge as key elements of the narrative identity but move on through the lives,
questioning them. In most cases, such issues appear as difficulties that put obstacles on
personal development and that for this reason must be solved. Such problems are different
in each case, according to differences in personal characteristics and life trajectories. This
does not mean that we cannot find parallels or similarities. A very important common
characteristic of the cases is the choice of schooling as the leitmotiv of life narratives.
In the life stories of adopted youths the theme ‘school’ appears in two different ways.
Firstly the school appears as the main reference in the chronological construction of life
stories. Secondly, the school appears as the locus of relationships among peers, which
exert a massive influence on the construction of identity.
The choice of school as a reference in chronological construction of life stories is
very meaningful. The school is a cultural context that provides not only a chronological
dimension easy to be perceived through the evolution of degrees (school years),
accompanying the trajectory of development of individuals from infancy through
adolescence, as it operates as a space of socialization, in which people establish a social
group. This group works as a very important reference in the construction of narrative
identity of our research subjects. The school also appears as an important place of change
of personal values and identity along the psychosocial development of the individual,
which is in agreement with the findings of Gonçalves (2012). It is interesting that while
the school context is the preferential reference in the construction of narrative identity,
family emerges as a secondary reference. This seems to have been confirmed by studies
involving a larger number of cases (Vieira & Henriques, 2013b). It is only in cases
where family relationships are shown awfully traumatic that family appears as the main
scenario whereby the life story unfolds. In the cases where family relationships seem
to be harmonics, including the case Freda involving a divorce, the role of parents in
the development of narrative identity is null. Therefore, a significant question arises,
is this feature of the narrative construction of identity in adopted person or a general
pattern? School choice as a reference to the chronological construction of life stories is
important. The school arises here as the main scenario where the process of psychosocial
development occurs and where the narrative identity is built. It is on school grounds that
the major battles are fought and individuals face the most difficult challenges in the path
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of growth and achievement of maturity. That is what is told in the life stories of Amanda
and Freda. The case of Beatrice stands out as an illuminating counterpoint. It is necessary
a more pressing challenge to displace school as a reference in the narrative construction
of identity to the background.
The second point is the role of school as the preferential locus of relationships
among peers. The process of identity construction occurs not only in relation to schooling
and teachers. They seem to have an important role in the construction of life stories,
although secondary. The issues related to the relationship between peers emerges here as
a key point corroborating the findings by Gonçalves (2008) and Sugimura and Shimizu
(2011). So is the struggle for recognition and search for inclusion in a social group within
school, a main challenge and centralizing element in the construction of narrative identity
of these young people. It is in the relationship with peers that identity is negotiated and
established. If one is not recognized by the group as a member and as individual there
is no scope for the person to be at all. Not being acknowledged here means inferiority,
humiliation and impossibility to be and act in the world. The fear of lack of recognition
resembles fear the vacuum. Not be recognized is to be nothing. This fact points to the
importance of interpersonal relationships to the identity construction and well-being
within the school.
Conclusions
This study shows that as the logical-chronological construction of life narratives
is related to the organization of identity and personality, so too is the experience of
schooling. What our research subjects are saying is that is through school we grow up,
build our identity and become adults. The fact that school has such a significant role in the
development of young people already entitles it as a potential space for health. The fact
that young have produced coherent narratives centred on the school means that they were
able to build a structured narrative identity and are managing to cope with the challenges
and difficulties posed by life. This is a clear sign of mental wellbeing (McAdams &
McLean, 2013). Such narratives patterns found in this study strongly suggest that school
may play a critical role in organizing the identity and personality of people. According
with young people, what happens in school has the potential either to impact positively in
the construction of wellbeing, as in case things go wrong, be a source of anxiety. In this
sense, our study points to the need of providing special attention to the management of
peer relationship in school. Concluding, we can say with Sugimura and Shimizu (2011)
that attention to adolescent identity development in day-today contexts can not only
promote psychological wellbeing and adjustment among young people, but also prevent
the social loss caused by delayed psychosocial development.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
André Guirland Vieira: Psicólogo, Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Luterana
do Brasl – ULBRA.
Leanete Thomas Dotta: Educadora, Doutorada em Educação, Centro de Investigação e Intervenção em
Educação. Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto – Portugal.
Claudio Farias: Educador, Doutorando em Educação Física, Centro de Investigação, Educação, Inovação e
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Intervenção no Desporto – Faculdade de Desporto da Universidade do Porto – Portugal.
Margarida Rangel Henriques: Psicóloga, Doutorada em Psicologia, Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto – Portugal.
Acknowledgments:
We wish to thank to Professor Amelia Lopes of the Faculty of Psychology and Educational Sciences of the
University of Porto and Professor Tilmann Habermas of the Department of Psychology of Goethe University
Frankfurt, whose comments were very helpful in the construction of this paper.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
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Aletheia 45, p.24-41, set./dez. 2014
Avaliação do repertório de habilidades sociais em crianças
com fissura labiopalatina
Francislaine da Silva
Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues
Resumo: O presente estudo avaliou o repertório de habilidades sociais de 60 crianças com fissura
labiopalatina, que responderam o SMHSC Del Prette relacionando-as a dados sociodemográficos
e dificuldade escolar, problemas de comportamento e presença/ausência de chacotas, coletados
em entrevista com os pais. Observou-se a presença de chacotas em crianças que estudam em
escolas públicas e com fissura transforame. Os resultados do SMHSC mostraram a presença de
comportamentos internalizantes entre as meninas e de comportamentos externalizantes entre os
meninos. Análises comparativas entre variáveis coletadas com os pais e os resultados obtidos no
SMHSC apontaram para diferenças significantes considerando o sexo, com maior frequência em
habilidade passiva entre as meninas, coerente com a diferença observada na dificuldade habilidosa.
Os dados obtidos sugerem intervenções preventivas em crianças com fissura, uma vez que tantos
comportamentos internalizantes como externalizantes reduzem as oportunidades de interações
adequadas com seus pares e, consequentemente, de desenvolvimento social.
Palavras-chave: Fissura de lábio e palato; comportamento social; socialização.
Assessment of the social skills repertory of children
with cleft lip and palate
Abstract: The current study assessed the social skills repertoire of 60 children with cleft lip and
palate who answered the SMHSC Del Prette relating it to sociodemographic data, difficulties at
school, behavior problems, and presence/absence of mockery, obtained from interviews with the
parents. It was verified the presence of mockery against the children who study at public school
who have transforamen fissure. The results of the SMHSC showed the presence of internalizing
behaviors among the girls, and externalizing behavior among the boys. Comparative analysis
between the variables collected with the parents and the results obtained in the SMHSC pointed
to significant differences regarding the gender, with a higher frequency of passive skills among
the girls, coherent to the difficulty in demonstrating the skill. The data obtained are suggestive for
preventive interactions in children with orofacial fissure for either internalizing or externalizing
behaviors reduce the opportunity for adequate interactions with their peers, hence for social
development.
Keywords: Cleft lip and palate; social behavior; socialization.
Introdução
As fissuras labiopalatinas são malformações congênitas que acometem as estruturas
da face e do crânio durante o período embrionário e o início do período fetal sendo
representadas, clinicamente, pela ruptura do lábio, palato ou ambos. As fissuras podem
apresentar graus variados de gravidade de acordo com sua extensão, podendo ser uni
ou bilaterais, completas ou incompletas. Conforme a classificação proposta por Spina,
Psillakis, Lapa e Ferreira (1972) que toma como ponto de referência o forame incisivo,
a fissura que envolve o lábio é denominada de pré-forame incisivo, a fissura de palato,
pós-forame incisivo e, a fissura que envolve ambas as estruturas, é denominada de
transforame incisivo. Sua etiologia pode ser atribuída a fatores genéticos e ambientais
que podem atuar separadamente ou em conjunto (Garib, Silva Filho, Janson, & Pinto,
2010; Paranaíba et al., 2010; Pedro, Tannure, Antunes, & Costa, 2010).
Vários são os problemas causados pelas fissuras labiopalatinas, pois além dos
estéticos, seus portadores são suscetíveis às dificuldades funcionais e psicossociais.
Estudos mostram que as fissuras pós-forame e transforame apresentam maiores
implicações funcionais caracterizadas pelo comprometimento da arcada dentária,
dificuldades mastigatórias, infecções otorrinolaringológicas, distúrbios respiratórios,
distúrbios de audição e de fala (voz hipernasal) (Amaral, Martins, & Santos, 2010; Lemos
& Feniman, 2010; Pazinato et al., 2014). Os autores destacam que a ausência de dentes
é observada em 70% da população com fissura transforame, o que pode afetar a função
e a estética. Uma das sequelas mais graves da fissura pós-forame e transforame é a voz
hipernasal e ininteligível, que leva, invariavelmente, a criança a ter medo de falar e de se
comunicar, constituindo assim possíveis geradores de dificuldades no convívio social. As
fissuras labiais, apesar de afetarem a produção de alguns sons labiais, têm no componente
estético seu principal impacto. Para Domingues, Picolini, Lauris e Maximino (2011)
essas contingências podem produzir consequências que implicam em uma autoestima
prejudicada, mais dependência dos pais, isolamento e esquivas de contatos sociais e, até,
redução da capacidade verbal.
Diante das consequências da dificuldade de uma comunicação efetiva e da aparência
física comprometida, o indivíduo com fissura labiopalatina, torna-se alvo de situações
marcantes, tais como o preconceito social, a discriminação e a ridicularização, que podem
comprometer seu desenvolvimento e desempenho social (Guimarães, 2010; Maggi &
Scopel, 2011). Miguel, Locks e Prado (2009) destacam a importância dos estudos voltados
para as relações interpessoais da criança com fissura labiopalatina, especialmente no início
de suas atividades de estudo, que se dá por ocasião do seu ingresso escolar.
Para a criança com deformidade facial, a escola será a primeira e a mais importante
experiência sistemática fora do ambiente do lar. Neste momento, a criança sai do
ambiente seguro e protegido da sua família para enfrentar um ambiente desconhecido, que
apresenta exigências e regras diversificadas, inclusive de interação com pessoas até então
desconhecidas (Buffa, 2009), para o qual não apresenta todas as destrezas necessárias
para enfrentar com eficiência o ambiente escolar.
O ambiente escolar encontrado pelas crianças com fissura labiopalatina, torna-se
um novo desafio (Miguel et al., 2009), pois terá de enfrentar novos relacionamentos, será
olhada, julgada, avaliada em sua aparência física, bem como, em sua comunicação. Como
consequência, esse ambiente oferece condições que podem gerar timidez, recolhimento
ou agressividade, as quais, ao serem percebidas pela criança podem influenciar no
seu desempenho socioemocional (Murray et al., 2010). Considerando tal afirmativa,
pesquisas têm apontado para uma diminuição da competência social de crianças com
fissura labiopalatina, que se caracteriza pelo menor número de amigos, menos contatos
sociais e pior qualidade de interações sociais, bem como, problemas comportamentais
(Murray et al., 2010; Snyder & Pope, 2010).
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Considerando as dificuldades de interação e de ajustamento psicossocial que podem
advir das crianças com de fissura labiopalatina no contexto escolar, devido suas diferenças
físicas e dificuldades funcionais, que podem gerar estigmas e preconceitos, torna-se
importante o desenvolvimento de um amplo repertório de habilidades sociais para que
as mesmas possam lidar satisfatoriamente com as demandas do seu meio.
As habilidades sociais são aprendidas para a emissão de respostas eficazes e
adequadas, diante de diversas situações do cotidiano (Del Prette & Del Prette, 2011).
São diferentes classes de comportamentos sociais do repertório de um indivíduo, que
contribuem para a competência social. Esta, por sua vez, resulta na capacidade de articular
pensamentos, sentimentos e ações em função de objetivos pessoais e de demandas da
situação e da cultura, gerando consequências positivas para o indivíduo e para a sua
relação com as demais pessoas (Del Prette & Del Prette, 2013).
A aprendizagem das habilidades sociais se inicia na infância, primeiramente com a
família e depois em outros contextos tais como o escolar e o de lazer. Em cada contexto
espera-se da criança determinados desempenhos que, por sua vez, exigem um amplo
repertório de habilidades sociais para lidar de maneira adequada com as demandas das
situações interpessoais (Bolsoni-Silva & Carrara, 2010; Dias, Freitas, Del Prette, & Del
Prette, 2011). Os contextos sociais nos quais as crianças estão inseridas podem estimular
ou não o desenvolvimento de comportamentos pró-sociais, bem como a aquisição de
habilidades de comunicação e interação interpessoal (Angélico & Del Prette, 2011;
Carlino, Costa, & Abramides, 2012; Stasiak, Weber, & Tucunduva, 2014).
De acordo com Del Prette e Del Prette (2013), as habilidades sociais são
desenvolvidas por meio do processo de aprendizagem e se tornam mais elaboradas ao
longo da infância. Com o ingresso escolar, a criança necessita de um repertório ampliado de
comportamentos sociais, pois precisa aprender e adaptar-se a novas demandas, a diferentes
contextos, a novas regras, com papéis bem definidos. Esse período é considerado como
crítico e decisivo para o desenvolvimento das habilidades sociais, uma vez que a criança
é testada continuamente nas habilidades aprendidas até o momento e, como consequência
das novas demandas, precisa desenvolver outras para estabelecer e manter interações
(Bolsoni-Silva & Marturano, 2010).
No contexto escolar, há um conjunto de habilidades sociais mais frequentemente
enfatizadas e valorizadas, de acordo com Del Prette e Del Prette (2013). Segundo os
autores, elas podem ser agrupadas em cinco conjuntos de comportamentos: a) relação
com os colegas (cumprimentar, elogiar, oferecer ajuda ou assistência, convidar para jogo
de interação); b) autocontrole (controlar o humor, seguir regras, respeitar limites); c)
habilidades sociais acadêmicas (envolver-se na tarefa, realizá-la de forma independente,
seguir instruções); d) ajustamento (seguir regras e comportar-se de acordo com o esperado)
e, e) asserção (iniciar conversação, aceitar elogios, fazer convites).
A literatura aponta que, durante os primeiros anos de vida, a criança vivencia
uma série de experiências no seu ambiente (familiar e escolar) que podem favorecer o
desenvolvimento de competência interpessoal e/ou problemas de comportamento (Borsa
& Nunes, 2011). Os problemas de comportamento, descritos como excessos ou os déficits
comportamentais, dificultariam o acesso da criança a novas contingências relevantes de
aprendizagem, promotoras do seu desenvolvimento (Del Prette & Del Prette, 2013).
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Achenbach e Rescorla (2000) classificam os problemas de comportamento em
dois grandes grupos: os internalizantes, que se expressam predominantemente em
relação ao próprio indivíduo e são evidenciados por preocupação excessiva, retraimento
social, tristeza, depressão, ansiedade, timidez e queixas somáticas e, os externalizantes,
que se expressam predominantemente em relação a outras pessoas e são marcados pela
impulsividade, agressividade física e/ou verbal, agitação, características desafiantes,
condutas antissociais, como mentir e roubar.
A ocorrência de comportamentos problemáticos em crianças tende a variar
em função do repertório de suas habilidades sociais como, também, dos indicadores
sociodemográficos, tais como, gênero, idade, desempenho escolar, relação familiar,
psicopatologia dos pais, nível socioeconômico e estilos parentais (Batenburg-Eddes et
al., 2013; Bayer et al., 2012; Bolsoni-Silva & Marturano, 2010; Britton, 2011; Flores,
Souza, Moraes, & Beltrami, 2012; Emerich, Rocha, Silvares, & Gonçalves, 2012; Loosli
& Loureiro, 2010; Pedrini & Frizzo, 2010).
Um repertório bem elaborado de habilidades sociais permite à criança estabelecer
relações reforçadoras com seus pares e com os adultos. É um indicador de proteção,
podendo contribuir para o desenvolvimento sadio da criança, além de ser um preditor
significativo de competência acadêmica (Bolsoni-Silva & Maturano, 2010), de
responsabilidade, independência e cooperação. Pode, também, diminuir os efeitos
psicológicos de deficiências, auxiliando, por exemplo, a comunicação das pessoas com
algum déficit sensorial, melhorando sua socialização e condição de vida (Del Prette &
Del Prette, 2013). Estudos que descrevam o repertório de habilidades sociais de crianças
fissuradas, no início da sua escolarização formal podem subsidiar a implementação de
intervenções pontuais e/ou preventivas visando à melhoria da qualidade de vida desta
população.
O presente estudo pretendeu: a) relacionar os indicadores de dificuldade escolar,
presença/ausência de chacota e problemas de comportamento com sexo, idade, série, tipo
de escola e tipo de fissura relatados pelos pais; b) descrever o repertório de habilidades
sociais de crianças com fissura labiopalatal e, c) associar o repertório de habilidades sociais
às variáveis da criança: sexo, idade, série escolar, tipo de escola, tipo de fissura.
Método
A pesquisa foi conduzida dentro dos padrões éticos exigidos pela Resolução 196/96
do Conselho Nacional de Saúde do Brasil. Foi aprovada pela Comissão de Pesquisa e pelo
Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Anomalias Craniofaciais
(HRAC), da Universidade de São Paulo (USP), Campus de Bauru (Processo CAAE nº
0006.0.289.000-10).
Participaram deste estudo 60 usuários do HRAC/USP, situado na cidade de Bauru,
estado de São Paulo, sendo 31 (51,7%) meninos e 29 (48,3%) meninas. Da amostra 10
(16,7%) tinham entre 7 anos e 7anos e 11 meses de idade, 26 (43,3%) entre 8 anos e 8
anos e 11 meses e 24 (40%) entre 9 anos e 9 anos e 11 meses. Quanto ao ano escolar,
30 estavam no 1º e 2º ano e 30, no 3º e 4º ano. Deles, 48 (80%) frequentavam a escola
pública e 12 (20%) escola particular. Quanto ao tipo de fissura, 29 (46,7%) tinham fissura
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transforame, 15 (25%) pós-forame e 16 (28,3%) pré-forame. Todos estavam em processo
de reabilitação orofacial.
Os critérios de elegibilidade das crianças da amostra foram: a) capacidade de
compreensão e expressão comunicativa; b) não apresentar outros comprometimentos,
tais como síndromes associadas, deficiência mental e/ou quaisquer outros distúrbios que
comprometam os aspectos cognitivos ou emocionais e, c) estar cursando as primeiras
séries do ensino fundamental (1ª a 4ª série). Vale ressaltar que os itens a e b foram antes
investigados pela pesquisadora em prontuários.
Para caracterizar as condições sociodemográficas foi utilizado um protocolo de
entrevista, que constituiu de perguntas abertas e fechadas, com informações referentes
à identificação da criança (sexo, idade, escolaridade, tipo de fissura, presença/ausência
de dificuldades de aprendizagem, bulling em diferentes contextos e problemas de
comportamento) e dados dos componentes familiares (idade, escolaridade e ocupação
dos pais, estado civil e renda familiar). Este protocolo foi desenvolvido pela pesquisadora
especificamente para este estudo.
Para a avaliação das habilidades sociais foi aplicado o Sistema Multimídia de
Habilidades Sociais de Crianças (SMHSC) (Del Prette & Del Prette, 2005). Trata-se de
um instrumento aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia, com estudos psicométricos
que atestam sua validade e fidedignidade. O instrumento é composto por 21 itens que
retratam vários contextos do cotidiano escolar de crianças das séries iniciais do ensino
fundamental, em situações de interação destas com outras crianças e com adultos. Esses
itens são divididos em subescalas. A Subescala 1 avalia a Empatia e Civilidade. Referem-se
às habilidades de expressão de sentimentos positivos de solidariedade e companheirismo
ou de polidez social. Os comportamentos referentes a esta subescala são: pedir desculpas,
oferecer ajuda, responder pergunta da professora, fazer pergunta à professora, agradecer
um elogio, consolar o colega, elogiar o objeto do colega, defender o colega. A Subescala
2 avalia a Assertividade de Enfrentamento e refere-se às habilidades de afirmação e
defesa de direitos e de autoestima, com risco potencial de reação indesejável por parte
do interlocutor. Pertence a esta subescala os comportamentos de: expressar desagrado,
pedir mudança de comportamento, propor nova brincadeira, resistir à pressão do grupo,
defender-se de acusações injustas. A Subescala 3 avalia o Autocontrole que se refere
às habilidades que envolvem controle emocional diante de frustração ou de reação
negativa ou indesejável de colegas. As habilidades desta subescala são: recusar pedido
de colega, demonstrar espírito esportivo, negociar, convencer, aceitar gozações. A
Subescala 4 avalia a Participação em Grupos referindo-se às habilidades de envolver-se
e comprometer-se com o contexto social mesmo quando as demandas do ambiente não
lhes são especificamente dirigidas. Pertencem a esta subescala as habilidades de juntarse a um grupo de brincadeiras, mediar conflitos entre colegas, responder perguntas da
professora.
Para cada item é apresentada uma situação na qual determinada habilidade social
é requerida. O participante deve escolher entre três possibilidades de reações: uma
habilidosa, uma não habilidosa ativa (ou externalizante) e uma não habilidosa passiva
(ou internalizante). A criança responde a uma escala tipo Likert sobre a frequência
(nunca, às vezes e sempre), adequação (errado, mais ou menos e certo) para emitir
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Aletheia 45, set./dez. 2014
cada uma de suas reações e sobre sua dificuldade (muita, pouca e nenhuma) de emitir
a reação habilidosa.
Foi realizado, junto à Central de Agendamento do HRAC/USP, um levantamento dos
pacientes que seriam convocados para consulta de rotina ambulatorial no período de agosto
a novembro de 2010. Por ocasião da mesma os atendimentos para possível participação no
projeto foram agendados. No primeiro atendimento os pais e pacientes foram informados
sobre a pesquisa, seus objetivos e procedimentos. Dirimidas as dúvidas e explicitados
seus direitos e deveres foram convidados a participar voluntariamente da mesma. Em
caso de aceite os pais assinaram um termo de livre consentimento, concordando com a
sua participação e autorizando a dos seus filhos, bem como a provável divulgação dos
resultados em publicações científicas e eventos da área, conforme resolução 196/96 do
Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Brasil, 1996).
Inicialmente foi realizada, com os pais, a entrevista contendo um roteiro de coleta
de dados sociodemográficos, com o objetivo de caracterizar a amostra deste estudo. Logo
após, seguiu-se com a aplicação, com a criança, do instrumento Sistema Multimídia de
Habilidades Sociais de Crianças (SMHSC) (Del Prette & Del Prette, 2005).
Antes de iniciar a aplicação do instrumento SMHSC, a pesquisadora estabeleceu o
rapport com a criança para reduzir a sua possível ansiedade e motivá-la para a realização
da atividade. Para isso, a pesquisadora explicou o que era o teste e por que estava sendo
feito. Em seguida, a pesquisadora verificou o tipo de supervisão necessária a cada criança.
Utilizando os cartões com as siglas das escalas (conforme material do teste), procedeu de
forma lúdica solicitando a criança para mostrar em qual cartão estava escrito, por exemplo,
CERTO. Com base na capacidade de leitura da criança, a pesquisadora definiu, então,
o tipo de supervisão necessária. Vale ressaltar que todas as crianças tiveram Supervisão
do tipo I. Conforme manual, a Supervisão I é aplicada a criança que consegue ler todos
os textos e siglas, cabendo o examinador conferir, nos primeiros três itens do teste, se de
fato a criança está compreendendo as situações e reações e respondendo de acordo com
as instruções. A criança era colocada diante do computador. A pesquisadora enfatizava
que não existiam respostas certas ou erradas, pedindo atenção e sinceridade ao responder
cada situação, avisando que permaneceria no local para ajudá-la, se preciso. A própria
criança manejava o mouse e respondia de acordo com as instruções.
A aplicação dos instrumentos foi ministrada pela própria pesquisadora, de
forma individual, com todas as condições de privacidade, no setor de Psicologia do
HRAC/USP.
Os dados obtidos na entrevista com os pais foram quantificados sob a forma de
frequência e porcentagem. Para a correção do SMHSC (Del Prette & Del Prette, 2005)
foi utilizado o Módulo de Processamento de Dados da Versão Informatizada (MPD)
do teste que computa a média geral da criança nos 21 itens da escala para cada um dos
indicadores (frequência, dificuldade e adequação). A pontuação pode variar de zero a dois
para todos os indicadores e reações. O MPD organiza os resultados da criança, situando-os
em relação aos dados do grupo amostral de referência. O grupo normativo de referência
foi composto de crianças de ambos os gêneros, com idade variando de sete a 12 anos, de
escolas estaduais da cidade de São Paulo. Os valores de referência (média e desvio padrão)
do grupo normativo do SMHSC para a escala total e todas as subescalas, nos indicadores
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de dificuldade, frequência e adequação e reações para as comparações utilizadas estão na
Tabela do Manual do SMHSC-Del-Prette (Del Prette & Del Prette, 2005).
Os dados foram codificados e digitados em planilhas do programa Excel, compondo
um banco de dados para serem analisados utilizando o pacote software livre R v
2.8.0. Inicialmente foram realizadas análises descritivas a fim de caracterizar o perfil
dos participantes quanto às características sociodemográficas, utilizando medidas de
frequência e porcentagem.
Para verificar as possíveis comparações entre as medianas dos indicadores e reações
e dos problemas de comportamento, segundo os gêneros, o tipo de escola e a escolaridade
das crianças utilizou-se o Teste de Mann-Whitney. Para as comparações, segundo o tipo de
fissura e a idade, foi utilizado o Teste de Kruskal-Wallis. Adotou-se em todas as análises
o critério de significância p<0,05.
Resultados e discussão
Os resultados serão apresentados e discutidos seguindo a seguinte ordem: descrição
da amostra de acordo com o gênero, idade, série escolar, tipo de escola e tipo de fissura
e associação destas variáveis considerando dificuldade escolar, ocorrência de chacota e
problemas de comportamento segundo relato dos pais e, a comparação do desempenho
no SMHSC-Del-Prette com as variáveis: gênero, idade, série escolar, tipo de escola e
tipo de fissura.
Observou-se que a maioria (75%) das crianças, segundo o relato dos pais, não
apresentou dificuldades escolares, com pouca diferença entre meninos e meninas e
entre os anos escolares. Todavia 23,3% das crianças de escola pública apresentaram
dificuldades escolares. Notou-se também que as dificuldades escolares são maiores em
crianças com o tipo de fissura transforame (11,6%) (Tabela 1). Esse resultado parece não
diferir dos dados da pesquisa desenvolvida por Domingues et al. (2011), que encontraram
desempenho escolar satisfatório em crianças com fissura labiopalatina. Considerando
que a fissura labiopalatina é um indicador de risco para infecções precoces do ouvido
médio (Buffa, 2009), principalmente a do tipo transforame, o que pode prejudicar o
desenvolvimento de habilidades auditivas tais como a atenção (Lemos & Feniman, 2010),
os dados do presente estudo sugerem que as crianças da amostra podem apresentar déficit
na atenção auditiva sustentada, impossibilitando a criança de manter o foco atencional
por um período de tempo, o que pode contribuir para as dificuldades escolares, como
problemas no desenvolvimento de linguagem e dificuldades de leitura (Mondelli, Ventura,
& Feniman, 2013).
O estudo também verificou os tipos de dificuldade escolar, conforme o relato
dos pais. Das 15 crianças cujos pais relataram dificuldade, 16,7% referiram à Língua
Portuguesa. Tal fato pode estar associado à disciplina escolar, a aquisição e expressão da
fala, bem como, ao déficit na atenção auditiva sustentada. Os resultados são concordantes
com outros estudos que evidenciam a fissura labiopalatina como indicador de risco para
distúrbios na aquisição de linguagem oral e escrita (Domingues et al., 2011; Lemos &
Feniman, 2010), sendo estas habilidades fundamentais para o aprendizado da Língua
Portuguesa. Em consequência do déficit auditivo, podemos inferir que as alterações
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Aletheia 45, set./dez. 2014
de linguagem podem ser consideradas como um indicativo impactante em atividades
dialógicas e na aquisição da leitura e escrita. O estudo realizado por Jacob e Tabaquim
(2014) com crianças fissuradas apontou que alterações de linguagem estavam relacionadas
às dificuldades em acessar e reter informações, na compreensão dos significados nas
combinações de palavras e frases, e no entendimento de situações diversificadas em um
contexto específico de relações interpessoais. Entretanto, devemos olhar para este dado
com cautela, considerando a forma como foi avaliado. Portanto, para futuros estudos,
sugere-se a investigação de possíveis dificuldades escolares a partir de testes padronizados
de desempenho escolar.
Tabela 1 – Associações entre os indicadores de dificuldade escolar, chacota e problemas de comportamento
com as variáveis: gênero, idade, série, tipo de escola e tipo de fissura.
Dificuldade Escolar?
GÊNERO
Sim
Masculino
8
(13,3%)
23 (38,3%)
Feminino
7
(11,7%)
22
(36,7%)
7 anos
2
(3,33%)
8 anos
9 anos
p
Sim
Não
Sim
Não
16
(26,7%)
15
(25%)
10
(16,7%)
19
(31,7%)
6
(10%)
5
(8,33%)
5
(8,33%)
11
(18,3%)
15
(25%)
10
(16,6%)
16
(26,6%)
19
(31,6%)
11
(18,3%)
13
(21,6%)
11
(18,3%)
13
(21,6%)
6
(10%)
24
(40%)
14
(23,3%)
16
(26,6%)
12
(20%)
18
(30%)
9
(15%)
21
(35%)
12
(20%)
18
(30%)
14
(23,3%)
16
(26,6%)
Pública
14
(23,3%)
34
(56,6%)
24
(40%)
24
(40%)
21
(35%)
27
(45%)
Particular
1
(1,6%)
11
(18,3%)
2
(3,33%)
10
(16,6%)
5
(8,33%)
7
(11,6%)
Transforame
7
(11,6%)
22
(36,6%)
17
(28,3%)
12
(20%)
10
(16,6%)
19
(31,6%)
Pós-Forame
4
(6,6%)
11
(18,3%)
4
(6,6%)
11
(18,3%)
6
(10%)
9
(15%)
Pré-Forame
4
(6,6%)
12
(20%)
5
(8,33%)
11
(18,3%)
10
(16,6%)
6
(10%)
17 (28,4%)
8
(13,3%)
21
(35%)
8
(13,3%)
4
(6,66%)
8
(13,3%)
18
(30%)
5
(8,3%)
1ª e 2ª séries
3ª e 4ª séries
1,00
14
(23,3%)
p
0,44
Não
Problemas de
Comportamento?
Sofre Chacota?
p
0,20
Variáveis
0,83
1,00
0,72
IDADE
0,79
0,79
0,75
SÉRIE
ESCOLAR
1,00
0,05
0,26
TIPO DE
ESCOLA
0,19
0,08
1,00
TIPO DE
FISSURA
p = Nível de significância
Aletheia 45, set./dez. 2014
31
Com relação à presença de chacotas no ambiente escolar, 36,6% dos pais
reconhecem que seu filho é vítima, sendo mais frequente entre os meninos
(23,3%) do que entre as meninas (13,3%) e entre as idades de oito e nove anos
(18,3% respectivamente). Todavia 40% das crianças que estudam na rede pública
apresentaram segundo o relato dos pais sofrerem de chacota. Notou-se também,
que as crianças com fissura do tipo transforame sofrem mais de chacotas (28,3%)
quando comparada aos outros dois tipos (p=0,08 significante para 90%) (Tabela
1). Os resultados parecem não diferir de outros estudos que mostram um índice
significativo de crianças em idade escolar, com ou sem fissura, vítimas de apelidos,
gozações, imitações, comentários jocosos, atitudes de rejeição e ridicularização por
parte dos colegas, nos primeiros anos escolares (Miguel et al., 2009; Guimarães,
2010). Considerando que alterações nas estruturas do palato, características do
tipo de fissura transforame, podem acarretar distúrbios de fala específicos como
a hipernasalidade e as alterações decorrentes do escape de ar nasal durante a
produção da fala (Amaral et al., 2010; Lemos & Feniman, 2010; Pazinato et al.,
2014), podemos inferir que a inteligibilidade na comunicação pode levar a criança
ao desajuste psicossocial, pelo fato de não ser entendida, dando a impressão de
limitações intelectuais, físicas e inabilidade social. Além do comprometimento da
fala existe o facial, característico da fissura do tipo transforame que também podem
levar de uma forma geral, às respostas sociais não favoráveis, consequências de
estigmas (Maggi & Scopel, 2011).
Dos pais que identificaram a chacota, 42,9% revelaram que seus filhos se
reportam, preferencialmente, ao diretor enquanto que as filhas, aos professores (50%).
Os resultados obtidos neste estudo contrariam os de Bachega (2002) que destaca
que a criança com fissura lida melhor com situações de chacotas e preconceitos,
apresentando-se como menos dependente, com tendência a aprender a lidar com essas
ocorrências e a fazer frente a elas. De fato, Bernstein e Kapp (1981) ressaltam que a
criança com fissura labiopalatina luta determinadamente para adquirir autoestima e, já
na adolescência, desafia-se a desenvolver sentimentos de valia e competência. Todavia,
para futuros estudos, sugere-se uma avaliação da criança com relação a administração
das situações de chacota.
Outro fato analisado foi à presença/ausência de problemas de comportamento sob
o ponto de vista dos pais. Observa-se que, para pouco mais que a metade dos meninos
(52%) os pais relataram problemas de comportamento e que, entre as meninas, isso é
relatado para 35% delas, com pouca diferença entre os tipos de fissura (Tabela 1). Tais
dados são condizentes com a literatura que revela maior frequência de ocorrência de
comportamentos problemáticos entre os meninos, também independente da existência
da fissura (Emerich et al., 2012; Loosli & Loureiro, 2010).
Quanto ao tipo de problema de comportamento que as crianças apresentam,
segundo seus pais, prevaleceu à agressividade e o nervosismo entre os meninos (25%)
e o isolamento entre as meninas (30%). Este dado é condizente com os achados de
Emerich et al. (2012), que encontraram escores significativamente mais altos nas
escalas de problemas externalizantes, tais como problemas de sociabilidade, de
agressividade e violação de regras em meninos quando comparados às meninas.
32
Aletheia 45, set./dez. 2014
Todavia, os resultados são parcialmente concordantes com os achados de Borsa e
Nunes (2011) que identificaram que tanto os meninos quanto as meninas apresentam
alta prevalência de problemas de comportamentos agressivos (externalizantes), seguidos
por problemas de isolamento (internalizantes). Os autores não encontraram diferença
estatisticamente significativa entre meninos e meninas para os diferentes tipos de
problemas de comportamento.
Quando comparadas as variáveis gênero, idade, série e tipo de fissura, segundo
o relato dos pais, com as das variáveis de dificuldades escolares, chacota e problemas
de comportamento, não observou-se diferenças significativas. Todavia, considerando o
tipo de escola os dados parecem indicar a presença significantemente maior de chacota
entre as crianças de escola pública (p=0,05) (Tabela 1). Tais dados parecem não diferir
dos achados em crianças sem problemas de saúde e independente do tipo de escola
(Calbo, Busnello, Rigoli, Schaefer, & Kristensen, 2009; Alckmin-Carvalho, Izbicki,
& Melo, 2014).
A Tabela 2 mostra os valores médios do repertório de habilidades sociais (HAB) e
das reações não habilidosas passivas (NHP) e ativas (NHA) tomadas como indicadores
de problemas de comportamento internalizantes e externalizantes das crianças com
fissura labiopalatina. Considerando os escores médios, apenas a “frequência” e a
“adequação” não habilidosa ativa e a “dificuldade” socialmente habilidosa apontada
pelas crianças, apresentou-se abaixo da média, quando comparada à amostra de
referência (Del Prette & Del Prette, 2005).
Em relação ao fator empatia e civilidade, quase todos os valores apresentaramse próximos a média, com exceção da frequência e da adequação da reação não
habilidosa passiva (comportamento internalizante), que estavam abaixo da média.
No fator assertividade e enfrentamento a frequência e a adequação da reação não
habilidosa ativa e a dificuldade da reação socialmente habilidosa apresentaramse abaixo da média. No fator autocontrole, a frequência e a adequação da reação
não habilidosa ativa e a dificuldade de emitir uma reação habilidosa apresentaram
abaixo da média, enquanto que os outros valores estavam próximos a média, quando
comparados à amostra de referência (Del Prette & Del Prette, 2005). Por fim, no
fator participação, apenas a frequência e a adequação da reação não habilidosa ativa
foi apontada pelas crianças como abaixo da média, pois os demais valores estavam
próximos a média.
Aletheia 45, set./dez. 2014
33
Tabela 2 – Escore médio (global e fatoriais) para todos os itens, nos indicadores de dificuldade, frequência
e adequação, e reações apresentados pelas crianças do estudo e pela amostra de referência por meio do
SMHSC-DEL PRETTE.
ESCORES FATORIAIS DO SMHSC-Del Prette
ESCORE
GLOBAL
Indicadores
Frequência
Adequação
Dificuldade
Reações
Méd.
HAB
Refer.
1,44
HAB
Amostra
1,38
NHP
Refer.
0,68
NHP
Amostra
0,61
NHA
Refer.
0,56
NHA
Amostra
0,09
HAB
Refer.
1,03
HAB
Amostra
1,63
NHP
Refer.
0,37
NHP
Amostra
0,79
NHA
Refer.
0,65
NHA
Amostra
0,12
HAB
Refer.
0,71
HAB
Amostra
0,45
DP
Empatia e
Civilidade
Méd.
DP
1,70
0,23
Assertiv.
Enfrentam.
Méd.
1,32
0,30
1,67
0,02
1,60
0,66
1,86
0,96
0,35
0,49
0,32
0,48
0,04
0,44
0,58
0,12
1,07
0,47
0,46
0,55
0,46
0,13
0,84
0,35
0,34
1,05
0,40
0,45
0,17
0,41
0,28
1,26
0,36
1,06
0,52
0,58
1,83
1,21
0,41
0,31
1,54
0,39
1,46
0,82
0,43
0,07
1,40
1,11
0,27
0,65
0,44
0,34
1,40
0,43
0,77
0,08
1,32
0,45
0,75
0,77
0,18
0,40
0,40
0,34
0,65
0,50
0,46
DP
1,54
0,86
0,57
Méd.
1,57
0,78
0,45
0,28
Participação
0,40
1,22
0,68
0,29
0,21
DP
1,09
0,83
0,33
0,37
Méd.
0,39
1,10
0,56
0,26
DP
Autocontrole
0,49
0,49
HAB = Reação Habilidosa; NHP = Reação Não Habilidosa Passiva (internalizante);
NHA = Reação Não Habilidosa Ativa (externalizante).
Detalhando os escores fatoriais do SMHSC-Del Prette (Del Prette & Del Prette,
2005) observamos que das 28 possibilidades de análise 53,5% delas estão abaixo do
esperado. Todavia, para a reação “não habilidosa ativa” observa-se que dos cinco
itens analisados, entre eles o escore global, dez se apresentaram abaixo do esperado
(Tabela 2). A reação não habilidosa ativa (comportamentos externalizantes) avalia os
comportamentos apresentados pela pessoa para lidar com as demandas interativas
34
Aletheia 45, set./dez. 2014
do seu ambiente que comprometem sua competência social por se expressarem
predominantemente na forma aberta da agressividade física e verbal, negativismo,
ironia, autoritarismo, agitação, impulsividade, características desafiantes, condutas
antissociais (como mentir e roubar) e coerção (Del Prette & Del Prette, 2013). Em
relação à amostra de referência, as crianças deste estudo apresentaram indicadores
de problemas de comportamento internalizantes (reações não habilidosas passivas),
que são desfavoráveis ao seu desenvolvimento. De acordo com Amaral, Martins e
Santos (2010), Lemos e Feniman (2010) e Pazinato et al. (2014), a criança com fissura
labiopalatina apresenta maior dificuldade na defesa de seus próprios direitos diante de
pessoas desconhecidas e um comportamento mais passivo relacionado à expressão de
suas emoções.
Desta maneira, sabendo da importância do acompanhamento psicológico no
tratamento das fissuras labiopalatinas e a partir dos resultados apresentados, justificase a criação de um programa de treinamento em habilidades sociais específicos para
a criança com fissura, pelo setor de Psicologia do HRAC/USP já que a intervenção
preventiva pode minimizar ou mesmo, resolver problemas futuros relacionados ao
ajustamento psicossocial, em decorrência dos comprometimentos físicos e funcionais
das fissuras.
Análises comparativas entre variáveis como sexo, idade, série, tipo de escola e tipo
de fissura com os resultados obtidos no SMHSC-Del Prette (Del Prette & Del Prette,
2005) apontaram para diferenças significativas apenas entre os gêneros na frequência
em habilidade passiva, mais presente no repertório de meninas do que de meninos,
coerente com a diferença também observada na dificuldade habilidosa, maior para as
meninas (Tabela 3).
Aletheia 45, set./dez. 2014
35
36
Méd.
(DP)
1,39
(0,25)
0,68
(0,29)
0,08
(0,16)
1,63
(0,23)
0,78
(0,30)
0,11
(0,17)
0,54
(0,44)
4,00
(3,93)
0,51
(1,42)
Méd.
(DP)
1,36
(0,28)
0,54
(0,23)
0,08
(0,15)
1,63
(0,22)
0,80
(0,27)
0,11
(0,16)
0,36
(0,43)
3,29
(2,39)
0,54
(1,70)
FH
FHP
FHA
AH
AHP
AHA
DH
PCI
PCE
8a
Méd.
(DP)
1,35
(0,26)
0,56
(0,22)
0,07
(0,08)
1,63
(0,20)
0,78
(0,26)
0,09
(0,12)
0,39
(),37)
3
(2,49)
0,26
(0,66)
7a
Méd.
(DP)
1,31
(0,32)
0,69
(0,36)
0,17
(0,33)
1,48
(0,31)
0,83
(0,30)
0,23
(0,31)
0,75
(0,59)
5,4
(5,12)
1,7
(3,36)
U
IDADE
Aletheia 45, set./dez. 2014
1,60
(0,30)
0,73
(0,25)
0,07
(0,09)
0,39
(0,36)
2,5
(2,77)
0,08
(0,28)
1,63
(0,21)
0,80
(0,29)
0,12
(0,18)
0,46
(0,46)
3,91
(3,29)
0,64
(1,73)
0,05
(0,08)
1,67
(0,19)
0,76
(0,31)
0,07
(0,08)
0,36
(1,40)
3,26
(2,66)
0,23
(0,72)
0,11
(0,20)
1,58
(0,25)
0,82
(0,26)
0,15
(0,21)
0,53
(0,47)
4,00
(3,71)
0,83
(2,06)
0,57
(0,28)
0,09
(0,11)
1,62
(0,28)
0,73
(0,31)
0,12
(0,15)
0,38
(0,43)
2,57
(2,00)
1,06
(0,00)
0,64
(0,27)
0,09
(0,20)
1,60
(0,20)
0,80
(0,30)
0,12
(0,20)
0,52
(0,43)
3,66
(3,00)
2,08
(0,00)
0,54
(0,00)
2,56
(2,00)
0,27
(0,24)
0,09
(0,09)
0,82
(0,23)
1,69
(0,22)
0,07
(0,08)
0,58
(0,25)
1,32
(0,28)
U
0,08
0,33
(0,81)
0,06
(0,08)
0,09
(0,17)
0,57
(0,27)
0,64
(0,26)
1,42
(0,27)
1,38
(0,26)
Méd.
(DP)
0,43
3,58
(2,79)
0,55
(0,28)
0,62
(0,26)
1,39
(0,29)
1,37
(0,25)
Méd.
(DP)
Méd.
(DP)
U
Pré
0,94
0,38
(0,41)
1,34
(0,26)
1,39
(0,27)
Méd.
(DP)
Méd.
(DP)
U
Pós
Tran.
TIPO DE FISSURA
0,88
0,08
(0,08)
Méd.
(DP)
Méd.
(DP)
U
3ª/4ª
1ª/ 2ª
SÉRIE ESCOLAR
0,20
0,78
(0,31)
Part.
Públ.
TIPO DE ESCOLA
0,70
1,68
(0,19)
0,72
(0,09)
0,62
(0,26)
1,43
(0,26)
Méd.
(DP)
9a
0,77
0,61
0,41
0,34
0,18
0,54
0,23
0,11
1
0,07
0,56
0,32
0,98
1
0,21
0,36
0,75
0,08
0,23
0,38
0,50
0,78
0,14
0,97
0,50
0,15
0,40
0,57
0,70
0,03
0,96
0,95
0,85
0,77
0,04
0,84
0,91
FH=Frequência Habilidosa; AH=Adequação Habilidosa; DH= Dificuldade Habilidosa; P=Passiva; A=Ativa;
PCI= Problema de Comportamento Internalizante; CPE= Problema de Comportamento Externalizante; DP= Desvio Padrão; U=Mann-Whitney.
Fem.
Reações
Masc.
GÊNERO
Tabela 3 – Valores de referência (média e desvio padrão) das comparações entre as reações avaliadas pelo SMHSC-DEL PRETTE e variáveis das crianças.
0,78
0,63
Entre as demais variáveis não foram observadas diferenças significativas. Essa
constatação é reforçada com o resultado da pesquisa de Richman e Millard (1997) que
indicaram maior inibição social (comportamento internalizante) para as meninas com
fissura labiopalatina. Dados da literatura também sugerem que as meninas mostram
mais frequentemente problemas de comportamentos internalizantes, o que pode
contribuir para elas internalizarem seu desconforto diante de dificuldades encontradas
e somatizá-las, o que também é indicativo de problemas de comportamento, já que
comportamentos internalizantes podem dificultar o desenvolvimento social, à medida
que ficarão reduzidas as oportunidades de interação e de desenvolvimento de repertórios
imprescindíveis ao seu desenvolvimento global (Loosli & Loureiro, 2010; Murray et
al., 2010).
Considerações finais
O presente projeto avaliou o repertório de habilidades sociais de crianças com
fissura labiopalatal relacionando-o com variáveis demográficas e contextuais. Os
resultados apontaram para a presença de comportamentos internalizantes principalmente
entre as meninas corroborando com os achados da literatura (Loosli & Loureiro, 2010;
Murray et al., 2010; Richman & Millard, 1997) que identificaram o mesmo problema de
comportamento em crianças com e sem a malformação. Todavia podemos sugerir que a
face atípica e, muitas vezes, acompanhada de voz hipernasalada podem ser indicativos
significativos para as dificuldades no convívio social, principalmente nos primeiros
anos escolares, tendo em vista, que nesta fase a criança terá que enfrentar novos
relacionamentos, será avaliada e julgada na sua aparência física e na sua comunicação
e, como consequência, tais circunstâncias podem gerar comportamentos de timidez.
Constatou-se, também, uma lacuna importante no repertório social das crianças
com fissura, no que se refere às habilidades não ativa. Os resultados mostraram baixa
taxa de comportamentos externalizantes, o que pode contribuir para maior dificuldade
na defesa de seus próprios direitos diante de pessoas desconhecidas e, até mesmo,
diante das chacotas.
Observou-se uma maior necessidade dos meninos serem acompanhados em sua
aquisição de habilidades sociais, visando à prevenção de comportamentos problemáticos
(externalizantes) e uma maior atenção ao repertório de habilidades sociais das meninas,
que apresentaram mais comportamentos internalizantes. Ambos são considerados
indicativos de problemas de comportamento, principalmente pelo fato de reduzir as
oportunidades de interação e de desenvolvimento de repertórios imprescindíveis ao
desempenho social das crianças.
Todavia, a maioria dos resultados apontou que a presença da fissura, assim como
as habilidades sociais identificadas não foram relacionadas a variáveis demográficas
como gênero, idade, série escolar, tipo de escola e tipo de fissura. Os dados sugerem
pelo menos duas explicações possíveis. Uma delas se refere ao atendimento a que é
exposto à criança com fissura labiopalatina desde o nascimento. Até a idade escolar,
típica da população estudada, a criança já passou por, pelo menos, três cirurgias no
Hospital HRAC/USP, centro de referência da anomalia no país. Os episódios cirúrgicos
Aletheia 45, set./dez. 2014
37
assim como os atendimentos ambulatoriais são acompanhados, além dos profissionais
específicos, de atendimento psicológico com o objetivo de acompanhar a criança
e sua família, realizando encaminhamentos a profissionais da cidade de origem da
criança se detectado problemas de adaptação identificados ou descritos por pais. Tal
atenção especializada pode colaborar para o desenvolvimento psicológico da criança,
auxiliando-a no desenvolvimento de habilidades sociais adequadas, minimizando
o impacto do defeito da face, ainda que bastante melhorado com as intervenções
cirúrgicas.
Outro ponto pode ser que a fissura labiopalatina é uma anomalia que, se não
totalmente reversível, é bastante atenuada com os tratamentos disponíveis propiciando
que a criança aprenda a lidar com a situação, de forma que não interfira em outros aspectos
da sua vida. Todavia, é importante que intervenções precoces da área da Psicologia
ajude pais e crianças a viver com qualidade, independente da mal formação.
Entretanto, faz-se necessário, ao analisar os achados do presente estudo, destacar
algumas limitações inerentes aos aspectos metodológicos utilizados. A primeira delas
refere-se ao fato da dificuldade escolar, chacotas e problemas de comportamento terem
sido obtidos a partir de uma entrevista favorecendo limitações quanto à confiabilidade
das informações fornecidas pelos pais. Considera-se interessante, para próximos estudos,
que se avaliem a percepção dos professores no que se refere ao desempenho escolar da
criança, chacotas e problemas de comportamento. Outra forma interessante de avaliar
o desempenho escolar seria por meio de instrumentos padronizados e com relação as
chacotas, as crianças poderiam ser ouvidas.
Outro ponto a ser comentado também é que as informações sobre as habilidades
sociais infantil foram avaliadas pelo relato de uma única fonte, as crianças, não sendo
incluídas outras fontes de relato tais como professores, pais e cuidadores. Tem-se,
também, a escassez de estudos nacionais e internacionais referentes as habilidades
sociais e a população estudada. A maioria dos estudos sobre o repertório de habilidades
sociais infantil centra-se em crianças sem problemas de saúde. Desta maneira, tornam-se
fortes os indicativos de que mais pesquisas sejam realizadas a esse respeito.
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_____________________________
Recebido em março de 2015
Aceito em maio de 2015
Francislaine da Silva: Psicóloga, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Bauru.
Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues: Psicóloga, Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade
de São Paulo e livre-docente em Psicologia do Desenvolvimento, pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho – UNESP/Bauru.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
41
Aletheia 45, p.42-55, set./dez. 2014
Composição de um grupo de trabalho de apoio às equipes
da rede básica de saúde: análise em uma situação de desastre
Manoela Fonseca Lüdtke
Daniela Kaufmann Seady
Vânia Maria Fighera Olivo
Resumo: Os Grupos de Trabalho (GT) e a Função Apoio são importantes dispositivos desenvolvidos
pela Política Nacional de Humanização (PNH). Em situações de desastre, como o incêndio na
boate Kiss que vitimou 242 jovens, em Santa Maria/RS, esses dispositivos são essenciais. Este
artigo objetiva analisar a composição do GT nomeado Atenção Básica e Redes (GT ABR), que
apoiou a Atenção Básica no contexto de desastre em Santa Maria. Foram analisados, via Análise de
Conteúdo, entrevistas semiestruturadas com profissionais que coordenaram o grupo e os relatórios
que descreviam as atividades diárias do GT. Foram encontradas seis categorias: identificação
de experiência teórico-prática dos sujeitos; o “entre” na organização do processo de trabalho,
concepção de apoio; lateralidade das relações; cogestão; formação-intervenção. Conclui-se que
o GT ABR operou a partir dos conceitos da PNH, além de organizar coletivos para produção de
saúde e promover impacto no sistema de saúde de Santa Maria.
Palavras-chave: Desastre, apoio institucional, humanização.
Composition of a working group support teams of basic health
network analysis in a disaster situation
Abstract: The Working Groups (WG) and the support function are important devices developed by
the National Humanization Policy (PNH). In disaster situations, such as the fire at Kiss nightclub
that killed 242 young people in Santa Maria / RS, these devices are essential. This article aims to
analyze the composition of the GT named Primary and Networks (GT ABR), which supported
the Primary Care in the disaster context in Santa Maria. Were analyzed via content analysis,
semi-structured interviews with professionals who coordinated the group and reports describing
the daily activities of the GT. We found six categories: identification of theoretical and practical
experience of subjects; the “between” in the organization of the work process, design support;
lateral relations; co-management; training intervention. It follows that the GT ABR operated from
the concepts of PNH, and organize collective health to promote production and impact in the health
system of Santa Maria.
Keywords: Disaster, institutional support, humanization.
Introdução
A Política Nacional de Humanização (PHN) surgiu em 2003 sob os efeitos da 11ª
Conferência Nacional de Saúde com a incumbência de indicar princípios metodológicos
que apontassem modos de tornar realidade os princípios e diretrizes do Sistema Único
de Saúde (SUS) (Oliveira, 2011). Entre os diversos dispositivos que foram sendo
desenvolvidos a PNH criou os Grupos de Trabalho de Humanização.
De acordo com a PNH, o Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) é um
dispositivo criado para o SUS, com o objetivo de intervir na melhoria dos processos de
trabalho e na qualidade da produção de saúde para todos. O GTH institui-se em qualquer
instância do SUS e é integrado por pessoas interessadas em discutir os serviços prestados,
a dinâmica das equipes de trabalho e as relações estabelecidas entre trabalhadores de saúde
e usuários (Brasil, 2008). A proposta dos Grupos de Trabalho vai ao encontro de outro
dispositivo desenvolvido teoricamente também pela PNH e principalmente por Campos
(2003): o método da Função Apoio.
A Função Apoio é um método de trabalho caracterizado pela articulação dos aspectos
políticos, pedagógicos e subjetivos, que constituem os processos de trabalho, objetivando
a produção de bens ou serviços e a produção de sujeitos e coletivos (Oliveira, 2011). Desse
modo, a Função Apoio é chave para a instauração de processos de mudança em grupos
e organizações, pois é entendida como diretriz e dispositivo para ampliar a capacidade
de reflexão, de entendimento e de análise de coletivos, que, assim, podem qualificar sua
própria intervenção, sua capacidade de produzir mais e melhor saúde (Brasil, 2008).
O apoio produz mudanças nos modos de agir em saúde, pois busca o fortalecimento
de práticas regidas por negociações, diálogos, e não por práticas hierarquizadas,
centralizadoras e burocráticas que tentam capturar os movimentos inventivos (Guedes,
Roza, & Barros, 2012). Seguindo os autores citados, a estratégia de apoio se efetiva com o
acompanhamento da construção dos percursos dessa transformação, podendo se organizar
através de grupos de trabalhos específicos, uma vez que apoiar é colocar-se ao lado,
afirmar a potência criadora do humano, sem fazer pelo outro, e isso exige planejamento
e organização do processo trabalho.
Em situações de desases a Função Apoio e o desenvolvimento de Grupos de Trabalho
tornam-se ainda mais relevantes, uma vez que são momentos que se configuram em
ocorrências que atingem uma população que passa a vivenciar, na realidade, uma situação
repentina, desorganizadora ou disruptiva que desestrutura sua vida de forma violenta e
traumatizante, temporária e/ou definitivamente (Paladino & Thomé, 2011). Essas situações
exigem respostas humanas organizadas que refletirão a consciência alcançada pelos
profissionais de saúde e pelas autoridades em geral sobre a complexidade específica da
situação e sobre a necessidade de abordá-la na maior quantidade de aspectos possíveis
das áreas do conhecimento humano (Paladino & Thomé, 2011).
No caso específico deste estudo, analisa-se a composição de um grupo de
trabalho que utilizou a metodologia da Função Apoio como um dos dispositivos de
enfrentamento ao desastre ocorrido em Santa Maria/RS, decorrente de um incêndio
em uma casa noturna, o qual vitimou 242 jovens e deixou centenas de feridos. Tal
situação exigiu o desencadeamento de diversos modos de intervenções, a maioria
sem orientação de protocolos ou referenciais previamente definidos e validados pelo
Sistema Público de Saúde, o que também justifica a relevância deste estudo. Entre
as intervenções, destaca-se a criação dos sete Grupos de Trabalho (GT) com focos
de cuidado específicos, sendo um deles, o GT da Atenção Básica e Redes (GT ABR)
que se ocupou em realizar apoio às equipes de Atenção Básica, a partir do método da
Função Apoio, proposto por Campos (2003).
Os Grupos de Trabalho em nas situações de desastre exigem o desenvolvimento
imediato de ações que levem em conta modelos transdisciplinares nos quais profissionais
da saúde, do estado e da comunidade pensem juntos em possíveis soluções, considerando
Aletheia 45, set./dez. 2014
43
limites e possibilidades (Paladino & Thomé, 2011). Assim, analisar ações de apoio à
Atenção Básica revela-se importante, pois, diante do ocorrido, esta pode assumir função
essencial na ordenação do cuidado, enquanto corresponsável aos processos de cogestão,
compartilhamento do cuidado e acompanhamento longitudinal dos casos, juntamente
com a rede de cuidados de atenção em saúde.
Além disso, este estudo é relevante também pelo fato de que as autoras deste
artigo vivenciaram o processo de composição do GT ABR e experimentação do apoio
em Santa Maria enquanto cursavam o Programa de Residência Multiprofissional na
área de saúde mental e atenção básica. Assim, em consonância com os pressupostos
metodológicos de ensino-serviço da residência este artigo faz parte da produção de
conhecimento das residentes e contribui com os processos de educação permanente dos
trabalhadores do SUS. Considerando o exposto acima, este estudo tem como objetivo
identificar e analisar a composição do Grupo de Trabalho Atenção Básica e Redes (GT
ABR), o qual realizou apoio às equipes de Atenção Básica no contexto de desastre,
em Santa Maria.
Método
Estudo de abordagem qualitativa, exploratório-descritiva. A pesquisa qualitativa
baseia-se em uma lógica que raramente trabalha com representações numéricas (amostras
estatisticamente significativas), ou seja, com possibilidades de generalização. É um estudo
em profundidade sobre dado tema ou grupo de pessoas (Leopardi, 2001).
O estudo como pesquisa exploratória permite ao pesquisador aumentar sua
experiência em torno de determinado problema, no sentido de se aprofundar os limites
de uma situação específica. Já no estudo descritivo, o foco essencial reside em descrever,
com detalhes mais aprofundados, características, fatos e fenômenos de uma determinada
realidade, estabelecendo relações entre as variáveis no objeto do estudo analisado
(Trivinos, 1987).
A coleta de dados foi realizada no Grupo de Trabalho Atenção Básica e Redes
(GTABR). O GT ABR foi composto por apoiadores e consultores da PNH, os quais
coordenavam as ações; voluntários, vindos de outros municípios, com experiência em
desastres e com o método do apoio; profissionais residentes em Saúde Mental e da Atenção
Básica, e por servidores municipais das Secretarias de Saúde e de Assistência Social.
O grupo constituiu-se com a proposta/aposta de apoiar as equipes da Atenção
Básica. Com a composição de grupos de apoiadores foram realizadas visitas às Unidades
Básicas de Saúde e Estratégias da Saúde da Família. Nestas visitas às equipes, formadas
por médicos clínicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de
saúde, dentistas, eram realizadas rodas de conversa, escutavam-se as suas necessidades
e em conjunto, identificavam-se alternativas e possibilidades de atuação frente à situação
posta em Santa Maria naquele momento (Nied et al., 2014).
O GT ABR tinha como objetivo a partir da escuta das equipes, de ampliar sua
capacidade de análise diante as dificuldades, potencializar e implicar os mesmos para,
mesmo diante das fragilidades, que fossem pactuadas novas práticas e modos de agir
necessárias em função da situação instalada a partir do incêndio (Nied et al., 2014).
44
Aletheia 45, set./dez. 2014
Durante o percurso de apoio, todas as equipes da Atenção Básica de Santa Maria
(34, sendo 18 UBS e 16 ESF) foram visitadas, sendo que, cada unidade recebeu a visita
do grupo de apoio em pelo menos três momentos diferentes. Percebeu-se que, a partir
da Função Apoio, foi possível fomentar um espaço continente para os trabalhadores,
onde estes puderam se escutar num sofrimento que era de todos. Além disso, realizou-se
o compartilhamento do cuidado de 49 casos atendidos no serviço de Acolhimento 24hs
(serviço criado para atender as demandas psicossociais dos afetados direta e indiretamente
pelo incêndio na boate), com as equipes da AB (Nied et al., 2014).
Para a realização do estudo foram entrevistados quatro profissionais que coordenaram
as atividades do GT ABR no primeiro mês após o evento (fevereiro de 2013), uma vez que
foram atores fundamentais na estruturação inicial do GTABR. Estes profissionais eram
consultores da Política Nacional de Humanização, sendo três mulheres e um homem,
com idades entre 30 e 50 anos. A formação destes era Enfermagem (dois entrevistados),
Psicologia e Comunicação Social, com tempo de atuação de 2 anos.
Também foram analisados os relatórios produzidos pelo referido grupo no período
de janeiro a março do ano de 2013. Tais relatórios eram escritos diariamente e tinham o
objetivo de reportar a instâncias governamentais superiores, como Secretaria Estadual
de Saúde e Ministério da Saúde, a produção e andamento do grupo. As pesquisadoras
utilizaram estes registros a fim de obter mais informações sobre a criação e dinâmica de
trabalho do GT ABR.
Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada (em anexo) em
função da pressuposição de que ela possibilita a expressão e a comunicação fidedignas dos
informantes acerca de suas experiências, representações, concepções e ideias (Chizzotti,
1998) além de permitirem o aprofundamento de questões afetivas do entrevistado (Marconi
& Lakatos, 1996).
Para análise dos dados advindos das entrevistas e dos relatórios foi utilizada a técnica
de Análise de Conteúdo, (Minayo, 2008) que é a expressão comumente usada com o intuito
de representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa (Minayo, 2008). A
Análise de Conteúdo “parte de uma leitura de primeiro plano das falas, depoimentos e
documentos, para atingir um nível mais profundo, ultrapassando os sentidos manifestos
no material” (Minayo, 2008 p.308).
O estudo integra um projeto “guarda-chuva” – a análise da estruturação de grupos de
apoio às equipes da rede básica de saúde em situações de desastre, o caso de Santa Maria/
RS – o qual foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Santa Maria, sendo aprovado sob o parecer nº 347.241.
Resultados e discussões
A identificação e classificação das unidades de análise possibilitaram emergir
seis categorias, nomeadas segundo o conteúdo que revelaram. As categorias possuem
significado no contexto dos objetivos do estudo. São elas: identificação de experiência
teórico-prática dos sujeitos; o ‘entre’ na organização do processo de trabalho; concepção
de apoio; lateralidade das relações; cogestão; e formação-intervenção.
Aletheia 45, set./dez. 2014
45
Identificação de experiência teórico-prática dos sujeitos
A organização do GT ABR aproxima-se da operacionalização dos Grupos de
Trabalho de Humanização (GTH). De acordo com a PNH, os GTH têm a incumbência
de inaugurar uma diferença, ou seja, instituir um movimento no dia a dia de trabalho,
que provoque um processo de reflexão coletiva sobre os processos de trabalho. Nesse
sentido, a construção de um grupo de trabalho aproxima as pessoas, possibilita a
construção de vínculos, além de estabelecer um ambiente favorável para compartilhar
as tensões do cotidiano, refletir criticamente as dificuldades do trabalho, acolher e
debater divergências (Brasil, 2008).
A composição inicial do GT ABR foi orientada pela necessidade eminente de reunir
sujeitos com acúmulos acerca da Função Apoio às equipes de saúde e conhecedores da
rede municipal de saúde. Isso se destaca nos recortes de falas dos entrevistados:
(...) trazer pessoas que já têm certo acúmulo de academia e também de gestão,
trazer pessoas que também têm certo conhecimento do SUS e com esse conceito
do apoio, mas também trazer pessoas de outras áreas, como por exemplo, a
secretaria da Assistência Social, que foi fundamental, que conhece o território
como ninguém, o território como um todo (...). (E2)
Seguindo essa linha, percebe-se que o acúmulo também precisava estar
relacionado com o conhecimento que esses sujeitos detinham sobre a rede de atenção
à saúde municipal e com o conhecimento teórico sobre o método do apoio, sendo estes
integrantes da rede de saúde-ensino do município ou de fora deles. Assim, a viabilidade
das ações deu-se a partir desse arranjo organizacional e com essa configuração de
trabalho.
(...) então por que a gente conseguiu instituir um grupo para fazer apoio em
tão pouco tempo? Por que a cidade já tinha acúmulo, então a gente falava
com docentes da residência multiprofissional “vamos lá, vamos lá”, e tinha um
chamamento rápido. (...) Então no segundo dia, final da tarde, nós reunimos
pela primeira vez o GT já com uma proposta de apoiar equipes. E1
A residência tinha uma experiência de apoio, uma tentativa de apoiar equipes
da Atenção Básica. Então nós sabíamos estas duas coisas: que era possível
apoiar; tinha gente aqui com acúmulo e também já sabíamos a fragilidade da
Atenção Básica. (E1)
Nos fragmentos supracitados, pode-se perceber que o acúmulo referia-se a uma
bagagem tanto teórica como prática, ou seja, era preciso que os atores desse grupo
tivessem um arcabouço teórico sobre o método do apoio, mas também sujeitos que
conhecessem o município, a rede de saúde e os processos de trabalho locais. Dessa
forma, a união desses ‘acúmulos’ permitiu que o grupo viabilizasse seu trabalho.
Realizada esta análise inicial, faz-se necessário que exploremos um pouco mais
sobre o método de trabalho do GT ABR, visto que, após analisarmos sua constituição,
é de suma importância entender como ele organizou seu processo de trabalho.
46
Aletheia 45, set./dez. 2014
O “entre” na organização do processo de trabalho
O apoio se produz no “entre” das relações e para estas, com o intuito de ampliar
a potência de pensar, de agir, de conhecer das pessoas envolvidas nesse processo.
Fala-se, então, que o lugar do Apoio operaria como um “não lugar” já que ele se
dá no movimento de coletivos, como suporte aos movimentos de mudança por ele
deflagrado (Fernandes, 2012). Sua intervenção funciona como um dispositivo que
dispara movimentos e produz outros no próprio movimento, ampliando a capacidade
de reflexão e análise de coletivos através de suporte textual e tecnologias (Heckert
& Neves, 2010).
Corroborando essa ideia, o GT ABR necessitou definir o seu método de
trabalho. Tal método seguiu a linha de pensamento construcionista (Gergen & Kaye,
1998), a qual defende que a produção de significados não se dá a priori, e sim a
partir das vivências dos sujeitos. Isso se evidencia a partir do fragmento abaixo, o
qual retrata a realidade de que não existiam protocolos publicados sobre Função
Apoio para Atenção Básica na situação específica de desastre, como o ocorrido
em Santa Maria, e, assim, os processos foram sendo construídos à medida que as
vivências iam acontecendo.
A situação de Santa Maria foi um apoio que não estava dado, algo que teve que
ser experienciado. Foi uma aposta, em que não se tinha outros parâmetros para
se basear. Era algo que tinha que ser apostado no momento. (E2)
Além disso, percebe-se que o grupo operou no “entre”, pois os pontos de partida
para realizar as atividades de apoio do grupo ficaram nessa relação entre o cenário
do desastre e o arcabouço teórico constituído pelos conceitos da Política Nacional de
Humanização.
A função apoio desenvolvida em Santa Maria carrega todo acúmulo teórico e
político das experiências em Humanização em Saúde no Brasil. Entendo que
esses referenciais nascem de forma híbrida em conceitos advindos da Análise
Institucional (Lourau, Deleuze, Guattari)1 e dos acúmulos dos movimentos
sanitários em nosso país. (E4)
Nesse contexto, a organização inicial do GT em torno da função de apoio
institucional implicou a construção de uma interface entre produção de saúde e
produção de subjetividade, entre análise das demandas e ofertas, entre as instituições
de saúde e os movimentos que estranham seus funcionamentos, sejam eles movimentos
sociais, analisadores sociais ou mesmo movimentos sensíveis, que operam aberturas
e modificam as formas de sentir e perceber o mundo.
Assim, o GT ABR ficou no “entre” do já existente, como o arcabouço teórico e
conceitual, e a situação nova e nunca vivenciada. Justamente nessa interface, ocorreram
as ações, considerando um sistema de saúde já anteriormente fragilizado, atores também
1
Referência citada pelo entrevistado.
Aletheia 45, set./dez. 2014
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em situação de fragilidade e em um tempo diferente daquele a que se está acostumado
– a urgência de um desastre. Isso fica explícito na fala a seguir:
Então o que nós pensamos, era importante reunir pessoas, trabalhar com o
conceito de coletivos organizados para produção e trabalhar com a informação
de onde estavam as pessoas que precisavam de mais acompanhamento (...) então
nós criamos um grupo de apoio que ficou no entre. (...) nesse sentido, o início
disso não foi um apoio matricial ou em saúde mental. Era um apoio para as
equipes com uma ênfase na situação de desastre. A ênfase era: onde estão as
famílias, quem nos precisamos acompanhar mais. (E1)
Dessa forma, a análise evidenciou que o grupo ocupou o próprio lugar do
apoiador, ou seja, o não lugar (Fernandes, 2012) A todo o instante o GT ABR operou
nesse “entre”, pois a forma de constituição dos participantes e as ações desenvolvidas
pelo grupo estiveram no não lugar. Outro aspecto importante para o desenvolvimento
do trabalho do GT era a necessidade de precisar a concepção de apoio com a qual iria
se trabalhar, conforme analisado na subunidade a seguir.
Concepção de apoio
A constituição da Função Apoio fundamenta-se em teorias e práticas que procuram
articular o campo da política e da gestão com saberes e experiências originárias da
psicanálise, da pedagogia e da análise institucional (Campos, 2005). Seguindo o mesmo
viés, Campos (2005) acrescenta que o “apoio Paideia” objetiva, enquanto se realiza
o trabalho cotidiano, ampliar a capacidade de análise/compreensão de si mesmo e de
relações com o mundo da vida. Além disso, busca ampliar capacidade de intervenção
sobre si mesmo e sobre organizações e contexto.
Com base nesse referencial, percebe-se, através dos recortes de falas, que o GT
possuía intensa preocupação em definir seu método de trabalho, alinhando este ao
arcabouço teórico existente.
Essa é uma questão: o tema metodologia do apoio. Fizemos apoio não como
visita, e a partir da primeira semana nós tivemos apoio como discussão de casos;
no começo nós não tivemos isso, no início o apoio era “como é que vocês estão”;
na segunda (semana) foi “nessa região nós sabemos que tem essa pessoa que
precisa de um acompanhamento mais de perto”. (E1)
O que eu entendia naquele momento como importante com relação ao método
era ser um apoio mais amplo. Nós tínhamos uma ênfase: o desastre (...) mas as
equipes vinham com outros problemas. Ou ainda, para atender o tema desastre,
existiam outras coisas anteriores a ele. (E1)
Percebe-se que, para além de definições teóricas sobre apoio matricial,
institucional, de gestão ou temático, a preocupação dos integrantes do GT era com o
“como”, ou seja, de que forma o apoio seria realizado. Também exerciam o cuidado
para poder realizar entre si aquilo que propunham às equipes apoiadas: processo de
48
Aletheia 45, set./dez. 2014
reflexão e ampliação da capacidade de análise. Isso constituiu a concepção de função
apoio do grupo, conforme evidenciado a seguir.
(...) não era um método que se esvaziava, sem sentido, a gente acreditava naquilo
que estava fazendo, analisávamos puramente o nosso método, onde as pessoas
vinham das visitas e a gente discutia aquilo, mas não discutia só incluindo a partir
do outro. Era a partir de cada um que estava ali, como nós estávamos nos sentindo
diante do processo. (E2)
Todavia, a análise evidenciou que, na estruturação do GT ABR, não era suficiente
apenas definir a concepção de apoio para garantir a efetividade no trabalho desse
grupo. Para além de definições teóricas era preciso garantir que todos se sentissem
parte do processo e que pudessem se colocar inclusive de forma subjetiva a respeito
do que acontecia. Assim, ao passo que todos conseguiam se expressar e construir
conhecimento a partir disso, as relações democráticas e horizontalizadas eram sendo
estabelecidas entre os integrantes do grupo, alvo de análise da próxima unidade de
significado.
Lateralidade das relações
Fernandes (2012) aponta que o apoio é uma força de subversão, que age para
a mudança, para a contínua transformação. A Função Apoio possibilita relações de
troca e de lateralidade, tornando os sujeitos disponíveis para esse encontro de quem
está ao lado. Desse modo, compor um grupo de trabalho para fazer apoio é algo que
provoca, desarranja práticas instituídas, redistribui e democratiza o poder.
Evidencia-se que as práticas para a composição do GT foram sustentadas, no
cenário de desastre, pela possibilidade de existirem diferenciados modos de relação
entre os participantes do grupo. Todos puderam realizar as ações de apoio e se sentir
apoiadores, ou seja, houve um processo de inclusão dos atores em todo o trabalho
desenvolvido e, por conseguinte, o grupo possuía a marca da lateralidade das relações
interpessoais, o que foi revelado nas seguintes falas:
Para mim o que mais marcou foram esses espaços de troca e de escuta. Esses
espaços que se produziam sempre com o método da roda, de colocar aquilo que
está fazendo, de trazer aquelas angústias, percepções e ansiedades de cada de
um nós pra roda e pra discussão, compartilhar isso (...) confiar nesse grupo a
ponto de poder compartilhar e se sentir a vontade para falar. Para agente apoiar
temos que nos sentir apoiados. Então esse grupo precisa se apoiar e constituir
uma grupalidade. (E2)
Somando-se a isso, Oliveira et al., (2009) aponta que os coletivos agenciam
modos de subjetivação e são capazes de produzir um comum. Essa produção, nesse
caso, relaciona-se ao alargamento das fronteiras do possível, ao potencial produzido nos
encontros que têm efeito nos modos de vida. Dito de outra forma, o comum não implica
afirmar uma forma de vida em particular, mas as suas múltiplas formas e possibilidades;
Aletheia 45, set./dez. 2014
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uma vida na qual o importante é como se vive. Vê-se a ocorrência desse significado no
fragmento de entrevista apresentado a seguir.
Eu acho que o desejo de cada um foi uma produção de um comum. Na realidade o
quê gera certa grupalidade? É a produção de um comum. Eu acho que o comum
produzido ali era o fato de que todo mundo que estava ali, todas as pessoas que
estavam ali tinham um desejo em comum: estar junto para ajudar. (E2)
A partir desse recorte, é notório perceber que o GT conseguiu produzir um comum
e, a partir disso, pôde construir uma intervenção sobre as equipes de Atenção Básica.
Mesmo ocupando lugares distintos e construindo caminhadas singulares, todos os
integrantes do grupo produziram um comum: querer estar naquele grupo e se dispor
a ajudar.
Dessa forma, percebemos que foi relevante para o GT ABR vivenciar a experiência
do encontro horizontal entre os sujeitos do grupo, para, então, conseguir produzir esse
efeito nas equipes apoiadas. Além disso, evidenciou-se que, em um processo no qual há
o predomínio da lateralidade das relações, os processos de cogestão passam a ocorrer
naturalmente. Estes assumem outro importante elemento na composição do grupo de
trabalho conforme abordado e analisado a seguir.
Cogestão
O processo de cogestão significa a inclusão de novos sujeitos e modos de operar a
análise de contexto, de problemas, de processo de tomada de decisão, entre outros. Assim,
a cogestão seria exercida não por poucos ou alguns (oligo-gestão), mas por um conjunto
mais ampliado de sujeitos que compõem a organização, assumindo-se o predicado de
que “todos são gestores de seus processos de trabalho” (Brasil, 2009).
Ao longo das falas dos entrevistados, nota-se, fundamentalmente, que a lateralidade
das relações propiciou um processo de cogestão. As decisões sobre o que seria realizado,
o rumo que tomariam as ações do grupo, os planejamentos, tudo era discutido por todos os
integrantes do grupo, constituindo uma forma de gestão dos processos mais democrática
e menos burocratizada.
O trabalho ele foi se constituindo, mas de uma forma democrática onde as pessoas
se viam incluídas no processo e isso foi fortalecendo as relações afetivas e também
o próprio grupo de trabalho (...) as pessoas estavam ali porque queriam estar
ali ajudando e por se verem incluídas no processo, protagonistas e produzindo
sentido para aquilo que estavam fazendo (...) o nosso grupo sempre foi protagonista
do seu processo de trabalho, ele sempre teve autonomia, onde isso foi decidido
coletivamente. (E2)
A cogestão marcou as práticas e as relações entre os sujeitos desse GT. (E4)
Interessa destacar que a ideia de cogestão provoca um (re) arranjo nas funções
da gestão que, além de manter a organização funcionando, teria por tarefas: analisar
a instituição; produzir analisadores sociais – problematização dos modelos de
funcionamento; formular projetos, que implica abrir-se à disputa entre sujeitos e grupos,
50
Aletheia 45, set./dez. 2014
os quais disputam os modos de operar e os rumos da organização – espaço de criação;
constituir-se como espaço de tomada de decisão; ser um espaço pedagógico, lugar de
aprender e de ensinar. O prefixo “co”, nessa perspectiva, indica, para o conceito e a
experimentação da gestão, um duplo movimento: a adição de novas funções e a adição
de novos sujeitos (Brasil, 2009).
Feitas as considerações teóricas acerca da cogestão, evidencia-se que os integrantes
do GT experimentaram o sentido prático da cogestão, à medida que os sujeitos viam-se
incluídos no processo e sentiam-se protagonistas, além de que diversos atores de diferentes
lugares foram incluídos no grupo, como pontuado na primeira unidade de significado já
apresentada. Ainda nesse contexto, percebe-se que todo esse caminho de constituição do
grupo permitiu a ocorrência da qualificação da formação profissional à medida que os
processos eram vivenciados com corresponsabilização de todos os sujeitos envolvidos.
Essa interface da Educação Permanente em serviço (Pavan, Gonçalves, Matias, &
Paulon, 2010) promove a formação-intervenção qualificada, e esta é a última unidade
de significado relevante neste estudo, compreendida a seguir.
Formação-intervenção
O processo de formação-intervenção é uma ferramenta utilizada nos cursos de
formação da PNH, que têm o objetivo de formar apoiadores institucionais. Ou seja, a
finalidade do processo de formação-intervenção é que os profissionais de saúde extraiam
de suas experiências os elementos disparadores do estudo e da pesquisa, ao mesmo
tempo em que possam intervir nessas “realidades”, tomando por referência a PNH e seus
dispositivos (Pavan, Gonçalves, Matias, & Paulon, 2010).
Conforme analisado anteriormente, o processo de trabalho do GT ABR foi pautado
na lateralidade das relações e na cogestão, e isso ocorreu através de reuniões, supervisões
do trabalho e constante estudo, norteado de referenciais teóricos claros e definidos,
como as publicações da PNH (2010) e de Gastão Campos (2006). Tendo em vista
essa dinâmica, é possível compreender que o grupo trabalhou a partir de processos de
formação-intervenção, já que, ao passo que produziam intervenções nas equipes de saúde,
iam aprendendo. Desse modo, a formação e a intervenção estiveram sempre interligadas,
uma dependendo da outra, como fica claro em fragmentos do relatório e em recortes de
falas apresentados a seguir:
Hoje à tarde haverá reunião de discussão teórico-metodológica sobre apoio, bem
como organização e planejamento do acompanhamento dos 35 casos. Fragmento
do Relatório GTABR
Acredito que conseguimos construir uma qualificação na medida em que íamos
trabalhando, fazendo, nos posicionando e construindo juntos. Foram oferecidas
leituras, referenciais teóricos, e experiências de outros lugares para referenciar
a prática que estava sendo realizada junto ao GT. (E3)
Então aquela metodologia de intervir, fazer visita, se reunir no final da tarde, foi
interessante pra formação da gente. (E1)
Os depoimentos revelam algo importante: a formação profissional. Mesmo em uma
situação peculiar e bastante desorganizadora, como em um desastre, o grupo conseguiu
Aletheia 45, set./dez. 2014
51
organizar espaços de reflexão sobre sua prática (práxis), bem como realizou momentos
de estudos e aprofundamento teórico sobre o tema do apoio.
Além disso, pode-se inferir que uma das consequências do processo de formaçãointervenção para o grupo foi a ampliação da capacidade de análise crítica de seu próprio
fazer, enquanto grupo de apoiadores. Campos (2006) coloca que, mediante a adoção
de alguma metodologia de apoio, as pessoas conseguem desenvolver maior capacidade
reflexiva e, em consequência, adquirem maior capacidade de interferir sobre os fatores
estruturados que as condicionam, sejam fatores externos (como a cultura, a organização
e a família) ou internos ao sujeito (no caso a constituição básica da personalidade e
do caráter). Nesse sentido, o método Paideia de apoio tem, portanto, como objetivo, a
constituição de “sujeitos reflexivos”.
Os fragmentos a seguir exemplificam essa discussão, pois, enquanto os integrantes
do GT ABR apoiavam equipes e trabalhavam para aumentar a capacidade de análise
desses profissionais apoiados, também faziam isso entre si.
A função apoio independente daquilo que tu está fazendo no teu dia a dia ela te
provoca um reposicionamento diante daquilo que tu faz, das tuas práticas. Então
não é aquilo, ‘agora eu estou fazendo apoio’, é um reposicionamento, onde é uma
experimentação constante naquilo que tu faz, colocando tuas práticas em análise,
trazendo teu trabalho para uma construção mais coletiva, articulando grupos e
coletivos, fazendo roda.
(...) porque foi um GT que todo tempo produziu análise em cima dos movimentos
do grupo. (E2)
Posto isso, o GT Atenção Básica e Redes pôde experimentar um processo de
formação-intervenção nos moldes da Política Nacional de Humanização, pois as
intervenções do GT produziam intercessões na equipe apoiada e também nos apoiadores.
Em consonância, percebe-se que o grupo produziu, nas palavras de Campos (2006),
“sujeitos reflexivos” que conseguiram questionar seus lugares e se reposicionar quando
necessário.
Considerações finais
Este estudo, cuja finalidade foi identificar e analisar a composição do GT ABR, o
qual realizou apoio às equipes de Atenção Básica no contexto de desastre, demonstrou
inicialmente que o grupo conseguiu trabalhar a partir da perspectiva da Função Apoio,
buscando atores envolvidos com o SUS e com o cuidado em saúde, posicionando-se no
“entre”, ou seja, entre o aporte teórico e a vivência prática de algo nunca experienciado
antes. Somando- se a isso, o GT operou elementos como a lateralidade das relações, o
processo de cogestão e o processo de formação-intervenção a fim de organizar coletivos
para a produção, democratizar relações e produzir saúde.
Nessa perspectiva, percebe-se que o trabalho do GTABR produziu significativos
impactos para o sistema de saúde de Santa Maria. Por sistema podemos entender as
equipes apoiadas, os próprios apoiadores e os processos de trabalho. A Função Apoio
52
Aletheia 45, set./dez. 2014
foi uma ferramenta instituída num momento de crise e passou a ser incorporada como
método de trabalho. Além disso, os profissionais que participaram desse grupo, por
meio do processo de formação-intervenção, constituíram-se como apoiadores e podem
ser multiplicadores desse método.
Vale ressaltar, ainda, a necessidade de novas pesquisas acerca da Função Apoio
no contexto de desastres, em suas mais variadas formas, no sentido de como esta se dá,
o modo de organização e o trabalho dos apoiadores. Essas produções qualificariam o
trabalho e permitiriam um melhor preparo para o momento em que situações similares
viessem a ocorrer.
O trabalho desenvolvido pelo GT ABR, em um momento tão delicado, permite que
se atente para um SUS que dá certo, para a importância da aliança entre ensino-serviço
e para o quanto os referenciais da saúde coletiva e da Política Nacional de Humanização
podem, de fato, instrumentalizar os profissionais na difícil tarefa de produzir saúde,
mesmo em situações tão adversas.
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54
Aletheia 45, set./dez. 2014
Anexo
Entrevista semiestruturada – eixos norteadores
1) Agrupamento de parceiros
• O que determinou a entrada e permanência no processo de estruturação
do GT?
• Quais eram as forças de apoio e resistência (dificuldades) para agrupamento
dos parceiros e estruturação do GT?
• Como se deu a interação entre os sujeitos?
2) Estruturação/operacionalização do grupo de apoio
• O que demandou a estruturação do grupo no momento inicial do
desastre? Qual a justificativa? Porque foi criado?
• Que elementos foram importantes na estruturação do grupo?
• O que marcou a dinâmica do trabalho?
• Qual era sua função no GT e na atividade do apoio?
• Como você compreende a função/finalidade do GT na situação desastre
vivenciada?
• Que tipo de apoio se fez e qual era seu objetivo?
• Como você percebe os impactos e resultados da Função Apoio?
3) Orientação teórica
• A estruturação do GT foi orientada a partir de algum referencial teórico?
Qual? Justifique.
• Houve espaço para capacitação/formação dos integrantes do GT?
_____________________________
Recebido em fevereiro de 2015
Aceito em abril de 2015
Manoela Fonseca Lüdtke: Psicóloga e Especialista em Saúde Mental no Sistema Público de Saúde pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Psicóloga do Acolhe Saúde (Prefeitura Municipal de Santa
Maria).
Daniela Kaufmann Seady: Fisioterapeuta, Mestre em Ciências da Saúde e Especialista em Gestão e Atenção
em Saúde com ênfase em Atenção Básica/Estratégia de Saúde da Família pela Universidade Federal de Santa
Maria.
Vânia Maria Fighera Olivo: Enfermeira e Doutora em Administração (UFRGS). Docente da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) e Secretária de Saúde da Prefeitura Municipal de Santa Maria.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
55
Aletheia 45, p.56-71, set./dez. 2014
Fatores associados ao uso de drogas: depoimentos de usuários
de um CAPS AD
Ana Kelen Dalpiaz
Maria Helena Vianna Metello Jacob
Karen Daniele da Silva
Melissa Pereira Bolson
Alice Hirdes
Resumo: A pesquisa teve por objetivos identificar os fatores que influenciam e protegem do uso de
álcool e outras drogas e identificar as ações que contornam o tratamento e a reabilitação de usuários
de um Centro de Atenção Psicossocial. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e os instrumentos
utilizados foram entrevistas semiestruturadas. Os resultados evidenciam como fatores de risco
a tristeza, a solidão, as festas, o uso de substâncias na família e as companhias. Como fatores
de proteção estão a família e os amigos, que também podem ser caracterizados como fatores de
risco. O Centro de Atenção Psicossocial, além de oferecer acolhimento, atividades terapêuticas
e educativas, apresenta duas características que facilitam o tratamento dos usuários, o território
onde está localizado (de alta vulnerabilidade psicossocial) e a modalidade de atendimento (três
turnos). Conclui-se que o tratamento oferecido subsidia a reabilitação psicossocial, reforçando a
reconstrução de projetos de vida.
Palavras-chave: Usuários de drogas; fatores de risco; reabilitação.
Factors associated with the use of drugs: Statements from users
of a CAPS AD
Abstract: This research aims to identify factors that influence and protect for alcohol and other
drugs use. In addition, to detect its purpose is the importance of actions that outline treatment and
rehabilitation of alcohol and other drugs users developed at Psychosocial Care Center. This is a
qualitative research using semi-structured interviews. Risk factors for the outcome were sadness,
loneliness, parties, family history of drugs use and companies. As protective factors are family and
friends, which can also be seen as risk factors. Besides to provide care, therapeutic and educational
activities, the Psychosocial Care Center has two features that facilitate users´s treatment: the territory
where it is located (of high psychosocial vulnerability) and the type of service (three shifts). The
conclusion is that the treatment offered subsidizes psychosocial rehabilitation, strengthening the
reconstruction of life projects.
Keywords: Drug Users; risk factors; rehabilitation.
Introdução
O uso nocivo do álcool provoca um número estimado de 2,5 milhões de mortes a
cada ano, dos quais uma parte significativa está entre os jovens. É o terceiro principal
fator de risco para mortes prematuras e deficiência no mundo. Os problemas relacionados
ao uso de álcool podem ter impactos devastadores sobre os indivíduos e as suas famílias
e podem afetar seriamente a vida da comunidade. O uso prejudicial do álcool é um dos
quatro fatores de risco modificáveis e evitáveis mais comuns para as principais doenças
não transmissíveis (DNT). Há também evidências emergentes de que o uso nocivo do
álcool contribui para os problemas de saúde causados por doenças transmissíveis, como,
por exemplo, tuberculose e HIV / AIDS (WHO, 2010). Nesse sentido, a dependência
química emerge como um sério problema de saúde pública mundial, sendo uma ameaça
potencial à qualidade de vida. A epidemia atual está associada a uma economia e política
mundiais de drogas bastante complexa envolvendo o crime organizado, dificultando o
seu controle e avaliação (Diehl, Cordeiro, & Laranjeira, 2011).
No Brasil, estudos demonstram que o consumo de álcool e outras drogas, exceto
o tabaco, correspondem a 12% de todos os transtornos mentais graves na população
acima de 12 anos e nos centros urbanos mundiais aproximadamente 10% da população
consomem substâncias psicoativas independentemente da faixa etária, gênero, nível de
instrução e poder aquisitivo (Organização Mundial da Saúde, 2002). Outros dados, mais
recentes, do II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil
(Carlini, 2006) que foi realizado nas 107 maiores cidades do país, com indivíduos entre
12 e 65 anos de idade, evidenciam que 12,3% dos entrevistados são dependentes de
álcool, 75% relataram já terem bebido alguma vez na vida, 50% no último ano e 38%
nos últimos 30 dias. Os dados também indicaram o uso de álcool em faixas etárias cada
vez mais precoces. Entre as drogas ilícitas 8,8% dos entrevistados utilizam a maconha,
sendo a droga mais utilizada.
Segundo os dados da segunda fase do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas
(LENAD, 2012), a maconha continua sendo a substância ilícita com maior prevalência
de uso entre os brasileiros. Da totalidade da população adulta, 5,8% disse já ter feito uso
da substância alguma vez na vida (significando 7,8 milhões de brasileiros adultos). Na
população adolescente, esse número é de 597 mil indivíduos (4,3%). Quanto ao uso nos
últimos 12 meses, 2,5% dos brasileiros adultos e 3,4% dos adolescentes declaram ter usado.
Analisando o uso da cocaína uma vez na vida pelos adultos, o número é 3,8%, sendo que
em relação ao uso de cocaína nos últimos 12 meses na população adulta observada é de
1,7%. Entre os adolescentes, 2,3% declararam ter utilizado pelo menos uma vez na vida
a cocaína. Outro dado que merece atenção é o crescimento na quantidade e frequência
de doses de bebidas alcoólicas ingeridas pela população. Em 2012, o percentil daqueles
que declararam beber pelo menos uma vez por semana subiu 11 pontos percentuais, ou
seja, 53% dos não abstinentes bebem ao menos uma vez por semana. Entre as mulheres, o
crescimento relativo daqueles que consomem álcool com frequência foi mais significativo
– de 27% delas em 2006 subiu para 38% em 2012. Nesse ano cresceu, também, a
população que declarou ter experimentado bebida alcoólica com menos de 15 anos
(22%). A maior precocidade na experimentação é aferível de maneira semelhante entre
os sexos, contribuindo na considerável redução da proporção da população que declarou
ter experimentado com 18 anos ou mais (idade permitida legalmente).
O “Mental Health Gap Action Programme: scaling up care for mental, neurological
and substance use disorders” prevê a identificação precoce e as intervenções de prevenção
e tratamento para transtornos decorrentes do uso de drogas, por parte dos profissionais
da Atenção Primária à Saúde, previamente capacitados e o encaminhamento e apoio de
supervisão dos especialistas em saúde mental (WHO, 2008). A Organização Mundial de
Saúde, no Plano Global de Saúde Mental 2013-2020 prevê ações de promoção e prevenção
Aletheia 45, set./dez. 2014
57
relacionadas ao uso de álcool e outros drogas, como a implementação de programas de
prevenção a violência doméstica, incluindo a atenção para a violência relacionada ao
uso nocivo de álcool e a introdução de intervenções breves para o abuso de substâncias.
(WHO, 2013).
O uso de drogas deve ser considerado, não como um problema individual, e
sim, como um problema coletivo, de saúde pública, uma vez que aumenta o risco
para problemas sociais, de trabalho, familiares, físicos e legais (Reinaldo & Pillon,
2008). O Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-ad) foi instituído
pela portaria ministerial GM no 336/02 (de 19 de fevereiro de 2002) e constitui um
serviço relacionado às demandas de saúde vinculadas ao uso de álcool e outras drogas
para cidades com mais de 70 mil habitantes ou para aquelas localidades com cenários
epidemiológicamente relevantes (Diehl et al., 2011). Nesse propósito, a presente
pesquisa teve como objetivos identificar os fatores que influenciam e que protegem
quanto ao uso de álcool e outras drogas; apontar os prejuízos causados pelo uso dessas
substâncias; descrever as ações consideradas relevantes que contornam o tratamento e
a reabilitação de usuários de álcool e outras drogas no CAPS ad Reviver, no município
de Caxias do Sul, RS.
Método
A pesquisa caracterizou-se como um estudo qualitativo, do tipo transversal
e descritivo, e integra o Programa de Educação para o Trabalho em Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas (PET-Saúde Mental) do Ministério da Saúde, em parceria com
a Secretaria de Saúde e a Universidade de Caxias do Sul/RS. Localizado a 127 km2 da
capital do Rio Grande do Sul, o município de Caxias do Sul tem aproximadamente 500
mil habitantes distribuídos numa área de 1.645 km2 (IBGE, 2010). Caracteriza-se por
ser um município com um importante polo metal mecânico no Estado, com exportação
de veículos para diferentes países do mundo. Além dos serviços e tecnologias de
ponta, encontram-se as pequenas propriedades rurais, onde são produzidas alimentos.
Caxias do Sul está localizada em uma das maiores áreas de vitivinicultura de pequenas
propriedades do Estado, denominado Serra Gaúcha. Apesar do município estar localizado
em uma região desenvolvida, há bairros localizados na periferia onde vivem pessoas em
situação de desemprego e de vulnerabilidade psicossocial, nos quais proliferam o uso e
a comercialização de drogas.
Na área da saúde, conta com uma rede de quarenta e sete Unidades Básicas de
Saúde, das quais, dezoito tem implantada a Estratégia Saúde da Família (ESF), totalizando
trinta e duas equipes de Saúde da Família e quinze equipes de Agentes Comunitários
de Saúde. Especificamente na área da saúde mental, dispõe de uma rede de serviços
que contempla 4 CAPS: 1 CAPS infantil, 1 CAPS para atendimento de portadores de
transtornos mentais graves e 2 CAPS ad 24 horas, além de 3 Serviços de Residenciais
Terapêuticos. Na atenção terciária, existem hospitais com unidades de saúde mental, além
de uma clínica psiquiátrica privada.
O CAPS ad Reviver é um serviço de atenção psicossocial voltado a atender e
dar respostas às demandas de saúde de adolescentes, adultos e idosos com transtornos
58
Aletheia 45, set./dez. 2014
decorrentes do uso e dependência de álcool e outras drogas. O CAPS oferece atendimento
diário, nas modalidades intensiva, semi-intensiva e não intensiva, conforme o Projeto
Terapêutico Singular do usuário. Presta atendimento 24 horas à usuários de álcool e outras
drogas e dispõe de ambulatório para desintoxicação e está localizado em um território
com alta vulnerabilidade psicossocial.
Os instrumentos utilizados para a coleta dos dados foram dez entrevistas
semiestruturadas realizadas com usuários deste CAPS ad, no período de outubro de 2011 a
março de 2012. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com agendamento prévio
(dia, hora e local) com os usuários, selecionados a partir dos seguintes critérios de inclusão:
ter participado de grupos de intervenção breve; estar inserido em um Projeto Terapêutico
Singular (PTS) e participar de das atividades do CAPS ad de forma sistemática, no mínimo,
há três meses, sem abandono do tratamento durante este período. As entrevistas foram
realizadas no CAPS, com um tempo médio de duração de 40 minutos.
Para a análise dos dados foi percorrido o caminho metodológico operacionalmente
proposto por Minayo (2010): a ordenação, a classificação e a análise final dos dados. A
ordenação dos dados consistiu na transcrição das entrevistas gravadas, leitura e releitura
do material transcrito, organização dos relatos com início de classificação e organização
dos dados. A classificação dos dados foi operacionalizada por leitura exaustiva e repetida
dos textos. Neste exercício foi realizada a apreensão das “estruturas de relevância” a partir
das falas dos sujeitos. Tal esforço encaminha para um processo classificatório, buscando
perceber conexões entre tais estruturas. Posteriormente, fizemos um enxugamento das
classificações, interpretando o que foi colocado como mais representativo. A análise final
permitiu fazer uma inflexão sobre o material empírico, coletado a partir das entrevistas,
e o analítico, realizado a partir da busca de autores que discutem as questões presentes
nas diferentes áreas temáticas, num movimento incessante que se eleva do empírico para
o teórico e vice-versa.
Este trânsito que promove relações entre o teórico e o empírico, o concreto e o
abstrato, o geral e o particular, a teoria e a prática, é o verdadeiro movimento dialético
visando o concreto pensado. Minayo (2010) entende que o produto final é sempre
provisório, e condicionado pelo momento histórico, pelo desenvolvimento científico,
por sua pertinência a uma classe social e pela capacidade de objetivação.
A coleta de dados ocorreu após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética e
Pesquisa da Universidade de Caxias do Sul, sob o protocolo número 184/11. Foram
garantidos aos entrevistados os aspectos éticos considerados em pesquisas realizadas
com seres humanos, conforme determina a resolução 196/96 (BRASIL, 1996). Para
garantir o anonimato, utilizou-se de pseudônimos E1 a E10. Obtivemos o consentimento
informado, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
dos participantes.
Discussão dos resultados
No processo de análise dos dados, após a identificação das estruturas de relevâncias,
foram identificadas quatro áreas temáticas, a saber: fatores que influenciam o uso de
álcool e outras drogas; prejuízos causados pelo uso de drogas; fatores protetores ao uso
Aletheia 45, set./dez. 2014
59
de drogas; importância do CAPS ad na reabilitação de usuários de álcool e outras drogas.
Essas são detalhadas a seguir, no texto.
Fatores que influenciam o uso de álcool e outras drogas
Os usuários do CAPS ad Reviver abordam nessa área temática alguns fatores de
risco que podem influenciar o uso de álcool e outras drogas, tais como: alterações do
humor (depressão e tristeza) e festas e companhias. Percebe-se que as alterações do
humor (depressão e tristeza) são fatores associados a usuários do CAPS ad que iniciaram
o uso de álcool e outras drogas na fase adulta; e as festas e companhias são fatores
associados a usuários do CAPS ad que iniciaram o uso de álcool e outras drogas na
fase da adolescência. No entanto, é importante esclarecer que nem sempre esses fatores
estarão associados a essas fases, eles podem influenciar o uso de drogas em qualquer
fase da vida. A depressão é um transtorno de humor que interfere no funcionamento
normal do ser humano, pois causa dor e sofrimento. Pode também alterar a capacidade
da pessoa realizar atividades cotidianas (como comer, dormir, trabalhar, relacionar-se
com outras pessoas) e transformar sua própria opinião sobre ela mesma e sobre tudo
ao seu redor (Nascimento, 2006). Ela pode ser um dos fatores que influenciam o uso
de álcool e outras drogas, como se visualiza na seguinte fala: “eu entrei em depressão
sem saber que eu estava com depressão. E depois é que eu vim a saber. E foi por isso
que comecei a ingerir o álcool” (E4).
A tristeza é outro fator que pode influenciar o uso de álcool e outras drogas,
tendo em vista a seguinte fala: “[…] o que me levou a usar [a droga] foi uma tristeza
bem grande que eu tive. Eu tive uma tristeza tão grande que eu nem sabia o que fazer
com ela, ela estava me dominando, então eu enchia a cara para ver se eu aguentava
e não é por aí. E aí a gente começa. E aí eu descobri que eu sou alcoólatra, que foi
a primeira vez que eu bebi” (E5). Todavia, é importante esclarecer que a tristeza e a
depressão são fenômenos diferentes. A depressão é um transtorno do humor e a tristeza
é um sentimento natural do ser humano, decorrente de alguma perda ou acontecimento
desagradável. Muitas vezes esses eventos são vistos como sinônimos, pois a depressão
nem sempre é reconhecida como doença, sendo cotidianamente associada como
um fenômeno individual, como algo que pode ser superado apenas com a “força de
vontade”. Por outro lado, a tristeza nem sempre é vista como um sentimento natural,
em determinados momentos é associada a um problema de saúde, ou seja, à depressão.
Este transtorno do humor constitui-se em uma doença, que de acordo com a gravidade
dos sintomas necessita de intervenção psicoterápica e/ou farmacológica ou ainda ambas.
Esses dois pontos de vista apontam que a depressão e a tristeza são fenômenos que
necessitam ser desmitificados, para que ocorra um efetivo tratamento da depressão
evitando consequências como o uso de drogas ilícitas, e a aceitação do sentimento de
tristeza como algo normal do ser humano, intrínseco à existência humana.
Para a caracterização de um transtorno depressivo maior, cinco (ou mais) dos
seguintes sintomas devem estar presentes durante o mesmo período de duas semanas e
representam uma mudança em relação ao funcionamento anterior; pelo menos um dos
sintomas é (1) humor deprimido ou (2) perda de interesse ou prazer. Dentre os sintomas
estão: humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias, conforme indicado
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Aletheia 45, set./dez. 2014
por relato subjetivo ou por observação feita por outras pessoas; acentuada diminuição
do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia,
quase todos os dias; perda ou ganho significativo de peso sem estar fazendo dieta ou
redução ou aumento do apetite quase todos os dias; insônia ou hipersonia quase todos
os dias; agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias; fadiga ou perda de energia
quase todos os dias; sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada
quase todos os dias; capacidade diminuída para pensar ou se concentrar, ou indecisão,
quase todos os dias; pensamentos recorrentes de morte ideação suicida recorrente
sem um plano específico, uma tentativa de suicídio ou plano específico para cometer
suicídio (DSM V, 2014).
Entretanto, destaca-se que o uso de drogas pode servir também a outros propósitos
como de recreação e experimentação. O uso de drogas para recreação é caracterizado
como algo social e relaxante, em que não há outros problemas relacionados, e o uso
experimental é caracterizado como os primeiros episódios de uso, que são passageiros e
não numerosos (Silva, 2003). O adolescente experimenta o álcool ou outra droga, pois
o período que atravessa se caracteriza pelo desafio às instituições em geral, e pela busca
de novas sensações e descobertas (Mendes, Martini, Carraro, & Spricigo, 2010).
Os motivos que levaram os usuários do CAPS ad a usar drogas na adolescência
foram apenas dois: as companhias e as festas. As companhias podem ser um dos fatores
determinantes ao uso de drogas, pois o uso das mesmas pode ocorrer pela primeira vez
influenciada por alguém que a use. Isso é evidenciado na seguinte fala “foi através de
um conhecido meu. [...] Ele me convidou para ir a casa dele para experimentar esse tal
de crack. Eu nunca tinha usado daí ele me chamou e fumou primeiro e depois me deu”
(E2). Isto é corroborado pela literatura, como apontam Silva (2010), constatando que o
primeiro contato com as drogas ocorre principalmente pelo fato dos adolescentes terem
amigos que usam drogas, ocasionando uma pressão de grupo na direção do uso. As festas
também podem ser um dos fatores que influenciam o uso de drogas, pois é um espaço onde
o álcool e outras drogas são usadas naturalmente e em excesso, como algo benéfico.
Diante do exposto, ressaltamos que a depressão e a tristeza devem ser reconhecidas
como fatores distintos, com características próprias, e que a fase da adolescência
merece atenção por ser o momento mais vulnerável ao uso de álcool e outras drogas.
É necessário conscientizar o adolescente acerca do cuidado que se deve ter em relação
às companhias, festas e ao uso de álcool e outras drogas; e a população em geral acerca
da depressão enquanto doença, que precisa ser tratada para evitar consequências, e da
tristeza enquanto sentimento natural que deve ser vivido e não escondido. É oportuno
enxergar o desejo e o dano: o envolvimento grupal, os papéis da escola e da família, e
a mídia não podem ser vistos de forma simplista e isolada, e o comportamento de risco
pode trazer efeitos cumulativos das substâncias toxicas e sua inerente relação com a
vulnerabilidade (Schenker & Minayo, 2005).
Prejuízos causados pelo uso de álcool e outras drogas
Neste tópico, os usuários do CAPS ad Reviver expõem os prejuízos causados pelo
uso de drogas em suas vidas. Dentre os prejuízos citados pelos usuários, destacaram-se
os danos causados à saúde; aos relacionamentos interpessoais e laborais.
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Os danos causados à saúde correspondem às consequências clínicas ocasionadas
pelo uso de drogas. Esses envolvem os sintomas físicos e psíquicos causados tanto
pelo uso quanto pela abstinência das drogas. Já os danos causados aos relacionamentos
interpessoais dizem respeito aos problemas gerados nas relações sociais e afetivas,
em decorrência da mudança de comportamento do usuário de drogas. Laranjeira
(2010) aponta que, para grande parte dos especialistas, a dependência de drogas é
considerada uma doença cerebral com persistentes mudanças na estrutura e função do
cérebro. Além de trazer graves consequências para a saúde, a droga é responsável por
mudanças acentuadas na interação do indivíduo com seus familiares, afetando suas
relações sociais e até mesmo profissionais. Para a saúde, as consequências do uso
drogas podem ser devastadoras (Pratta & Santos, 2009). Estudos mostram que o uso
contribui para o aumento das taxas de mortalidade e para a redução da expectativa de
vida. Entre 2006 e 2010 o uso de drogas, foi responsável por mais de 40.000 mortes no
Brasil. Dessas, 84,9% foram causadas pelo consumo de álcool; 11,3%, pelo consumo
do fumo; 1,18% pelo uso de cocaína; e outras drogas foram responsáveis por 1,6% dos
óbitos (Confederação Nacional dos Municípios, 2012).
O uso de drogas é considerado um fator de risco para o desenvolvimento de
diversas doenças, entre elas: cânceres, distúrbios psiquiátricos, problemas de coração,
pulmão, entre outras. O usuário sofre ainda, com uma série de sintomas causados pelo
uso de drogas, como explicitado nas falas a seguir: “[...] eu fico magro, emagreço
mais rápido. Não como. Dá muitos tremores, já me deu convulsão, parada cardíaca”
(E3). “Ansiedade, compulsividade” (E10). Cada droga produz diversos efeitos físicos
e psíquicos no organismo, podendo ser mais ou menos graves, conforme um conjunto
de variáveis relacionadas ao consumo. Entre os principais sintomas clínicos causados
pelo uso de drogas estão: a) álcool: tremores, ansiedade, taquicardia, vômitos, alterações
de humor, confusão mental (Diehl et al., 2011); b) nicotina: inquietação, irritabilidade,
ansiedade (Pressman & Gigliotti, 2011); c) maconha: ansiedade, inquietação, depressão
(Zuardi & Crippa, 2011); d) cocaína e crack: depressão, ansiedade, letargia, esgotamento
físico, perda de peso (Alves et al., 2011).
Existem ainda diversos fatores associados ao uso de drogas que podem
contribuir para o agravamento dos problemas de saúde de um usuário. Entre eles
estão as comorbidades psiquiátricas e o poliuso de substâncias. O desenvolvimento
de comorbidades psiquiátricas como a esquizofrenia, os transtornos do humor, de
ansiedade, de alimentação, de conduta e de déficit de atenção é considerado comum
para o dependente químico (Cordeiro & Diehl, 2011). Além disso, cabe destacar,
que o uso de drogas é considerado um fator de risco importante para o suicídio.
Nesse sentido, considerando que ambas as situações, o uso de drogas e o suicídio
estão carregadas de vulnerabilidades, estigmas e preconceitos, cabe compreender os
suicídios relacionados ao uso, abuso e dependência de drogas para atuar na prevenção
desse fenômeno (Diehl, 2011).
É fundamental atentar para o fato de que o usuário de drogas está exposto a
outros riscos em decorrência do uso de drogas, além daqueles que consideramos
estar diretamente relacionados. O outro prejuízo apontado pelos usuários do CAPS
ad Reviver se refere aos danos causados aos relacionamentos interpessoais. Como já
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Aletheia 45, set./dez. 2014
citado, os danos causados aos relacionamentos interpessoais ocorrem devido à mudança
de comportamento do dependente químico, uma vez que a droga passa a ser o centro
da sua vida. Para Laranjeira (2010), a partir do instante em que o usuário desenvolve
dependência de drogas, o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo as melhores
qualidades da própria pessoa, contribuindo para a desestabilização da sua relação com
a família e com a sociedade. Percebe-se que o usuário passa a ter dificuldades em
manter suas relações, o que pode provocar fragilização ou até mesmo o rompimento de
vínculos familiares e afetivos, como fica evidenciado na seguinte fala: “Eu tinha uma
estrutura, o meu pai era advogado bem sucedido, depois meu pai faleceu, sabe? Então,
eu fiquei na rua, sabe? Fiquei morador de rua” (E7). Para as relações familiares, além
do rompimento de vínculos, o uso de drogas pode contribuir para altos níveis de conflito
interpessoal, violência doméstica, abuso, negligência infantil, separação, divórcio,
dificuldades financeiras e legais, entre outros (Reinaldo et al., 2008). A dependência
química faz ainda com que o usuário perca a credibilidade e a confiança da família, o
que pode dificultar a participação da família no tratamento (Filizola et al., 2006).
As relações de emprego também podem ser afetadas devido ao uso de drogas,
uma vez que o dependente químico sofre com o estigma que carrega por ser usuário
de substâncias psicoativas. Isso pode dificultar uma oportunidade de vaga de emprego
ou até mesmo prejudicar sua permanência em um, já que o uso de drogas pode ser
responsável por faltas ao trabalho, atrasos, conflitos com os colegas, etc. Os prejuízos
ficam ainda mais evidentes ao pensarmos que o desemprego consiste também em um
fator desestruturante da organização familiar e pode, portanto, desencadear crises e
sofrimento psíquico (Souza, Kantorski, & Mielke, 2006). Percebe-se que os problemas
ocasionados pelo uso de drogas nas relações interpessoais podem afetar diversas áreas
da vida do usuário, levando ao sofrimento e ao isolamento social, conforme apontado
na fala a seguir: “Perda de empregos, perda de confiança da família, ir para um ponto
que a família começou a me largar de mão, perda total da confiança da família, eu já
estava me sentindo sozinho no mundo” (E1).
Conclui-se que é emergencial pensar ações em saúde que superem a visão de
um modelo centrado na cura da doença e na queixa do usuário, tratando apenas os
sintomas clínicos, e que de fato, se desenvolvam iniciativas que considerem o sujeito
como um ser integral, visto que os prejuízos ocasionados pelo uso de drogas afetam
diversas áreas da sua vida. Nesse sentido, a Atenção Primária à Saúde constitui-se em
um palco privilegiado para o desenvolvimento de ações de promoção e prevenção ao
uso de álcool e outras drogas.
Fatores protetores ao uso de drogas
Nesta área temática, os usuários do CAPS ad Reviver relataram os fatores de
proteção que os auxiliam a evitar o uso de drogas no momento presente. Dentre esses
fatores, destacaram-se a família e os amigos. São múltiplos os fatores relacionados
com o envolvimento dos jovens no uso de drogas que estão constantemente em
movimento: ora aparecem como fatores de risco, ora como protetores, entre eles:
a mídia, a vida em área de risco, o grupo social, a escola e a família (Costa et al.,
2012).
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Existem fatores que podem ser considerados de risco e fatores protetores quanto ao
uso de drogas. Os fatores de risco são determinados pela combinação de características
de um indivíduo ou grupo do qual faça parte, e da probabilidade do uso de drogas a
que estão expostos em algum momento da vida. Já os fatores de proteção, objetivam
fortalecer a determinação dos indivíduos para negar ou evitar a progressão de riscos,
inibindo comportamentos autodestrutivos e diminuindo a influência de fatores de risco.
Cabe destacar que os fatores protetivos não são apenas o contrário dos fatores de risco.
Eles variam ao longo do desenvolvimento psicológico e social do indivíduo, podendo
causar impactos diferentes em cada fase do desenvolvimento, sendo considerados mais
ou menos relevantes, conforme dado momento específico da vida do sujeito (Campos
& Figlie, 2011).
As relações afetivas podem contribuir de maneira significativa para manter o usuário
longe das drogas. Além do apoio e do suporte emocional, os familiares e amigos servem
como motivação para que o dependente busque tratamento. Para Veloso e Monteiro
(2010), acreditar que exista algo ou alguém que os assiste, é o que mantém a esperança
deles na cura da dependência. E é essa crença que os faz visualizar possibilidades e lhes
garante coragem para buscar a abstinência, aceitando a realidade e as responsabilidades.
A família é considerada um importante fator de proteção quando os vínculos afetivos
permanecem entre o usuário e seus familiares, fornecendo elementos essenciais para a
reabilitação como amparo, carinho e proteção. Assim, torna-se um estímulo para que o
dependente permaneça longe das drogas, conforme as falas a seguir: “Eu penso muito
nos meus filhos” (E9); “Minha esposa” (E10); “[...] Minha família, meus filhos”. (E3).
Dentre as características que definem a família como um fator protetor foram relacionados
à ligação positiva entre seus membros, o acolhimento, a confiança, o relacionamento
familiar que evite críticas severas e desmedidas, as regras consistentes e claras e o ambiente
de sustentação emocional (Campos & Figlie, 2011).
A família deve ser considerada um dos pilares das ações destinadas à reconstrução de
vida dos usuários de álcool e outras drogas, devendo ser incluída não apenas como apoio
ao tratamento, mas também como foco de atenção, reconhecendo-se a sua importância
enquanto estrutura social (Veloso & Monteiro, 2010). Corroborando nossos achados, um
estudo com jovens em situação de risco demonstrou que dispor de informações adequadas
sobre o tema “drogas” por meio da unidade familiar parece crucial à prevenção do uso
experimental entre adolescentes e jovens em situação de risco (Sanchez et al., 2010).
As amizades também são consideradas como um fator de proteção pelos usuários.
Percebe-se que os amigos aparecem como fator protetivo quando, além de prestar apoio,
eles próprios evitam as drogas e não estão de acordo com o seu uso, conforme explicitado
nas falas a seguir: “O que me ajuda é ter amigos que não usam, você estar com os amigos
que não usam. Você não ficar sozinha [...] porque a partir do momento que se começa a
ficar muito sozinha, você começa a ter as fissuras que te arrastam para a garrafa e elas
arrastam mesmo. Então a gente precisa da companhia de alguém e sempre alguém que
não use” (E5); “Não se misturar com pessoas que usam isso, porque eu conheço várias.
Então eu, no meu momento de hoje, eu não vou me misturar mais com essas pessoas”.
(E2). Cabe destacar, que nem sempre a família e as amizades serão fatores de proteção.
Ambientes familiares onde há uso de drogas e aprovação por pais ou irmãos, disfunção
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familiar, falta de envolvimento dos pais na vida dos filhos, expectativas irreais a respeito do
desenvolvimento, baixa ligação com seus membros, falta de regras, disciplina e supervisão,
também são considerados fatores de risco (Campos et al., 2011). Outros fatores de risco
são aqueles amigos que são considerados como um modelo para o usuário, mas que
apresentem comportamento de risco para o uso de drogas como a tolerância, a aceitação
ou consumo também podem influenciar a utilização dessas substâncias.
Conhecer os fatores de risco e de proteção ao uso de álcool e outras drogas é
essencial para o planejamento de ações preventivas, uma vez que são esses fatores que
irão determinar o risco de exposição ou proteção ao uso dessas substâncias. A partir
da fala dos usuários do CAPS ad Reviver, reconhece-se a emergência de fortalecer e
recuperar os vínculos familiares e afetivos, tornando-os fatores protetivos, de forma a
contribuir para a prevenção ao uso de drogas. Entendemos que toda e qualquer ação em
saúde pressupõe a interação de diversas políticas sociais, uma vez que a conquista de
uma vida saudável ultrapassa a ausência de doença, compreendendo o bem-estar físico,
mental e social de todo cidadão.
A importância do CAPS na reabilitação do usuário de álcool e outras drogas
Os usuários apontam nessa área temática como fatores principais proporcionados
pelo CAPS Reviver à sua reabilitação as atividades educativas e terapêuticas, o
atendimento especializado, o desenvolvimento do vínculo com os profissionais e o resgate
da autoestima. A modalidade de tratamento oferecida proporciona aos usuários segurança
e, principalmente, o resgate da autoconfiança e da valorização necessárias para o caminho
da reabilitação psicossocial. Corroborando nossos achados, traz-se a experiência de
gestão da Redução de Danos (RD) – que é uma forte estratégia na formação dos CAPS
ad – na qual vários usuários de drogas diminuem, e não raro abandonam, o uso de drogas
ao experimentarem um contexto no qual se sentem acolhidos e cuidados. A proposta
da RD foca na direção da produção de saúde, considerada como desenvolvimento de
regras autônomas do autocuidado, constituindo uma construção coletiva e comum para
as experiências dos usuários de drogas, formando um elo indissociável entre gestão e
atenção (Passos & Souza, 2011).
O CAPS ad objetiva oferecer atividades terapêuticas e preventivas à comunidade,
prestando atendimento diário aos usuários do serviço e familiares, oferecendo cuidados
personalizados de acordo com o Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada usuário
(modalidades intensiva, semi-intensiva e não intensiva), garantindo aos mesmos, atenção
e acolhimento, proporcionando condições para o repouso e desintoxicação ambulatorial
de usuários que necessitem de tais cuidados, além de, promover ações educativas e
preventivas, que visem à reinserção social, atenuando o preconceito em relação ao uso
de álcool e outras drogas (Brasil, 2004). A reabilitação proporcionada pelo CAPS ad é
estrategicamente direcionada para a RD, seja através do afastamento do contexto social
que favorece a utilização de álcool e outras drogas, ou pelo suporte terapêutico que produz
reflexão ao mesmo tempo em que oferece subsídios para mudanças subjetivas.
As reflexões sobre o consumo de substâncias, na lógica da RD, fortalecem
o potencial de mudança do usuário, incidindo na autoestima, demonstrando a
possibilidade da conquista gradativa do autocontrole em relação às drogas consumidas
Aletheia 45, set./dez. 2014
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e da minimização dos danos relacionados a este consumo (Alves, 2005). O CAPS ad
tem fundamental importância para a construção do conhecimento, afirmando que os
profissionais atuantes neste serviço são responsáveis pela busca de estratégias que
possibilitem aos usuários a concepção sobre drogas, esclarecendo o que não é, e o
que é droga, os motivos explícitos e implícitos para seu consumo, fazendo com que
os usuários sejam responsáveis pelo seu tratamento, reabilitação emocional, social e
física (Vieira et al., 2010).
As entrevistas evidenciam o papel do CAPS na educação em saúde. No serviço
são realizados grupos, oficinas terapêuticas, assim como, o atendimento individual
dos profissionais para a disseminação de informações e conhecimento: “O CAPS
incentiva muito a pessoa a diminuir bastante o uso do álcool, o uso da bebida [...]
me ajudou bastante a diminuir pelo menos o uso da bebida [...]. Têm psicólogos aí,
têm uns atendimentos muito bons, grupos terapêuticos. Ajudam bastante a gente.
(E1). Define-se por educação em saúde a construção de conhecimentos em saúde,
que propõe à população a apropriação sobre o tema, aumentando a autonomia das
pessoas em relação ao seu cuidado de acordo com suas necessidades (Brasil, 2005).
De acordo com Alves (2005), é um recurso por meio do qual os profissionais da
saúde utilizam-se para difundir o conhecimento científico, atingindo a vida cotidiana
das pessoas, oferecendo subsídios para a adoção de novos hábitos e condutas de
saúde. Para que essas mudanças possam acontecer, é necessário que se obtenha
uma aprendizagem significativa que possibilite a aquisição de conhecimentos e de
informações (Teixeira, 2007).
À medida que se desenvolvem ações em educação em saúde, consequentemente
aumenta o conhecimento dos usuários sobre as drogas e suas implicações gerando
modificações na concepção dos mesmos frente à sua realidade e o reconhecimento
das situações vivenciadas evidencia a responsabilização de cada um no tratamento:
“Aqui tem profissionais para tirar as dúvidas que a gente tem. Depois [...] aqui
ninguém é preso, tu podes sair à hora que tu quiseres. Só que aqui eles te ensinam
a ter responsabilidade [...]” (E3); “Eu vim para o CAPS porque eu quis [...]” (E9);
“[...] O CAPS para mim é ótimo, é um tratamento muito bom, é um tratamento que eu
me sinto com liberdade [...]”. (E10). Nestes relatos, podemos observar nas falas dos
usuários a liberdade de escolha implícita. A liberdade deve ser regulada pelos próprios
indivíduos, os quais precisam ser estimulados a tomar decisões sobre a sua própria
vida (Oliveira, 2005).
O atendimento individualizado pelos profissionais, bem como as oficinas e grupos
terapêuticos disponibilizados pelo CAPS atuam como instrumento de reabilitação,
não só auxiliando na abstinência e na ocupação diária, mas também na descoberta das
potencialidades dos usuários, possibilitando atividades laborais, em busca da conquista
da reinserção social: “O CAPS para mim é minha vida hoje, eu fico de segunda a
sexta aqui, eu saio novo, nem penso em droga porque não faz mais parte. O CAPS
foi tudo em matéria de médico, de psiquiatra, de psicóloga, de Assistente Social, de
alimentação, de vestuário, de aulas de culinária, aulas de educação física, aulas de
pintura, desenho. O CAPS foi tudo para mim, se eu não tivesse o CAPS, eu nem estaria
aqui hoje” (E7).
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As oficinas terapêuticas são atividades realizadas em grupo, de acordo com o
interesse, necessidade dos usuários e disponibilidade do serviço. São supervisionadas
por um ou mais profissionais, monitores e/ou estagiários e constituem-se como uma
das principais formas de tratamento no CAPS, tendo como objetivo a interação
sociofamiliar, a expressão de sentimentos e o resgate da cidadania (Brasil, 2004). As
oficinas terapêuticas em Saúde Mental devem ser desenvolvidas também em serviços
de Internação e Hospital-dia, em função da ocupação e ociosidade e somente podem
ser consideradas de tal forma se possibilitarem aos usuários um local de fala, expressão
e acolhimento (Lappann-Bottil & Labate, 2004). Tais oficinas têm o potencial de
empoderamento dos usuários na reconstituição dos seus projetos de vida e de suas
relações (Veloso et al., 2013).
O CAPS desempenha papel importante também no resgate da autoestima, da
autoconfiança e valorização pessoal, desperta a solidariedade, ao mesmo tempo em que
possibilita a troca de experiência, a comunicação e a inter-relação entre os usuários,
reforçando vínculos entre usuários, serviço e profissionais: “Eu me sinto bem vindo aqui,
[...] eu botei na cabeça que eu nunca mais vou chegar aqui e dizer para ela [enfermeira]
que eu bebi”. (E9); “[...] Sinto assim que posso algumas vezes ajudar outras pessoas
que estão em situação pior que a minha [...]”. (E10). A troca de experiência e vivências
durante as atividades de grupo levam os usuários a reflexões. O aprendizado em grupo
resulta da convivência e da aderência de seus membros, eclodindo como estratégia real
na produção do cuidado em saúde (Teixeira, 2007).
As análises efetuadas para este estudo permitem inferir que o CAPS ad, além de
oferecer acolhimento, atividades terapêuticas e educativas, apresenta duas características
que facilitam a procura por ajuda dos usuários – o território onde está localizado e a
modalidade de atendimento. No que tange ao território, está estrategicamente situado
em um bairro onde vivem pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial, com alta
demanda de procura por atendimento em razão do uso de substâncias psicoativas. Por
outro lado, o CAPS ad Reviver foi um dos primeiros CAPS ad do Estado que ofereceu
a modalidade de atendimento em três turnos. Ou seja, a conjunção desses dois fatores
propicia uma inserção no território que é relevante para o tratamento e reabilitação de
pessoas em uso de substâncias psicoativas.
Considerações finais
Os resultados evidenciam que um mesmo fator pode tanto constituir-se como um
fator de risco como de proteção ao uso de álcool e outras drogas. Isso é evidenciado
nos dados coletados com usuários do CAPS ad, que apontam as amizades – amigos e
companhias – tanto como fatores de risco como de proteção. Essas podem ser um fator
de risco quando influenciam o uso de drogas, e um fator de proteção quando não são
favoráveis a esse uso e representam uma rede de apoio. Além disso, foram apontados
como fatores de risco os sentimentos de tristeza, a depressão e as festas, e como fatores
de proteção, a família e os amigos. O uso de drogas pode causar incontáveis prejuízos
na vida dos sujeitos, expondo-os às situações de riscos e de violência, contribuindo
para o desenvolvimento de doenças físicas e psíquicas, prejudicando as relações
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interpessoais e provocando fragilização e rompimento de vínculos. Também pode
causar um grande impacto social contribuindo para o aumento da mortalidade e para
redução da expectativa de vida, para o aumento dos gastos com saúde e previdência
social, além de acidentes de trânsito. É imprescindível que as ações de prevenção ao
uso de drogas relacionem esses prejuízos ao uso dessas substâncias, enfatizando a
compreensão dos danos a que os sujeitos estão expostos.
Os usuários do CAPS ad apontam que as diferentes modalidades de tratamento
oferecidas pelo serviço subsidiam o caminho à reabilitação psicossocial. Essa
reabilitação é direcionada também, para a RD, pois o serviço afasta o usuário do contexto
que favorece o uso de drogas, propicia suporte terapêutico, o qual produz mecanismos
favoráveis a mudanças subjetivas, demonstrando a possibilidade da conquista gradativa
do autocontrole em relação à utilização das drogas. O saber adquirido através do
conhecimento e de ações de educação em saúde e intervenções terapêuticas auxilia
os usuários no resgate da autonomia e da autoestima, na responsabilização pelo seu
tratamento e na reabilitação psicossocial As práticas terapêuticas desenvolvidas
pelo CAPS estimulam a troca de experiências, a comunicação e as inter-relações,
estabelecendo vínculos entre usuários, profissionais e o serviço. Fica evidente
a importância do CAPS ad Reviver à luz do diálogo franco e da experiência de
profissionais que dão assistência à saúde de indivíduos que fazem uso abusivo ou são
dependentes de drogas e/ou álcool.
Vale ressaltar que, apesar dos dados relevantes que este estudo apresenta, em
razão dos critérios de inclusão dos sujeitos, elencados no projeto, os participantes
constituem um grupo particular que apresenta aderência ao tratamento e ao CAPS.
Assim, ao usarmos uma amostra não aleatória, de certa forma limitamos os achados
às especificidades da população estudada.
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Porto Alegre: Artmed, p.129-144.
____________________________________
Recebido em março de 2015
Aceito em abril de 2015
Ana Kelen Dalpiaz: Assistente Social, Residente na Ênfase de Atenção Básica em Saúde Coletiva junto a
Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.
Maria Helena Vianna Metello Jacob: Educadora Física, PhD em Fisiologia Humana, Professora do PPG
Promoção da Saúde ULBRA.
Karen Daniele da Silva: Assistente Social da SMED de Caxias do Sul/RS.
Melissa Pereira Bolson: Enfermeira CAPS I Dois Irmãos/RS.
Alice Hirdes: Enfermeira, Doutora em Psicologia, Professora do PPG Promoção da Saúde ULBRA.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
71
Aletheia 45, p.72-86, set./dez. 2014
A percepção dos usuários sobre a abordagem de álcool
e outras drogas na atenção primária à saúde
Maristela Person Cardoso
Rafaela Dall Agnol
Carina Taccolini
Karen Tansini
André Vieira
Alice Hirdes
Resumo: O uso e abuso de álcool e drogas configuram-se como um significativo problema de
saúde pública. A Reforma Psiquiátrica preconiza a substituição do sistema manicomial por redes
de cuidado extra-hospitalar. Nesse âmbito, a Atenção Primária à Saúde constitui-se em um espaço
privilegiado para ações de intervenção no território. A pesquisa teve como objetivo conhecer a
percepção dos usuários sobre as abordagens dos profissionais da Atenção Primária. Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, realizada com usuários de álcool e outras drogas em atendimento em
Unidades Básicas de Saúde de Caxias do Sul, RS. Os resultados evidenciam que o acolhimento
promovido pelos agentes comunitários de saúde e a proximidade geográfica da unidade de saúde
propiciam o vínculo; o preconceito da sociedade frente ao uso de drogas é considerado um fator
que favorece a continuidade da adicção; a influência do contexto social do usuário configura-se
como um fator de risco; a identificação e o fortalecimento de redes sociais saudáveis atuam como
fatores de proteção.
Palavras-chaves: Atenção primária à saúde; saúde mental; usuários de drogas.
The users’ perception on the approach of alcohol and other drugs
in primary health care
Abstract: The addiction on alcohol and drugs is an important public health problem. The Psychiatric
Reform proposes the replacement of the asylum system for non-hospital care networks. In this
context, the primary health care is a privileged place for interventions in the territory. The research
aimed to know the perception of users on the approaches of professionals in the Primary Health
System. This is a qualitative research carried out with alcohol and drug users receiving care at Basic
Health Units from Caxias do Sul, RS. The results show that welcoming promoted by community of
health workers and the geographical proximity with the health unit facilitates building attachment;
the prejudice of society about drug users was considered a factor that favors the continuity of
addiction; the social context of drug users appears as a risk factor; identifying and strengthening
healthy social networks is a protective factor.
Keywords: Primary health care; mental care; drug addiction.
Introdução
O consumo de substâncias psicoativas (SPAs) vem se expandindo mundialmente. As
SPAs interferem não somente em nível biológico, mas em todo o contexto biopsicossocial
dos indivíduos que as consomem, tornando-os vulneráveis às situações de risco (Cardoso,
Santos, Thomas, & Siqueira, 2013), e acarretando graves consequências, principalmente,
para adolescentes e adulto-jovens (Nader et al., 2013), as quais aparecem nas várias
esferas da vida cotidiana, comprometendo vínculos afetivos, trabalho, trânsito, família,
saúde e contribuindo na disseminação do vírus HIV (Campos, Albuquerque, Almeida,
& Santos, 2013).
Historicamente, a questão do uso abusivo e da dependência de álcool e outras
drogas têm sido abordada por uma ótica predominantemente médico-psiquiátrica. Nessa
perspectiva, as implicações psicossociais são pouco consideradas na compreensão global
do problema. O abuso de substâncias vem sendo associado à criminalidade e práticas
antissociais (Brasil, 2003). A complexidade do problema e o número de pessoas envolvidas
com drogas faz com que o abuso e a dependência de substâncias psicoativas sejam uma
importante questão de Saúde Pública. O consumo de álcool e outras drogas constituiu-se
em um desafio para as equipes de Estratégia da Saúde da Família (ESF), particularmente
no que tange às questões do cuidado integral da pessoa e da promoção da saúde (Amarante,
Lepre, Gomes, Pereira, & Dutra, 2011). As diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde
(SUS) têm garantido aos usuários dos serviços de saúde mental e aos dependentes de
álcool e outras drogas a universalidade de acesso e o direito à assistência, bem como
a integralidade no cuidado, com ênfase na reabilitação e reinserção social (Larentis &
Maggi, 2012). Cumpre-se, assim, a Lei 10.216 de abril de 2002. (Brasil, 2002).
A Política Nacional do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários
de Álcool e Outras Drogas preconiza que definir políticas públicas para a promoção
de mudanças nos diferentes níveis envolvidos requer: mudanças individuais de
comportamento; mudança de crenças e normas sociais; ações de informação e prevenção;
diversificação e ampliação da oferta de serviços assistenciais; adoção de políticas de
promoção da saúde que contemplem ações estruturais nas áreas de educação, saúde
e de acesso a bens e serviços. Essa política contempla também a discussão das leis
criminais de drogas e a implementação de dispositivos legais para a equidade do acesso
dos usuários às ações de prevenção, tratamento e redução de danos; a revisão da lei que
permite demissão por justa causa por uso de drogas por funcionários; a discussão do
impedimento da testagem de uso de drogas, realizada de forma compulsória em empresas
e escolas públicas (Brasil, 2004).
A abstinência não pode ser o único objetivo a ser alcançado (Brasil, 2004). Quando se
trata de cuidar de vidas humanas, temos que necessariamente lidar com as singularidades
e com as diferentes possibilidades de escolha. Deve-se acolher sem julgar o que cada
usuário necessita, sempre levando em conta o seu desejo e participação. Nesse sentido,
a abordagem de Redução de Danos (RD) pode ser uma alternativa. A estratégia de RD
reconhece cada usuário na sua singularidade, reflete sobre alternativas que estão voltadas
não só para a abstinência, mas para a defesa de sua vida. Assim, cuidar significa aumentar
o grau de liberdade e corresponsabilidade dos sujeitos (Brasil, 2004). Isso implica a
construção de vínculo com os profissionais que também passam a ser corresponsáveis
pela vida daquele usuário.
Este estudo integra o Programa de Educação para o Trabalho em Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas (PET-Saúde Mental) do Ministério da Saúde, desenvolvido
em parceria com a Universidade de Caxias do Sul, RS. O Pet Saúde Mental prevê a
qualificação de acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento para as necessidades do
Aletheia 45, set./dez. 2014
73
SUS, assim como a iniciação em pesquisa. A ampliação das intervenções direcionadas
ao álcool e outras drogas no território perpassa necessariamente pela capacitação de
recursos humanos, no qual sejam levados em consideração os princípios e pressupostos
da reforma psiquiátrica brasileira. Assim, as Unidades Básicas de Saúde, em razão de
estarem situadas na comunidade, constituem-se em um recurso essencial para a promoção,
prevenção, tratamento e reabilitação de usuários de substâncias psicoativas.
Cardoso et al., (2013) afirmam que para uma maior efetividade das ações de atenção
à saúde é necessário compreender e valorizar o conhecimento dos sujeitos a respeito de
suas condutas comportamentais, valores culturais e informações que possam servir de
proteção e prevenção ao consumo de drogas. Desse modo, este estudo teve por objetivo
conhecer a percepção dos usuários sobre as ações desenvolvidas pelos profissionais da
Atenção Primária à Saúde, com vistas à identificação das ações consideradas relevantes
na abordagem do uso e abuso de álcool, crack e outras drogas.
Método
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com usuários de
álcool e outras drogas, vinculados às Unidades de Saúde da Família de Caxias do
Sul, RS. A rede de saúde mental do município iniciou-se em 1995, com a criação do
ambulatório CAIS Mental, que atende todas as faixas etárias e transtornos mentais,
incluindo transtornos associados ao consumo de álcool e outras drogas. Atualmente
a rede de serviços contempla 4 CAPS: 1 CAPS infantil, 1 CAPS para atendimento
de portadores de transtornos mentais graves e 2 CAPS ad 24h, além de 3 Serviços de
Residenciais Terapêuticos. O CAPS álcool e outras drogas Reviver presta atendimento
24 horas a usuários de álcool e outras drogas e dispõe de leitos para desintoxicação. O
serviço localiza-se geograficamente em uma região de vulnerabilidade psicossocial e
constituiu-se como um dos primeiros CAPS três turnos do Estado.
O atendimento em saúde mental nas UBSs teve início em 2007, a partir do apoio
matricial em saúde mental a cinco UBS da zona urbana. Em 2010 originou-se uma
Equipe Volante de Apoio Matricial central na Secretaria Municipal de Saúde. Assim,
com vistas a responder os objetivos da pesquisa, foram entrevistados 10 usuários de
álcool e outras drogas em atendimento pelas equipes da ESF e que recebem supervisão
e apoio de equipes matriciais. Foram elencados como critérios de inclusão dos usuários
das UBS: dependentes de álcool ou outras drogas, acompanhados pelas equipes da
ESF no território, com supervisão e apoio de equipes matriciais. Foram selecionadas
as pastas dos usuários em acompanhamento sistemático pelas equipes da ESF nas 4
Unidades de Saúde do município que dispunham do apoio matricial em saúde mental
(UBS Mariani, UBS Fátima Alta, UBS Fátima Baixa, UBS Vila Ipê) e dessas sorteadas
os 10 participantes do estudo. Os sujeitos do estudo eram todos homens adultos, com
idade compreendida entre 25 e 60 anos.
Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas. A entrevista
semiestruturada consiste em um roteiro de entrevista que objetiva apreender o ponto
de vista dos atores sociais do objeto da pesquisa. Este contém poucas questões e é um
instrumento utilizado para orientar uma “conversa com finalidade”. Deve permitir
74
Aletheia 45, set./dez. 2014
o aprofundamento da comunicação, é um guia a facilitar a entrevista. Não se pode
constituir numa amarra, deve ser o facilitador da abertura. (Minayo, 2010). As entrevistas
foram realizadas nas dependências das UBSs e nas residências dos sujeitos da pesquisa
de forma individualizada, estando presente apenas o entrevistado e o entrevistador.
Foram realizadas no período compreendido entre outubro e dezembro de de 2011.
Foi realizada a adequabilidade do instrumento de pesquisa semiestruturado, através
da aplicação de projeto piloto. O roteiro contemplou questões como o atendimento e
suporte dos profissionais das Unidades de saúde da Família nas questões relacionadas
ao uso de drogas; as situações que levaram ao uso de drogas pela primeira vez; as
situações que favorecem a manutenção do uso; os fatores protetores que impedem a
utilização de SPAs nos diferentes domínios da vida dos sujeitos.
Para a análise dos dados foi utilizada a análise de conteúdo na modalidade
temática, proposto por Minayo (2010): a ordenação, a classificação e a análise final
dos dados. A ordenação dos dados inclui: a transcrição das entrevistas; a releitura do
material; a organização dos relatos em determinada ordem, de acordo com a proposta
analítica. Essa etapa é um processo hermenêutico, em que o pesquisador se apropria
do material empírico.
A classificação de dados é constituída pela etapa de leitura horizontal e exaustiva
dos textos e pela leitura transversal. A leitura horizontal e exaustiva dos textos é
determinada pela leitura de cada entrevista. Nesta fase, cada frase, palavras, adjetivos
e sentido geral do texto são observados. Esse exercício inicial, denominado “leitura
flutuante”, permite a apreensão das estruturas de relevância dos sujeitos, as ideias
centrais sobre o tema. (Minayo, 2014, p.358). Esse exercício resultará na construção
das categorias empírícas, que posteriormente, serão confrontadas com as categorias
analíticas, previamente estabelecidas no referencial teórico.
O segundo momento da classificação dos dados é o da leitura transversal de cada
subconjunto e do conjunto em sua totalidade. Nessa fase, com base na identificação
das estruturas de relevância, são realizados movimentos classificatórios que permitem
agrupar o que foi exposto por temas. Posteriormente, o investigador realiza um
movimento que busca agrupar em unidades de sentido, interpretando o que foi abordado
como relevante e representativo para o grupo investigado (Minayo, 2014). Na análise
final, são realizados movimentos que vão dos dados empíricos para o referencial teórico
e vice-versa.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de
Caxias do Sul, sob o número 184/11. Todos os participantes assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) conforme determina as diretrizes e normas
reguladoras de pesquisa envolvendo seres humanos estabelecidas pela Resolução
466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). Nesse momento, foram
realizados os procedimentos para esclarecimentos sobre a pesquisa. Aos participantes,
foi assegurado o direito de aceitar ou se recusar a participar da pesquisa, bem como
o de se desvincular do estudo em qualquer momento de sua realização. Os dados das
entrevistas ficarão sob a guarda dos pesquisadores durante cinco anos e após serão
destruídos. Os participantes serão identificados por letras e números, de forma a
preservar o anonimato (E1, E2, E3...).
Aletheia 45, set./dez. 2014
75
Discussão
Na análise dos dados, após extraídas as estruturas de relevância das falas dos
entrevistados, foram identificadas cinco áreas temáticas: a contribuição das Unidades
de Saúde da Família na atenção à usuários de álcool e outras drogas; os fatores de risco
ao uso e abuso de drogas; o uso de SPAs como busca de alívio para o sofrimento e as
dificuldades; a percepção sobre os prejuízos decorrentes do uso; os fatores que auxiliam
na recuperação do usuário.
As Unidades de Saúde da Família na atenção a usuários de álcool e outras drogas
Esta área temática aborda as ações realizadas pelos profissionais nas Unidades
Básicas de Saúde que tem implantada a Estratégia Saúde da Família. As entrevistas
evidenciam o importante papel dos Agentes Comunitários de Saúde nas demandas desses
usuários, assim como a facilidade de acesso a esses profissionais. Dentre as lacunas
relatadas pelos participantes está a necessidade de trabalhar a promoção e prevenção
do uso e abuso de álcool e outras drogas dirigidas à adolescentes e o incremento de
atividades de grupo.
Em relação às Unidades de Saúde da Família, os entrevistados referiram sentirem-se
acolhidos pelo serviço e possuírem facilidade de acesso aos trabalhos realizados pelos
Agentes Comunitárias de Saúde que visitam suas famílias e por outros profissionais.
Evidencia-se a proximidade entre sujeito e equipe, com formação de vínculo e aporte em
caso de necessidade. “A UBS para mim foi uma benção, porque eles estão toda hora por
aí, sabendo se tu estas doente, como está. Principalmente, a [agente comunitária de saúde]
está sempre por aí” (E1). “Tem uma nota 10. Eu vejo da parte deles ali da UBS [...] Eles
estão ajudando ao máximo o pessoal aqui do [bairro], quem está procurando” (E2).
O Agente Comunitário de Saúde (ACS) está mais próximo dos usuários de drogas
e de todo o seu contexto, além de ser a primeira pessoa de referência para a assistência à
saúde (Barros & Pillon, 2007). Nesse sentido, representa papel fundamental nas práticas,
descentralizando o foco da doença, característico do saber do médico e da instituição de
saúde. Possui, também, facilidade de acesso e formação de vínculo com o usuário, por
já estar inserido em um ambiente natural, contribuindo ainda na elaboração de projetos
terapêuticos desenvolvidos na comunidade, além de promover o cuidado e a afetividade
com os moradores (Delfini, Sato, Antoneli, & Guimarães, 2009). Assim, a ação dos
agentes em conjunto com outros profissionais, torna-se uma arma poderosa na promoção
da saúde mental (Lancetti, 2008). O vínculo é construído a partir da necessidade de
apoio do usuário e da escuta e postura acolhedora dos profissionais. Ele atua como um
elemento terapêutico e é um recurso que qualifica o trabalho em saúde (Campos, 2003).
“[...] a UBS, eu não tenho o que reclamar, sempre dando ajuda para nós [...] se preciso
conversar sempre estão dispostos a ouvir”. (E10).
Os usuários relataram a necessidade de se ter, nas Unidades de Saúde e nos Centros
Comunitários, projetos de lazer e intervenção, como oficinas e palestras que incluam
a temática da drogadição e que sejam atrativos à sua inserção no serviço. As trocas de
experiências nos grupos estimulam a iniciar ou a dar continuidade ao tratamento: “[...].
porque no postinho ali eu acho que nunca foi feito nada sobre droga ou coisa assim [...]
76
Aletheia 45, set./dez. 2014
agora nós estamos usando o postinho para fazer uma pesquisa para uma professora [...]
a pesquisa é também sobre droga: o lado bom e o lado ruim do bairro, o lado saúde e o
lado que não é saúde” (E4). “Mas, eu ainda acho que a UBS tem pouco trabalho nessa
parte com os adolescentes”. (E7).
O trabalho com grupos em Unidades de Saúde é um recurso significativo à
obtenção da promoção de saúde, é um espaço de atenção comprometido com a
cidadania e a solidariedade e uma estrutura onde as pessoas interagem e criam vínculos.
Os grupos propiciam mudanças nas atitudes de cuidado com a saúde, partindo da
realidade dos pacientes e priorizando o homem em suas potencialidades. A partilha de
experiências contribui para o processo de motivação ao tratamento, pela interação e
diálogo do coletivo (Silveira & Ribeiro, 2005). “Eles estão com um projeto bom [...].
Claro, palestra serve como autoajuda. Tu vais ali, tu vais porque tu queres, ninguém
vai te obrigar a ir. E tem um papel fundamental, passar informação. [...] eu vou para
conversar porque é bom tu dividir experiências. Alguma coisa tu vais aproveitar do
que os caras falam [...]”. (E5).
As atividades socioculturais – teatros, música, pintura, terapia comunitária, entre
outras – por serem práticas psicossociais, podem vir a ser utilizadas como instrumento
de intervenção, pois visam trocas de experiências e produção de saúde. As atividades
socioculturais possuem a capacidade de elevar a autoestima do sujeito, recuperar
laços familiares e sociais, facilitar a capacidade de enfrentamento de frustrações,
obter melhora geral do estado físico e mental, reconfigurar atitudes e vínculos por
meio de construção de interesses, necessidades e capacidades, levando à superação
do uso das drogas psicoativas. Essas atividades podem preencher o espaço virtual
vazio antes ocupado pelas drogas, proporcionando significado e metas para sua vida,
contextualizando uma nova organização do seu cotidiano (Sampaio, Hermeto, &
Carneiro, 2009).
As entrevistas evidenciam que os Agentes Comunitários de Saúde são reconhecidos
pelos usuários no trabalho desenvolvido nas Unidades de Saúde e no atendimento. Os
agentes e o trabalho realizado nos grupos representam um papel importante para
promoção e prevenção de saúde. Os grupos, priorizando a troca de vivências e a
busca de alternativas ao uso e ou abuso de SPAs, são um recurso importante para a
manutenção da abstinência e superação do uso de substâncias psicoativas. O vínculo,
o acolhimento e as relações dialógicas com os usuários são aspectos importantes nas
práticas em saúde.
Os fatores de risco ao uso e abuso de drogas
Os adolescentes constituem o grupo de maior vulnerabilidade ao uso de drogas,
por estarem em fase de transição corporal e psíquica, bem como por apresentarem
necessidade de viver novas experiências e sensações (Brusamarello, Sureki, Bomile,
Roehrs, & Maftum, 2008). Os jovens se deparam com a curiosidade em vivenciar o que
acontece ao utilizar determinada substância, não considerando os efeitos da mesma, e
esquecendo a possibilidade da adicção desde o primeiro contato com a droga. Pode-se
agravar este processo pelo sentimento de onipotência que é característico dessa faixa
etária, ou até mesmo pela pressão que os adolescentes sentem dos pais e da sociedade,
Aletheia 45, set./dez. 2014
77
exigindo que estabeleçam um projeto de vida, no intuito de torná-los independentes de
proteção e cuidados alheios.
Mesmo apresentando conhecimentos sobre os malefícios das drogas ilícitas, o
desejo de experimentar o novo ou ainda a coragem ou estratégias de enfrentá-los supera os
problemas decorrentes do uso abusivo de substâncias. Os sujeitos utilizam as substâncias
psicoativas por estas apresentarem valores e simbolismos específicos que variam de
acordo com o contexto histórico e cultural, em setores como o religioso/místico, social,
econômico, medicinal, psicológico, climatológico, militar, e na busca do prazer (Lessa,
2008). “É uma coisa que todo mundo, quando chegou o crack em Caxias em 96 – 97,
para ver como é. Mais é curiosidade” (E2); “Curiosidade. Porque o ser humano eu
acho que ele gosta de coisas novas, sendo boas ou sendo ruins...”. (E4). As entrevistas
evidenciam que a curiosidade emerge como um elemento importante na decisão de escolha
dos sujeitos na experimentação das drogas, independente dos riscos envolvidos.
Em busca da autoafirmação, muitas vezes o sujeito precisa sentir que é aceito
pelo seu círculo de convívio, tendendo a aceitar as ofertas de SPAs de amigos. Apesar
da liberdade de escolha, a influência desses está entre os fatores relatados com mais
frequência nos motivos que levaram os sujeitos a tornarem-se usuários de drogas
ilícitas. “Eu saí do exército, daí me entrosei com a turma. Mas, quando fui para o
exército, lá eu via os caras [...]. Mas é o seguinte: dá uma bandinha ali, saiu da porta
para fora... o colega encontra ali, vamos lá, eu pago uma para ti. Aí vamos então. É
aquele detalhe. Vai lá tomar uma, já encontra outro. Quando vê está bêbado” (E6).
“Eu acho que foi mais para impressionar meus amigos. Andava com meus amigos e
eles usavam [...] e porque tu ficas no meio ali, daí se tu não usas é careta [...] e um
pouco também para se misturar. Porque se tu usas, está sendo igual a eles e eu queria
ser igual aos meus amigos” (E7).
Dentre os fatores encontrados para preencher a lacuna existente entre a escolha
racional e as necessidades e desejos individuais, encontra-se o contexto social em que
o sujeito convive. Estar em contato com pessoas adictas na comunidade ou região em
que vive poderá servir de incentivo e/ou continuidade na utilização de SPAs: “Esse
bairro aqui... se o cara quiser parar de fumar... é ir embora daqui, senão, é terrível
esse bairro [...] esse bairro aqui é perseguido pela droga” (E5). “No tempo de piá
no colégio, via a piazada fumando no colégio e daí comecei”. (E4). As estratégias
de prevenção são classificadas de acordo com a população que pretendem alcançar:
estratégias de prevenção universal, prevenção seletiva e prevenção indicada. Essas
estratégias se diferenciam de acordo com a possibilidade de o público-alvo estar mais
ou menos inserido em grupos de risco; ou seja, pela associação de características
individuais, grupais, do ambiente ou da probabilidade de ocorrência de um transtorno
ou doença em algum momento de suas vidas (Campos & Figlie, 2011).
As substâncias psicoativas foram e são consumidas em diversas culturas com
finalidades terapêuticas, religiosas e, devido ao caráter hedonista presente na história
da humanidade, como modo de obtenção de prazer (Firmino & Queiroz, 2009). Um
fator menos ressaltado dentre os entrevistados, foi a diversão: “O que me levou a
usar foi festa” (E10), onde parte dos jovens buscam uma maneira de tornarem-se
mais “soltos” em locais com aglomerados de pessoas. O hedonismo parece explicar
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o consumo dessas substâncias que ajudam a dançar a noite inteira, inibindo o medo e
aumentando a sociabilidade (Calado, 2007).
As análises efetuadas permitem inferir que o contexto (um membro da família que
faz uso de drogas lícitas ou ilícitas, amigos, o território geográfico) exerce influência
para o uso e abuso de SPAs. Nesse sentido, deve-se considerar a liberdade de escolha
dos sujeitos, mediante informação, para que esses tenham clareza sobre a predisposição
inerente aos riscos ao uso abusivo de drogas. As ações de promoção e prevenção devem
cotejar os diferentes aspectos da vida do indivíduo, além de reforçar políticas públicas
de inclusão e fortalecimento da advocacy. Esse termo “refere-se à busca de apoio para
os direitos de uma pessoa ou uma de causa” (Campos & Figlie, 2011, p.492).
O uso da droga como busca de alívio para o sofrimento e as dificuldades
Nesta área temática, percebe-se que os usuários entrevistados relatam o uso de
drogas como uma forma de lidar com o sofrimento psíquico (frustrações, perdas) comuns
da vida, assim como utilizam a mesma em busca de tranquilidade em meio à dificuldade
encontrada em relação a estes enfrentamentos. A dependência de drogas é um estado
mental e, muitas vezes físico, que resulta da interação entre um organismo vivo e uma
droga psicoativa e sempre inclui uma compulsão de usar a droga para experimentar seu
efeito psíquico ou evitar o desconforto provocado pela sua ausência (Rosenstock &
Neves, 2010) “[...] acabava usando porque aquilo deixava a gente mais alegre. A gente
se soltava mais”. (E7).
Considera-se sofrimento psíquico, um conjunto de mal-estares e dificuldades
de conviver com a multiplicidade contraditória de significados da vida relacionada às
dificuldades de operar planos, definir o sentido da vida. Ou ainda relacionada ao sentimento
de impotência e de vazio (Amarante et al., 2011), espaço fértil e produtivo para o uso
abusivo ou dependente de drogas. “Acho que alguns distúrbios da pessoa mesmo, que
leva a pessoa a usar e se esconder um pouco. Um pouco não. Acho que bastante. Se
esconder bastante atrás da droga. [...] Alguma coisa na família, numa relação no dia a
dia [...]” (E2). “Minha mãe é tudo, mas o meu pai sempre foi muito ausente, e agora ele
tenta correr atrás, só que agora não tem, não precisa mais [...] tudo o que ele fez quando
eu era menor, isso resultou bastante, sabe?” (E4). Dentre os fatores de risco no domínio
familiar estão: o uso de álcool e drogas pelos pais ou irmãos; o isolamento social entre
os membros da família; o padrão familiar disfuncional; a falta de figura paterna; a falta
de envolvimento dos pais dos pais na vida dos filhos; ausência de regras ou ambiguidade
em relação ao uso de substâncias (Brasil, 2004; Campos & Figlie, 2011).
A ambivalência da experiência do dependente, entre o prazer e o sofrimento, a aventura
e a autodestruição, devem ser consideradas no contexto de uma sociedade que oferece
uma multiplicidade de drogas. Um mundo onde o uso de drogas parece ser experimentado
como uma prática de busca de gozo ou alívio da tensão individual gerada pelo stress e pela
depressão de uma sociedade hiperativa. (Fonseca & Lemos, 2011). “A gente toma para ficar
tontinho [...] aí fica bom, ameniza. Interessante isso aí. Que ameniza a pessoa, te tranquiliza,
te deixa numa boa” (E6). A droga cria uma espécie de muro, que barra momentaneamente
aquilo que é insuportável para o sujeito. Nesse sentido, parece ser uma boa opção para o
enfrentamento do que é considerado insuportável (Firmino & Queiroz, 2009).
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O homem lança mão de veículos inebriantes para modificar e/ou alterar sua
percepção e humor, tendo como consequência, na maioria das vezes, uma alteração do
comportamento (Lessa, 2008). O uso de drogas é visto como solução para alívio dos
problemas existentes no âmbito familiar e do trabalho, constituindo-se em uma banalização
do uso de SPAs, sabendo-se que seus efeitos são prejudiciais à saúde, à família, ao trabalho
e à sociedade como um todo (Martins, Zaitone, Francisco, Spindola, & Marta, 2009).
O sucesso tem sido buscado com frequência por meio do uso de substâncias
químicas que podem causar dependência. Viagra para o sucesso sexual, anabolizantes
para o sucesso esportivo, antidepressivo para a vitória sobre a ansiedade, a preocupação,
a culpa ou a raiva, vistas como manifestações do insucesso emocional. Em um mundo
mediado pela comunicação de massa e eletrônica, a experiência dos indivíduos parece
marcada por uma busca constante de sensações e mudanças. A própria exclusão, porém,
é um móvel a partir do qual se constrói uma identidade. Os territórios da marginalização
são também lugares identitários (Fonseca & Lemos, 2011).
Os relatos dos entrevistados evidenciam que o uso das drogas é uma estratégia que
os usuários lançam mão, no momento da dor, do sofrimento, da incapacidade de enfrentar
as duras e frequentes frustrações e perdas que a vida apresenta todos os dias. Não podemos
ignorar o papel da droga em uma sociedade, onde sofrer, sentir dor, não pode fazer parte da
vida daqueles que buscam constantemente estar no controle. As equipes de saúde podem
ter um papel fundamental estando atentas para as demandas dos usuários, respeitando
as escolhas de cada um, se apropriando da temática álcool e outras drogas, conhecendo
a sua realidade, a sua história de vida, e deste modo criando um vínculo que pode ser a
ponte necessária para o auxílio tão desejado no momento do sofrimento.
A percepção dos prejuízos provenientes do uso de drogas
Esta área temática aborda a percepção dos usuários de drogas psicoativas sobre os
prejuízos que o uso das mesmas representa não somente para a sua vida, mas também para
a família, as pessoas próximas e a comunidade em geral. São chamados de domínios, pelos
profissionais de prevenção, os diferentes aspectos da vida de uma pessoa: relacionamento
familiar, relacionamento entre amigos, ambiente escolar, comunitário, de trabalho e o próprio
indivíduo. Cabe ressaltar que os achados de pesquisas atuais não permitem mais considerar
as questões da prevenção apenas por um foco. Atualmente, a tendência dos programas de
prevenção é atuar de maneira multifatorial, sendo possível que, além do individual, outros
domínios também recebam a atenção preventiva (família, escola, comunidade, trabalho,
entidades religiosas, de lazer, de saúde) (Campos & Figlie, 2011).
Um fator prejudicial percebido dentre os entrevistados são as perdas causadas
pelo uso de drogas, implicando em mudanças drásticas no estilo e qualidade de vida dos
usuários. Dentre as implicações que a necessidade de manter o uso e/ou abuso traz para
as suas vidas, encontram-se diversos tipos de infrações, como por exemplo, o roubo:
“Depois do crack, daí sim até roubar, já fui preso. Isso aí leva o cara em um monte de
coisas ruins”. (E3). Outra fala traz a questão da perda dos vínculos afetivos: “eu não
ganhei nada, só perdi [...] eu tinha perdido tudo, tudo, meus filhos, minha mulher [...]
só quem viveu isso daí, sabe como é... a gente não tem paz, não tem tranquilidade no
coração, em lugar nenhum”. (E1). Estudos nacionais e internacionais têm demonstrado
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a ocorrência significativa de mortes e doenças associadas ao uso indevido de álcool.
Relatos de violência doméstica, lesões corporais, tentativas de homicídios consumados,
assim como outras situações de conflitos interpessoais, são cada vez mais evidentes em
contextos nos quais o álcool se faz presente (Brasil, 2004).
A necessidade da venda de bens como solução encontrada para a compra das
substâncias psicoativas está entre os prejuízos relatados pelos entrevistados: “[...] leva a
desgraça, o que eu tinha eu vendi tudo... moto, casa, roupa, o que eu tinha vendi tudo...”
(E9). A fala mostra que o desejo de manter a adicção é intenso e a única alternativa
encontrada para tal, no momento de exacerbação da vontade de consumi-la, é vender o que
tem por um preço normalmente inferior ao que vale, ou até mesmo trocar pela droga.
Os principais fatores que reforçam a exclusão social dos usuários de drogas: a
associação do uso à delinquência, sem critérios mínimos de avaliação; o estigma atribuído
aos usuários, promovendo a segregação social; a inclusão do tráfico como geração de renda
de populações mais empobrecidas; a utilização de mão de obra de jovens; a ilicitude do
uso que impede a participação social dos usuários; o tratamento legal de forma igualitária a
todos os segmentos da “cadeia organizacional do mundo das drogas”, desigual em termos
de penalização e alternativas de intervenção (Brasil, 2004). “Experiência que tem é que
todo mundo sabe, o cara só faz coisas ruins, o que não presta” (E5). “Eu tenho vontade
de cheirar cocaína de novo e “loló”. Mas eu lembro o que eu fui e o que eu sou hoje, e
que isso não vale à pena” (E7). Quando em estado de lucidez da consciência, o sujeito
(re) pensa as suas escolhas e o seu comportamento no mundo das drogas, bem como as
possibilidades que a abstinência pode lhes proporcionar.
O preconceito da sociedade, também se configura como uma perda ocasionada pelo
uso de drogas. Este é um fator agravante para a continuidade do uso e ou abuso. O receio
do estigma caracteriza-se, muitas vezes, como uma barreira para a procura por tratamento.
A sociedade ainda estigmatiza os usuários de drogas, dirigindo a eles um olhar de desprezo,
como se estes não tivessem mais o direito à vida e a convivência nos mesmos locais que
os não usuários. As falas evidenciam que o tratamento e a (re) inserção dos usuários de
drogas psicoativas é difícil em razão de sentirem-se “intrusos” e marginalizados perante
a sociedade. “[...] alguém rouba e tu passou naquela rua e não foi tu. E aí, como é que
vai ser? É a palavra de um viciado contra a palavra de um trabalhador [...] Quem vai
perder é o viciado [...] e depois se morrer, ninguém vai sentir falta. Porque se for para
a polícia, esse daí é só mais um e deu.” (E1); “[...] o fulano de tal lá é ex-presidiário,
fulano de tal usa droga até morrer, fulano de tal é isso, é aquilo, daí caí minha casa é
90, 30 dias numa empresa [...]”. (E10).
As falas anteriores trazem o estigma a que usuários estão sujeitos, como a
responsabilização prévia por furtos e o preconceito duplo dirigido às pessoas, quando
na condição de usuários e ex-detentos. Essa situação deixa uma margem limitada de
possibilidades de reinserção social, contribuindo tanto para a continuidade do uso, como
para a prática de delitos, corroborando um círculo vicioso. Esses resultados corroboram
que o desemprego ou subempregos e a discriminação de qualquer espécie são fatores de
risco no ambiente comunitário e político (Campos & Figlie, 2011). A violação dos Direitos
Humanos e dos Direitos de Cidadania tem sido uma prática constante em nossa realidade
e os fatores que contribuem para essa situação são muitos e de várias ordens. Ela expressa,
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em grande medida, o grau de violência de nossas relações sociais e o nível de intolerância
da sociedade em conviver democraticamente com as diferenças (Brasil, 2001).
Os fatores motivadores para a redução do consumo
Esta área temática aborda os fatores que auxiliam na recuperação do usuário de
álcool e outras drogas, dentre os quais, a importância dos laços afetivos, a obtenção
e manutenção de novas redes sociais e a reconquista da independência. A rede social
representa os vínculos existentes na vida do ser humano, tanto os advindos de laços
sanguíneos quanto os adquiridos ao longo da existência, como amigos e conhecidos
(Souza & Kantorski, 2009). Através desses, se dá o apoio social, termo que define
sentimentos e valores transmitidos ao próximo, gerando confiança e afeto (Pinho,
Oliveira, & Almeida, 2008; Souza & Kantorski, 2009).
A recuperação dos usuários de álcool e outras drogas depende de diversos fatores,
os quais podem vir a facilitar e garantir a permanência no tratamento. A reabilitação
psicossocial procura proporcionar ao usuário autonomia para sua reestruturação
individual, de modo a auxiliar na sua reinserção social (Lussi, Pereira, & Junior,
2006). Assim, no que diz respeito ao tratamento, os profissionais devem refletir sobre
o contexto em que o usuário está inserido, considerando a influência da rede social
nos diferentes momentos da abordagem, ou seja, tanto na descoberta da dependência,
quanto no processo de reabilitação, na busca da abstinência ou na escolha em reduzir
os danos (Souza, Kantorski, & Vasters, 2011).
Estudos mostram que redes sociais positivas que proveem suporte e apoio à
reabilitação do paciente, representam um fator protetor à recaída e abandono do
tratamento, assim como, contribuem para a abstinência (Garmendina, Alvarado,
Montenegro, & Pino, 2008; Souza et al., 2011). As entrevistas evidenciam que a família
atua como um importante fator motivador protetor para a redução e ou abstinência
do uso de drogas lícitas e ilícitas. “Minha família em primeiro lugar. Agora eu estou
conquistando um pouco meus familiares, de mãe, irmão, que não queriam nem me ver
pintado de ouro” (E1). “Pelo meu filho, resolvi começar a parar. E também por esse
susto que eu levei de ser ameaçada” (E7). Percebe-se, nas falas dos entrevistados, que
não somente o fato de contar com o apoio familiar, mas também a reparação das relações
afetivas representa um fator motivador para permanecer em abstinência. A iminência
da morte, mediante ameaças pelo não pagamento das drogas, também apareceu como
um fator que motiva o usuário a repensar o uso.
No cultivo das redes sociais, novos ambientes podem vir a proporcionar
experiências saudáveis que auxiliam na reabilitação, como igrejas e a prática da
religiosidade (Souza et al., 2011). Via de regra os usuários mantém o hábito de lazer
ao dirigir-se a bares ou clubes que os deixam suscetíveis à recidiva do uso, a igreja
apresenta-se como uma alternativa de manutenção do convívio social, além de fomentar
o desenvolvimento de valores. “Não sou muito religioso, nada, mas o que me ajudou
também um pouco foi muito a Bíblia, a igreja. O que me fortaleceu muito foi isso, a fé”
(E1). “[...] o remédio para eu poder sair dessa vida foi só a Palavra de Deus, mesmo”
(E2). Pesquisa realizada com usuários de crack, vinculados a oficinas de espiritualidade
conclui que a espiritualidade exerce um poder agregador, promove o cuidado integral,
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Aletheia 45, set./dez. 2014
fortalece os mecanismos de enfrentamento e potencializa as práticas de promoção da
saúde (Backes et al., 2012).
A partir das falas dos entrevistados, observamos que a espiritualidade estimula a
esperança dos usuários. O apego a uma prática saudável e o fortalecimento individual por
meio da fé permitem novas interações sociais e reforçam o suporte social, possibilitando
ao usuário, através de uma crença, a força necessária para permanecer afastado do uso
de drogas lícitas ou ilícitas. “Não dá para deixar de ter fé. Porque, eu agora o que eu
puder falar de Deus, de 10 em 10 minutos eu falo” (E5). De outro lado, a rejeição a
valores espirituais ou religiosos constitui-se como um fator de risco no domínio individual
(Campos & Figlie, 2011). Entretanto, estudo realizado com acadêmicos de Enfermagem
objetivando investigar o uso de álcool e a espiritualidade concluiu que a espiritualidade
pode não atuar como um fator protetor. O estudo sugere que outras variáveis podem ser
preditoras ao uso e abuso de álcool (Pillon, Santos, Gonçalves, & Araújo, 2011). Esse
resultado corrobora que diferentes domínios exercem influência para o uso e abuso de
substâncias e necessitam ser contextualizados em uma perspectiva integrada.
Outro fator importante na recuperação de usuários de SPAs, é a garantia das
necessidades básicas do ser humano através de políticas públicas. A presença destas
possibilita o favorecimento das redes sociais (Souza et al., 2011). Entre as necessidades
básicas encontra-se o trabalho e o rendimento financeiro do indivíduo. A existência
de renda, que permite a sustentação econômica, os investimentos em si e na família, a
qualidade de vida, a prática de atividades de lazer foram citados pelos usuários como
fatores que subsidiam os objetivos de abstinência e reabilitação. “[...] dinheiro para ir
para a praia, dinheiro para ir ao mercado comprar o que eu gosto de comer, ter um bom
emprego o que está difícil por causa da minha folha corrida que está péssima”. (E10).
As entrevistas evidenciam que o uso de drogas e o abandono do tratamento têm
como consequência as recaídas e, na presença dessas, manter a frequência ou justificar as
faltas no trabalho representam dificuldades para a inserção no mercado de trabalho formal.
Isso, muitas vezes, resulta em demissão ou permanência breve em diversos empregos,
percebendo-se muito comumente, a prática de trabalho informal, o que gera baixa renda.
Sem renda mensal ou abaixo das necessidades, o usuário fica propenso a situações de
vulnerabilidade social, o que muitas vezes torna-se um obstáculo para a abstinência.
Com base nas evidências obtidas, observa-se que o rendimento monetário, através
da substituição de gastos com as consequências advindas da dependência pela aquisição
de condições de vida dignas e a obtenção de qualidade de vida, reduzem a suscetibilidade
à recaídas. As entrevistas evidenciam a importância de identificação e fortalecimento
das redes sociais saudáveis, bem como a reconquista das que se dissiparam ao longo
da manutenção da adicção como uma forma de incentivar a permanência no tratamento
e a abstinência.
Considerações finais
O uso de substâncias psicoativas apresenta-se como um processo complexo, em
razão dos diferentes domínios da vida dos indivíduos que podem estar envolvidos, sendo
considerado assim, um problema multifatorial. Os dados evidenciam que o entorno
Aletheia 45, set./dez. 2014
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geográfico e as redes sociais dos indivíduos podem se constituir como fatores de risco
ou de proteção. Essas redes podem favorecer aos indivíduos manter-se no uso de drogas
ou podem oferecer recursos para o indivíduo integrar-se à vida social.
A família e a prática da espiritualidade, incluindo o ambiente na qual ela se dá,
como também a expectativa de reaver a independência, através da obtenção de renda
e permanência em vínculo empregatício, são referidos como fatores que auxiliam
na sustentação do tratamento e na abstinência. Tais recursos devem ser explorados
pelos profissionais nos projetos terapêuticos singulares, tanto no tratamento como na
reabilitação psicossocial.
As entrevistas evidenciam que o uso da droga é uma estratégia de esquiva do
sofrimento psíquico, desencadeado por relações familiares conflituosas e como busca
de alívio para o sofrimento e as dificuldades. Entretanto, tal fuga potencializa o estigma
dos usuários pelos próprios familiares, pela comunidade, além do autoestigma. Nesse
sentido, é papel das equipes de saúde estar preparadas, mediante o estabelecimento do
vínculo e de escuta qualificada, despida de preconceito, para a abordagem à família e
ao usuário. Assim, consideramos a importância da capacitação para os profissionais da
APS, haja vista, o território ser por excelência o local para intervenções de promoção,
prevenção e tratamento ao uso ou abuso de substâncias psicoativas.
Pode-se depreender que as ações realizadas pela ESF são relevantes para a
recuperação e proteção da saúde de pessoas acometidas por essa realidade. Percebese o reconhecimento por parte dos usuários, que o serviço prestado pelas Unidades
Básicas, sobretudo dos Agentes Comunitários de Saúde, propicia a aproximação dos
usuários do tratamento e a formação de vínculo por meio de visitas domiciliares, grupos
e pela prática do acolhimento. Em razão dos Agentes Comunitários de Saúde atuarem
na “linha de frente” devem ser previstas capacitações para esse grupo, considerando
que muitos não tem subsídios teórico-práticos para lidar com situações que envolvem
o uso de substâncias psicoativas.
Uma limitação do estudo diz respeito às entrevistas terem sido realizadas somente
com usuários vinculados à Estratégia Saúde da Família, com apoio e supervisão de
equipes matriciais. Nessas unidades de saúde, em regra, é contemplada atenção integral
pelos profissionais. Possivelmente em outro cenário, como o das Unidades Básicas de
Saúde tradicionais, os resultados seriam menos promissores no que tange a abordagem
de usuários de substâncias psicoativas.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em agosto de 2015
Maristela Person Cardoso – Enfermeira do CAPS AD Reviver de Caxias do Sul, RS. Preceptora do Pet
Saúde Mental Álcool e Drogas.
Rafaela Dall Agnol – Acadêmica de Farmácia. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade
de Caxias do Sul, RS.
Carina Taccolini – Enfermeira. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias
do Sul, RS.
Karen Tansini – Enfermeira. Residente em Vigilância em Saúde pela Escola de Saúde Pública de Porto Alegre,
RS. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul, RS.
André Vieira – Psicólogo. Doutor em Psicologia do Desenvolvimento. Professor da Universidade Luterana do Brasil.
Alice Hirdes – Enfermeira. Doutora em Psicologia Social. Tutora do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da
Universidade de Caxias do Sul, RS. Professora da Universidade Luterana do Brasil.
Endereço para contato: [email protected]
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Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, p.87-100, set./dez. 2014
Fatores associados ao início da vida sexual ativa de escolares
em uma cidade do sul do Brasil
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts
Giani Terezinha da Costa Scarin Ottoni
Gehysa Guimarães Alves
Lílian dos Santos Palazzo
Ana Maria Pujol Vieira dos Santos
Resumo: Estudo transversal com objetivo de investigar a prevalência do início da vida sexual
(IVS) e fatores associados em escolares da 7ª série da rede municipal de ensino. A amostra
representativa de 1170 escolares foi analisada com regressão de Cox multivariada. A prevalência de
IVS foi de 20,3%, sendo maior entre meninos (RP: 2,4 IC95%:1,86-3,06); cor de pele não branca
(RP: 1,3 IC95%:1,05-1,64); uso na vida de álcool (RP: 2,3 IC95%: 1,68-3,24), tabaco (RP: 2,1
IC95%:1,62-2,61) e drogas ilícitas (RP: 1,6 IC95%:1,11-2,29); sentimento de discriminação (RP:
1,4 IC95%:1,01-1,96) e ideação suicida (RP: 1,3 IC95%:1,03-1,67); pais não sabem o que os jovens
fazem no tempo livre (RP: 1,6 IC95%:1,28-2,08) e jovens que faltam a aula sem conhecimentos
dos pais (RP: 1,6 IC95%:1,32-2,07). O sobrepeso/obesidade (RP: 0,7 IC95%:0,47-0,94) teve
comportamento protetor para o início da vida sexual. O IVS precoce esteve associado com estilo
de vida pouco saudável e má qualidade da relação dos jovens com seus pais.
Palavras-chave: Adolescente; escolar; comportamento sexual.
Associated Factors in the initiation of sexual activity of students in a city
in southern Brazil
Abstract: Cross-sectional study in order to investigate the prevalence of sexual debut (PSD) and
associated factors in students from 7th grade of municipal schools. A representative sample of
1170 students was analyzed with multivariate Cox regression. The prevalence of PSD was 20.3%,
which is higher among boys (PR: 2.4 CI95%: 1.86 - 3.06); non-white skin color (PR: 1.3 CI95%:
1.05- 1.64); use of alcohol (RP: 2.3 CI95%: 1.68 -3.24), tobacco (RP: 2.1 CI95%: 1.62 - 2.61) and
illicit drugs (PR: 1.6 CI95%: 1.11 -2.29); feelings of discrimination (RP: 1.4 CI95%: 1.01 - 1.96)
and suicidal ideation (PR: 1.3 95% CI: 1.03 to 1.67); parents do not know what the adolescent
does in free time (RP: 1.6 CI95%: 1.28 to 2.08) and adolescents who miss class without parental
knowledge (RP: 1.6 95% CI: 1.32 -2.07). Overweight/obesity (RP: 0.7 CI95%: 0.47 - 0.94) had a
protective behavior to sexual debut. Early PSD was associated with unhealthy lifestyle and poor
quality of the relationship of young people with their parents.
Keywords: Adolescent; scholar, sexual behavior.
Introdução
Na transição da infância para a adolescência, ocorrem importantes mudanças na
vida do sujeito, como o aparecimento dos caracteres sexuais secundários, elaboração
da identidade pessoal e sexual, e exercício da sexualidade, intimidade e afetividade
(Carlini, Gazal, & Gouveia, 2000). Neste período, vários fatores podem influenciar de
modo adverso a saúde dos jovens, podendo contribuir para gravidez precoce, doenças
sexualmente transmissíveis – DSTs, uso de drogas e evasão escolar, que acabam
comprometendo seu processo natural de crescimento e de desenvolvimento (Albino,
Vitalle, Schussel, & Batista, 2005).
Tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, observa-se uma
tendência da ocorrência, cada vez mais precoce, da menarca, expondo as jovens ao
risco de gravidez. Aos 14 anos, aproximadamente, 90% das meninas já apresentaram
a menarca (Roman et al., 2009). Paralelo a isso, verifica-se que o início da vida sexual
também é precoce, sendo que a média para o sexo masculino é de 14 anos e 15 anos
para o feminino (Hugo et al., 2011). Grande parte desses jovens não utiliza proteção
adequada, expondo-se à gravidez e às doenças sexualmente transmissíveis – DSTs
(Gonçalves et al., 2015; Teixeira, Knauth, Fachel, & Leal, 2006).
Nas últimas décadas, em todo o mundo, em decorrência do aumento de gestação na
adolescência, essa passou a ser considerada como importante problema de saúde pública
(Lawlor & Shaw, 2004). Diante desta realidade, e para que ocorra uma iniciação sexual
segura, é fundamental que os adolescentes tenham acesso a métodos contraceptivos
e a informações referentes aos riscos advindos de relações sexuais desprotegidas.
Assim, poderão vivenciar o sexo de maneira saudável, além de assegurar a prevenção
da gravidez indesejada e das DSTs/AIDS. No entanto, estudos têm mostrado que o
conhecimento sobre prevenção existe, mas o uso irregular e inadequado dos métodos
de proteção, torna-o ineficaz (Castro, Abramovay, & Silva, 2004; Pinho et al., 2002;
Teixeira et al., 2006).
Entre os fatores que estão associados ao início precoce da vida sexual, podese citar a baixa inserção socioeconômica, a cor da pele não branca, o frágil vínculo
familiar e escolar e o uso de drogas lícitas e ilícitas (Gonçalves et al., 2008; Heilborn,
Aquinino, Bozon, & Knauth, 2006; Madkour, Farhat, Halpern, Godeau & Gabhainn,
2010; Sasaki, Leles, Malta, Sardinha, & Freire, 2015). Assim, a fim de contribuir para um
maior conhecimento sobre o problema e subsidiar a elaboração de ações preventivas no
âmbito escolar, o presente estudo teve como objetivo investigar a prevalência de início
da vida sexual e sua associação com fatores demográficos, familiares, psicossociais e
estilo de vida em escolares de sétima serie da rede municipal de ensino em uma cidade
da região metropolitana do Sul do Brasil.
Método
O delineamento utilizado foi o estudo transversal, tendo como população alvo
os 2.282 alunos matriculados na sétima série da rede pública municipal do ensino
fundamental de Gravataí, em 2005, atualmente denominada de oitavo ano. Para o
cálculo do tamanho da amostra, foram utilizados como parâmetros: prevalência de
50% para início da vida sexual, erro máximo aceito de +3,0% e nível de significância
de 0,05, totalizando 728 sujeitos. Com o objetivo de minimizar o efeito da amostragem
por conglomerado, uma vez que se considerou a turma sorteada como um cluster, foi
utilizado um efeito de delineamento de 1,5. Para compensar possíveis perdas, ampliouse a amostra em 20%, chegando-se a 1.312 escolares. Como esse número representava,
aproximadamente, a metade dos alunos da 7ª série, optou-se por sortear um número
88
Aletheia 45, set./dez. 2014
de turmas que correspondesse à metade mais uma de todas as turmas de cada uma das
15 regiões administrativas do município, sendo selecionados 1.366 alunos. Em função
das perdas ocorridas (14,3%), a amostra final foi composta por 1.170 estudantes, tendo
poder de 80% para detectar significância estatística em razões de prevalências com
magnitude igual ou superior a 1,5.
Os dados foram coletados, em 2005, por acadêmicos e mestrandos da área
da saúde, previamente capacitados, com auxilio de instrumentos, autoaplicáveis,
respondidos em sala de aula, e a avaliação antropométrica. O primeiro questionário
continha perguntas do instrumento elaborado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), o Global School-based Student Health Survey, desenvolvido para avaliar a
saúde de escolares. Desse instrumento, foram retirados os possíveis fatores associados
ao início da vida sexual do escolar (OMS, 2005).
O segundo questionário forneceu dados referentes à inserção econômica, baseada
na proposta da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas-ABEP, classificando
as famílias nas classes A, B, C D e E (http://www.abep.org/). Em função do pequeno
número de adolescentes nas categorias extremas, estas foram agrupadas em A/B, C
e D/E.
O terceiro instrumento, o Body Shape Questionnaire (BSQ), foi validado
por Conti, Cordás e Latorre (2009) para adolescentes brasileiros, sendo utilizado
para avaliar a preocupação com a imagem corporal. BSQ recebe uma pontuação
que é classificada em quatro grupos: (1) não preocupados com a imagem corporal
(<81 pontos); (2) levemente preocupados (81 a 110 pontos); (3) moderadamente
preocupados (111 a 140 pontos; e (4) extremamente preocupados (>141 pontos)
(Cooper, Taylor, Cooper, & Fairbum, 1987). Para o presente estudo, essas categorias
foram reagrupadas em: não preocupados (< 81 pontos) e preocupados com a imagem
corporal (> 81 pontos).
A maturidade sexual foi autoavaliada utilizando a ficha de Tanner (Tanner,
1962), possibilitando a identificação de cinco estágios que foram reagrupados em fase
inicial (estágios um e dois), fase de aceleração (estágio três) e fase de desaceleração
(estágios quatro e cinco). A ficha de avaliação antropométrica também continha
dados referentes à cor da pele autorreferida. Os adolescentes foram pesados com
balanças digitais Seca, da UNICEF. A altura foi medida com auxílio de estadiômetro
de metal, com precisão em milímetros. Todas as técnicas foram recomendadas pela
Organização Mundial de Saúde (OMS, 1995). Para a avaliação do estado nutricional,
foi calculado o índice de massa corporal (IMC) e avaliado com as curvas do NCHS,
segundo sexo e idade em meses (Brasil, 2008). Os jovens foram categorizados em três
grupos: baixo peso (<percentil 15), eutróficos (entre percentil 15 e 85) e sobrepeso/
obesidade (>percentil 85).
Para as análises uni e multivariadas, foi utilizada a regressão de Cox modificada
para estudos transversais, a fim de verificar a associação do início da vida sexual e
fatores demográficos, familiares, psicossociais e estilo de vida. A análise multivariada
foi realizada segundo um modelo hierarquizado, composto por quatro etapas. Na
primeira etapa, foram introduzidas as variáveis: sexo, cor da pele autorreferida
e inserção econômica. Na segunda etapa, introduziram-se o estado nutricional, a
Aletheia 45, set./dez. 2014
89
percepção da imagem corporal, o recebimento de orientação sobre gestação e DSTs/
AIDS na escola, sentimento de serem entendidos pelos pais e se os mesmos sabiam
o que os jovens faziam em seu tempo livre. Na terceira etapa, ingressaram no modelo
as variáveis: o uso na vida de álcool, tabaco e drogas, e, na última etapa, os fatores:
sentimento de discriminação, ideação suicida e falta às aulas sem conhecimento dos
pais.
Participaram da etapa seguinte à introdução no modelo, aquelas variáveis que
apresentaram associação com o desfecho com nível de significância <0,10. Uma
vez incluídas, permaneceram até a última etapa da regressão. Para o modelo final,
consideram-se somente as que apresentaram nível de significância <0,05 na etapa em
que foram incluídas inicialmente.
Como etapas anteriores à coleta dos dados foram realizadas reuniões com o corpo
diretivo das escolas para esclarecimentos sobre o estudo e com os pais ou responsáveis
pelos alunos, para a obtenção da assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. Este estudo é parte integrante de um projeto maior denominado “A saúde
do Escolar da Rede Pública Municipal de Gravataí RS”, aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil (n. 2004-375H).
Resultados
Características dos adolescentes
A prevalência de início de vida sexual foi de 20,3%, sendo que 6,8% haviam
mantido relações nos últimos 12 meses e a grande maioria utilizou camisinha (82,3%) e
algum método contraceptivo (85,7%) na ultima relação sexual (tabela 1). As idades dos
escolares da amostra variaram de 12 a 18 anos, com média de 14 anos (DP: + 1,13 anos).
Essa foi de 13,9% (DP: + 1,63 anos) para início de vida sexual. Entre as meninas, foi
de 13,4 anos e, entre os meninos, de 12,6 anos (DP: + 1,14 anos), sendo essa diferença
estatisticamente significativa.
Tabela 1 – Distribuição dos escolares de sétima série da rede municipal segundo aspectos da vida sexual,
Gravataí, RS, 2005.
Relações sexuais no último ano
Sim
Não
Utilizou método para evitar gravidez
Sim
Não
Ignorado
Usou camisinha última relação
Sim
Não
Ignorado
Total
90
Aletheia 45, set./dez. 2014
n
%
80
158
33,6
66,4
204
23
11
85,7
9,7
4,6
196
34
8
238
82,3
14,3
3,4
100,0
Em relação às características dos escolares, 52,5% eram do sexo feminino,
47,4% não se consideraram brancos e a classe econômica predominante das famílias
foi a C (58,8%). A maioria encontrava-se eutrófica, sendo o excesso de peso mais
prevalente do que o baixo peso. A avaliação da imagem corporal mostrou que 23,6%
estavam insatisfeitos e mais de 80% dos jovens sentiram-se orientados pela escola
sobre gestação e HIV/DSTs. Porém, quase metade raramente ou nunca se sentia
entendida por seus pais, cerca de 74% dos escolares referiram que esses sabiam o
que eles faziam em seu tempo livre e 20% informaram que faltavam à escola sem o
conhecimento da família.
No que diz respeito aos hábitos de vida, mais da metade dos adolescentes referiu já
ter usado álcool, sendo menos frequente a experiência com cigarro e bastante incomum
o uso de drogas ilícitas, sendo que apenas 27 informaram haver experimentado. O
sentimento de discriminação foi referido por 21,0% dos jovens e a ideação suicida
por 10,9%.
Fatores associados ao início da vida sexual
Na primeira etapa da regressão multivariada, foram incluídas no modelo três
variáveis, sendo que duas demonstraram associação significativa (Tabela 2). O sexo
masculino apresentou uma prevalência quase 2,4 vezes maior de início da vida sexual
do que o sexo feminino e os escolares não brancos tiveram uma frequência 31% maior
do desfecho do que os brancos.
Na segunda etapa, das seis novas variáveis inseridas no modelo de regressão,
apenas duas mostraram associação estatisticamente significativa (Tabela 2). O excesso
de peso (sobrepeso/obesidade) apresentou um comportamento de fator protetor para o
início da vida sexual, sendo que esses jovens apresentaram uma prevalência 33% menor
de IVS do que os eutróficos. O fato de os pais raramente saberem ou não saberem o
que os escolares faziam no seu tempo livre contribuiu para um aumento do desfecho
em 63%.
Aletheia 45, set./dez. 2014
91
Tabela 2 – Resultados da primeira e segunda etapa da regressão de Cox para início da vida sexual,
Gravataí, RS, 2005.
Variáveis
Etapa I
Sexo
Feminino
Masculino
Cor da pele
Branco
Não Branco
Inserção econômica
A+B
C
D+E
Etapa II
Estado Nutricional
Eutrófico
Risco + Desnutrição
Sobrepeso + obesidade
Percepção da
Imagem Corporal
Satisfeito
Leve insatisfação
Moderada + grave insatisfação
Orientação gestação
Sim
Não
Não souberam opinar
Orientação HIV/AIDS
Sim
Não
Não souberam opinar
Entendimento pelos pais
Sempre + quase sempre
Raramente + nunca
Pais sabiam tempo livre
Sempre +quase sempre
Nunca + raramente + às
vezes
N
IVS
n
%
Análise bivariada
RP
IC 95%
614
556
75
163
12,2
29,3
1,00
2,40
1.87 - 3.08
0,000
1,00
2,39
1.86-3.06
0,000
615
555
107
131
17,4
23,6
1,00
1,36
1,08 – 1,70
0,009
1,00
1,31
1,05 – 1,64
0,018
256
688
226
57
130
51
22,3
18,9
22,6
1,00
0,85
1,01
0,64 – 1,12
0,73 – 1,41
0,245
0,937
1,00
0,87
1,06
0,66 – 1,14
0,77 – 1,47
0,306
0,720
773
157
240
171
30
37
22,1
19,1
15,4
1,00
0,86
0,70
0,61 – 1,22
0,50 – 0,96
0,410
0,029
1,00
0,81
0,67
0,57 – 1,13
0,47 – 0,94
0,212
0,023
890
169
193
25
21,7
14,8
1,00
0,68
0,46 – 1,00
0,050
1,00
1,09
0,72 – 1,65
0,688
106
20
18,9
0,87
0,57 – 1,32
0,510
1,44
0,89 – 2,32
0,134
963
128
79
193
33
12
20,0
25,8
15,2
1,00
1,29
0,76
0,93 – 1,77
0,44 – 1,29
0,123
0,311
1,00
1,19
0,86
0,83 – 1,69
0,51 – 1,43
0,336
0,560
994
95
81
206
20
12
20,7
21,0
14,8
1,00
1,01
0,71
0,67 – 1,53
0,42 – 1,22
0,940
0,220
1,00
0,74
0,81
0,46 – 1,18
0,47 – 1,37
0,210
0,430
601
569
103
135
17,1
23,7
1,00
1,38
1,10 – 1,74
0,005
1,00
1,12
0,88 – 1,43
0,342
863
142
16,4
1,00
-
-
1,00
-
-
307
96
31,3
1,90
1,52 – 2,38
0,000
1,63
1,28 – 2,08
0,000
p
Análise multivariada
RP
IC 95%
p
Na terceira etapa, além das variáveis previamente selecionadas, foram incluídas
outras três (Tabela 3). Embora parte da magnitude da associação apresentada na análise
univariada tenha sido perdida na multivariada, constatou-se que tanto o uso na vida de
álcool, quanto de tabaco e drogas ilícitas são fatores associados ao início da vida sexual.
Os adolescentes que já haviam experimentado álcool ou tabaco apresentaram mais que
92
Aletheia 45, set./dez. 2014
o dobro de prevalência do desfecho que seus pares de referência e, nos que haviam
experimentado drogas ilícitas, encontrou-se um aumento de 59%.
Tabela 3 – Resultados da segunda e terceira etapa regressão de Cox para início da vida sexual,
Gravataí, RS, 2005.
IVS
N
Etapa III
Uso na vida de álcool
Sim
Não
Uso na vida de tabaco
Sim
Não
Uso na vida de drogas
ilícitas
Sim
Não
Etapa IV
Sentimento de Discriminação
Sim
Não
Ideação suicida
Sim
Não
Falta às aulas
Sim
Não
%
RP
Análise bivariada
IC95%
p
Análise multivariada
RP
IC95%
p
710
460
197
41
27,7
8,9
3,11
1,00
2,27 – 4,27 0,000
-
2,33
1,00
1,68 – 3,24
-
0,000
-
195
975
87
151
44,6
15,5
2,88
1,00
2,32 – 3,57 0,000
-
2,06
1,00
1,62 – 2,61
-
0,000
-
27
18
1.143 220
66,7
19,2
3,46
1,00
2,59 – 4,64 0,000
-
1,59
1,00
1,11 – 2,29
-
0,012
-
64
174
26,0
18,8
1,38
1,00
1,08 – 1,77 0,011
-
1,40
1,00
1,01 – 1,96
-
0,045
-
127
30
1.043 208
23,6
19,9
1,19
1,00
1,08 – 1,89 0,000
-
1,31
1,00
1,03 – 1,67
-
0,028
-
39,4
15,5
2,54
1,00
2,04 – 3,16 0,000
-
1,65
1,00
1,32 – 2,07
-
0,000
-
246
924
236
934
93
145
Na última etapa, as três variáveis incluídas se associaram ao desfecho. Em relação
ao sentimento de discriminação e à ideação suicida, os jovens que apresentaram esses
fatores tiveram respectivamente 40% e 31% mais início de vida sexual. Para os que
faltaram às aulas sem conhecimento dos pais, o desfecho foi 65% mais frequente do que
entre aqueles que nunca faltaram.
Discussão
A idade do início da vida sexual dos escolares de Gravataí foi semelhante à
encontrada em alguns estudos nacionais (Carvalho, Farias, & Guerra-Junior, 2007;
Gonçalves et al., 2008; Hugo et al., 2011; Souza, Fernandes, & Barroso, 2006). Em
Maringá (PR), estudo mostrou que 37,5% das meninas e 44,4% dos meninos, entre 12
e 14 anos, já haviam iniciado sexualmente e 10%, entre 10 e 14 anos (Düsman et al.,
2008). Em pesquisa realizada com adolescentes de Santa Catarina (Camargo, Giacomozzi,
Wachelke, & Aguiar, 2010) e de São Paulo (Bergamin & Borges, 2009; Paiva, Calazans,
Venturi, & Dias, 2008), a média foi de 14 anos e nove meses. O sexo masculino iniciou a
Aletheia 45, set./dez. 2014
93
vida sexual mais cedo (Hugo et al., 2011), confirmando o que foi encontrado no presente
estudo, em que os meninos iniciaram mais precocemente do que as meninas.
Além do sexo, outro fator que influência no início da vida sexual é a cor da pele.
Pesquisa realizada sobre a população brasileira revelou que os afrodescendentes iniciam
mais precocemente a vida sexual. Entre os adolescentes, 53% dos negros revelaram que
já haviam se iniciado sexualmente antes dos 14 anos, sendo que, entre os adolescentes
brancos, foi de apenas 25,7% (http://www.saúde.gov.br). Em outro estudo, realizado
na periferia das cidades de Florianópolis, Itajaí e Balneário Camboriú (SC), também
os afrodescendentes haviam se iniciado sexualmente mais cedo (14 anos e seis meses
comparado com 14 anos e 11 meses em branco) e possuíam mais relações amorosas
esporádicas, enquanto os brancos mantinham mais relações sexuais (Camargo et al.,
2010). Em Pelotas (RS), os jovens de cor negra ou parda iniciaram mais precocemente
sua vida sexual dos que os demais (Gonçalves et al., 2008), semelhante ao encontrado
em Gravataí.
Repercussões psíquicas e orgânicas foram verificadas em decorrência da obesidade
na infância e na adolescência. Em Gravataí, o sobrepeso/obesidade esteve associado
ao retardo da iniciação sexual, apresentando um comportamento de proteção, em
semelhança ao encontrado por Escrivão, Oliveira, Tadder e Ancora (2000). Por outro lado,
a percepção da imagem corporal não se associou com o desfecho. Pesquisa na França,
com mais de 12 mil pessoas, para investigar o impacto do peso extra na atividade sexual
mostrou que mulheres obesas têm 30% menos chance de ter parceiro sexual, utilizam
menos métodos anticoncepcionais e apresentam risco quatro vezes maior de gravidez
indesejável. Outro dado, não menos importante, é o fato de que os homens obesos têm
suas relações sexuais sem proteção, e taxa de DSTs cinco vezes maior, embora tenham
relatado menos parceiros quando comparados com os de peso normal (Bajos, Wellings,
Laborde, & Moureau, 2010). Algumas possíveis causas são baixa alta estima e falta de
cuidado com a prevenção da gravidez e das DSTs. Isso ocorre, possivelmente, em função
da dificuldade de negociar o uso de métodos protetivos com o parceiro por medo da
rejeição. Adolescentes obesos são sexualmente inseguros, realizando substituição dos
conflitos pelo alimento (ABESO, 2010).
Em relação às orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis
recebidas na escola, observa-se neste estudo, que a maioria dos entrevistados informou
ter recebido alguma instrução. A escola, juntamente com a televisão, foram as principais
fontes de informações para sobre a temática HIV/AIDS, mostrando a importância
do ambiente escolar para a abordagem de questões que envolvem sexualidade. Esse
espaço é considerado como o melhor ambiente para as ações de educação sexual com os
adolescentes, visto que passam ali muito tempo, além de se sentirem mais confortáveis
para discutir os assuntos relacionados à sexualidade, pois estão no grupo de iguais com o
qual possuem maior afinidade (Chaves, Bezerra, Pereira, & Wagner, 2014). A educação
sexual é uma excelente estratégia para a prevenção de problemas relacionados ao
desenvolvimento dos jovens, embora as escolas apresentem dificuldades, pois os docentes
não são capacitados para discutir esses temas (Costa, Lopes, Souza, & Patel, 2001). A
sexualidade deve ser abordada por professores de qualquer disciplina, constituindo-se em
um tema transversal que extrapola as fronteiras disciplinares (Altmann, 2001).
94
Aletheia 45, set./dez. 2014
A orientação sobre sexualidade é importante, pois quanto mais tarde ocorrer
a iniciação sexual, maiores são as chances dos jovens, de ambos os sexos, usarem
preservativos (Carvalho et al., 2007; Paiva et al., 2008). O não uso de métodos de
proteção, muitas vezes, ocorre por dificuldade em negociar com maior eficácia seu
uso com o parceiro (Heilborn et al., 2006; Chalem et al., 2007). A orientação sexual
instituída precocemente tem o potencial de minimizar as intercorrências que podem
comprometer a saúde sexual e reprodutiva do adolescente (Souza et al., 2006). Mesmo
em tempos de AIDS e de um discurso social de incentivo ao exercício sexual, os jovens
ainda estão vulneráveis e iniciam a vida sexual expondo-se a riscos, pois, embora
tenham as informações necessárias para se protegerem, não incorporaram os usos e
os costumes sexuais considerados seguros (Cedaro, Vilas Boas, & Martins, 2012).
Apesar da reconhecida importância das orientações sobre sexualidade e métodos
anticoncepcionais, neste estudo não houve associação entre o início da vida sexual
e as orientações recebidas na escola sobre gestação e HIV.
O uso de preservativo na ultima relação sexual nos escolares de Gravataí foi
superior ao encontrado entre os adolescentes escolares da Pesquisa Nacional da Saúde
do Escolar (IBGE, 2011), mas ainda longe do ideal, que seria a manutenção da medida
protetiva sempre. Em estudo multicêntrico, realizado nas cidades de Porto Alegre, Rio
de Janeiro e Salvador, o uso do preservativo na primeira relação foi de 80,7% entre
as moças e 88,6% entre os rapazes. Porém, quando avaliada a última relação, esses
números caíram para 38,8% e 56%, respectivamente (Teixeira et al., 2006). Além
disso, em escolares na Espanha, a idade de iniciação sexual teve implicações na saúde
sexual dos jovens. O uso do preservativo foi reduzido consideravelmente na medida
em que a idade do início sexual diminuiu. Quando esse início é anterior aos 15 anos, há
maior risco de contrair um DST pela falta do uso do preservativo (Espada, Morales, &
Orgilés, 2014). Em Portugal, a maioria dos adolescentes escolares (89,1%) usou algum
método contraceptivo na primeira relação sexual e os participantes que se iniciaram
aos 13 anos foram os que mais referiram não ter utilizado contraceptivos (Ferreira &
Torgal, 2011). Em escolares de Canoas (RS), 49,4% dos jovens referiram ter mantido
relações sexuais sem preservativo poucas vezes ou apenas em uma ocasião isolada
nos últimos anos. A prevalência de exposição ao risco de DST-HIV/AIDS, encontrada
neste estudo, pode ser considerada elevada (Chinazzo, Câmara, & Frantz, 2014). Os
jovens não costumam usar preservativos, o que prejudica a saúde dos adolescentes,
criando hábitos que poderão se estender pela vida adulta (Coutinho, Santos, Folmer,
& Puntel, 2013). No entanto, as meninas têm uma atitude mais favorável ao uso do
preservativo que os meninos (Camargo et al., 2010).
A escolaridade parece ser um dos determinantes na iniciação sexual, pois
mulheres que interrompem seus estudos, sem completar o ensino fundamental,
tiveram iniciação sexual, em média, dois anos antes das que prosseguiram os estudos
ou começaram cursos superiores (Berquó & Barbosa, 2008). A baixa escolaridade
também vem sendo apontada como fator de risco para a iniciação sexual precoce
(Gonçalves et al., 2008; Hugo et al., 2011). Observou-se neste estudo que para os
jovens que faltam as aulas, o início da vida sexual foi 65% mais frequente do que
aqueles que nunca faltaram.
Aletheia 45, set./dez. 2014
95
Os escolares de Gravataí, que afirmaram que seus pais não sabiam ou raramente
sabiam o que eles faziam no tempo livre, iniciaram mais precocemente sua vida sexual.
O frágil vínculo familiar, bem como o monitoramento ineficaz ou ausente dos filhos
parece estar associado ao adiantamento da primeira relação sexual, como enfatiza
Romer et al.,(2005), corroborando com os resultados do presente estudo. Acredita-se
que a qualidade da comunicação e do relacionamento com os pais influência fortemente
a vida do jovem, pois eles são os primeiros modelos de vida e transmissores de valores.
As características familiares podem ser fatores de proteção ou risco para o jovem, pois é
no ambiente familiar que surge a herança de atitudes e os exemplos para os adolescentes
(Vitalle, 2003). As questões familiares, tais como os valores parentais no tocante às práticas
sexuais de adolescentes e a presença de irmão ou irmã que já passou por gravidez antes
de uma união, são aspectos que precisam ser incorporados na formulação de políticas de
saúde reprodutiva e sexual voltadas aos adolescentes, pois mostraram ser determinantes
na iniciação sexual dos jovens (Borges, Latorre, & Schor, 2007).
Talvez seja necessário ressignificar valores para que os pais possam olhar para os
adolescentes com maior atenção. Geralmente, os jovens reconhecem a sua influência
em seus comportamentos sexuais e a maioria aponta a falta ou a deficiente comunicação
entre eles como fator de risco para comportamentos pouco saudáveis (Dias, Matos, &
Gonçalves, 2007). Em função disso, é preciso investir na família como um espaço essencial
na formação do indivíduo. Assim, são necessárias políticas públicas que invistam na
aproximação dessas com o ambiente escolar para que possam estar mais presentes na
vida dos jovens, já que a iniciação sexual não é um projeto individual, mas, sobretudo,
socialmente determinado, estando centrado na família e nas relações sociais (Bergamim
& Borges, 2009). É importante que os pais possam acompanhar seus filhos, conhecendo
suas atividades escolares, de lazer, suas amizades, e, especialmente, participem de suas
vidas. Para que isso seja possível, é necessário que passem mais tempo com seus filhos
ou qualifiquem o tempo que passam com eles, pois é na família que os adolescentes
encontraram apoio e segurança para enfrentar os conflitos da própria idade (Souza et
al., 2006).
Em relação ao estilo de vida, nesta pesquisa, encontrou-se associação com o início
da vida sexual precoce e o uso na vida de drogas lícitas e ilícitas, resultado que se confirma
em várias pesquisas nacionais e internacionais (Cruzeiro et al., 2010; Miozzo, Dalberto,
Silveira, & Terra, 2013; Taquette, Vilhena, & Paula, 2004). A idade da primeira relação
sexual foi menor entre os adolescentes de Pelotas (RS) que faziam uso de maconha,
cocaína e bebidas alcoólicas quando comparados com os não usuários destas substâncias
(Cruzeiro, Souza, & Silva, 2008). No grupo dos que consumia bebidas alcoólicas e
fumavam houve o maior percentual de adolescentes que já iniciou a vida sexual. Além
disso, a baixa escolaridade e o histórico de abuso sexual também estiveram associados
ao início da vida sexual ativa (Ferreira & Torgal, 2011).
Expectativas escolares, sociais ou familiares pouco reais podem criar nos
adolescentes sentimentos de rejeição, discriminação e de que a vida é injusta. Como
consequência, podem desenvolver depressão, ideação e planejamento suicida. O indivíduo
com ideação suicida não está buscando a morte e, sim, procura acabar com seu sofrimento
(Cury, 2005). Entre os escolares de Gravataí, a ideação suicida foi referida por 10,9%,
96
Aletheia 45, set./dez. 2014
sendo que a prevalência de iniciação foi 31% maior do que entre os que não referiram.
Da mesma forma, os jovens que se sentiram discriminados, tiveram 40% mais de IVS do
que seus pares de referência. É possível que esses jovens busquem o contato sexual como
consequência de sua carência afetiva, em uma tentativa de se sentirem menos infelizes.
Como o delineamento utilizado no presente estudo foi do tipo transversal, as
associações aqui discutidas devem ser interpretadas com cuidado, pois os fatores
investigados não podem ser os considerados como causas da iniciação sexual. Outro
aspecto a ser ressaltado é que fizeram parte desta investigação adolescentes que
frequentavam as escolas municipais e, portanto, podem apresentar características distintas
de jovens de escolas privadas e daqueles que se encontram fora do ambiente escolar. Em
especial esses últimos, tendem a já terem iniciado sua vida sexual, sendo a gravidez um dos
fatores que contribui para a interrupção dos estudos tanto de meninos quanto de meninas
(Berquó & Barbosa, 2008; Gonçalves et al., 2008; Hugo et al., 2011). Apesar dessas
limitações, como a amostra estudada é representativa dos escolares de escolas públicas
municipais, acredita-se que os resultados aqui apresentados possam ser extrapolados para
outros municípios com características semelhantes.
Foi identificado que os meninos, os jovens que se autodeclararam como não brancos,
os que relataram experiência com drogas lícitas e ilícitas, os com dificuldade na relação com
seus pais e os que se sentiam discriminados e os com ideação suicida apresentaram mais alta
prevalência de iniciação sexual. Esses resultados apontam a necessidade de políticas públicas
promotoras da saúde dos jovens, desenvolvendo ações que incentivem práticas sexuais
seguras e que incidam positivamente em seu comportamento sexual (Campo-Arias, Ceballo,
& Herazo, 2010). Para isso, é necessário que os profissionais da área da saúde e da educação
sejam capacitados para trabalhar com a diversidade de modos de viver a adolescência e a
sexualidade dos jovens. Com isso, será possível a implantação de programas mais seguros
e eficazes, articulando um trabalho em rede, sem esquecer das famílias e da comunidade,
importantes aliados dos profissionais neste universo chamado adolescência.
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_____________________________
Recebido em fevereiro de 2015
Aceito em maio de 2015
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts: Médica, Doutora, Programa de Pós Graduação em Promoção da
Saúde/ULBRA.
Giani Terezinha da Costa Scarin Ottoni: Enfermeira, Mestre, Mestrado em Saúde Coletiva/ULBRA.
Gehysa Guimarães Alves: Socióloga, Doutora, Programa de Pós Graduação em Promoção da Saúde/
ULBRA.
Lílian dos Santos Palazzo: Médica, Doutora, Curso de Medicina da ULBRA/Canoas.
Ana Maria Pujol Vieira dos Santos: Bióloga, Doutora, Programa de Pós Graduação em Promoção da Saúde/
ULBRA.
Endereço para contato: [email protected]
100
Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, p.101-113, set./dez. 2014
Comportamentos antissociais e delitivos em adolescentes
Camila Dias
Nancy Ramacciotti de Oliveira-Monteiro
Maria Aznar-Farias
Resumo: A violência tem atingido a população mais jovem do país. Baixo nível socioeconômico e ser
do sexo masculino são fatores que têm sido apontados em associação à presença de comportamentos
delitivos. O presente estudo objetivou avaliar autorreferências de condutas antissociais e delitivas
em adolescentes, verificando diferenças quanto às variáveis: sexo, grau de ensino e inserção em
escolas públicas ou privadas. Foram participantes 453 adolescentes, 13 a 19 anos, ambos os sexos,
estudantes do ensino fundamental II e médio, de seis escolas da Baixada Santista (SP). Foi utilizada
a Escala de Condutas Antissociais e Delitivas e feita análise descritiva e inferencial dos dados.
Os resultados indicaram baixa autopercepção de manifestação de comportamentos antissociais e
delitivos em toda amostra. Foram encontradas diferenças significativas, para maior, nos meninos e
em escolas privadas. Ficam sugeridos novos estudos sobre a problemática para subsidiar programas
preventivos voltados para o desenvolvimento positivo dos jovens.
Palavras-chave: Adolescentes, comportamentos antissociais, comportamentos delitivos.
Antisocial and delictive behaviors in adolescents
Abstract: Violence has reached the younger population. Low socioeconomic status and being
of male gender are factors that have been identified in association with the presence of criminal
behaviors. The present study aimed to assess self references of antisocial and criminal behaviors in
adolescents, finding differences in the variables: gender, level of education and inclusion in public
or private schools. Participants were 453 adolescents, 13-19 years old, both sexes, middle and high
school students, from six schools from Sao Paulo State. AntiSocial and Delictive Behaviors Scale
was used and descriptive and inferential data analysis were made. The results indicated low selfperceiving of antisocial and criminal behaviors manifestation across the whole sample. Significant
differences were found, for more, in boys and private schools. Further researches are suggested on
the problem to support preventive programs for positive youth development.
Keywords: Adolescents, antisocial behaviors, criminal behaviors.
Introdução
Nas relações sociais, os comportamentos que manifestam respeito, solidariedade,
e ajuda, são reconhecidos como comportamentos pró-sociais. Esses comportamentos
convivem com outros padrões de relações humanas que envolvem conflitos, que muitas
vezes geram manifestações de condutas agressivas, nos chamados comportamentos
antissociais, que são, de uma forma geral, tratados como opostos aos comportamentos
pró-sociais (Saud & Tonelloto, 2005).
Alguns autores consideram que o padrão de comportamento adotado pelas pessoas
é adquirido na infância. Assim, tanto comportamentos desviantes como pró-sociais são
aprendidos pelas crianças através das interações sociais, especialmente interações com
os membros da família. Porém, esses padrões de comportamento podem ser alterados a
partir das exigências dos ambientes em que estão inseridos e também do desenvolvimento
do indivíduo (Patterson et al., 1992 citado por Pacheco, Alvarenga Reppold, Piccinini,
& Hutz, 2005).
São encontradas na literatura diversas terminologias utilizadas para se referir às
manifestações consideradas negativas dos comportamentos sociais, de forma que um
mesmo tipo de comportamento pode ser denominado como desviante, transgressivo,
antissocial, delitivo ou delinquente, de acordo com a vertente de saber ou de práticas
sociais envolvidas.
De forma geral, comportamentos desviantes e antissociais são aquelas condutas de
desvio às normas e expectativas sociais, como ações que rompem regras e acordos do
contexto em que as pessoas estão inseridas, sem que o comportamento, necessariamente,
constitua-se como uma infração legal. Na área psiquiátrica, o termo antissocial pode
estar associado a quadros psicopatológicos como 'Transtorno da Conduta' e 'Transtorno
Desafiador Opositivo', segundo indicadores de critérios diagnósticos do Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (American Psychiatric Association
[APA], 2002).
Comportamentos delitivos por sua vez, costumam referir-se especificamente a
fatos tipificados em lei, ou seja, condutas descritas como crime ou contravenção penal
passíveis de punição. Trata-se, portanto, de determinados tipos de violações, como roubo,
vandalismo ou violência contra outras pessoas, ações que podem causar danos morais e/
ou físicos mais graves (Formiga, Aguiar, & Omar, 2008; Pacheco & Hutz, 2009; Sanches
& Gouveia-Pereira, 2010).
Notícias sobre atos desviantes de adolescentes são veiculadas com frequência na
mídia e nas redes sociais acompanhadas de questionamentos polêmicos sobre como lidar
socialmente com essa questão. Nesse sentido, o Congresso Brasileiro, desde 1999, passou
a discutir a idade para a responsabilidade criminal de adolescentes (Sposato, 2013). Até
2015, as formas de responsabilização do adolescente são definidas pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) (Digiácomo & Digiácomo, 2013), que trata o comportamento
delitivo, na delimitação de pessoas com menos de 18 anos, como ‘ato infracional’, aquele
passível de julgamento e de sentenças relativas a medidas socioeducativas, que vão de
advertência à restrição de liberdade.
Em documento de 2012, sobre o panorama nacional de medidas socioeducativas
de internação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2012) apontou que 17.502 jovens
infratores cumpriam medida socioeducativa de restrição de liberdade no Brasil. Neste
mesmo documento foi apresentado um estudo em que 1.898 adolescentes em cumprimento
da medida, com média de idade de 16,7 anos, foram entrevistados. A partir do estudo
verificou-se que atos infracionais correspondentes a crimes contra o patrimônio foram os
mais praticados pelos respondentes, seguido pelo tráfico de drogas. O homicídio também
se apresentou expressivo, correspondendo a 13% do total de delitos.
Em estudo sobre a escola como fator de proteção à conduta infracional de
adolescentes, Gallo e Williams (2008) colocam que, na literatura, são encontradas
convergências a respeito de características de jovens em conflito com a lei, dentre as
quais estão: histórico de comportamento antissocial, com violação persistente de normas
e regras sociais, e comportamento desviante das práticas culturais vigentes; dificuldades
102
Aletheia 45, set./dez. 2014
de socialização; uso precoce de tabaco, bebidas alcoólicas e drogas ilícitas; envolvimento
em brigas; impulsividade; rejeição por parte de professores e colegas; humor depressivo e
tentativas de suicídio; envolvimento com pares desviantes; e baixo rendimento acadêmico,
fracasso e evasão escolar.
Tratando também desse tema, Bordin e Offord (2000) afirmam que algumas
características podem contribuir para a incidência de comportamentos antissociais
de crianças e adolescentes, como terem nível socioeconômico baixo e serem do sexo
masculino. No entanto, apesar de o baixo nível socioeconômico ser apontado como
contribuinte para a incidência dos comportamentos desviantes, Formiga e Diniz (2003)
afirmam não serem mais os jovens de classes baixas e baixo nível educacional os únicos
responsáveis por tais condutas, uma vez que estas são apresentadas também por sujeitos
que, teoricamente, são atendidos por estrutura e organização educacional, familiar e
econômica de grande apoio.
Com relação ao sexo, há dados indicativos de que meninos e homens são, em média,
fisicamente e verbalmente mais agressivos do que as meninas e mulheres, apresentando
mais problemas externalizantes, como hiperatividade, quebra de regras e comportamentos
agressivos e antissociais (Shaffer & Kipp, 2010). O estudo de Souza e Mosmann (2013), a
partir da caracterização do perfil de crianças encaminhadas para atendimento em Serviçosescola de Psicologia, mostrou predominância (71,3%) de encaminhamentos de meninos,
com queixas frequentes de comportamentos agressivos, além de problemas de atenção.
De forma semelhante, em estudo bibliográfico realizado por Pavarino, Del Prette e Del
Prette (2005) voltado para análise de estudos empíricos sobre relação entre empatia e
agressividade, foi verificada tendência à maior frequência de dados de agressividade entre
meninos e maior proporção de empatia entre meninas.
Devido à expressividade dos números que refletem comportamentos desviantes de
meninos, percebe-se na literatura uma tendência a priorizar trabalhos sobre estes. Ainda
são escassas pesquisas sobre a ocorrência de comportamentos antissociais e delitivos
em meninas. No entanto, ainda que a meninas e mulheres apresentem taxas inferiores às
taxas de meninos e homens, Souza (2009) aponta que alguns autores se debruçaram sobre
dados de violência em mulheres e concordam que, refletido no crescimento da população
feminina encarcerada, a velocidade da evolução da violência de mulheres nos últimos
anos necessita de atenção, pois esta evolução tem sido mais veloz do que o aumento da
violência entre os homens. Dados estatísticos brasileiros sobre mulheres presas, expostos
pelo mesmo autor, obtidos do Ministério da Justiça e do Departamento Penitenciário
Nacional dos anos de 2001 (com 5.465 prisioneiras) a 2005 (com 12.925 prisioneiras)
destacam esse aumento a partir da população de mulheres encarceradas no país.
No Brasil, comportamentos desviantes associados à violência têm atingido a
população mais jovem de modo particularmente preocupante, pois entre os adolescentes
encontram-se as mais altas estatísticas de mortalidade por agressões, assim como os
próprios adolescentes são os mais apontados como autores de agressões (Deslandes, Assis,
& Santos, 2005). De acordo com o diagnóstico do Mapa da Violência 2013: Homicídios
e Juventude no Brasil, de Waiselfisz (2013), os homicídios são hoje a principal causa
de morte de jovens brasileiros entre 15 e 24 anos, vitimização que é fundamentalmente
masculina. Tal questão é trazida novamente pelo Mapa da Violência 2014: Os Jovens do
Aletheia 45, set./dez. 2014
103
Brasil, que indica que 93,3% dos jovens mortos por homicídio foram do sexo masculino
(Waiselfisz, 2014).
Embora a fase denominada adolescência não seja efetivamente mensurável por
quantidade de anos, é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo
Ministério de Saúde do Brasil como o período que compreende a segunda década da
vida. Portanto, por esses critérios, são considerados adolescentes os indivíduos de 10 a
20 anos (Schoen-Ferreira, Aznar-Farias, & Silvares, 2010).
Diferentes teorias sobre a adolescência consideram-na como uma fase de transição
marcada por turbulências em dimensões internas e relacionais. Todavia, por outro lado,
estudos vêm destacando o potencial a ser desenvolvido nessa fase da vida, considerando
as possibilidades de trocas dinâmicas entre os adolescentes e seus contextos e visando
apresentar dados que sirvam de base para programas que possibilitem a esse grupo seguir
caminhos marcados por oportunidades de saúde e desenvolvimento positivo, preparandoos para enfrentar melhor os desafios e atuar no mundo adulto (Senna & Dessen, 2012).
De toda a forma, o período da adolescência é visto geralmente como um momento
importante em que se dá o domínio das regras e valores da vida social, ganho de
autonomia, maturação física e psíquica e de gradativa incorporação de papéis sociais do
mundo adulto. Trata-se de um período da vida marcado pelas transformações biológicas
da puberdade e por alterações biopsicossociais, que envolvem momentos de crises
associadas a definições de identidade sexual, profissional e de valores (Davim, Germano,
Menezes, & Carlos, 2009).
Em meio a todas as mudanças presentes nessa fase do desenvolvimento, nem
sempre é fácil definir de forma clara a normalidade ou o desvio de condutas que podem
ser apresentadas pelos adolescentes. Sanches e Gouveia-Pereira (2010), por exemplo,
afirmam que, na adolescência, determinados comportamentos delitivos, como roubos
e atos de desordem pública e escolar, ocorrem geralmente de forma ocasional. Tais
comportamentos, ainda segundo essas autoras, podem fazer parte de momentos de
experimentação e emergem, sobretudo, no período da adolescência média (próxima dos
15 e 16 anos). Por sua vez, Benavente (2002) indica que a transgressão na adolescência
é algo comum e necessário ao desenvolvimento e à aprendizagem, podendo inclusive
ser meio de aquisição de novas formas de socialização.
Zappe e Dias (2010) apontam que os casos de comportamentos desviantes de
adolescentes têm sido abordados a partir de três níveis de conceitualização: o nível
estrutural, o sociopsicológico e o individual. O nível estrutural refere-se às condições
sociais, levando em consideração associações entre a delinquência e a pobreza ou a
desigualdade social. Henninger e Luze (2013), neste sentido, colocam que quanto mais
tempo uma criança passar na pobreza, maior será a probabilidade de comportamentos
desviantes, em meninos e meninas.
Já o nível de conceitualização sociopsicológico considera aspectos como autoestima
e influência de grupos de pares e relações com instituições de controle social (como a
família e a escola). A adoção de comportamentos pelos adolescentes é resultado das
interações ente eles e as circunstâncias peculiares de sua vida, de forma que é necessário
considerar que as escolhas realizadas são influenciadas pelo ambiente no qual vivem
(Câmara, Aerts, & Alves, 2012). Nesse sentido, por exemplo, as escolas podem apresentar
104
Aletheia 45, set./dez. 2014
distintos aspectos contextuais e institucionais da realidade educacional, o que pode
levar a vivências e práticas diferenciadas pelos estudantes em suas interações coetâneas
ou interacionais. Algumas escolas públicas, por exemplo, são vistas como instituições
abaladas por grupos marginais ou gangues rivais, violência (física e psicológica), rendição
diante de um quadro de marginalidade dentro e fora dos muros escolares, e desrespeito
aos docentes por parte dos alunos (Carlotto & Câmara, 2008).
Voltando à classificação de Zappe e Dias (2010), o nível individual de
conceitualização dos comportamentos desviantes considera que aspectos biológicos
hereditários e características de personalidade do indivíduo, como a inteligência, podem
ser associados a predisposições para a agressividade e até para a criminalidade, incluindose, é claro, a interação entre as influências ambientais e tal bagagem genética individual.
Parâmetros individuais também são referidos pela neurociência em sua possível associação
com os comportamentos desviantes. Nessa perspectiva, Mendes, Mari, Singer, Barros e
Mello (2009) afirmam que a modulação do comportamento, inclusive o agressivo, ocorre
a partir da interação entre fatores biológicos e socioambientais. Os autores apresentam
estudos que relacionam comportamentos agressivos com diferentes polimorfismos que
podem moderar o impacto da negligência e abuso na infância sobre o desenvolvimento
do comportamento violento e antissocial.
Shaffer e Kipp (2010), na mesma direção, apontam níveis mais altos de hormônios
sexuais masculinos presentes nos meninos, como a testosterona, que contribuem para
diferenças quanto à agressão, em meninos e meninas. No entanto esses autores salientam
que a diferença na aprendizagem social de cada gênero é essencial para o comportamento
agressivo. Brincadeiras agressivas, mais frequentemente feitas com os meninos do que
com as meninas, e reações mais negativas para os comportamentos agressivos das filhas
do que os dos filhos podem contribuir para a agressividade futura. Assim, armas, tanques,
lançadores de mísseis e brinquedos mais presenteados para meninos seriam implementos
simbólicos de destruição que incentivariam temas e comportamentos agressivos.
A partir dessas reflexões, apresenta-se a seguir um estudo que objetivou avaliar
condutas antissociais e delitivas em adolescentes, verificando possíveis diferenças dessa
avaliação quanto ao sexo, grau escolar e inserção em escolas públicas ou privadas.
Método
Foram participantes do estudo 453 adolescentes, de 13 a 19 anos (Média=14,9,
DP=1,4), de ambos os sexos, estudantes do ensino fundamental II e do ensino médio,
de seis escolas de um município de médio porte, com 500 mil habitantes, da Região
Metropolitana da Baixada Santista (SP), sendo quatro escolas públicas (doravante
denominadas Pu1, Pu2, Pu3, Pu4) e duas escolas privadas (doravante denominadas
Pr1 e Pr2). Essas escolas foram selecionadas a partir do critério de diversidade de
localização em bairros da cidade, com diferentes caracterizações socioeconômicas
e urbanas, e também pelo critério de acessibilidade caracterizado pelos aceites aos
convites para participação. A Secretaria de Educação do Município e a Diretoria de
Ensino do Município (estadual) autorizaram e intermediaram o acesso às escolas
públicas de ensino fundamental e de ensino médio, respectivamente. Houve maior
Aletheia 45, set./dez. 2014
105
dificuldade de acesso a escolas privadas, tendo ocorrido ausências de repostas aos
convites feitos através de contatos pessoais com as equipes técnicas, um indicativo
de não aceite.
Na caracterização da amostra foi utilizado o “Critério de Classificação Econômica
Brasil/CCEB” (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2013), um
questionário que classifica classes econômicas a partir de bens de consumo e do grau de
instrução do chefe da família. Nessa caracterização da amostra, as classes econômicas
foram agrupadas nas faixas A/B e C/D/E, respectivamente faixas de classes econômicas
mais altas e mais baixas.
A Tabela 1 apresenta dados da amostra quanto ao sexo, grau de ensino, inserção em
escola pública ou privada e faixas de classes econômicas avaliadas pelo CCEB.
Tabela 1 – Dados de caracterização da amostra.
Grau de Ensino
Sexo
Feminino
Masculino
Total
Classe econômica
A/B
C/D/E
Total
A/B
C/D/E
Total
A/B
C/D/E
Total
Fundamental II
Médio
Total
Públicas
Privadas
Públicas
Privadas
Públicas
Privadas
24
39
63
25
22
47
49
61
110
56
3
59
58
8
66
114
11
125
42
19
61
32
9
41
74
28
102
60
3
63
48
5
53
108
8
116
66
58
124
57
31
88
123
89
212
116
6
122
106
13
119
222
19
241
Como indicado na Tabela 1, foram investigados 212 estudantes de escolas
públicas e 241 estudantes de escolas privadas, com predominância de 54,3% do sexo
feminino. Em todas as escolas privadas e as públicas de ensino médio, observouse maior número de estudantes na faixa de classes econômicas A/B, enquanto nas
escolas públicas de ensino fundamental observou-se maior número de estudantes na
faixa de classes econômicas C/D/E.
O instrumento utilizado foi a Escala de Condutas Antissociais e Delitivas
(ECAD), validada por Formiga e Gouveia (2003) para pessoas maiores de 13 anos. A
ECAD é um instrumento composto por 40 frases sobre comportamentos antissociais
e delitivos avaliados numa escala do tipo Likert de 10 pontos. Por autorreferência,
os participantes devem indicar a frequência com que apresentam o comportamento
citado, em seu cotidiano, variando de “Nunca” (0) até “Sempre” (9).
Foram guardados os devidos cuidados de procedimentos éticos para realização
do projeto que teve aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). O
levantamento dos dados foi realizado de forma coletiva em salas de aula das escolas,
e a aplicação dos instrumentos foi feita conjuntamente por duas estudantes de quinto
ano de curso de graduação em Psicologia, devidamente treinadas e orientadas para
106
Aletheia 45, set./dez. 2014
a tarefa. A escolha das classes dos estudantes, e também as datas e horários para a
aplicação dos instrumentos foram combinados com os responsáveis técnicos das
escolas, com cuidados para não haver prejuízos pertinentes ao calendário letivo. O
levantamento de dados ocorreu no primeiro semestre de 2014.
Os dados foram tratados de formas descritiva e inferencial. Para cada indivíduo
foi calculada a média dos graus da escala Likert das 40 frases da ECAD. Os graus
de condutas, mais ou menos antissociais e delitivas, foram analisados por meio
de uma análise de variância (ANOVA) de três fatores: sexo, grau de escolaridade
e inserção em escola pública ou privada. O nível de significância foi considerado
como α = 0,005.
Resultados
Os resultados médios da amostra em geral (M=1,03, DP=1,04, N=453)
indicaram baixa autorreferência da prática de comportamentos antissociais e delitivos
nos adolescentes participantes, uma vez que a média obtida a partir dos valores
pontuados nas 40 frases afirmativas da escala pode variar de zero (referência de
nunca manifestar os comportamentos antissociais/delitivos) a 9 (sempre manifestar
tais comportamentos), mas a maior parte dos participantes teve média entre 0 e 2.
Os meninos da amostra tiveram médias mais altas (M=1,20, DP=1,25, N=207) do
que as meninas (M=0,88, DP=079, N=246), com diferença significativa (p=0,001).
As Figuras 1 e 2 apresentam a distribuição de meninos entre as médias obtidas
na ECAD.
20
15
10
5
0
Nº de Pessoas
25
30
Figura 1 – Distribuição de meninos pelas médias obtidas na ECAD.
0
2
4
6
8
Média ECAD
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107
15
10
0
5
Nº de Pessoas
20
Figura 2 – Distribuição de meninas pelas médias obtidas na ECAD.
0
2
4
6
8
Média ECAD
As escolas privadas tiveram médias da ECAD maiores (M=1,18, DP=1,16, N=238)
do que as públicas (M=0,87, DP=0,86, N=215), também com diferença significativa
(p=0,003).
As Figuras 3 e 4 mostram a distribuição de alunos pelas médias obtidas na ECAD
nas escolas privadas e públicas.
20
15
10
0
5
Nº de Pessoas
25
30
Figura 3 – Distribuição de alunos das escolas privadas pelas médias obtidas na ECAD.
0
2
4
Média ECAD
108
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6
8
10
0
5
Nº de Pessoas
15
20
Figura 4 – Distribuição de alunos das escolas públicas pelas médias obtidas na ECAD.
0
2
4
6
8
Média ECAD
Não foram encontradas diferenças nos resultados em termos de grau de escolaridade.
Cabe ressaltar que as diferenças significativas encontradas devem ser refletidas em termos
do N da amostra que, ao ser relativamente alto, pode ser mais sensível para captação de
diferenças.
Discussão
O objetivo deste estudo foi verificar indicadores de condutas antissociais e
delitivas autorreferidos por estudantes adolescentes, verificando possíveis diferenças
entre meninos e meninas, grau de instrução e inserção em escolas públicas e privadas.
Os resultados indicaram baixa autorreferência de comportamentos antissociais e delitivos
nos participantes, com maior concentração de indivíduos com médias entre 1 e 2, e média
geral 1,03 (numa escala que variava de 0 a 9).
Ainda assim, os indicadores mostraram diferenças significativas entre os meninos e
meninas da amostra, numa condição em que meninos apresentaram maiores médias com
relação aos comportamentos antissociais e delitivos autorreferidos. Tal diferença entre
os sexos com respeito a esses comportamentos é apontada com frequência na literatura,
como em Bordin e Offord (2000) que afirmam que, ser do sexo masculino é uma das
características que podem contribuir para a incidência dos comportamentos antissociais,
Pavarino, Del Prette e Del Prette (2005) e Shaffer e Kipp (2010) também vão nesta direção
com respeito ao levantamento de comportamentos agressivos e problemas externalizantes
mais presentes em meninos, em comparação com as meninas.
Diferenças significativas também foram observadas com relação à frequência de
autorreferências de comportamentos antissociais e delitivos entre a inserção em escolas
públicas ou privadas, mais presentes nestas últimas. Estudos como o de Henninger e
Luze (2013) apontaram a pobreza e a desigualdade social como fatores importantes que
Aletheia 45, set./dez. 2014
109
podem levar os sujeitos à realização de comportamentos antissociais e delitivos. Por
sua vez, os resultados do presente estudo mostraram maior frequência autorreferida de
comportamentos antissociais e delitivos nos alunos de escolas privadas. Esse dado, de
certa forma, é concordante com o colocado por Formiga e Diniz (2003) quanto a não
serem apenas os jovens de classes mais baixas os únicos que apresentam condutas que
tangenciam as normas sociais. De toda maneira deve ser ressaltado que, na presente
investigação, não foram analisados resultados em termos de pertinência a classes
econômicas e sim de pertinência a escolas públicas ou privadas.
Ainda com relação a tal inserção, Carlotto e Câmara (2008) entendem que escolas
públicas são instituições que se encontram mais abaladas pelo desrespeito, presença
de violência física ou psicológica, além de presença de grupos marginais. Os limites
do presente estudo, por sua vez, indicaram que a situação de escolas públicas pode ser
bastante heterogênea, em termos dos problemas assinalados por essas autoras.
Outro aspecto observado com relação aos dados da amostra em sua inserção escolar
foi a predominância de estudantes das classes econômicas C/D/E (do Critério Brasil) no
ensino fundamental, enquanto que no ensino médio, houve predominância da amostra nas
classes A/B. Esse dado parece apontar para o fato de adolescentes de classes econômicas
mais baixas deixarem mais cedo seus estudos.
Os resultados mais positivos encontrados, em termos de baixa autorreferência de
comportamentos antissociais e delitivos por toda amostra, pode ser refletido no sentido
do colocado por Gallo e Williams (2008) de que a escola representa um fator de proteção
perante maiores problemas de condutas desviantes. Por outro lado, tais resultados podem
ser problematizados por características da metodologia do próprio estudo. Contribuições
como a de Batson e Thompson (2001) discutem a possibilidade de imprecisões em
respostas a questionários, como no caso de autorreferências, quando envolvem temas
associados à moralidade. Para esses autores, pode haver uma ‘hipocrisia moral’ que leva
os respondentes a pontuarem mais em questões pertinentes a valores, apesar de muitas
vezes não serem realmente guiados por eles, em situações reais. Além disso, deve ser
considerado o temor de responder honestamente sobre comportamentos antissociais e
delitivos próprios. A condição de medo diante das questões pertinentes a comportamentos
antissociais e delitivos pode advir de possíveis interfaces com a proximidade de violência
e criminalidade, e também por algumas condições de funcionalidade das famílias,
pertencentes a diferentes classes sociais e econômicas.
Considerações finais
A partir dos resultados expostos, concluiu-se que comportamentos antissociais
e delitivos não foram autorreferidos de forma mais expressiva pelos adolescentes
estudantes investigados, embora tenha havido apontamentos de presença maior dessas
autorreferências em meninos, e em escolas privadas.
Apesar dos resultados obtidos mostrarem diferenças significativas nas frequências
de autorreferência de comportamentos antissociais e delitivos entre meninos e meninas,
corroborando o apontado na literatura quanto à maior ocorrência desses comportamentos
em meninos, há necessidade de novos estudos sobre a temática, tanto para investigação
110
Aletheia 45, set./dez. 2014
de comportamentos antissociais e delitivos de meninos, quanto de meninas. Por um lado,
porque o envolvimento dos meninos com a delinquência vem sendo acompanhado de alta
vitimização; por outro, porque ainda são escassos os estudos a esse respeito com meninas
e a evolução da violência em mulheres tem aumentado sobremaneira.
A ampliação de estudos sobre a temática poderá ultrapassar limites desta
investigação, como o de não ter abarcado análises considerando diferenças de classes
econômicas da amostra. A pesquisa considerou a variável de inserção em escolas públicas
ou privadas, mas foi verificada heterogeneidade de condições econômicas em ambos
os tipos de escola, embora as escolas públicas selecionadas pertencessem a periferias
sociais e urbanas do município onde foram feitos os levantamentos de dados. Novas
pesquisas poderão auxiliar na discriminação dessas variáveis além de poderem também
conter vertentes qualitativas em suas metodologias, de forma a acrescentar avaliações
dos contextos familiares e de inserção social na investigação dos adolescentes.
O avanço do conhecimento sobre comportamentos antissociais e delitivos de
adolescentes, e seus problemas associados, poderá subsidiar programas preventivos
voltados à promoção do cuidado necessário ao desenvolvimento positivo dessa
população.
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_____________________________
Recebido em fevereiro de 2015
Aceito em junho de 2015
Camila Dias: Psicóloga, pesquisadora do Laboratório de Psicologia Ambiental e Desenvolvimento Humano
da Universidade Federal de São Paulo (LADH/UNIFESP-BS).
Nancy Ramacciotti de Oliveira-Monteiro: Doutora e pós-doutorado em Psicologia Social, pela Universidade
de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-BS). Coordena o Laboratório
de Psicologia Ambiental e Desenvolvimento Humano da Universidade Federal de São Paulo (LADH/
UNIFESP-BS).
Maria Aznar-Farias: Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-Doutorado
em Psicologia do Desenvolvimento Humano pela Universidade de Valência (Espanha). É professora afiliada
da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-BS), exercendo atividades de pesquisa junto ao Laboratório
de Psicologia Ambiental e Desenvolvimento Humano (LADH/UNIFESP-BS).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
113
Aletheia 45, p.114-127, set./dez. 2014
O que vai acontecer quando eu estiver na universidade?
Expectativas de jovens estudantes brasileiros
Pedro Fabião Moreno
Adriana Benevides Soares
Resumo: As expectativas acadêmicas de estudantes universitários têm sido relacionadas a uma
melhor adaptação à Universidade e também a um melhor rendimento escolar, sobretudo no ano
de ingresso na Instituição de Nível Superior, daí a importância de se conhecer o que os alunos
imaginam encontrar no Ensino Superior. Este estudo teve por objetivo identificar as expectativas
acadêmicas de estudantes universitários do primeiro ano do Ensino Superior. Foi utilizada a técnica
de grupo focal com 13 estudantes com idades variando de 18 a 24 anos. Oito estudantes eram do
sexo feminino. As falas foram gravadas e posteriormente transcritas. A análise dos dados foi feita
utilizando a metodologia de Análise de Conteúdo. Foram identificadas oito categorias das quais
foram extraídos os principais resultados que se apresentam em relação à remuneração, à realização
pessoal e profissional, ao trote, à qualidade do corpo docente, às disciplinas, à infraestrutura,
à aceitação familiar e ao aproveitamento do curso como segunda opção. Os resultados foram
discutidos, permitindo pensar possíveis estratégias de intervenção que visem a um melhor
aproveitamento, por parte do aluno, no contexto universitário.
Palavras-chave: Expectativas acadêmicas, estudantes universitários, ensino superior.
What will happen when I will be in college? Expectations of young
Brazilian students
Abstract: The academic expectations of college students in the first year of higher education was
related to a better adaptation to the university and to a better academic performance especially
during the first year of college, which is why it is important to know what students hope to find
when they enroll into college. The methodology of focus groups was used with 13 students aged
18-24 years old. Eight students were female. The discussions were recorded and later transcribed.
Data analysis was performed according to the method of content analysis. Eight categories were
identified and extracted from, exposing the main results that are presented in relation to remuneration,
personal and professional fulfillment, trot, quality of faculty, disciplines, infrastructure, family
acceptance and use of the course as a second option. The results were discussed, and that allowed
thinking possible strategies of intervention that aim for a better performance from students in the
college context.
Keywords: Academic expectations, college students, higher education.
Introdução
A entrada no Ensino Superior é motivo de comemoração para muitos alunos
recém-chegados do Ensino Médio, pois conquistaram com esforço seu lugar no espaço
universitário, ultrapassando assim uma barreira social de aceitação e muitas vezes
atendendo às demandas dos pais ou da família. Existem, porém, expectativas próprias
desde o momento de ingresso, ligadas a construtos pessoais que estão suscetíveis à
confirmação ou não, podendo modificar-se ou deixar de existir, de acordo com as mudanças
que ocorrem ao longo da vida acadêmica e que podem gerar dificuldades para que o
estudante se integre à vida universitária.
De acordo com Soares et al. (2014), devido às diversas mudanças que o aluno
encontra ao ingressar no Ensino Superior, a adaptação pode ser dificultada pois, além
das expectativas criadas pelo discente, existem mudanças críticas que dizem respeito à
vida no ambiente universitário: as matérias seguem com mais flexibilidade, cada aula
acontece de maneira menos sequenciada do que na escola, o horário é mais flexível, os
professores desempenham funções, como de ensinar, regular subjetividades, analisar e
avaliar o grupo de alunos, além de traçar uma relação entre o que foi ensinado em sala
e o que ocorre fora dela. Tudo isso pode trazer diversas dificuldades no processo de
adaptação à universidade e, em alguns casos, gerar desistências.
Outra questão que requer especial atenção no que diz respeito a expectativas e a
dificuldades de adaptação é que há hoje um grupo bastante heterogêneo de alunos. O
perfil atual dos alunos que cursam a universidade mudou ao longo do tempo. O ensino
deixou de ser elitizado e os estudantes de classe social mais desfavorecida compõem o
novo corpo universitário, uma vez que tem sido progressivamente democratizado o acesso
ao Ensino Superior através de uma política de ações afirmativas. Embora o acesso tenha
sido flexibilizado, a permanência do estudante na Instituição de Ensino Superior (IES)
ainda é uma questão problemática.
De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP, 2014) estão listadas 2.391 instituições, sendo 301 públicas e 2.090
privadas. O total de cursos oferecidos aumentou para 32.049, incluindo a modalidade
presencial e a distância, entre as IES públicas e privadas. Nas instituições privadas
contabilizaram 21.199 o total de cursos. O número de matriculados no total geral aumentou
para 7.305.977 nas instituições em todo o território nacional, sendo 1.932.527 nas públicas
e 5.373.450 nas privadas. Esses dados representam um crescimento de 3,8% nos anos entre
2012 e 2013, sendo 1,9% na rede pública e 4,5% na privada. O número total de ingressos
no Brasil em 2013 foi de 2.742.950 (17%), sendo 531.846 nas públicas e 2.211.104 nas
privadas. O número total geral de concluintes incluindo as duas modalidades, ou seja,
presenciais e a distância, foi de 991.010, sendo 229.278 nas instituições públicas e 761.732
nas instituições privadas (INEP, 2014). É importante notar que a diferença entre o número
de alunos matriculados e de concluintes é muito discrepante.
Cabe apontar que fatores diversos podem contribuir para a mudança de curso ou
para a evasão no Ensino Superior no Brasil tanto nas instituições particulares quanto
nas públicas. Segundo Silva Filho, Montejunas, Hipólito e Lobo (2007) são questões
relacionadas ao contexto acadêmico, porém de naturezas variadas. Segundo Igue,
Bariani e Milanesi (2008), a expectativa do universitário é um dos fatores relevantes
para a adaptação, integração e satisfação do aluno e, por conseguinte, pode influenciar
na sua permanência no Ensino Superior, pois na maioria das vezes é o que estimula ou o
desestimula a dar continuidade ao investimento financeiro e/ou de tempo para concluir
o curso escolhido (Silva Filho et al., 2007).
A pesquisa de Polydoro (2000) indica que, geralmente nas instituições particulares,
o problema de evasão está relacionado a problemas financeiros. Já o estudo de Mercuri
(1999) aponta como causas de evasão um baixo grau de compromisso com o curso,
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115
problemas financeiros, moradia e problemas de integração acadêmica, bem como aspectos
relacionados à família e aos amigos. No estudo de Vasconcelos, Almeida e Monteiro
(2009), apresentam-se a escolha por engano do curso, as dificuldades para acompanhar
o nível de exigência da instituição, assim como também as expectativas frustradas dos
alunos, dentre outros.
As expectativas sobre o ambiente acadêmico podem estar associadas tanto a questões
estritamente acadêmicas como o curso, as disciplinas, as avaliações quanto às relações
sociais e interpessoais, ambiente de estudo, equipamentos disponibilizados pela instituição
de Ensino Superior, etc. É a partir das expectativas acadêmicas que o estudante vislumbra
um ambiente adequado as suas competências. A consonância entre suas capacidades e o
ambiente idealizado leva o aluno a ser estimulado, caso contrário pode ser desmotivado
e ter dificuldades em se adaptar ao ambiente estudantil (Almeida, Ferreira, & Soares,
1999; Granado et al., 2005; Schleich, Polydoro, & Santos, 2006; Soares & Almeida,
2005). Vale lembrar que, expectativas acadêmicas envolvem pensamentos que definem
o que o aluno ingressante espera da instituição de Ensino Superior (Howard, 2005). O
desencontro entre as expectativas e o que a universidade oferece pode desencadear várias
decepções com a vida acadêmica (Pachane, 2003). O compromisso com a instituição para
o estudante está ligado às expectativas sobre a instituição com o objetivo de graduar-se,
se relaciona à formação ou obtenção do diploma. Além destes, fatores internos e pessoais
ou externos abarcam os estudantes e à instituição e podem determinar a permanência
desses alunos no Ensino Superior (Bardagi & Hutz, 2009; Basso & Soares, 2013; Mercuri
& Polydoro, 2003).
Segundo Nadelson e Semmelroth (2013), as expectativas iniciais dos estudantes são,
em geral, boas no que diz respeito ao que irão encontrar na universidade. Um conjunto de
experiências anteriores, em diferentes campos da vida, tais como a profissional, a social
e a familiar, influenciam nas diversas escolhas e na trajetória do estudante em sua vida
acadêmica. Algumas podem estar relacionadas com o sucesso e com o reconhecimento
como um profissional da área. Nesse campo, estão associadas com uma alta remuneração
ou a um status pessoal e profissional que a carreira oferece. O ingresso em determinado
curso não é necessariamente a primeira opção do aluno. Dessa forma, ele pode utilizar o
que for aprendido nesse curso posteriormente em outro. Essa segunda opção geralmente é
a primeira escolha do aluno, que se viu impossibilitado de cursá-lo por algum motivo.
Mesmo antes de ingressar na universidade, os alunos mostram expectativas
relacionadas com diversos pontos sobre a mesma. Segundo Aguiar e Conceição (2009),
as suposições dos alunos são fortemente relacionadas ao âmbito das relações sociais,
amizades, e pelo fato de haver a possibilidade e curiosidade de aprender algo mais
pragmático. Segundo Marques et al. (2011), quando as expectativas não estão ligadas a
uma visão futura acerca da profissão, ficam, em geral, em torno da própria universidade
e do que ela pode oferecer. Podem versar sobre a qualidade do corpo docente e sobre
as matérias, o que se reflete no aprendizado durante o curso. A infraestrutura também
é uma questão recorrente, o que pode ser oferecido, de produtos e serviços, dentro da
universidade e, por exemplo, se a biblioteca da universidade é completa.
Com alguma frequência, as expectativas iniciais dos alunos não são realistas e não
se cumprem ao longo da vida acadêmica (Fernandes & Almeida, 2005). Esse fato pode,
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muitas vezes, trazer dificuldades relacionadas ao desempenho, às vivências e em alguns
casos pode ser determinante para a desistência do curso. O processo de ajustamento à
vida no Ensino Superior depende de diversos fatores pessoais e profissionais, podendo
estar ligado à aptidão, ou seja, como o estudante foi preparado para enfrentar aquele
processo, ou ligado às suposições, que se referem ao que e quanto o aluno espera do
seu curso e de sua instituição de ensino. Segundo Igue, Bariani e Milanesi (2008), há
uma diferença com relação ao preparo anterior, as expectativas iniciais dos estudantes
e o que a universidade oferece. Ao se deparar com essas diferenças, pode ocorrer uma
série de sentimentos antagônicos, o que é preponderante para o sucesso ou fracasso no
meio acadêmico.
Ao longo da vida acadêmico-universitária, muitas expectativas são desfeitas,
algumas são mantidas e outras modificadas. Quanto mais elas forem realistas, melhor
o aluno conseguirá enfrentar as dificuldades e mais facilmente os objetivos podem ser
alcançados. Assim, os estudantes tendem a possuir um melhor rendimento acadêmico do
que outros que possuem ideias demasiadamente otimistas e menos realistas (Fernandes &
Almeida, 2005). Segundo Almeida et al. (2003), esse aspecto foi verificado de maneira
mais elevada nos estudantes mais jovens, do sexo feminino e deslocados da família. A
principal conclusão do estudo é que esses alunos que possuem expectativas mais altas
são mais suscetíveis a frustrações, o que pode ser negativo em termos de continuidade
no curso.
Alguns alunos, para alcançar suas metas, sejam essas relacionadas ao status que a
formação profissional pode levar, a remuneração que poderá ser recebida ou simplesmente
chegar ao fim do curso, procuram trabalhos dentro da faculdade, tendo um contato mais
profundo com determinada área do curso, podendo sentir, na prática, como é a atuação
do profissional nessa área. Com isso, o estudante consegue enxergar a profissão de forma
mais realista e, por consequência, adapta-se melhor a essa nova realidade (Almeida, Costa,
Alves, Gonçalves, & Araújo, 2012). O aluno que possui as suposições mais próximas à
realidade está menos vulnerável a frustrações e desilusões na vida acadêmica (Almeida
et al., 2003).
O ingresso na universidade também gera presunções acerca da forma como o aluno
será recebido na mesma. Rituais como o trote podem ser desejados se entendidos como
um momento de integração, mas também podem ser temidos e vividos como situação
de segregação e violência. Existe uma apreensão grande dos novos estudantes em
relação a esse acontecimento: uns tem medo, outros encaram como um rito importante
de passagem e, em outros casos, há a vontade de se relacionar com as outras pessoas
e de integrar-se. Isso faz parte das expectativas relacionadas com a interação e as
amizades (Aguiar & Conceição, 2009). Mauritti (2002), em um estudo descritivo de
caracterização, destaca as dificuldades e mudanças por que os estudantes passam ao
longo de sua trajetória acadêmica apontando que estudantes de classes sociais menos
favorecidas tendem a procurar soluções para que a adaptação seja facilitada e que,
apesar de haver dificuldades de aprendizado, derivadas das falhas na educação de base
e maiores dificuldades financeiras, esses estudantes tendem a procurar ocupações que
possam suprir as mesmas, trabalhando na própria universidade ou em estágios em
alguma área de interesse.
Aletheia 45, set./dez. 2014
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Segundo Igue, Bariani e Milanesi (2008), a integração à universidade é primordial
na importante decisão entre permanecer ou abandonar o objetivo de cursar integralmente
a graduação. Almeida et al. (2003) apontam que, em estudos estrangeiros, metade
dos estudantes possui dificuldades na adaptação à universidade e que isso pode trazer
obstáculos, além de gerar maior quantidade de casos de psicopatologia. Alguns dos
motivos que fazem com que as ideias sobre o curso sejam ajustadas à realidade existente
estão relacionados com as dificuldades interpessoais dos alunos e aos métodos rígidos
que alguns cursos utilizam. Segundo Gonçalves e Lima (2007), é importante que
os métodos de gestão sejam mais democráticos, flexibilizando algumas estruturas e
estimulando o envolvimento das pessoas, o que facilita o acesso dos alunos aos materiais
e, consequentemente, ao conhecimento. Com isso, as condições para o aprendizado são
melhoradas.
Alguns estudos empíricos têm também associado às expectativas acadêmicas ao
desempenho do estudante durante o curso. Segundo Fernandes e Almeida (2005), em
um estudo que teve como objetivo analisar a associação do rendimento escolar com as
suposições iniciais dos alunos e as suas vivências acadêmicas avaliadas a meio do ano
letivo e os níveis de investimento conseguido no final do primeiro ano de frequência
universitária, verificou que alunos de Engenharia possuem maior rendimento acadêmico e
menor expectativa ligada a construtos institucionais, social/interpessoal. Para os alunos de
Ciências Econômicas, em termos de comportamentos, os alunos com melhor rendimento
apresentam valores inferiores em termos de investimento na área pessoal e social/
interpessoal. A principal conclusão do estudo é que os estudantes com maior rendimento
acadêmico, se comparados com os que têm um pior rendimento, em geral, pensam de
forma mais realista quanto à vida universitária e demonstram maior segurança em suas
escolhas e no caminho que pretendem trilhar dentro de seus cursos.
De acordo com a literatura apresentada sobre as expectativas e as vivências
acadêmicas e a notória importância destes construtos na permanência do estudante no
meio acadêmico, o objetivo desse estudo foi o de conhecer as expectativas acadêmicas
de estudantes universitários brasileiros do primeiro ano do Ensino Superior.
Método
Participaram 13 estudantes de diversas áreas do conhecimento de forma a contemplar
especificidades de diferentes cursos. As idades variaram de 18 a 24 anos (M= 19,54 e
DP= 3,1). Cinco dos participantes eram do curso de Psicologia, dois de História e os
demais, com apenas um participante respectivamente, eram dos cursos de Matemática,
Estatística, Biomedicina, Engenharia, Enfermagem e Administração. Oito estudantes
eram do sexo feminino e cinco do sexo masculino, sendo dez de universidades públicas
e três de universidades particulares do Estado do Rio de Janeiro. Os estudantes eram
todos solteiros e três pertenciam à classe social A1, um à classe A2, seis à classe B1 e
três à classe B2 (ABEP, 2012).
Foi utilizada a técnica do grupo focal (Barbour, 2009) para a coleta de dados.
Os dados foram categorizados e analisados com base na metodologia da Análise de
Conteúdo de (Bardin, 2009). O conteúdo das discussões foi gravado e transcrito. Além
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dos participantes do grupo, estavam presentes um moderador e dois observadores que
visavam interferir o mínimo possível na dinâmica desenvolvida. Algumas questões
norteadoras foram a propostas para os participantes tais como: Quais eram suas
expectativas acadêmicas ao entrar na Universidade? O que sua família esperava de seu
curso universitário e de suas escolhas acadêmicas? O que você esperava da sua instituição
de ensino? Você esperava encontrar novos amigos? A duração foi de aproximadamente
uma hora e quarenta e cinco minutos. Os participantes preencheram uma ficha para a
coleta dos dados sociodemográficos.
Este estudo foi aprovado em 25/02/2010 no comitê de ética em pesquisa, sob o
número nº 129/2009. Todos os participantes assinaram, logo após terem sido informados
dos objetivos da pesquisa, um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido garantindo
o sigilo de sua identidade e a possibilidade de retirar o seu consentimento a qualquer
momento do estudo.
Resultados e discussão
Foram encontradas oito categorias no grupo focal que se seguem aqui discutidas
junto com as falas correspondentes. A categoria “Honorários a serem recebidos” está
relacionada com o retorno financeiro que o profissional da área pode receber. O foco
desta categoria está direcionado para o sucesso em termos financeiros e, nesse caso, dá-se
maior importância para o desenvolvimento de atividades que direcionem a esse objetivo.
“...A turma toda fala isso: ‘Eu faço esse curso porque quero ganhar dinheiro’”. Muitos
estudantes que visam esta meta podem procurar estágios ou trabalhos dentro da faculdade
para que haja um avanço na área que se pretende desenvolver em busca da realização
financeira. “...O estágio que eu queria, eu queria por dinheiro”; “Eu pretendo dar aula
de Psicologia, penso em ter um salário bom...”. Segundo Bueno (1993), determinadas
profissões são menos procuradas ou vistas como uma opção secundária pelo fato de que
as expectativas ligadas ao retorno financeiro no mercado de trabalho são mais baixas,
fato que também contribui com o nível de evasão nos cursos dessas carreiras. De acordo
com Oliveira e Piccinini (2012), o jovem muitas vezes procura um estágio ou algum
trabalho, dentro da vertente escolhida no curso, para ganhar a experiência necessária
e receber honorários, como forma de preparação para os frutos que a futura carreira
poderá gerar.
A segunda categoria “Realização pessoal e profissional” está relacionada com a
escolha do curso, ou seja, é baseada no retorno pessoal e profissional que a carreira pode dar
(status). Muitos estudantes que buscam as realizações nos campos pessoal e profissional
procuram alcançar algum tipo de status quando dizem por exemplo “... quando criamos
expectativas, a gente meio que se joga, não sabemos os detalhes. Mas me vejo sendo
uma boa profissional, ganhando bem, tendo o nome na porta pendurado”. Nesse campo,
pode-se destacar que o objetivo dos estudantes é o de encontrar e trabalhar em áreas que
já possuem um histórico de realização, ou seja, que atendem a esse objetivo. “Ter um
futuro promissor como professora”, “Me qualificar para o mercado de trabalho”, “...tem
que ser bom também, ser bom profissional”. Segundo Bueno (1993), o status que pode ser
recebido em determinadas carreiras, como por exemplo um título de médico, psicólogo,
Aletheia 45, set./dez. 2014
119
advogado, dentre outros, é fator primordial para a decisão de continuar no curso. A
inserção no mercado de trabalho ou em estágios pode ser entendida como uma forma de
realização profissional que vai além do ideal ligado ao recebimento de honorários. Pode
ser encarada como uma forma de exercer as funções profissionais e estar engajado nas
experiências que um trabalhador daquela profissão realiza (Oliveira & Piccinini, 2012).
Segundo Baptista et al. (2004), o conhecimento dos estudantes sobre o Ensino Superior
parece não ser preocupação constante das universidades. Segundo os autores, é necessário
conhecer características do curso e da instituição para que a realidade institucional possa
ser adequada à realidade do aluno. Com isso, o espaço universitário torna-se uma das
principais fontes de estímulo para que o aluno siga sua trajetória profissional vinculada
à formação profissional. O estímulo, nesse caso, é importante, pois reforça o interesse
que o estudante de nível superior tem em explorar as diversas possibilidades oferecidas
pelo seu curso.
A terceira categoria, “Opção de curso”, incide sobre a possibilidade de usar os
ensinamentos desse curso posteriormente, em outro (curso prioritário – 1ª opção). É na
realidade a primeira opção do estudante, ou seja, é o curso em que o estudante queria
primordialmente ingressar, mas se viu impossibilitado de alguma maneira de realizar.
Estas falas foram principalmente atribuídas aos estudantes do curso de Enfermagem
e Biomedicina que almejavam o curso de Medicina e que, por não conseguir pontos
suficientes para ingressar no curso desejado, frequentavam o que julgavam ser o mais
próximo possível em termos de conteúdo e prática. “...Eu, como falei, faço enfermagem
para passar meu tempo, eu não quero enfermagem”, “Eu quero fazer Medicina, só que
eu não me vejo fazendo cursinhos e gastando para conseguir. Eu acho que eu posso fazer
uma faculdade, terminar, sou nova e ter um trabalho garantido e continuar seguindo meu
sonho, porque um dia eu vou conseguir”, “Eu também não tinha tanta certeza quanto à
Biomedicina, eu queria Medicina também, mas aí eu fiz o vestibular e não passei nem
para Biomedicina nem para Medicina, e passei para coisas nada a ver, como Química,
História..”. Fica evidente nestes casos o quanto o conhecimento prévio e o estudo anterior
determinaram suas escolhas e possibilidades de atuação (Vasconcelos, Almeida, &
Monteiro, 2009), podendo levar a frustrações com o curso.
Na quarta categoria, estão descritas as expectativas que os estudantes têm no que
diz respeito ao “trote”. Estão ligadas à maneira como esse estudante será recebido em
seu novo curso (medos, curiosidades, rito de passagem...). Para muitos, o trote é visto
como um rito de passagem para o Ensino Superior e o enfrentamento desse evento
pode ser dado de diferentes formas. “...Eu acho que quem não participa do trote, fica
destacado pra sempre”. Alguns estudantes encaram com medo, pois, se trata de uma
recepção carregada de empolgação. “Eu via na televisão sobre os trotes e tinha medo”;
“Eu tinha medo mais da rejeição, a pessoa não me dar o dinheiro, eu ficaria triste”. Muitos
trotes têm recebido rótulos de “violência” ou “bagunça”, e isso podem ser motivo de
preocupação para alguns. Por outro lado, alguns alunos enxergam o trote como uma fase
de integração com os novos colegas, com o ambiente universitário e com o curso como
um todo e, nesse sentido, querem aproveitar ao máximo essa experiência e celebrar esse
acontecimento intensamente. “Eu queria entrar na faculdade só pelo trote, o meu sonho
era entrar na faculdade, pra ter o trote e ir na minha escola, pra pedir dinheiro, todo
120
Aletheia 45, set./dez. 2014
mundo ver, esfregar na cara de todo mundo”, “...Eu gostei bastante, tanto é que a nossa
turma é bem unida”.
O jovem, antes de ingressar na universidade, carrega consigo uma série de esperanças
e vivências únicas, já tem em si seu estilo de vida e muitas vezes não trabalha, vivendo
sob as regras dos pais. Muitas vezes, o trote representa não só a passagem do Ensino
Médio para o Ensino Superior, mas pode ser entendido como um rito de iniciação à vida
adulta. “...Eu acho que quem não participa do trote, fica destacado pra sempre”. Dessa
forma o trote representa um momento de integração e mudanças que irão acompanhar o
estudante ao longo de toda vida (Almeida & Pinho, 2008).
A categoria “Qualidade do corpo docente” relaciona-se à qualidade dos professores
considerando a didática e o conteúdo. Está relacionada com o que os estudantes esperam
dos professores do curso, ou seja, se existem professores famosos, principalmente com
“boa fama”, que sabem transmitir o conhecimento de forma clara, que interagem com
a turma, dentre outras qualidades. “Ih, vou ter aula com fulano...”. Cheguei para ter
aula com fulano, eu pensava ‘Esse era o fulano?’, aí com outro ‘Esse era o fulano?’. Aí
quando você procurava no Lattes, aquele que nem aparecia, era o que dava a melhor
aula”; “Eu tinha uma outra visão de professor, eu fiz alguns projetos fora do vestibular,
eu tinha professores que que eram muito bons, você via, nossa, que coisa linda, coisa
maravilhosa”; “Quando eu escolhi biomédica, eu pensei que eu ia chegar ia ter anatomia,
eu tive sociologia, antropologia, filosofia, eu tive tudo, menos a parte biomédica, eu me
perguntava o que estava fazendo aqui, eu tô em Psicologia, tô em humanas?” Além da
boa didática, outra característica que é bastante visada pelos estudantes é a forma como
o professor lida com a turma e se trabalha de forma integrada, pois assim terá maiores
possibilidades de relacionar o que ensina com o mundo real. “No meu primeiro dia, teve
uma professora que colocou um slide com o que ela não queria, que ela tirava ponto,
o quanto ela tirava com coesão, coerência, quantos pontos ela dava em cada quesito”;
“Cálculo, o melhor era ter aprendido antes e entrar lá já sabendo, porque eles não
ensinam”; “Eles explicam, dão o nome e falam para ir até a Xerox”; “nós vemos em filme,
professor chega na sala, escreve e ‘Se vira!’, sei lá, você tem que saber de tudo. Quando
chega ‘Ó, esse é o tema”; “Era bem legal, mas aí quando cheguei na faculdade, você só
vê o professor jogando matéria, jogando matéria... não está se importando se você está
aprendendo ou não”. Segundo Marin et al. (2013), o espaço educacional é o campo para
lidar com contradições sociais e problematizar a realidade, é esperado que o professor
tenha boa didática e trabalhe de forma integrada com a turma, fazendo ligações entre
o que aparece no mundo real e externo e o que ele ensina. Muitas das práticas e ideias
iniciais dos alunos poderão ser modificadas após o contato com os dados de realidade e
o seu questionamento.
Na categoria sobre “Disciplinas” incidem sobre a qualidade e pertinência do
conteúdo que pode ser transmitido nas disciplinas. A demanda está relacionada com o
interesse do aluno na disciplina e a forma como o professor a ministra. “Claro, há matérias
que não têm nada a ver com a minha área”, “Bom, eu estou no segundo período agora,
até agora eu estou adorando tudo que estou vendo, eu tenho certeza absoluta que é isso
que eu quero”, “De oito matérias que eu tenho num período, eu tenho duas que têm a
ver”. Tem sido bastante difícil lidar com currículos em que determinadas disciplinas são
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121
vistas como pouco úteis para a formação por terem conteúdo diferente da especificidade
do curso. Segundo Souza, Zem-Mascarenhas e Rocha (2005), é fundamental que os
alunos entendam a importância das disciplinas da formação do profissional, sem o que
o rendimento e a participação dos alunos são reduzidos, levando à frustração e a pouca
atribuição de relevância para formação.
A categoria “Infraestrutura” está relacionada com o local onde será realizado o
curso, ou seja, o campus universitário. O estudante espera que exista uma biblioteca
ampla, em que seja possível atender de forma pontual as exigências das disciplinas dos
cursos, oferecendo as bibliografias necessárias para a boa formação e diversos tipos de
referências complementares, além de materiais diversos para leitura e pesquisa e um
espaço amplo para estudo coletivo. “Antes de entrar na xxx, eu ouvia muita coisa da xxx,
as salas não têm ar condicionado, calor infernal, muitas coisas”; “...Dentro da instituição,
todos os livros têm na biblioteca, o professor passa, nós não temos que ficar correndo
atrás, nós pegamos ali. Pode ficar uma semana com a gente, se você não conseguir, pode
ficar mais um tempo, isso é bom”; “Assim, eu não sei como é o andar de vocês, porque
eu tenho um prédio só pra gente, a gente fica com cinco andares só pra gente, cada andar
tem laboratório, uma biblioteca só para a gente, todas as salas têm ar condicionado, lá é
tudo lindo”. Segundo Silva, Tavares, Silva e Silva (2012), a implantação de bibliotecas
universitárias corresponde à missão universitária e dá suporte às atividades educativas
contribuído para melhorar o nível sociocultural dos alunos e da sociedade como um
todo.
A categoria relacionada com a “Aceitação familiar” está relacionada ao que a família
espera dessa profissão escolhida. Diz respeito ao que os pais ou a família esperam com
relação ao curso e à futura profissão. Muitas vezes, é depositada uma grande carga no
estudante universitário para que ele ingresse e permaneça no curso, pois pode existir
uma expectativa da família com relação a isso. “Bom, eu decidi fazer a Psicologia no
finalzinho do meu terceiro ano, porque até lá eu sempre achei que ia fazer direito, meus
pais fizeram direito, então, eu sempre tive essa ideia de ser advogada, fazer concurso,
etc. Mas então eu parei para pensar que não queria fazer direito, decorar o código civil,
eu não quero ter que julgar uma pessoa, aí comecei a pensar no que eu queria fazer, daí
vi que eu gostava de observar o comportamento das pessoas”, “’Você vai para lá? Eu
não vou te sustentar, se for para fazer lá, eu pago uma particular...’. E desde o início, a
minha família não gostava de particular, minha mãe não aceita de jeito nenhum fazer
particular, aí eu cresci com isso, não é?”. Cada família possui crenças próprias, com
isso determinadas profissões podem ser vistas como nobres, ou que trarão mais retorno
financeiro. “Pois é, minha mãe disse ‘Não vai, não vai. Você só está falando isso porque
está com medo de não passar para Direito, por isso você quer Psicologia”. Mesmo que
a realidade contrarie as expectativas, o curso superior continua a receber um pesado
investimento dos alunos e de seus familiares, independentemente do preço a ser pago
pelo percurso, pois os projetos de vida são fundados na aposta feita na carreira de nível
superior. Ao ingressar no campo do trabalho, o estudante está supostamente capacitado
para desempenhar aquela função. O diploma é uma prova dessa competência, é uma
indicação de diferenciação entre os que o possuem ou não, fato este que gera mais
oportunidades. Porém, a formação não necessariamente significa emprego garantido,
122
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então o estudante só sentirá a real importância do diploma quando fizer seu ingresso ou
reingresso no mercado de trabalho. Além disso, muitas vezes, algum membro da família
teve vontade de seguir nessa profissão e, por algum motivo, não conseguiu realizar essa
meta. Com isso, a esperança desse familiar é ter alguém próximo como uma forma de
realizar seu objetivo de forma indireta. “Eu tive esse problema, meu pai é empresário,
minha mãe é consultora. Aí eles viam os planos do passado dele, assim, querendo projetar
em mim, meu pai tinha sonho de fazer engenharia elétrica. Aí eu tive nota do ENEM para
xxx, aí meu pai queria porque queria que eu fizesse engenharia elétrica, eu disse que não
ia fazer, que não ia ser feliz”. De acordo com Santos (2005), a família deve ser levada
em consideração como um dos motivos possíveis na escolha do curso e da continuidade
no mesmo. Além das ideias pessoais do estudante e do conhecimento que possui sobre o
curso escolhido, a família pode exercer bastante pressão, principalmente quando existe
algum desejo por parte dos pais de que o filho esteja cursando algo que foi fortemente
visado por eles durante a vida.
Ainda segundo Santos (2005), os padrões aprendidos com os pais são usados durante
a vida. De acordo com as vivências, o indivíduo vai discriminar aquilo que considera
mais ou menos adequado dentre esses comportamentos e irá utilizá-los de acordo com a
situação. Dessa forma, as escolhas podem ser feitas também durante a vida acadêmica,
fato que irá nortear os comportamentos e as práticas do estudante no curso. De acordo com
Farias, Nascimento, Graça e Baptista (2011), os alunos levam para os cursos de formação
inicial crenças preestabelecidas, o que pode gerar conflito entre as expectativas iniciais
e o que é aprendido durante o curso de graduação. É importante que o curso ofereça
estímulos que desenvolvam tanto as concepções positivas sobre a teoria apresentada
nas disciplinas do curso quanto as práticas. Desse modo, diminui-se a probabilidade de
desistência do mesmo e aumenta a confiança do estudante.
Analisando as perspectivas dos estudantes neste estudo, pode-se observar que a
maior parte delas está relacionada com crenças anteriores a respeito daquele curso e/ou
profissão. Essas crenças, geralmente, são construídas ao longo da vida, por meio dos
pensamentos sobre si, sobre a influência familiar, dos amigos ou mesmo de pessoas
próximas. Uma ideia é formada e fixada de maneira rígida e muitas vezes o contato
com dados de realidade que o curso proporciona pode levar a uma dissonância entre o
que era aguardado e o que realmente ocorre. Isso pode levar ao desânimo com relação à
continuação no curso. Por outro lado, nem sempre a suposição inicial se desfaz totalmente.
Com o tempo, algumas delas podem apresentar determinado grau de similaridade com
o que lhe é apresentado na prática e, em um menor número de vezes, a realidade pode
superar as expectativas iniciais. Dessa forma, o estudante terá que adequar suas concepções
de acordo com as possibilidades oferecidas e tirar o melhor proveito disso para sua
permanência e seu aproveitamento acadêmico.
Considerações finais
O objetivo deste estudo foi o de conhecer as expectativas dos estudantes de Ensino
Superior. Foram identificadas diversas categorias que mostraram desejos de longo prazo
que um profissional da área escolhida pode ter. Em alguns casos, essas expectativas
Aletheia 45, set./dez. 2014
123
possuem raízes familiares, ou seja, é uma expectativa relacionada, primordialmente, com
o desejo da família. Isso pôde ser evidenciado nas falas dos estudantes, que puderam ser
categorizadas em: “Honorários a serem recebidos”, “Realização pessoal e profissional”
e “Aceitação familiar”.
Pode-se perceber também que as expectativas mais imediatas têm a ver com o que
acontece dentro da instituição universitária. Sendo assim, as prospecções se apresentam
em um viés que incide mais sobre o espaço físico da instituição e as relações que
podem ocorrer durante o curso. Dessa forma, o estudante espera algo relacionado com
a infraestrutura (laboratórios com aparelhos atuais e funcionando, biblioteca completa,
espaço para o acesso a Internet, quadra, dentre outros), assim como espera ser bem recebido
por colegas e professores. Possui diversas ideias e crenças a respeito da forma como será
recebido (o trote). Além disso, o estudante esperar algo relacionado às disciplinas e ao
que será aprendido e decidir que caminho quer traçar a partir disso. Esses fatos podem ser
observados nas falas das categorias “trote”, “qualidade do corpo docente”, “disciplinas”,
“infraestrutura” e “segunda opção de curso”.
Como limitação, pode-se apontar o fato de que nem todos os participantes
estavam no primeiro ano do curso de graduação, o que pode ter levado os estudantes a
expressar não só expectativas acadêmicas, mas também frustrações e comportamentos
realizados e já vivenciados no Ensino Superior. Esse estudo permitiu conhecer os desejos
e prospecções dos estudantes que estão associados, conjuntamente, ao desempenho e
à permanência acadêmica. No futuro, podem ser propostas estratégias de intervenção
e promoção para um melhor desenvolvimento dos estudantes universitários em sua
trajetória acadêmica.
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_____________________________
Recebido em março de 2015
Aceito em agosto de 2015
Pedro Fabião Moreno: Graduando em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Adriana Benevides Soares: Doutora em Psicologia Cognitiva – Universidade de Paris XI – Pós-Doutora pela
UFSCar – Professora Titular da Universidade Salgado de Oliveira e Professora Associada na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
127
Aletheia 45, p.128-138, set./dez. 2014
Imagem corporal, atividade física e estado nutricional
em adolescentes no sul do Brasil
Carine Garcia Daniel
Gehysa Guimarães
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts
Sofia Rieth
Rafael Reimann Baptista
Maria Helena Vianna Metello Jacob
Resumo: Este estudo objetivou descrever a frequência da prática de exercícios e o tempo gasto em
atividades sedentárias, avaliar o índice de massa corporal (IMC) e correlacioná-lo com a percepção
da imagem corporal por meio do Body Shape Questionnaire (BSQ). Foram coletados dados de
336 escolares de Gravataí/RS. Foi encontrada uma correlação significativa entre BSQ e IMC (r=
0,39 e p<0,01). Nas adolescentes, o IMC foi de 20.43±3.56 kg/m² e o BSQ de 82.30±31.37. Nos
adolescentes, o IMC foi 20.31±3.82 kg/m² e o BSQ de 53.10±19.25. Houve maior preocupação
das adolescentes em relação à imagem corporal e menor frequência e tempo de prática de atividade
física quando comparado aos adolescentes. Mais de 80% dos estudantes realiza deslocamento ativo
para a escola. Os resultados sugerem que as adolescentes são mais sedentárias e preocupadas com
a imagem corporal do que os adolescentes.
Palavras-chave: Imagem corporal, atividade física, adolescente.
Body image, physical activity and nutritional status in adolescents
in southern Brazil
Abstract:This study aimed to describe the frequency of exercise and time spent in sedentary
activities, evaluate the body mass index (BMI) and correlate it with the perception of body image
by Body Shape Questionnaire (BSQ). Data were collected from 336 students from Gravataí/RS.
A significant correlation between BSQ and BMI (r = 0.39 P<0.01) was found. Teenage girls’ BMI
was 20.43±3.56 kg/m² and the BSQ result was 82.30±31.37. BMI of teenage boys was 20.31±3.82
kg/m² and the BSQ was 53.10±19.25. There was a greater concern for adolescent girls regarding
body image and lower frequency and time physical activity compared to adolescent boys. More
than 80% of the sample performs active commuting to school. The results suggest that teenage
girls are more sedentary and concerned with body image than teenage boys.
Keywords: Body image, physical activity, adolescent.
Introdução
A adolescência é a fase da vida na qual o indivíduo vivencia mudanças
biopsicossociais, buscando sua identidade, independência, afetividade e elaboração do
seu projeto de vida (Olds & Papalia, 2013). Este conjunto de fatores pode influenciar os
conceitos de imagem corporal e os comportamentos relacionados à promoção da saúde
(Malta, Andreazzi, Oliveira-Campos, Andrade, Sá, & Moura , 2014). É um período em
que predomina a preocupação com a autoimagem e como essa imagem é percebida pelos
outros (Holmqvist & Frisén, 2012). Não raro, o adolescente recorre a outras alternativas
mais viáveis economicamente e de mais rápido acesso do que a cirurgia plástica, como
dietas de extrema restrição calórica, uso de substâncias exógenas (anfetaminas, diuréticos,
laxantes) e exercícios físicos a fim de minimizar a preocupação com a imagem corporal
(Damasceno, Schubert, Oliveira, Sonoo, Vieira, & Vieira, 2011). Em 2013, nosso país
foi o líder em número de cirurgias plásticas realizadas no mundo, superando os Estados
Unidos. O mais preocupante é que cerca de 10% dos indivíduos brasileiros submetidos
a procedimentos cirúrgicos estéticos têm entre 14 e 18 anos (Sociedade Brasileira de
Cirurgia Plástica, 2013).
Uma maior ou menor prevalência de insatisfação com a imagem corporal pode estar
relacionada à atividade física. A prática de exercícios físicos, pelo menos três vezes na
semana, pode ter efeitos positivos sobre a afetividade e a insatisfação corporal (Lepage &
Crowther, 2010). Tem sido encontrada associação entre a insatisfação corporal e baixos
níveis de atividade física (El Ansari, Dibba, & Stock 2014).
A crescente diminuição dos períodos de educação física escolar, o aumento do
tempo gasto na televisão, internet e videogame e a redução das opções ativas de lazer
são fatores causais para os baixos níveis de atividade física e, consequentemente, para
o aumento do índice de massa corporal (IMC) em crianças e adolescentes (Hallal,
Andersen, Bull, Guthold, Haskell, & Ekelund, 2012). A probabilidade dos jovens com
elevado IMC apresentarem sobrepeso ou obesidade ao atingir a terceira década de vida
aumenta significativamente à medida que a idade avança (Guo & Chumlea, 1999; Ramires,
Menezes, Oliveira, Oliveira, Temoteo, & Longo-Silva, 2014). Estudo qualitativo com
profissionais da atenção primária, secundária e terciária aponta que a dinâmica familiar
influencia fortemente no sobrepeso e na obesidade infantil e enfatiza a necessidade de
intervenção nos hábitos e na dinâmica familiares (Dornelles & Anton, 2013).
O aumento da capacidade cardiovascular e da força óssea estão associados à
prática da atividade física na adolescência (Ortega, Ruiz, Hurtig-Wennlof, & Sjostrom,
2008, Tan, Macdonald, Lim, Nettlefold, Gabel, & Ashe,2014), enquanto que a síndrome
metabólica e a resistência à insulina (Fedewa, Gist, Evans, & Dishman, 2014; Janssen,
Wong, Colley, & Tremblay, 2013) estão inversamente relacionados a esse hábito. Menor
risco de depressão e de ideação suicida estão entre os efeitos psicológicos benéficos
da prática da atividade física (Taliaferro, Rienzo, Miller, Pigg, & Dodd, 2008; Brown,
Pearson, Braithwaite, Brown, & Biddle, 2013). Além disso, promove a sociabilidade,
melhora o humor e o sono e ajuda na manutenção do peso.
Dado que os fatores de risco modificáveis associados ao estilo de vida, incluindo
a inatividade física e o excesso de peso, são responsáveis por grande parte dos óbitos
mundiais (Alwan, Maclean, Riley, d’Espaignet, Mathers, & Stevens, 2010), o diagnóstico
precoce desses fatores associados à percepção da imagem corporal é fundamental para o
planejamento de estratégias para a promoção da saúde. Sendo assim, este estudo objetivou
correlacionar a percepção da imagem corporal com o IMC, caracterizar o nível de atividade
física e o tempo em atividades sedentárias, e comparar essas variáveis entre jovens
adolescentes da sétima série da rede pública de ensino municipal de Gravataí/RS.
Aletheia 45, set./dez. 2014
129
Métodos
Participaram deste estudo 336 escolares (169 do sexo feminino com idade média
de 13.87 ± 1.01 anos e 167 do sexo masculino com idade média de 14.13 ± 1.24 anos)
da rede pública municipal do ensino fundamental no ano de 2007, da região Barro
Vermelho, Gravataí/RS. O número de escolares foi obtido por meio de amostragem
estratificada por série. Em cada série, foram sorteadas as turmas necessárias para a
obtenção do número estipulado de alunos. Considerando os critérios de exclusão, idade
inferior a seis anos e superior a dezessete anos, presença de gravidez ou problemas de
saúde que interferissem nas medidas antropométricas, foram retirados da amostra uma
adolescente grávida, dois escolares que faziam uso de gesso e um com nanismo.
Foram utilizados dois questionários e uma ficha de avaliação antropométrica.
O primeiro coletou dados sobre a frequência, duração e tipo de atividades físicas
realizadas diariamente pelos adolescentes envolvendo prática de esportes, exercícios
físicos, deslocamento ativo (bicicleta ou caminhada) e tempo gasto em atividades
sedentárias como assistir TV, jogar videogame ou usar o computador (questionário
baseado no IPAQ) (Matsudo, Araújo, Matsudo, Andrade, Andrade, & Oliveira,
2001).
O segundo foi o Body Shape Questionnaire-BSQ (Cooper, Taylor, Cooper, &
Fairburn, 1987), que é constituído por 34 itens, já validado para a população brasileira
(Di Pietro & Silveira, 2009). Este questionário autoaplicável avalia preocupações com
o corpo e a forma corporal nas últimas quatro semanas. As opções de resposta variam
entre 0 e 6 (nunca, raramente, às vezes, frequentemente, muito frequentemente e
sempre), com as pontuações mais elevadas a corresponderem a uma maior insatisfação
com a imagem corporal. A partir da pontuação obtida, os indivíduos são classificados
em quatro grupos: 1) não preocupados com a imagem corporal (< 81 pontos); 2)
levemente preocupados (81 a 110 pontos); 3) moderadamente preocupados (111 a
140 pontos) e 4) extremamente preocupados (> 140 pontos).
A ficha antropométrica coletou dados referentes ao peso e altura para o cálculo do
IMC. Para tanto, foram utilizados uma balança digital Seca, com capacidade de 150 kg
e precisão de 50 gramas e uma fita antropométrica metálica, com intervalo de 0,1 cm
aferida por empresa credenciada pelo INMETRO. Para a aferição do peso, os alunos
ficavam descalços, sem acessórios e com roupas leves, e foram orientados a ficar no
centro da plataforma da balança em pé com os pés paralelos e braços estendidos ao
longo do corpo. Para medição da estatura, utilizou-se uma base flexível marcadora,
tipo banner, fixado na parede plana sem ondulações. Os indivíduos foram orientados
a retirar adornos da cabeça que pudessem interferir na medida, ficassem posicionados
de costas e encostados na parede, cabeça voltada para frente, pés paralelos com os
calcanhares. O esquadro era colocado encostado na parede acima da cabeça do aluno,
quando o esquadro estava no local correto, era realizada a marcação e o indivíduo
era retirado. O entrevistador utilizava a fita antropométrica para medição de baixo
para cima e falava para o entrevistador que estava anotando na ficha de dados. Por
meio da massa corporal e estatura foi avaliado o estado nutricional, utilizando o
cálculo do IMC.
130
Aletheia 45, set./dez. 2014
O tratamento estatístico foi realizado no programa SPSS versão 12.0 e composto
por uma abordagem descritiva do estado nutricional, frequência de prática de
atividade física e tempo em atividades sedentárias, com resultados expressos como
média ± desvio padrão ou frequências em percentual. Também foi realizada análise
comparativa através do teste t de Student dos valores médios do tempo de prática de
atividade física entre os indivíduos do sexo masculino e feminino e correlação de
Pearson para avaliar a associação entre IMC e BSQ, ambos com nível de significância
de 5%.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade
Luterana do Brasil (n. 2005-0144), sendo garantidos aos entrevistados os aspectos
éticos, conforme determina a resolução 196/96 (Brasil, 1996). Obtivemos o
consentimento informado mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE) dos responsáveis pelos adolescentes.
Resultados
A idade dos adolescentes estudados é bastante homogênea, não havendo
diferença significativa (Tabela 1). Os resultados de massa corporal dos indivíduos do
sexo feminino foram 51.47 ± 10.52 kg, de estatura 158.39 ± 6.15 cm, gerando a média
do IMC 20.43 ± 3.56 kg/m² (classificado como normal ou eutrófico). Para os do sexo
masculino, os resultados médios de IMC foram 20.31 ± 3.82 kg/m² (médias 54.22 ±
13.79 kg e estatura 162.58 ± 10.14 cm) (classificado como normal ou eutrófico). Os
dados não foram diferentes estatisticamente.
Em relação ao BSQ, os adolescentes do sexo feminino tiveram a média de escore
de 82.30 ± 31.37, classificadas como “levemente preocupadas” com a imagem corporal.
A média do BSQ foi de 53.10 ± 19.25 para os indivíduos do sexo masculino, colocandoos como “não preocupados” com a imagem corporal, com diferença estatística
significativa (p≤0.01). Os adolescentes, em média, realizam atividades físicas com
mais frequência do que as adolescentes, 3.75 ± 2.26 versus 2.49 ± 2.10 dias/semana,
respectivamente. Houve diferença significativa estatisticamente (Tabela 1).
No que diz respeito ao tempo gasto em atividades sedentárias, como assistir TV,
jogar videogame ou usar o computador, os adolescentes do sexo masculino referiram
gastar em média 3.50 ± 1.93 e as adolescentes 3.37 ± 1.74 horas/dia nestas atividades.
Não foram encontradas diferenças significativas entre os sexos (p=0.53).
Os adolescentes do sexo masculino praticam mais atividades físicas, de uma a
três horas de atividade física/dia (63.5%), enquanto que entre elas apenas 36.1%, com
diferença estatística significativa ((p≤0.01). Um grande percentual dos indivíduos
estudados (80.1% do sexo masculino e 82.2% do sexo feminino) referiu ir a pé ou de
bicicleta para a escola. Tal deslocamento não era superior a 15 minutos. Não houve
diferença estatisticamente significativa entre os sexos (p=0.67).
Aletheia 45, set./dez. 2014
131
Tabela 1 – Variáveis Idade, BSQ, IMC, Frequência de AF, Atividades Sedentárias, AF e Deslocamento
a pé ou bicicleta para a escola, de acordo com o sexo dos escolares.
Adolescentes
Idade
BSQ
IMC
Frequência
AF (dias/sem)
Atividades Sedentárias (horas/dia)
AF (1 a 3 horas/dia)
Deslocamento a pé ou bicicleta
Sexo Feminino (n=169)
13.87±1.01
82.30±31.37
20.43±3.56
2.49±2.1
3.37±1.74
36.1%(n=61)
82.2%(n=139)
Sexo Masculino (n=167)
14.13±1.24 p=0.06
53.10±19.25 p≤0.01*
20.31±3.82 p=0.76
3.75±2.26
p≤0.01*
3.50±1.93 p=0.53
63.5% (n=106) p≤0.01*
80.1% (n=135) p=0.67
BSQ: Body Shape Questionnaire; IMC: Índice de Massa Corporal; AF: Atividade Física;
* p≤0.01: estatisticamente significativo.
Na figura 1, apresentamos a correlação positiva, estatisticamente significativa, entre
o BSQ e o IMC (r=0.39 e p≤0.01), encontrada na amostra estudada.
Discussão
A imagem corporal, avaliada neste estudo por intermédio do BSQ, sugere que
as adolescentes do sexo feminino estão muito preocupadas com sua imagem corporal,
enquanto que os adolescentes do sexo masculino expressam um pequeno grau de
insatisfação. Esses achados coincidem com os de outros estudos, nos quais há a
prevalência de nível de insatisfação da imagem corporal em escolares do sexo feminino
(Branco, Hilário, & Cintra, 2006; Petroski, Pelegrini, & Glaner, 2012; Lima, 2013, El
Ansari et al., 2014). Nossos dados sugerem que as adolescentes do sexo feminino se
preocupam mais precocemente com a forma de seu corpo, o que pode estar associado
ao fato de que a maturação das adolescentes também é mais precoce em relação ao sexo
132
Aletheia 45, set./dez. 2014
masculino. Diferentemente, outros estudos (Fidelix, Silva, Pelegrini, Silva, & Petroski,
2011; Pelegrini & Petroski, 2010) apontaram que os adolescentes do sexo masculino
apresentaram maior insatisfação com a imagem corporal. Estudo de Malta et al., (2014),
que comparou dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2009 e
2012, não encontrou diferença significativa na percepção da imagem corporal entre os
sexos, em ambas edições. Este quadro controverso gera evidências para orientar novos
trabalhos acerca da imagem corporal e das inúmeras variáveis a ela relacionadas nessa
importante fase. Compreender a percepção da imagem corporal foi o objetivo de um
estudo qualitativo conduzido com grupos focais com quase uma centena de adolescentes
cariocas. A partir da análise das narrativas, os pesquisadores apontaram que o padrão de
corpo perfeito propagado pela mídia é considerado “inatingível”, influencia a autoimagem
e, por conseguinte, a autoestima dos adolescentes. Este padrão de imagem corporal irreal
provoca sofrimento e discriminação nos sujeitos que não se sentem atraentes (Silva,
Taquette, & Coutinho, 2014).
Junto à maior preocupação das adolescentes em relação à imagem corporal, está
a menor frequência e tempo de prática de atividade física em relação aos adolescentes
do sexo masculino. Entretanto, estudo realizado em 2009, mostrou prevalência de
25,4% de inatividade física em adolescentes entre 14 e 18 anos, não havendo diferença
estatística entre os sexos. Os fatores associados à inatividade física de adolescentes do
sexo feminino foram a permanência por mais de 2h/dia assistindo TV e baixo IMC
(Pelegrini & Petroski, 2009). Contudo, o tempo de prática de atividade física foi muito
maior no sexo masculino (63,1% versus 36,1%). Corroborando nossos achados, em
diferentes estudos (Oehlschlaeger, Pinheiro, Horta, Gelatti, & San’tana, 2004; Silva et
al., 2005; Hallal, Bertoldi, Gonçalves, & Victora, 2006; Farias Jr., Lopes, Mota, & Hallal,
2012), o percentual de sedentários é maior nos adolescentes do sexo feminino. Esses
também detectaram maior tempo de prática diária de atividade física no sexo masculino.
Neste último estudo (Farias Jr et al., 2012), os pesquisadores perceberam que as mães
direcionavam com maior imposição para as filhas o espaço da casa ou da vizinhança,
enquanto os indivíduos do sexo masculino tinham a rua como um espaço para a prática
de atividade física. Com isso, as adolescentes estiveram em desvantagem em relação aos
indivíduos do sexo masculino para a prática de atividade física, além do que, às meninas
são atribuídas funções relativas ao lar e à família. A maioria dos adolescentes de outro
estudo (Dyremyhr, Diaz, & Meland, 2014) revelou praticar não mais do que uma hora por
semana de atividade física, e os percentuais entre os sexos foram bastante próximos.
Mais de 80% dos adolescentes do mundo todo, entre 13 e 15 anos, não praticam
as recomendações para atividades físicas (Hallal et al., 2012), tal como os dados de
nosso estudo. Sugere-se que o adolescente pratique uma hora ou mais, diariamente, de
atividades físicas moderadas a vigorosas, na maioria dos dias da semana, com exercícios
de resistência muscular/força e alongamento por pelo menos três dias por semana (OMS,
2010).
As médias do IMC dos escolares reveladas no presente estudo são consideradas
normais (eutróficos) para ambos os sexos e faixa etária. Diferentemente, estudo realizado
em 2014 (Ferrari, Ferrari, e Matsudo, 2014), apresentou uma tendência secular de 20
anos positiva para a obesidade e negativa para o excesso de peso. Já outro estudo,
Aletheia 45, set./dez. 2014
133
corroborando nossos dados, apontou média de IMC de 18,6 ± 3,6 em adolescentes entre
10 e 12 anos (Hallal et al., 2006). Bastante semelhante foi pesquisa realizada no Rio de
Janeiro, que apresentou média de IMC 19.7 ± 2.8 e 20.2 ± 2.9 para os sexos masculino e
feminino, respectivamente (Silva & Malina, 2000). O IMC é uma medida que tem sido
recomendada pela OMS para a avaliação do estado nutricional de crianças e adolescentes,
mostrando-se fundamental na luta contra o aumento do excesso de peso e obesidade nos
quatro cantos do planeta.
A OMS (2010) sugere que crianças e adolescentes não passem mais de duas horas
assistindo TV, uma vez que tal prática tem pouquíssimo gasto energético e está fortemente
associada à ingestão de comida de alta composição calórica e refrigerantes. A população
deste estudo apresentou média de mais de três horas de atividades sedentárias, estando
em desacordo com o recomendado. Nas duas últimas edições do PeNSE, este dado está
muito elevado, chegando a 80% da amostra que assiste duas horas ou mais de TV (Malta
et al., 2014), semelhante aos nossos achados.
Estudo realizado com crianças de Pelotas/RS encontrou uma média de tempo
sedentário de 3.3 ± 2.0 horas/dia, corroborando os dados apresentados (Hallal et al.,
2006). Em outra pesquisa semelhante, realizada em Niterói/RJ, os dados foram bem
mais elevados, em média 4.4 e 4.9 horas/dia, gastos em atividades sedentárias pelos
adolescentes do sexo masculino e feminino, respectivamente (Silva & Malina, 2000).
Nossos resultados também não apresentaram diferença estatisticamente significativa
entre os sexos. A partir deste conjunto de dados, é possível observar uma tendência de
aumento do sedentarismo entre os adolescentes, muito pelo uso exacerbado das novas
tecnologias nas horas de lazer e também pela escassez de espaços seguros para a prática
de atividade física.
No presente estudo, o tempo máximo de deslocamento ativo para a escola foi de
15 minutos para 80.1% dos escolares do sexo masculino e 82.2% do sexo feminino
avaliados, sem diferença estatística significativa entre os sexos. Os dados aqui apresentados
corroboram o estudo de Hallal et al., (2006), que observou um tempo médio de
deslocamento ativo para a escola (caminhada ou bicicleta) de 22 minutos em 72.8% dos
adolescentes. A caminhada e o ciclismo são considerados uma boa forma de promoção
de saúde por meio da atividade física e, mesmo que pequeno, o tempo de deslocamento
diário pode estar promovendo a manutenção do IMC normal encontrado nos escolares
de ambos os sexos.
Nossos dados apontaram uma correlação positiva entre imagem corporal e IMC. Isto
sugere que, quanto maior o IMC do adolescente, maior a tendência do mesmo estar mais
preocupado com sua imagem corporal. Resultados semelhantes foram encontrados num
estudo realizado com universitárias, e evidenciou no sexo masculino uma subestimação da
imagem corporal independente do seu IMC, dificultando ações de prevenção de doenças
crônico-degenerativas associadas à obesidade e ao sobrepeso (Kakeshita & Almeida,
2006). Em estudo realizado com mães e filhas Sul-Africanas que comparou os resultados
entre grupos étnicos (brancos, multiétnico e negros), foi encontrada uma correlação
positiva entre IMC e BSQ, indo ao encontro de nosso estudo (Mciza et al., 2005).
Nosso estudo apresenta algumas limitações. A determinação do IMC, vastamente
utilizada para verificar o estado nutricional, tem baixo custo e alta aplicabilidade.
134
Aletheia 45, set./dez. 2014
Entretanto, essa medida não mostra a distribuição de gordura, sugerindo que seja utilizado
juntamente com a relação cintura quadril (RCQ) que avalia a quantidade de gordura
acumulada na região central (Freitas, Caiaffa, César, Faria, Nascimento, & Coelho,
2007) e pode melhor avaliar o biótipo do indivíduo. Também se pode dizer que, sendo a
amostra da rede escolar pública, seus dados talvez não possam ser extrapolados para a
rede privada nem para adolescentes não escolares.
Conclusão
Estado nutricional, imagem corporal e atividade física são variáveis que se
correlacionam fortemente na adolescência. O equilíbrio entre elas é essencial para não
levar a problemas de saúde decorrentes da baixa autoestima. De acordo com os achados
deste estudo, a prevalência de insatisfação com a imagem corporal é mais presente nas
adolescentes, semelhante a outros estudos com escolares. Junto a isso, está a menor
frequência e o menor tempo de prática de atividade física em relação aos adolescentes
do sexo masculino. Provavelmente, as adolescentes estiveram em desvantagem ou sem
incentivo para a prática de atividade física, uma vez que lhes são atribuídas funções
relativas ao lar e à família, e por serem mais “delicadas”.
Mais de 80% da amostra estudada realiza em até 15 minutos seu deslocamento
ativo para a escola. Mesmo não sendo o tempo de atividade física recomendado pela
OMS, tal movimento estimula um hábito de promoção de saúde entre os adolescentes.
A correlação positiva entre imagem corporal e IMC encontrada no estudo sugere que há
uma tendência favorável para a promoção da saúde na amostra pesquisada.
Este estudo é importante para a tomada de decisões e definição de estratégias na
área de saúde do escolar. Neste sentido, recomenda-se que educadores, profissionais da
saúde e familiares fiquem atentos para a questão da satisfação da imagem corporal entre
os adolescentes e que a prática regular de atividades físicas seja um bom hábito nesta fase
tão importante do desenvolvimento humano, contribuindo para evitar possíveis distúrbios
alimentares e/ou de comportamento.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em maio de 2015
Carine Garcia Daniel: Bacharel em Educação Física. Mestre em Saúde Coletiva.
Gehysa Guimarães: Socióloga, Doutora em Educação, Professora do PPG Promoção da Saúde ULBRA.
Denise Ganzo Aerts: Médica, Doutora em Medicina, Professora do PPG Promoção da Saúde ULBRA.
Sofia Rieth: Acadêmica de Psicologia da ULBRA, Bolsista do PPG Promoção da Saúde ULBRA.
Rafael Reimann Baptista: Educador Físico, Professor PUC/RS.
Maria Helena Vianna Metello Jacob: Educadora Física, PhD em Fisiologia Humana, Professora do PPG
Promoção da Saúde ULBRA.
Endereço para contato: [email protected]
138
Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, p.139-155, set./dez. 2014
Apoio matricial em saúde mental na percepção
dos profissionais especialistas
Maria Rosalia Gerhardt Neto
Tássita Stefani Selau Medina
Alice Hirdes
Resumo: Este estudo teve como objetivo investigar o apoio matricial em saúde mental na Atenção
Primária à Saúde, na perspectiva dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial. Foi
desenvolvido em um município da região metropolitana de Porto Alegre, RS, Brasil. Trata-se
de um estudo descritivo, exploratório, de abordagem qualitativa, realizado com os profissionais
especialistas envolvidos no matriciamento em saúde mental. Na análise dos dados foi percorrido o
caminho metodológico: ordenação, classificação e análise final. Os resultados apontam a articulação
Centro de Atenção Psicossocial e Atenção Primária a partir do matriciamento; o território como
espaço de coprodução de saúde; a clínica ampliada transcendendo o modelo centrado na doença
e as dificuldades encontradas no processo. Conclui-se que o matriciamento é uma ferramenta que
possibilita a inserção da saúde mental na Atenção Primária, qualificando a integralidade do cuidado,
a corresponsabilização e a humanização da atenção.
Palavras-chave: Saúde mental, descentralização, atenção primária à saúde.
Matrix support in mental health: Building a new paradigm
Abstract: This study aimed at investigating matrix-based strategies in mental health in Primary
Health Care from the perspective of professionals who work in a Psychosocial Care Center. It was
developed in a city located in Greater Porto Alegre, RS, Brazil. It is a descriptive and exploratory
qualitative study which was carried out with the professionals who work on matrix-based strategies
in mental health. Data analysis comprised three steps: ordination, classification and final analysis.
Results show that there is a connection between Psychosocial Care Center and primary care based on
the matrix-based strategies; the place becomes a space for health co-production; and the broadened
clinic goes beyond the model which focuses on illnesses and difficulties of the process. Therefore,
matrix-based strategies are a tool that leads to the insertion of mental health in primary care, thus,
it qualifies the integrality of care, co-responsibility and humanization of care.
Keywords: Mental health, decentralization, primary health care.
Introdução
No contexto mundial, organismos internacionais e documentos da Organização
Mundial de Saúde têm defendido a inclusão das ações de saúde mental na Atenção Primária
à Saúde (WHO/WONCA, 2008; World Health Organization, 2013a). Na America Latina,
o Chile protagonizou uma experiência pioneira de descentralização em saúde mental na
Atenção Primária à Saúde (APS), mediante a capacitação dos profissionais generalistas
da APS (Minoletti, Rojas, & Horvitz-Lennon, 2012).
No Brasil, a reorientação do modelo assistencial em saúde mental foi fortemente
influenciado e se fundamenta na experiência italiana, impulsionado por movimentos que
emergem ao final da década de 70, no contexto da democratização do país. A Reforma
Psiquiátrica brasileira é considerada “um processo histórico de formulação crítica e prática
que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de
transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria” (Amarante, 2008).
Embora contemporânea ao processo de Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica
segue uma história própria, conservando alguns dos princípios e diretrizes que orientam
a Reforma Sanitária, em especial a universalidade, a integralidade, a descentralização
dos serviços e a participação comunitária. Ao longo de sua progressão, observa-se a
intensificação intercalada com períodos de lentificação dos esforços na perspectiva de
resgatar o sentido original, sobretudo no que tange à implementação de uma rede integrada
de assistência ao portador de sofrimento psíquico (Nunes, Jucá, & Valentim, 2007).
Para a superação das práticas fragmentadas e burocratizadas em saúde, Campos
(1999) propôs os arranjos organizacionais e metodológicos apoio matricial e equipe
de referência. “O apoio matricial tem uma dimensão de suporte técnico-pedagógico,
pressupõe apoio educativo para a equipe de referência e ações realizadas conjuntamente
com ela” (Campos, Figueiredo, Pereira Júnior, & Castro, 2014. Especificamente no campo
da saúde mental possibilita a descentralização das ações no território, a capacitação das
equipes de referência, a interdisciplinaridade, a retaguarda especializada, modificando a
lógica do sistema de referência e contrarreferência.
Nesse sentido, as equipes de APS, em razão de estarem próximas às famílias e
à comunidade, constituem um recurso estratégico para o enfrentamento de problemas
importantes de saúde pública, como os agravos decorrentes do uso prejudicial de álcool
e outras drogas, bem como de diversas outras formas de sofrimento psíquico. Vinculado
a toda e qualquer doença há um componente de sofrimento subjetivo que, em alguns
casos, atua como impasse à adesão a práticas preventivas ou de vida mais saudável. Nesse
sentido, pode-se dizer que todo problema de saúde é, também, de saúde mental e, que
toda saúde mental é produção de saúde. Para tanto, será sempre necessária a incorporação
da saúde mental na Atenção Primária (Brasil, 2005).
Buscando estreitar esses laços, o Ministério da Saúde, de acordo com a atual política
de saúde mental, define e estabelece o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) que são considerados dispositivos estratégicos territorializados. Devem estar
inscritos no espaço de convívio social daqueles usuários que os frequentam. Os CAPS
assumem o papel de organizadores dentro da rede de atenção à saúde mental e devem
integrar-se às equipes de Atenção Primária, oferecendo suporte e capacitação que visem
à adequação da assistência ao sujeito portador de transtorno psíquico (Brasil, 2002).
Investimentos em saúde mental na Atenção Primária são importantes, mas não são
susceptíveis de serem mantidos, a menos que sejam precedidos ou acompanhados pelo
desenvolvimento dos serviços comunitários de saúde mental, para permitir a formação,
a supervisão e o apoio contínuo para profissionais dos cuidados primários (Saraceno et
al., 2007). No Brasil, ainda existe uma grande lacuna entre as diretrizes propostas pela
política de saúde mental e a realidade concreta, sobretudo no que diz respeito à clínica de
saúde mental. A falta de familiarização com o universo de sofrimento psíquico constitui-se
como um dos principais limitantes das ações de saúde mental no nível primário (Nunes
et al., 2007).
140
Aletheia 45, set./dez. 2014
A saúde mental precisa ser reconhecida como um componente integral da prática
em atenção primária e secundária. Além disso, os trabalhadores de cuidados primários
de saúde precisam ser treinados no reconhecimento e tratamento de transtornos mentais,
mediante apoio e supervisão adequados (Prince et al., 2007). Assim, a partir de uma
experiência pioneira de descentralização e apoio matricial em saúde mental no Rio Grande
do Sul, algumas questões nortearam este estudo: Como ocorre a operacionalização do
apoio matricial na APS? Que ações são desenvolvidas para a consolidação da saúde mental
na Atenção Primária? Essas transcendem o modelo da doença e se configuram em uma
clínica ampliada? Quais a dificuldades vivenciadas pelos apoiadores nesse processo?
Investigar o processo de trabalho Apoio Matricial (AM) em saúde mental na Atenção
Primária à Saúde, na perspectiva dos profissionais do CAPS envolvidos no apoio e na
supervisão.
Método
Para responder as questões da pesquisa, utilizou-se o método descritivo exploratório
com abordagem qualitativa que, conforme Minayo (2007), “se aplica ao estudo da
história, das relações, das representações, das percepções e das opiniões, produto das
interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos
e a si mesmos, sentem e pensam”.
O município do estudo fica localizado na região metropolitana de Porto Alegre,
no Estado do Rio Grande do Sul. Possui o quinto maior PIB é a sexta maior população
do Estado, com 270.689 habitantes, além de uma estimativa de vida que ultrapassa
os setenta anos. É constituído por área urbana e rural, apresentando características e
problemas típicos dessas duas realidades. Nota-se a convivência, lado a lado, da riqueza
e da pobreza, ficando possível observar que a população local sofre problemas típicos de
países subdesenvolvidos, como: transtornos psíquicos, desnutrição, doenças infecciosas,
parasitárias, diarreias e, por outro lado, enfermidades típicas de países industrializados.
Em 1998, o município habilitou-se à Gestão Plena da Atenção Básica em Saúde,
nos termos da Norma Operacional Básica – NOAS/ SUS/ 1996. Desde 2004, tem
implementado o processo da Distritalização/ Regionalização da Saúde, pela implantação
da estratégia de Saúde da Família (ESF). Já no ano de 2006, o município habilitou-se,
também, para o processo de gestão plena municipal da atenção à saúde. De acordo com
dados apresentados pelo município, no momento existem três CAPS: CAPS II (adultos
com transtornos mentais severos e persistentes), CAPS ad (álcool e drogas) e o CAPSi
(infantil) e mais onze equipes de saúde da família. Atualmente, cerca de 30% da população
é atendida por essas equipes de Saúde da Família.
Os sujeitos da pesquisa foram cinco profissionais (um psicólogo e quatro
psiquiatras) do CAPS, atuantes desde 2007 no AM em saúde mental do referido
município. O número da amostra deveu-se em razão de serem esses cinco profissionais
os diretamente envolvidos no matriciamento. Desses cinco profissionais, o psicólogo,
que também é o coordenador do AM, atua com grupos na comunidade desde
1997 e tem uma formação junguiana, além de trabalhar com práticas integrativas
complementares. Em relação aos psiquiatras, um deles tem também a formação
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141
como médico sanitarista, realizada posteriormente à especialização em Psiquiatria.
Os outros três psiquiatras trabalham com psiquiatria clínica, com uma vertente mais
tradicional, sendo que um deles fez a formação no Murialdo, em Porto Alegre. Uma
especificidade do respectivo grupo, mesmo atuando com correntes teóricas diferentes,
diz respeito à relação de respeito entre os integrantes e o desejo de descentralizar a
atenção em saúde mental.
A coleta de dados ocorreu no CAPS, no mês de outubro de 2010, mediante
agendamento prévio. Para realização desta pesquisa, foi utilizado instrumento próprio,
do tipo semiestruturado. A entrevista semiestruturada consiste em um roteiro que
objetiva apreender o ponto de vista dos atores sociais do objetivo da pesquisa. Esse
roteiro contém poucas questões, de forma a orientar a orientar uma “conversa com
fidelidade”. O roteiro semiestruturado permite o aprofundamento da comunicação,
constituindo-se um guia para facilitar a entrevista (Minayo, 2007). As entrevistas
tiverem um tempo médio de 50 minutos e foram gravadas em áudio.
Em relação à análise dos dados, foi percorrido o caminho metodológico (2007):
ordenação, classificação e análise final dos dados. A ordenação dos dados englobou
as entrevistas apreendidas. Essa etapa consiste na transcrição das entrevistas gravadas
em meio digital (MP3); releitura do material; organização dos relatos em determinada
ordem, de acordo com a proposta analítica. Na etapa seguinte, a classificação dos
dados foi operacionalizada mediante a leitura exaustiva e repetida dos textos. Por
meio desse exercício, foram apreendidas as “estruturas de relevância” das falas dos
sujeitos do estudo. Nessas falas estão contidas as ideias centrais dos entrevistados.
A análise final permitiu fazer uma inflexão sobre o material empírico e o analítico,
num movimento incessante que se eleva do empírico para o teórico e vice-versa. Essa
dinâmica que promove relações entre o teórico e o empírico, o concreto e o abstrato
o geral e o particular, a teoria e a prática é o verdadeiro movimento dialético visando
ao concreto pensado.
O projeto foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob o
protocolo n. 2010 - 369H. A entrada em campo somente ocorreu após a aprovação
plena do projeto. Foram respeitados os aspectos éticos referentes à pesquisa com seres
humanos, conforme determina a Resolução n. 196/96 (Brasil, 1996). Cabe salientar
que os entrevistados, ao concordarem em participar da pesquisa, assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), entregue em duas vias de igual teor pela
pesquisadora. Aos entrevistados, foi assegurado o anonimato de cada sujeito, os quais
serão identificados no decorrer da análise de dados pelo pseudônimo de E1 a E5.
Resultados e discussão
Na análise dos dados, depois de extraídas as estruturas de relevância das falas dos
entrevistados, foram identificadas as seguintes áreas temáticas: o processo de trabalho
apoio matricial na Atenção Primária à Saúde; o território como espaço de coprodução de
saúde; a clínica ampliada: transcendendo o modelo da doença e do dano; e as dificuldades
encontradas no processo de trabalho.
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Aletheia 45, set./dez. 2014
O processo de trabalho apoio matricial na Atenção Primária à Saúde
Os profissionais do CAPS abordam, nesta área temática, a intervenção da saúde
mental na Atenção Primária mediante um processo de capacitação e suporte às equipes
do nível primário de assistência. Conforme a Portaria n° 336 de 2002, os CAPS assumem
o papel de organizadores da rede substitutiva e buscam agregar os serviços de saúde
mental na comunidade local. Para tanto, devem integrar-se às equipes de Atenção
Primária oferecendo suporte e capacitação que visem à adequação da assistência ao
sujeito portador de sofrimento psíquico (Brasil, 2002).
Dessa forma, o apoio matricial em saúde, proposto por Campos (1999), configura
um arranjo organizacional que visa a assegurar retaguarda especializada a equipes
e profissionais responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde. As
entrevistas evidenciam que o processo de trabalho contempla o atendimento conjunto
e a discussão de casos clínicos, preconizado por Campos e Domitti (2007). “[...] a
gente faz consultorias, assim, com essas unidades de saúde da família para discutir
casos, eventualmente atender o paciente junto, num regime de interconsulta” (E 3).
“[...] a gente faz uma avaliação junto com os clínicos dos pacientes que estão sendo
atendidos lá, e dá uma orientação, também, aos outros profissionais em relação a
grupos de atendimentos e, tenta manter um canal aberto de duas vias entre o posto
e o CAPS, aqui”. (E 4). Outra modalidade de operacionalização do AM contempla o
atendimento específico do apoiador, mantendo a equipe de referência o seguimento
complementar do caso.
Para Dimenstein et al., (2009) o apoio matricial surgiu da comprovação de que
a Reforma Psiquiátrica não pode progredir, se a Atenção Primária não for inserida ao
processo. Para tanto, não é possível somente dirigir esforços na rede substitutiva, mas
pelo AM, implementar o cuidado em saúde mental para todos os níveis da assistência,
principalmente, à Atenção Primária. “Então o que a gente via, que muitos clínicos
tratam coisas básicas de clínica geral, coisas básicas de cardiologia, tratam o básico
da pneumologia, o básico da otorrino e não atendiam o básico da psiquiatria, a saúde
mental. E, agora já estão fazendo isto, e agora nem tão básicos, tem vários clínicos
atendendo coisas bem mais sérias e já estão assumindo”. (E2).
De acordo com Campos e Domitti (2007), o AM ao ser incorporado como um
método de trabalho visa a garantir suporte especializado, tanto no plano assistencial,
quanto técnico pedagógico. Implica uma construção compartilhada entre os componentes
da equipe de referência – os profissionais da Atenção Primária encarregados pela
condução de problemas de saúde – e os especialistas que realizam o apoio matricial
com o desafio de agregar conhecimentos à equipe de referência. “[...] são promovidas
consultorias com abordagens de casos diversos, com discussões diagnósticas e de
planos terapêuticos que sirvam para multiplicar o conhecimento, e ampliar a assistência
a outras pessoas, sempre comprometendo a equipe, e a rede de apoio do usuário
próxima a sua residência”. (E 5).
A responsabilização compartilhada exclui a lógica do encaminhamento, uma
vez que essa responsabilização visa a aumentar a capacidade da equipe local, no caso
de Atenção Primária, de buscar uma maior resolução aos problemas em saúde mental
(Brasil, 2003). As recomendações propostas pela 8ª Conferência Nacional de Saúde
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corroboram essa ideia, indicando a responsabilidade da Atenção Primária em atender
às necessidades da população, incluindo a atenção em saúde mental (Brasil, 1986).
As entrevistas evidenciam as formas de interação entre as equipes de referência
e os apoiadores, as reuniões periódicas e regulares, a fim de discutir casos complexos
elencados pelas equipes de Atenção Primária, bem como a construção conjunta de
projetos terapêuticos com vistas a estabelecer as intervenções junto com os profissionais
envolvidos. “[...] a gente faz uma reunião a cada 30-45 dias, na prática 45 dias, e lá
a gente discute os casos”. (E 2). “a gente vai dar consultoria em saúde mental para
a equipe e estes pacientes, usuários, são vistos, então, de uma maneira multi, inter
transdisciplinar, e aí, se constroem planos de ação e, geralmente, nesses planos de ação
já inclui a participação do grupo e a capacitação da equipe para ter um outro olhar de
como considerar a questão de saúde mental”. (E 1).
Campos et al., (2014) defendem que o apoio aos profissionais visa ao
desenvolvimento de uma postura analítica sobre si mesmos, sobre o outro e o seu contexto
para que possam experimentar novas práticas que possam dar respostas à complexidade do
trabalho em saúde. Esse apoio produz simultaneamente efeitos pedagógicos, terapêuticos
e institucionais. O efeito pedagógico ocorre por meio do aprimoramento do repertório
de conhecimentos, ampliando a capacidade técnica de intervenção; o efeito terapêutico
é produzido pelas mudanças de valores e visões de mundo dos sujeitos. E, por último, os
efeitos institucionais referem-se às mudanças nas relações e no contexto de trabalho.
Além desses encontros previamente agendados, também é possível o acionamento
dos apoiadores por meios de contato direto, a fim de contemplar casos imprevistos e
urgentes (Campos & Domitti, 2007). Os entrevistados mencionam a existência dessa
retaguarda de suporte, quando da necessidade de contato para elucidar casos complexos,
que demandam uma intervenção precoce ou quando da necessidade de realizar
encaminhamento para o serviço especializado. “[...] consultoria via telefone, então a
gente faz atendimento, deixa o telefone à disposição das coordenações para discutir
casos ao longo do mês”. (E 2). “[...] fazendo consultoria e ligação, com os profissionais
lá da unidade de saúde da família, tentando capacitar os mesmos para o trabalho e, se
colocando à disposição destes”. (E 4).
Considerando a articulação em rede dos serviços de saúde, foi possível identificar
nesta temática, a importância da instrumentalização e o apoio às equipes da APS, de forma
a atender às necessidades da população pela qual assumem responsabilidade. Nesse caso, o
apoio advindo dos profissionais do CAPS permite a inserção do componente saúde mental
nas práticas desenvolvidas no espaço comunitário, refletindo no aumento da capacidade
da equipe local em resolver os problemas de saúde mental. As entrevistas evidenciam
também, que o AM proporciona a construção de abordagens interdisciplinares e a
construção conjunta de projetos terapêuticos. Nesse sentido, o AM além do componente de
suporte e apoio especializado, possibilita a educação permanente das equipes da APS.
O território como espaço de coprodução de saúde
A premissa básica para a consolidação da Reforma Psiquiátrica é a construção de
uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico centrada no espaço comunitário. Neste novo
cenário, para a organização dessa rede é necessária à noção de território, não apenas como
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área geográfica, mas estendendo-se às pessoas, às instituições, às redes e aos cenários onde
a vida comunitária acontece. Para tanto, trabalhar no território implica apreender todos os
recursos da comunidade disponíveis e construir coletivamente as soluções, considerando
todos os saberes e potencialidades, bem como a multiplicidade de trocas entre as pessoas
e os cuidados em saúde mental (Brasil, 2005). “[...] é sempre criar a ideia de que a pessoa
vive num território e que neste território ela tem que ter consciência do que existe de
recursos porque ali, é onde ela adoeceu [...] isso é trabalhar no território, fazer com
que o território também seja mais apropriado e seja mais empoderado pelo usuário. A
gente sempre tenta desenvolver que cada uma destas pessoas seja uma multiplicadora
de saúde, então, é um trabalho de capacitação e ao mesmo tempo de psicoterapia em
que a pessoa percebe, sim, que ela tem um refúgio saudável”. (E 1). “[...] isso ajuda a
questão do sujeito e quais os recursos no meio da comunidade, até de fomento à saúde
de melhoria das condições”. (E3).
De acordo com as mudanças estabelecidas no processo saúde/doença, agora
percebidas como o resultado de fatores atrelados à forma de vida e de trabalho dos
indivíduos, emana o princípio da integralidade como o entendimento do homem
biopsicossocial que se configura mediante estreita interação da diversidade de sua
dimensão subjetiva e de sua relação com o meio (Silveira & Ribeiro, 2005). Nessa
perspectiva, a saúde mental também é alvo de mudança, sobretudo no que concerne à
forma de lidar com o sofrimento psíquico, elegendo o território como espaço de produção
de saúde. “[...] ele pode desenvolver a parte de habilidade social em que ele possa voltar
para o mercado, se for o caso de trabalho e mantendo ele, também, para conviver na
comunidade”. (E 4). “[...] privilegiar a presença do usuário mais próximo à Estratégia
Saúde da Família, fazendo com que toda a equipe contribua com a promoção à saúde
dele, abrangendo aspectos que não se limitem apenas à doença mental”. (E 5). Assim, o
apoio matricial é realizado no cotidiano das práticas profissionais e de modo compartilhado
com os usuários, no contexto da clínica ampliada e da promoção da saúde (Campos,
Cunha, & Figueiredo, 2013).
Pesquisa realizada com enfermeiros da ESF demonstra que as ações de saúde
mental na Saúde da Família devem envolver acolhimento, cuidado e trocas sociais. A
articulação com as redes de serviços específicos de saúde mental e a parceria com outras
instituições e espaços da sociedade (Alcoólicos Anônimos – AA, Centro de Referência
e Assistência Social – CRAS, CAPS) são identificados como questões positivas e
importantes. A responsabilização dos profissionais generalistas pelo atendimento integral é
fundamental para a constituição de respostas concretas às pessoas em sofrimento psíquico
(Amarante, Lepre, Gomes, Pereira & Dutra, 2005). Nas falas dos entrevistados, verifica-se
a preocupação destes em inserir a saúde mental nas atividades realizadas nas unidades de
saúde, como os grupos de psicoterapia: “... a ação dos grupos é importante, os grupos
de psicoterapia nos postos [...] tu desestigmatizas, tu tiras a coisa de: se trata a questão
da saúde mental lá naquele posto, não, a saúde mental faz parte da realidade de todo
mundo. Gripe faz parte porque depressão não vai fazer?”. (E 2).
Pessoas portadoras de transtornos mentais estão sujeitas a discriminação e ao
estigma. Isso ocorre em razão de equívocos sobre a sua causa e natureza. Ao redor do
mundo, as condições de saúde mental são vistas como manifestações de fraqueza pessoal,
Aletheia 45, set./dez. 2014
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ou como sendo causada por forças sobrenaturais. Elas também são identificadas como
pessoas violentas, apesar do fato de serem muitas vezes vítimas e não autores de violência
(WHO, 2010). Outros estudos abordam o estigma profissional como uma barreira para o
tratamento de pessoas com transtornos mentais (Henderson, Evans-Lacko, & Thornicroft,
2013; Becker & Kleinman, 2013). O estigma constitui-se em uma barreira cultural e moral
que afeta pacientes, familiares e cuidadores. O estigma anula a personalidade e constitui
um abuso dos direitos humanos.
As entrevistas evidenciam que ocorrem dois processos em curso simultaneamente,
o apoio matricial propriamente dito e os grupos terapêuticos na comunidade. Os grupos
foram os precursores da descentralização em saúde mental no município e ocorrem
em diferentes espaços do território. Tem como característica a não obrigatoriedade
da adscrição da clientela a uma determinada unidade de saúde. Esse preceito foi
instituído em razão da compreensão de que algumas pessoas não se sentem à vontade
em grupos na sua comunidade de origem, pela questão de se sentirem expostas; outra
razão decorre do entendimento da necessidade de oferecer múltiplas possibilidades
de ampliar a rede social e; a compreensão de que algumas pessoas necessitam um
acompanhamento mais intensivo, com a possibilidade de serem vistas várias vezes
ao mês. “A gente primeiro faz o trabalho de grupos em psicoterapia, cada grupo
destes representa o espaço em que a pessoa pode ter ajuda, ter um outro olhar
sobre os sintomas, sobre a vida dela, com mais pessoas. É o momento que ela tem
nessas unidades de saúde da família e que já é parte, assim, de uma rede, que ela
está vinculada àquela unidade, mas todos os grupos são abertos às pessoas”. (E
1). “sendo ajudado na parte de grupos, falando sobre os problemas dele e também
encaminhando para algumas oficinas”. (E 4).
O princípio para a realização da tarefa tem origem na realidade dos pacientes, dos
acontecimentos de sua vida cotidiana, que surgem conforme o grupo se desenvolve e
o vínculo se constitui entre as pessoas; assim, as experiências trazidas são discutidas,
valorizadas, associadas à questão saúde/doença, oportunizando o desvelamento de aspectos
que poderiam passar despercebidos pelos atores envolvidos, tornando improdutiva a ação
a favor da saúde (Silveira & Ribeiro, 2005). Nesse sentido, a psicoterapia de grupo
reavalia essas experiências trazidas pelos membros e provém desses membros a força
para a mudança, sendo eles agentes de sua própria modificação (Bechelli & Santos,
2005). “[...] e que ele possa, então, perceber que a política se faz, não em Brasília, mas
consigo próprio, no entorno onde ele está. Ele consegue fazer mudanças em si, no meio
e no contexto da sociedade”. (E 1).
Para Oliveira e Campos (2014) o AM demanda “perceber a política enquanto um
elemento presente na clínica e nas relações interprofissionais e, principalmente, marcar
o lugar do usuário como um sujeito que participa ativamente da construção do cuidado
e dos serviços de saúde”. Esse processo contínuo de transformação desenvolve-se nos
diferentes cenários que compõem o território, configurado pelas características das pessoas
que, também sofrem as ações territoriais. Além disso, é no território que o cuidado deve
ser desenvolvido, uma vez que é nele que as pessoas adoecem (Delfini, Sato, Antoneli,
& Guimarães, 2009). Pesquisa realizada com o objetivo de compreender como as ações
de matriciamento contribuem para a acessibilidade e resolubilidade dos casos de saúde
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mental evidenciou que o AM pode ser uma ferramenta facilitadora da acessibilidade dos
usuários aos serviços de saúde. Assim como, a interação entre especialistas e profissionais
da ESF propicia a detecção dos casos de saúde mental negligenciados (Quinderé, Jorge,
Nogueira, Costa, & Vasconcelos, 2013).
Os entrevistados apontaram, nessa área temática, a importância de realizar práticas
pautadas no território, nos cenários onde a vida acontece, haja vista essas práticas
auxiliarem na compreensão das transformações e dos aspectos que envolvem o processo
saúde/doença. Dessa forma, os grupos de psicoterapia valorizam as experiências das
pessoas e permitem que elas sejam capazes de desenvolver caminhos para sua própria
mudança. Assim, os grupos na comunidade e o AM propiciam ações de promoção da
saúde que reverberam nos sujeitos e no seu entorno, oportunizando perspectivas de
coprodução de saúde nos diferentes espaços do território.
A clínica ampliada: transcendendo o modelo da doença
Nesta área temática os profissionais do CAPS expõem seu entendimento em relação
à clínica ampliada que é compreendida como a inclusão de diferentes perspectivas na
abordagem ao sujeito. Nesse sentido, os profissionais reconhecem nesta abordagem sua
singularidade, bem como sua complexidade ao considerar todos seus aspectos que, em
determinadas situações, irá exigir uma atenção maior de um deles sem que implique a
negação de outros (Brasil, 2009). “Clínica ampliada ela implicaria que toda e qualquer
circunstância ela é terapêutica, não somente, o psicólogo, o enfermeiro, o médico com
seus procedimentos, com as suas metodologias e com seus instrumentos ou objetos de
intermediação de cura, mas todo o fenômeno ele é um aspecto de abertura para expressão
da vida, do cuidado”. (E 1).
A clínica ampliada implica deslocar a ênfase na doença, de forma a estendê-la ao
sujeito e ao contexto em que este está inserido. Há, portanto, a ampliação do objeto de
conhecimento e intervenção, uma vez que os problemas de saúde agregados às doenças
constituem situações que ampliam o risco ou a vulnerabilidade das pessoas (Campos,
2003). Assim, existe uma inter-relação da doença e do sujeito, por conseguinte tratase de uma ampliação e não de uma troca do objeto, conforme se observa na fala dos
entrevistados: “[...] não se conectar só ao conceito de doença e, bom, fora as questões
sociais todas, porque com todas as questões sociais as pessoas ficam doentes”. (E 2).“A
observação e o cuidado de todos os aspectos inerentes à vida do sujeito, associando fatores
causadores e contribuintes dos agravos de saúde dele, assim como suas consequências,
ultrapassando as fronteiras do diagnóstico e tratamento”. (E 5).
Reconhecer a complexidade do sujeito, para além da sua dimensão biológica e
orgânica, implica reconhecer a necessidade de compartilhar diagnósticos de problemas
e propostas de solução. Desse modo, diante de uma compreensão ampliada do processo
saúde/doença, nem sempre é possível uma solução. Entretanto considera-se que o fazer de
forma compartilhada é mais efetivo do que manter uma abordagem puramente individual
(Brasil, 2009). “[...] é um trabalho coletivo, é um trabalho não individualizado, é um
trabalho em que cada um percebe que faz a sua parte e, cada um oferecendo um pouco vai
diminuir um pouquinho o esforço do ser individual e se tem uma visão mais cooperativa”.
(E 1). “É uma mudança de paradigma sair assim do sistema de atendimento imposto ou
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da forma, assim, mais como se fosse de consultório. Isso aí é o trabalho de multiplicação
de esforços”. (E 3).
O apoio matricial propõem as seguintes diretrizes: instituir a lógica do apoio
e da cogestão para as relações interprofissionais; lidar a partir do referencial da
interdisciplinaridade e; construir equipes multiprofissionais com corresponsabilização
no cuidado em saúde (Campos et al., 2014). Para a superação da fragmentação do
trabalho e a flexibilização das rígidas fronteiras entre as profissões da saúde, Cunha
e Campos (2011) propõe os conceitos de núcleo e campo do conhecimento. O núcleo
corresponde ao conjunto de conhecimentos e ações que são específicos de determinada
categoria profissional. O conceito de campo representa a abertura da identidade
profissional voltada à interdisciplinaridade e à interprofissionalidade. Entretanto, o
saber interdisciplinar não surge por imposição, mas é resultado dos saberes e das
práticas que, em um determinado contexto institucional, os profissionais adotam e
operacionalizam por meio de sua relação com outros profissionais que integram as
equipes de saúde (Martin, 2013).
A noção de clínica ampliada formulada por Campos (2003) “pressupõe, de
início, desviar o foco de intervenção da doença e dos procedimentos, para recolocálo no sujeito, portador de doenças, mas também de outras demandas e necessidades”
(Campos et al., 2014). Nesse sentido, a clínica ampliada baseia-se na escuta e reconhece
o saber, o desejo e o interesse das pessoas, e o sentido daquilo que estão vivenciando.
A mudança do paradigma biomédico para o da clínica ampliada implica também no
reconhecimento dos fatores psicológicos, culturais e econômicos além dos biológicos,
no processo saúde-doença. O exercício dessa clínica pressupõe a existência de espaços
coletivos de análise e intervenções conjuntas. Por conseguinte, a terapêutica não se
limitará apenas à medicação, mas contará com diversos recursos além deste, como
a valorização do poder terapêutico da escuta e da palavra, o poder da educação em
saúde, bem como do apoio psicossocial (Campos & Amaral, 2007). Seria uma visão
biopsicossocial do paciente, não só em relação à medicação [...] seria sair do modelo
apenas médico e vendo ele como um todo”. (E 4).
Considerada a complexidade da clínica, o Ministério da Saúde, por meio da
Política Nacional de Humanização, lança mão de dispositivos e ferramentas que devem
ser transversais, a saber, de forma a favorecer a troca de informações e a ampliação das
responsabilidades dos profissionais com a produção de saúde. Nessa perspectiva, o apoio
matricial e as equipes de referência apresentam essas características de transversalidade
por constituírem arranjos organizacionais que, além de aliar profissionais de áreas
diversas do conhecimento, viabilizam a atuação destes profissionais de forma
transdisciplinar, desconstruindo a lógica dos encaminhamentos (Brasil, 2004). “a
ideia é isso, quando tu conversas com as equipes é sempre poder capacitar as equipes
para que possam reconhecer os problemas de saúde mental na comunidade e tratar a
maioria dentro do que está no âmbito e, também, com isso a gente consegue diferenciar
quais são os casos que ultrapassam essa capacidade técnica da equipe que precisam
ser referenciados para uma unidade de mais especialização”. (E 3). Esses arranjos
organizacionais permitem o resgate do compromisso com o sujeito, reconhecendo toda a
complexidade do seu adoecimento. Nesse sentido, ao se adotarem métodos e estratégias
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que permitam a articulação de ações, saberes e sujeitos, potencializa-se a garantia da
integralidade, da resolubilidade e da humanização da atenção (Brasil, 2009).
Essa área temática abordou, na perspectiva dos profissionais envolvidos no AM,
sobre a sua compreensão da clínica ampliada. Dos dados empíricos pôde-se depreender
que os apoiadores têm uma visão singular do sujeito, reconhecendo sua complexidade
ao considerar todos os aspectos que envolvem o processo saúde/doença. Esses achados
são consoantes com a construção teórica e os pressupostos que norteiam o AM em saúde
mental. Além disso, as ações desenvolvidas de forma articulada com os profissionais da
APS caminham em direção à ampliação da clínica, transcendendo as práticas centradas
no modelo da doença e do dano, caraterístico do modelo biomédico.
Dificuldades encontradas no processo de matriciamento
Nesta área temática, os entrevistados identificam os obstáculos existentes no
processo de matriciamento em saúde mental. Percebe-se, nas falas, que um dos impasses
apontados está relacionado à resistência dos profissionais tanto das equipes da APS,
quanto da especializada: “As dificuldades são grandes, o trabalho é de desafio constante,
tem que tentar o contato com as equipes, tem que manter esse contato, às vezes tem
resistência da gente mesmo, das equipes, na verdade tem a ver com a questão anterior
da clínica ampliada, não é uma coisa dada tu tens que construir; então uma coisa que
é mais prática, mais do dia a dia é o atendimento básico desse tipo de atender só em
consultório, ambulatório, de atender de paciente a paciente”. (E 3).A fala anterior reporta
a resistência dos profissionais especialistas em descentralizar as ações de saúde mental.
Usualmente essa resistência é atribuída aos profissionais generalistas. De acordo com o
Ministério da Saúde, os CAPS devem ser substitutivos, e não complementares ao hospital
psiquiátrico, sendo um de seus desafios à saída dos profissionais da instituição de forma
a integrarem a rede em saúde mental, assumindo o papel de organizadores. Assim, a
rede se configura à medida que se articula com outros serviços, setores e recursos do
território, tornando-a capaz de constituir-se em um conjunto de referências que permita
o acolhimento do sujeito portador de sofrimento psíquico (Brasil, 2005).
Campos et al., (2104) sustentam que a recriação das relações institucionais e
do trabalho em saúde com vistas a superação dos entraves à mudança nas instituições
dependem de abertura, de disponibilidade e de receptividade. Lembram que a abertura
não é dada a priori, mas necessita ser construída com os sujeitos e os grupos. Nesse
sentido, reafirmam o pressuposto de que não se pretende mudar algo “para” o outro,
senão “com” o outro. Assim, o AM demanda um trabalho sistemático, longitudinal onde
são construídas novas possibilidades de relações e interações entre os sujeitos, quer este
sujeito seja o profissional da APS ou o usuário do serviço.
A análise de outras produções nacionais que abordam o AM também demonstra
a existência de resistências à adoção dessa metodologia de trabalho, tanto no que tange
aos profissionais especialistas como os generalistas da APS (Bonfim, Bastos, Góis, &
Tófoli, 2013; Hirdes & Scaparo, 2015; Hirdes, 2015), “... existe resistência da saúde
mental, mas por parte dos médicos, os médicos não se sentem preparados para isto,
então inicialmente tem que enfrentar esta barreira de os médicos se abrirem para
começar a ver a saúde mental”. (E 2). “... algumas resistências da equipe, de alguns
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clínicos de não quererem acompanhar os casos”. (E 4). Outros autores (Delfini &
Reis, 2012; Mielke & Olchowsky, 2010) defendem a necessidade da construção de
vínculo entre os próprios profissionais, o que favorece a integração da equipe, facilita
a troca de informações e afetos e produz um ambiente mais rico em conhecimentos e
sentimentos positivos.
Os processos de trabalho norteados pelo princípio da fragmentação levam ao
desinteresse dos profissionais, à individualização, a não responsabilização do trabalho,
da atenção e do cuidado (Bezerra & Dimenstein, 2008). Esta estruturação do modo de
trabalho compõe quase que em balizas da Medicina moderna e dos serviços de saúde
em aspecto mais geral (Brasil, 2009). “[...] dificuldade em contemplar a participação
de toda a equipe da Estratégia Saúde da Família no processo”. (E 5). “[...] às vezes
dificuldades de horário, de encontrar os clínicos e os profissionais lá (na unidade)
para discutir e acompanhar”. (E 4). Os apoiadores usualmente realizam as discussões
de casos clínicos com um profissional de referência de cada equipe da ESF, entretanto,
reconhecem a potência do AM como um instrumento de educação permanente. À
inclusão de outros membros, além do profissional da área médica permitiria ver
diferentes perspectivas para a construção de projetos terapêuticos, além da capacitação
em si. Ou seja, uma das dificuldades, mesmo na ESF, diz respeito à fragmentação dos
processos de trabalho.
Os entrevistados atribuíram à política outra questão importante que tem servido
de entrave à implementação do AM, fazendo-se necessário dar mais estrutura aos
profissionais, de forma a superar os impasses decorrentes no dia a dia do processo
de trabalho: “Acho que uma das dificuldades é de se trabalhar com o SUS, trabalhar
com o sistema público municipal, eu acho que é uma coisa complicada envolve todas
as questões políticas que estão intrincadas no meio de trabalho, as questões de
condições técnicas mesmo, condições de trabalho”. (E 2). Campos e Domitti (2007)
abordam a necessidade de conhecer, analisar e remover os obstáculos – no caso anterior,
político e estrutural – para que seja possível trabalhar-se em equipes interdisciplinares
e em sistemas de cogestão. No que tange ao obstáculo político, existem poucos
serviços organizados em sistemas de cogestão, o que se constitui em um obstáculo,
considerando que a metodologia do AM depende da existência de espaços coletivos e
do estabelecimento de algum grau de cogestão ou democracia institucional.
O Ministério da Saúde aponta alguns problemas na consolidação do SUS, dentre
eles os recursos financeiros insuficientes, os gastos irracionais, a baixa resolutividade e a
dificuldade de acesso (Brasil, 2003). Nesse sentido, a disposição de serviços oferecidos
à população, ainda é insuficiente, encontrando no apoio matricial o uso racional de
recursos, uma vez que cria a oportunidade de um único especialista integrar-se a várias
equipes de referência (Campos & Domitti, 2007). “Política porque ela impede o
desenvolvimento de um trabalho pela falta de investimento na estrutura. Hoje nós somos
um setor público, mas nós temos uma participação privada, ou seja, nós entramos,
profissionais, com as nossas estruturas materiais, eu dou exemplo disso: o carro é nosso,
o combustível é nosso, as horas que se faz a mais não são recompensadas em termos
de pagamento. Então, esta estrutura se não fosse pelo nosso perfil de nos doarmos
generosamente ao trabalho, a estrutura não sustentaria vinda só do poder público”.
150
Aletheia 45, set./dez. 2014
(E 1). “Transporte também não tem, a gente tem que usar o transporte próprio para
ir nos horários e nos locais, para ir nos postos, para conversar com o pessoal, não
disponibiliza o carro pra fazer isso”. (E 4).
Além da carência dos recursos financeiros, é possível, também, identificar nas falas
a escassez de recursos humanos: “Restrição de recursos financeiros e humanos”. (E 5).
“A gente tem uma agenda grande para atender, então é difícil conciliar o atendimento,
o atendimento ambulatorial, o atendimento do caso e fazer o matriciamento, é um
volume grande de preocupações”. (E 2). Outra pesquisa, que investigou a proposta de
matriciamento junto aos trabalhadores do CAPS na cidade de Natal/RN, identificou
a restrição de recursos financeiros e humanos como obstáculo ao apoio matricial
(Bezerra & Dimenstein, 2008). Assim, por se tratar de obstáculos estruturais, devem
ser entendidos como resultados das políticas econômicas que, por sua vez, são o reflexo
da economia do mundo e podem apenas ser superados com o envolvimento dos atores
sociais na luta em defesa do SUS.
Apesar de muitos avanços em vários países, o desenvolvimento de serviços de
saúde mental tem sido lento, sobretudo em países com renda média e baixa. As barreiras
incluem a agenda de prioridades de saúde pública e seus efeitos sobre o financiamento,
a complexidade e a resistência à descentralização dos serviços de saúde mental; os
desafios para a implementação de cuidados de saúde mental em contextos de cuidados
primários, o número reduzido de profissionais com treinamento e a supervisão em
saúde mental, além da escassez de perspectivas de saúde pública na liderança da saúde
mental (Saraceno et al., 2007).
A fim de remediar as lacunas existentes na alocação eficiente e justa dos recursos
da sociedade, governos e outras partes interessadas podem realizar uma série de
ações-chave, a saber: proporcionar uma melhor informação, sensibilização e educação
sobre saúde e doença mental; qualificar os serviços de cuidados de saúde e sociais
para populações carentes, com necessidades não satisfeitas; proporcionar uma melhor
proteção social e financeira para pessoas com transtornos mentais, particularmente
aqueles em grupos socialmente desfavorecidos; proporcionar uma melhor proteção
legislativa e apoio social a pessoas, famílias e comunidades afetadas por distúrbios
mentais (WHO, 2013b).
Os entrevistados apontaram a resistência de alguns profissionais em relação
à implantação do AM como um desafio a ser superado. Essa resistência ocorre
tanto por parte dos profissionais do CAPS em trabalhar no AM, como também dos
generalistas da APS. No que tange aos primeiros, parece haver resistência em razão
do abandono dos modos de trabalho familiares (atendimento ambulatorial). Com
relação aos profissionais da APS, as resistências colocadas são dos médicos, em razão
destes entenderem que estão assumindo uma especialidade. Além disso, a escassez de
recursos humanos, financeiros e de ordem política traz dificuldades, uma vez que o AM
é tratado com desinteresse pelos gestores, ao não prover condições adequadas para o
seu funcionamento. Assim, pode-se depreender que no município em questão, o AM
decorreu essencialmente da vontade de um grupo de especialistas em descentralizar a
atenção em saúde mental.
Aletheia 45, set./dez. 2014
151
Considerações finais
Nos últimos anos, a Reforma Psiquiátrica tem avançado progressivamente
substituindo as formas de atenção ao portador de sofrimento psíquico, transformando o
cuidado desenvolvido dentro dos hospitais por uma rede de serviços estendida ao espaço
comunitário. Evidencia-se, com base nos relatos dos profissionais, o direcionamento de
esforços para a consolidação dessa rede por meio da articulação dos profissionais do
serviço especializado e da Atenção Primária.
O apoio matricial foi considerado pelos profissionais do CAPS um método de
trabalho que permite a articulação dos serviços, pelo apoio dos especialistas e pela
instrumentalização das equipes de Atenção Primária, refletindo na capacidade de estas
reconhecerem os problemas de saúde mental no território sob sua responsabilidade.
Esse aumento da capacidade em resolver os problemas fundamenta-se na ideia da
responsabilização compartilhada que busca desconstruir a lógica dos encaminhamentos,
assegurando maior resolubilidade do serviço. A pesquisa apontou que o AM ocorre
mediante a discussão de casos clínicos, o atendimento conjunto e o encaminhamento de
casos complexos para serviços especializados, com o posterior acompanhamento pela
equipe da APS.
As entrevistas evidenciam a necessidade de serem desenvolvidas práticas no
território onde as pessoas vivem, de forma que essas sejam capazes de compreender os
diferentes aspectos que envolvem o processo saúde/doença. Os relatos evidenciaram a
importância de os serviços se integrarem à rede social das comunidades a fim de conhecer
os cenários e as pessoas que o constituem. Para tanto, os grupos de psicoterapia constituem
uma ferramenta importante por valorizarem os recursos da comunidade, bem como a
multiplicidade de trocas entre os participantes. Dessas trocas Cabe o reconhecimento de
que no município em tela, o AM foi precedido pelos grupos terapêuticos em diferentes
espaços do território. Nesse sentido, já havia uma lógica de descentralização do cuidado
em saúde mental.
A clínica ampliada foi entendida pelos especialistas como uma maneira de visualizar
a pessoa de forma integrada, considerando sua dimensão subjetiva, bem como seus
aspectos biológicos e sociais. Dessa forma, considerá-lo como sujeito singular e complexo
implica a abordagem de diferentes perspectivas que permitam atender a todas as suas
necessidades, neste caso, mediante a construção de projetos terapêuticos singularizados
com a corresponsabilização de todos os atores envolvidos.
A resistência de alguns profissionais do nível primário e do especializado foi
apontada pelos entrevistados como um dos impasses para a implementação plena do AM.
A necessidade de rever as práticas de trabalhar no coletivo se faz presente, haja vista que
não é possível assegurar uma abordagem integral quando se trabalha de forma isolada.
Outra questão levantada foi à carência de recursos destinados para essa finalidade, o
que acaba dificultando o processo de trabalho, obrigando os profissionais a repararem
esta questão de gestão mediante a utilização de materiais e recursos próprios. Os CAPS
usualmente situam-se em diferentes espaços do território urbano, enquanto as unidades
de saúde situam-se na região urbana e também em regiões rurais, distantes do centro. Ou
seja, quando os profissionais optam em realizar o AM necessitam arcar com os custos do
152
Aletheia 45, set./dez. 2014
transporte. Essa questão foi abordada como emblemática e reveladora da falta de apoio da
gestão ao trabalho desenvolvido. A questão epistemológica evidencia-se na dificuldade
em abandonar os modos de trabalho familiares – atendimento individual no ambulatório
– e a necessidade de incorporar outros modos de fazer em equipe.
Esta pesquisa possibilitou a compreensão do processo de trabalho apoio matricial
em saúde mental na Atenção Primária, assinalando as práticas desenvolvidas, as diferentes
formas de operacionalização e as dificuldades encontradas no processo. Essas últimas
podem ser superadas mediante a sensibilização e participação ativa de todos os atores
envolvidos (gestores, profissionais e usuários). Este estudo também é um convite para
que, por meio dos conselhos e das conferências de saúde, se ampliem as discussões nesta
área e se construam propostas com vistas ao fortalecimento das ações de saúde mental na
Atenção Primária como uma forma de atender às necessidades da população.
Uma limitação da pesquisa diz respeito à necessidade de estudos que investiguem a
perspectiva dos profissionais generalistas da Estratégia Saúde da Família e das Unidades
Básicas de Saúde (UBS) tradicionais sobre o apoio e a supervisão que tem recebido dos
especialistas. Assim como a sua compreensão sobre os desdobramentos e especificidades
das diferentes modalidades de apoio e os processos de trabalho decorrentes da articulação
saúde mental e Atenção Primária.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
Maria Rosalia Gerhardt Neto: Enfermeira, especialista em Saúde da Família.
Tássita Stefani Selau Medina: Psicóloga.
Alice Hirdes: Enfermeira, Doutora em Psicologia Social, Orientadora do Estudo (PUCRS).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
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Aletheia 45, p.156-167, set./dez. 2014
Relacionamento conjugal e violência: sair é mais difícil
que ficar?
Josiane Razera
Denise Falcke
Resumo: A violência conjugal demanda ser amplamente estudada, pois possui altas taxas de
incidência e pode causar sérios problemas de saúde aos envolvidos. Por esse motivo, o objetivo
desse estudo foi analisar a história conjugal de um casal heterossexual, considerando as diferentes
formas de violência praticada pelos cônjuges. Foi realizado um estudo qualitativo, com delineamento
de estudo de caso único. Os instrumentos utilizados foram: genograma, entrevista semiestruturada
e Revised Conflict Tactics Scale (CTS-2). Os resultados revelaram que o casal apresentou agressão
psicológica, preponderantemente exercida pela esposa, e coerção sexual, exercida pelo marido,além
de uma repetição dos padrões de violência praticados em suas famílias de origem. Os cônjuges
consideraram que sair dessa relação era mais difícil do que permanecer, devido a questões
financeiras, filhos e até mesmo o medo de recomeçar. Revela-se a necessidade de atenção dos
profissionais para a avaliação dos motivos que mantém unidos casais em situação de violência.
Palavras-chave: Relações conjugais; conflito conjugal; violência na família; violência psicológica;
agressões sexuais.
Marital relation and violence: Is leaving harder than staying?
Abstract: Intimate partner violence demands to be widely studied since its incidence levels are
high and it may cause serious health problems to those involved. This study aims to analyze the
marital history of a heterosexual couple, considering the different forms of violence employed by
both spouses. A qualitative study, with single case study design was developed. Instruments used
were a genogram, a semi-structured interview, and the Revised Conflict Tactics Scale (CTS-2). The
data showed the couple presented psychological aggression mainly practiced by the wife, and sexual
coercion by the husband, alongside a repetition of the violence patterns practiced in their families
of origin. The spouses considered that leaving the relationship is harder than staying, on account
of financial issues, children, and even the fear of recommencing. It reveals the need of professional
attention for the evaluation of reasons that maintain couples in situations of violence.
Keywords: Marital relations; marital conflict; family violence; psychological violence; sex
offenses.
Introdução
O tema da violência conjugal tem sido significativamente investigado pela literatura
científica, em especial a partir da segunda metade do século XX (Antunes & Machado,
2012; D’Oliveira, Schraiber, Hanada, & Durand, 2009; Piosiadlo, Fonseca, & Gessner,
2014). Contudo, por se tratar de um fenômeno complexo e de difícil compreensão,
constantemente se destaca a necessidade de explorar o assunto, além de pensar em
formas de tratamento e/ou prevenção. Atualmente a violência conjugal é a forma mais
comum dentre as violências interpessoais (Almeida & Soeiro, 2010) eestudos nacionais
revelam que pode estar presente em até 70% dos casais, considerando suas diferentes
formas de expressão (Rosa, Boing, Büchele, Oliveira, & Coelho, 2008; Vieira, Perdona,
& Santos, 2011).
A violência conjugal pode se manifestar de diferentes formas, sendo as mais
frequentes a violência psicológica, física e sexual (Fuentes, Leiva, & Casado, 2008).
Para Strauss (1995), as agressões podem ocorrer de diferentes maneiras e intensidades.
A violência física pode se manifestar desde empurrões, tapas, puxões de cabelo até dar
socos, bater, chutar, usar uma faca ou arma de fogo. A violência psicológica, por sua
vez, mais complexa de avaliar, se caracteriza por insultos, xingamentos, gritos, ofensas,
ameaças e/ou destruição de objetos pessoais do companheiro. Já a violência sexual ou
coerção sexual engloba desde a insistência em fazer sexo até ações que envolvem obrigar
o parceiro a ter relações sexuais utilizando-se de força e armas para coação. Qualquer dos
diferentes tipos de violência pode proporcionar sérios problemas de saúde aos envolvidos
(Razera, Cenci, & Falcke, 2014), sendo que as pesquisas têm destacado a depressão, a
ansiedade, o estresse pós-traumático, o aumento nas taxas de suicídio, problemas com
alcoolismo e drogas (Caldwell, Swan, & Woodbrown, 2012; Sillito, 2012; Silva, Coelho,
& Njaine, 2014).
A exploração do tema vem surgindo a partir de diversas vertentes. O movimento
feminista foi a perspectiva que impulsionou os estudos sobre a violência, surgindo em uma
época marcada por movimentos sociais em que as mulheres lutavam por direitos civis,
educativos e políticos, que até então pertenciam aos homens, herdeiros de uma cultural
patriarcal. As feministas denunciam que o homem tem sido privilegiado ao longo da
história, enquanto que as mulheres vivem em uma situação de subordinação e dominação
especialmente através de seus corpos. A partir disso, surgem estudos sobre a violência
cometida por parceiro íntimo, em especial a violência de gênero ocasionada pela opressão
do feminino pelo masculino (Jong, Sadala, & Tanaka, 2008; Pazo & Aguiar, 2012; Rada,
2014; Schraiber et al., 2007; Stockman, Lucea, & Kampbell, 2013).
As questões de gênero também têm sido apontadas como possíveis formas de
compreensão dos diferentes tipos de violência conjugal. A violência sexual, por exemplo,
historicamente vem sendo associada com a tradição patriarcal que, por muitas décadas,
consentiu com o modelo de submissão social e sexual da mulher, em troca do controle e
poder do homem. A dependência econômica feminina seria uma das explicações para a
submissão sexual (Dantas-Berger & Giffin, 2005). Já a agressão psicológica, em muitos
casos de violência conjugal, tem sido mais praticada por mulheres do que propriamente
pelos homens (Alvim & Souza, 2005; Lee, Stefani & Park, 2014). Uma possível explicação
para essa associação entre violência psicológica e gênero feminino está voltada para a
distinção na criação de homens e mulheres, sendo elas direcionadas para os aspectos
emocionais, e eles, para a razão (Oliveira & Souza, 2006). Embora exista uma possível
associação entre as formas de violência praticada e gênero, é válido ressaltar que ambos
os cônjuges podem agredir o parceiro de maneiras diversas, bem como utilizando mais de
uma forma de violência concomitantemente (Oliveira & Souza, 2006; Schraiber, Barros,
Couto, Figueiredo, & Albuquerque, 2012).
Os estudos que privilegiam uma compreensão a partir de categorias de gênero
possuem grande relevância para o desenvolvimento e compreensão do fenômeno da
violência conjugal. De forma a ampliar essa perspectiva, observa-se uma crescente
Aletheia 45, set./dez. 2014
157
tendência de propostas teóricas, em especial a sistêmica, que compreendemos
relacionamentos conjugais e a violência a partir de múltiplas variáveis em interação.
Essa proposta não se preocupa com a culpabilização ou responsabilização pelos atos
violentos praticados ou sofridos, mas amplia o foco para a compreensão de que as
relações conjugais violentas também podem assumir um viés interacional (Alvim &
Souza, 2005; Colossi & Falcke, 2013). Nesses casos, homens e mulheres podem ser
agressores e/ou vítimas, visto que as relações não são estáticas e as reações agressivas
podem variar conforme o conflito se estabelece (Chan, 2012; Straus, 2008).
A resolução de conflitos através da violência pode se tornar usual no
relacionamento entre os cônjuges, tornando essas práticas naturalizadas (Rosa & Falcke,
2014) e inclusive podendo ser transmitida de uma geração para a outra (Marasca,
Colossi, & Falcke, 2013). Indivíduos que vivenciam relações violentas, sejam elas no
âmbito familiar ou conjugal, apresentam uma tendência à prática de ações violentas
na tentativa de resolução de conflitos sem que a considerem inadequada. Atualmente,
a naturalização da violência tem sido uma das causas da camuflagem dos índices de
violência conjugal, que, por vezes, nem sequer chegam a ser denunciados, também
podendo ser uma das responsáveis pela não separação dos casais (Romagnoli, Abreu,
& Silveira, 2013).
A reprodução desses modelos de relacionamentos pautados na violência pode
ser, além de naturalizada, perpetuada entre gerações, por meio da aprendizagem
por modelagem (Baptista, Cardoso, & Gomes, 2012) ou via transmissão de mitos
e legados familiares que ocorrem de geração em geração e que são concernentes à
repetição de comportamentos, atitudes e até mesmo escolhas (Almeida, Magalhães,
& Féres-Carneiro, 2014). O sofrimento e os prejuízos à saúde dos envolvidos são
importantes motivações para o desenvolvimento de pesquisas que visem a investigar
o relacionamento destes casais, reproduzindo informações e visando à redução dos
índices de violência. Pensando nesse cenário, o objetivo deste artigo foi analisar a
história conjugal de um casal heterossexual, considerando as diferentes formas de
violência praticada pelos cônjuges.
Método
O presente estudo, de caráter qualitativo, possui delineamento de estudo de caso
único (Yin, 2010). Adotou-se o delineamento de estudo de caso único, pois, conforme
Martins (2006), ele permite uma percepção da realidade a partir dos ensinamentos advindos
do referencial teórico e das características particulares do caso a ser estudado.
Participou deste estudo um casal heterossexual que vivenciou violência conjugal.
Por meio da Revised Conflict Tactics Scale (CTS2), identificaram-se índices de agressão
psicológica e coerção sexual, sendo a primeira praticada especialmente pela esposa, e a
coerção sexual, pelo marido. Vicente (pseudônimo), 38 anos, possuía ensino médio e no
período da entrevista estava trabalhando como motorista, em união estável com Maria Júlia
(pseudônimo), 44 anos, que possuía ensino fundamental e trabalhava como cozinheira.
Ambos possuíam filhos de relações passadas, que já se encontravam na fase entre a
adolescência e a adultez jovem, e um filho de ambos, que se encontrava na infância.
158
Aletheia 45, set./dez. 2014
Para atender aos objetivos deste estudo, foram utilizados os seguintes
instrumentos:
1) Genograma (Carter & McGoldrick, 1995) – foi utilizado para compreender
a história transgeracional do relacionamento. Esta é uma ferramenta que permite ao
pesquisador observar um quadro trigeracional das famílias, além dos movimentos do
ciclo vital e os padrões de interação familiar. O genograma é um retrato gráfico que
possibilita visualizar e mapear a história da família, os relacionamentos e o funcionamento
da mesma.
2) Entrevista Semiestruturada – buscou contemplar dados sociodemográficos,
além das seguintes questões: a) como ocorreu a escolha dos cônjuges? b) como era
o relacionamento conjugal dos cuidadores? c) qual foi a história do relacionamento
conjugal? d) como os cônjuges avaliam o relacionamento conjugal que construíram? e) o
que os cônjuges consideram como fatores positivos e negativos em seu relacionamento?
f) como se manifesta a violência no relacionamento? g) quais os fatores que levam o
casal a permanecer juntos?
3) Revised Conflict Tactics Scales – CTS2, concebida por Strauss, Hamby,
Boney-McCoy e Sugarman (1996) e adaptada ao português por Moraes, Hasselmann e
Reichenheim (2002). O instrumento é constituído por 78 itens que descrevem possíveis
ações do respondente e, reciprocamente, de seu/sua companheiro/a. É formada por cinco
escalas, que tratam das seguintes dimensões: 1) violência física; 2) agressão psicológica;
3) coerção sexual; 4) lesão corporal; 5) negociação. Estudos prévios evidenciam bons
índices de confiabilidade da escala, com Alpha de Cronbach que variaram entre 0.79
e 0.95 (Bolze, Crepaldi, Schmidt, & Vieira, (2013).
Esta pesquisa seguiu todas as diretrizes e normas para pesquisas que envolvem
seres humanos de acordo com Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde
– Ministério da Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, sob o parecer número
558.906.
O casal foi localizado através de um banco de dados de um estudo prévio,
intitulado: “variáveis preditoras da violência conjugal: experiências na família de
origem, características pessoais e relacionais”, em que os participantes se prontificaram
a participar de etapas seguintes. Foi sorteado dentre os que apresentaram um perfil
típico dos casos de violência conjugal, o que justifica a realização de um estudo de caso
único. Os participantes receberam informações relacionadas à pesquisa e, em seguida,
assinaram o termo de compromisso livre e esclarecido (TCLE). A partir disso, iniciou-se
a construção do genograma, ação que demandou informações dos participantes acerca
da conjugalidade e da configuração das respectivas famílias de origem. Posteriormente,
foi realizada a entrevista semiestruturada, coletando as informações sociodemográficas
e realizando a sequência das questões citadas no item Instrumentos.
A entrevista foi realizada por uma psicóloga, terapeuta de casal e família, na
residência do casal, e teve dois momentos: inicialmente foi realizada com o casal e, em
seguida individualmente com cada cônjuge, possibilitando que expressassem o seu ponto
de vista, especialmente sobre os aspectos considerados negativos da relação e o que os
fazia permanecerem juntos. No final do encontro, os casais responderam a CTS2.
Aletheia 45, set./dez. 2014
159
Os dados obtidos foram analisados descritiva e qualitativamente, sendo que sua
análise foi pautada na descrição abrangente do caso organizada de forma cronológica
(seguindo os eventos da história do relacionamento do casal) e temática (identificando
as diferentes manifestações de violência conjugal). A técnica de explanação de Yin
(2010) foi utilizada com o objetivo de analisar exaustivamente os dados coletados a
partir de diferentes instrumentos (Yin, 2010). Nesse método, o estudo de caso pode ser
revelador de uma situação complexa da vida real, oferecendo descrições e interpretações
que chamam a atenção pela singularidade do caso analisado (Martins, 2006).
Apresentação do caso
O genograma do casal analisado permite observar os vínculos e a dinâmica das
famílias de origem, bem como da família nuclear. Além disso, observa-se também a
ocorrência de relações pautadas pela violência que se estendem nas relações conjugais
e nas relações entre pais e filhos.
Figura 1 – Genograma familiar.
Figura 2 – Legenda do genograma familiar.
160
Aletheia 45, set./dez. 2014
Conforme relatado no momento de construção do genograma, Vicente teve uma
infância bastante conturbada. Os pais vivenciavam um relacionamento permeado por
interações violentas e o estilo educativo utilizado com os filhos também se baseava na
agressão. Esses fatos foram identificados quando ele comentou: “Eu cresci apanhando
muito, vendo o meu pai bater na minha mãe todo dia. Ele bebia, nunca trabalhou, sempre
a minha mãe trabalhou e sustentou a família”. Já Maria Júlia viveu em um contexto
familiar sem evidências de violência física, porém se observou que tanto o estilo de
relacionamento conjugal como o parental pareciam basear-se em uma conduta patriarcal,
na qual o pai, chefe da família, falava e os demais membros obedecem. A fala de Maria
Júlia retrata que: “Na casa do meu pai, uma olhada era suficiente e eu cresci vendo a
minha mãe obedecer ele em tudo, não sei se é devido a isso que eles estão juntos até
hoje ou não”.
O casal teve um período curto de namoro. Aproximadamente 30 dias após se
conhecerem, resolveram morar juntos. Vicente refere que essa atitude “foi idiota de
ambas as partes”, enquanto que, para Maria Júlia, casar após um mês de namoro foi
“coisa de criança”. Os cônjuges concordam que um dos principais motivos que os levou
a essa decisão foi evitar a solidão. Vicente comenta que, no início, quando resolveram
casar, tinham o objetivo de “crescer profissionalmente, alguns não concretizamos, mas o
casamento continuou”. Vicente e Maria Júlia estão em um relacionamento íntimo há cerca
de oito anos, sendo que, no decorrer desse período, passaram por duas separações.
Verificou-se, ao longo da entrevista, que as questões profissionais e financeiras eram
um pilar de desentendimentos na relação, visto que esse foi um dos principais motivos que
resultou na primeira separação vivenciada por eles. Ao ser questionada sobre os motivos,
Maria Júlia falou que: “Agente separou pela história que ele não parava nos lugares [era,
seguidamente, demitido], não se adaptava em lugar nenhum e eu cansei [...]”. Poderia
ser essa uma forma de repetição dos padrões familiares vivenciados por Vicente, em que
o referencial aprendido foi do pai não trabalhar e a casa ser sustentada pela mãe. Contudo,
observou-se que Vicente também analisava que as questões relacionadas com dinheiro
eram motivos de recorrentes discussões. Ele referiu que: “O que eu não gosto que ela faz
é gastar demais. Eu acho que a gente podia ter uma vida melhor, com o mesmo salário
que a gente tá ganhando”. Pela descrição que o mesmo fez sobre essas questões, o casal
repetia o estilo de relacionamento dos pais de Maria Júlia, em que um acabava aceitando
as condições do outro, mesmo não concordando: “A gente brigou porque eu abri a boca
e disse que eu achei que tava errado o que ela fez. Aí a gente brigou, aí eu fiquei quieto e
ela continuou gastando. Simples assim”. Vicente falou que nunca houve violência física,
mas, ao ser questionado, relatou que as divergências eram resolvidas no silêncio e no
grito “Eu não converso, fico quieto no meu canto, ela, última vez [...] ela começou gritar
e gritar muito, eu não gostei muito, mas a minha estratégia é ficar quieto”.
Embora ele tentasse transparecer tranquilidade com o manejo da situação, quando
questionado sobre os aspectos positivos proporcionados pelo casamento, Vicente não
conseguiu responder. Após algum tempo, o mesmo refere: “estamos juntos, só isso”. Em
seguida, volta a reforçar que atualmente fatores negativos da relação estavam vinculados
com os problemas financeiros do casal. Se permaneciam juntos, na visão dele era pela
“comodidade, praticidade, deixa eu ir levando a vida assim que está bom, só isso”.
Aletheia 45, set./dez. 2014
161
Quando Maria Júlia foi questionada sobre os conflitos do casal, a mesma
argumentou: “Olha, no início a gente teve conflitos sérios. Motivos? Filhos, tanto do meu
lado, quando do dele”. No momento em que foi indagada sobre esses conflitos com os
filhos, ela referiu o motivo da segunda separação do casal: “Diz que, há seis anos atrás,
quando eu tava grávida do Paulinho, ele teria meio que mexido com a Renata (filha
mais nova de Maria Júlia, na época com 17 anos). Ela nunca me falou nada disso”. A
participante falou de um possível “envolvimento” entre o marido e a filha mais nova, e
o quanto a situação foi muito desgastante para ela, de intensas brigas com o marido e
os familiares. Ela referiu o evento como um dos motivos para uma depressão que viria
posteriormente e argumentou: “Eu me senti muito, muito mal. Não sabia o que fazer, não
sabia se voltava, voltei acho que mais pela necessidade e pela solidão”.
No momento da participação na pesquisa, as brigas do casal tratavam-se da questão
dinheiro, da instabilidade de Vicente nos empregos e do peso do sustento da casa que
reincidia sobre Maria Júlia: “Eu fico e fico e na hora que explode eu falo coisas que nem
queria falar e grito e depois já passa e ponto [...]. Cheguei a dizer que era pra ele pegar
a mala e arrumar outro lugar pra viver”.
O casal parecia viver uma relação de pouca troca de afeto, pois Maria Júlia
comentou: “Eu espero de uma relação é uma vida tranquila, não ligo muito pra questão
do amor”. Sobre o que ela considera positivo na relação: “Ele é uma pessoa carinhosa,
atencioso até demais, que eu não sou metade do que ele é”.
Quando Maria Júlia foi indagada sobre os aspectos negativos da relação, surgiram
questões relacionadas à sexualidade do casal. A mesma referiu sofrer com a obrigação de
manter relações sexuais com o esposo, evitando assim a ocorrência de brigas. “Às vezes
fazia a coisa obrigada pra não tá discutindo, pra não tá brigando e saía magoada, já teve
muito disso [...]. Aí acabo magoada por semanas por causa disso, isso é bem pesado”.
Tanto ou mais que ele, a participante resistiu para falar sobre os motivos que a
levavam a permanecer nesta relação. Após um período de silêncio, Maria Júlia comentou:
“O filho, eu acho pela necessidade [...] de ter alguém, de me ajudar, eu não dirijo, mais
foi pela necessidade mesmo, mas até hoje me sinto mal por causa disso, eu procuro não
pensar, porque é uma coisa que ainda me machuca bastante”.
Com relação à presença de violência mensurada pela CTS2, os cônjuges pontuaram
a ocorrência de violência psicológica, quando assinalaram já ter perpetrado e já ter sofrido
xingamentos, ofensas, situações em que um virou as costas e deixou o outro falando
sozinho, alterações no tom de voz e outros. O casal não pontuou para a presença de
violência física, porém no que se refere à coerção sexual, Maria Júlia assinalou que já
sofreu com a insistência do esposo em fazer sexo, mesmo sem uso da força física.
Discussão
O casal repete alguns padrões de relacionamento vivenciados nas famílias de
origem. Embora Vicente refira não haver violência física como no relacionamento de
seus pais, fica compreensível que a violência se repete na relação conjugal com Maria
Júlia, seja pela existência de violência psicológica, através de muitos gritos e ofensas,
ou pela coerção sexual que ele exerce com a esposa. Em vistas disso, percebe-se que
162
Aletheia 45, set./dez. 2014
a violência se perpetua transgeracionalmente nessas relações (Falcke, 2006) ainda que
com manifestações diferentes. O mesmo ocorre com Maria Júlia, que também repete
um padrão de relacionamento dominador, como era o do pai com sua mãe. Há várias
hipóteses explicativas sobre como ocorre a transmissão transgeracional da violência
sendo observada a repetição de padrões por modelagem (Baptista et al., 2012), bem como
pela transmissão de mitos e legados familiares (Almeida et al., 2014), que promovem a
naturalização do fenômeno, na medida em que a violência passa a ser compreendida por
quem foi vítima direta ou testemunha como inerente a todo e qualquer relacionamento
(Marasca et al., 2013).
Observa-se, no relacionamento do casal, a ocorrência de repetidos episódios
violentos, por meio de agressões psicológicas, coerção sexual e até mesmo o suposto
abuso sexual de Vicente com a filha mais nova de Maria Júlia, que, embora não seja
considerada uma violência conjugal direta, foi o pilar desencadeador da ocorrência de
episódios violentos entre o casal. Neste caso, especificamente, ambos os cônjuges praticam
alguma forma de violência na relação, o que poderia levar a uma compreensão de que as
práticas violentas ocorrem de forma interacional ou intercalada, conforme o conflito se
estabelece (Alvim & Souza, 2005; Colossi & Falcke, 2013).
As agressões psicológicas ficam explícitas no depoimento da esposa, evidência que
corrobora alguns achados da literatura segundo a qual as mulheres possuem uma tendência
maior de utilizar-se de estratégias de agressão psicológica como tentativa de resolução
de seus conflitos com o cônjuge (Alvim & Souza, 2005; Lee et al., 2014). Neste caso,
pertinente considerar que existem diferentes manifestações de poder, seja exercida por
ela, quando faz referência que o sustento da casa cabe a ela, colocando-a no comando, ou
por ele, quando utiliza-se da coerção sexual como uma forma de demonstrar que também
pode exercer domínio na relação. A violência, exercida por Vicente, nesse caso, pode ser
pensada como uma tentativa de igualar o poder na relação (Gomes & Diniz, 2008).
Relações conjugais ligadas à violência, certamente promovem alguma forma de
sofrimento aos envolvidos, porém se observa que, em alguns casos, sair do contexto
de violência pode ser mais difícil do que propriamente permanecer nele. A decisão de
romper pode ser permeada por medos ainda maiores do que o de sofrer violência, como a
questão cuidado com os filhos, as questões financeiras, possíveis retaliações e até mesmo
o medo relacionado à dificuldade de recomeçar a vida (Silva, Araújo, Valongueiro, &
Ludermir, 2012), o que permite compreender quando eles comentam que permanecem
nessa relação por ser mais prático e cômodo.
Contextos violentos, na percepção de quem os vivenciam, nem sempre são a pior
forma de viver, em especial pelo fato de que muitos indivíduos já estão habituados com
esse modelo relacional (Razera & Falcke, 2014). Talvez essa seja uma possível forma
de compreender os motivos que levam muitos casais a permanecerem nestas relações
por longos períodos de tempo. O medo do desconhecido pode engessar muitas pessoas
que não se permitem tentar novas experiências de vida e novas formas de resolução de
conflitos, que não a violência. Nesse aspecto, os profissionais da saúde, em especial os
psicólogos, possuem papel fundamental no auxílio a esses indivíduos ou casais quando
buscam auxílio. Stith e McCollum (2011) traçam algumas diretrizes para o tratamento de
casais que vivenciam experiências violentas, em especial aqueles que desejam permanecer
Aletheia 45, set./dez. 2014
163
juntos. Segundo as autoras, modelos convencionais de terapia não são suficientes e é
importante buscar uma rede de apoio ao casal, sendo aconselhável a associação entre
terapia individual e terapia conjugal.
Considerações finais
A compreensão de fenômenos violentos demanda um olhar amplo e livre de
pré-conceitos, especialmente quando se trata de casais que, mesmo em situações de
violência, permanecem juntos. Muitas vezes, indivíduos inseridos nesses contextos não
compreendem que algumas atitudes de seus cônjuges podem ser consideradas violentas,
menos ainda, identificam a necessidade de cessar esses comportamentos e até mesmo
romper essas relações. Isso é bastante comum principalmente nos casos de agressão
psicológica, que tem sua identificação dificultada por conter maior subjetividade e por
ser uma forma de violência mais difícil de legitimar, assim como em casos de coerção
sexual, ainda permeada pela ideia de que as esposas devem atender aos anseios dos
maridos, mesmo que contrariem a sua vontade.
No caso investigado, verificou-se que o casal considera mais difícil uma separação
do que propriamente permanecer em um contexto com violência. Acabam predominando
preocupações com os filhos, com questões financeiras, com as questões relacionadas à
moradia e até mesmo a insegurança de começar uma nova vida ou o medo da solidão.
O que se espera nesses casos é que o casal consiga encontrar meios de diminuir ou
mesmo extinguir comportamentos violentos que são prejudiciais à saúde e ao bem estar
deles e da família. A busca por ajuda psicológica pode melhorar a forma de relacionamento
dos cônjuges, além de auxiliá-los na descoberta de novas estratégias de resolução de
conflitos, sem violência, ou a efetivação da separação, se assim desejarem.
O presente estudo possui como limitações o fato de ter explorado a vivência
singular de um único casal. Ainda assim, acredita-se que pode contribuir com a prática
de profissionais que trabalham com violência intrafamiliar e também alertar para a
necessidade de investigações futuras, que possam contemplar situações diferentes do que
a apresentada neste espaço. A violência conjugal é um fenômeno complexo e por esse
motivo possui uma demanda de investigações ampla, com vistas à promoção de melhores
condições de vida aos casais e famílias enredados em relacionamentos violentos.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
Josiane Razera: Psicóloga pela Faculdade Meridional (IMED). Doutoranda e Mestre em Psicologia Clínica
pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Especialista em Dinâmicas das Relações Conjugais e
Familiares pela Faculdade Meridional (IMED).
Denise Falcke: Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Mestrado em Psicologia Clínica
e Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Coordenadora e professora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
167
Aletheia 45, p.168-176, set./dez. 2014
Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores
associados em usuárias de um Centro de Referência de
Assistência Social de Canoas/RS
Letícia da Silva Kaspper
Lígia Braun Schermann
Resumo: Estudo transversal para verificar a prevalência e fatores associados aos transtornos
mentais comuns (TMC) em usuárias de um Centro de Referência de Assistência Social da cidade
de Canoas/RS. A coleta de dados ocorreu através de questionário sociodemográfico e do Self Report
Questionare (SRQ-20). A amostra constou de 94 usuárias com idade entre 19 e 84 anos (média
44,5 anos), renda familiar de até um salário mínimo (76,6%), 1º grau incompleto (58,5%), de raça
branca (73,4%), solteira (41,5%) e casada (35,1%) e com média de 3,3 filhos. A prevalência de
TMC foi de 52,1%, não sendo encontrados fatores de associação significativos, dentre os estudados.
A alta prevalência de TMC indica que as características gerais das mulheres pesquisadas, como
baixa escolaridade, baixa renda e não possuir companheiro, potencializam a possibilidade de
desenvolver TMC, reforçando a necessidade de mecanismos que o identifiquem e que direcionem
a devida atenção a essa população.
Palavras-chave: Transtorno mental comum; Centro de Referência de Assistência Social;
mulheres.
Prevalence of common mental disorders and associated factors in women
attending a Social Assistance Reference Center of Canoas/RS
Abstract: Cross-sectional study to estimate the prevalence of Common Mental Disorders (CMD)
and associated factors in women attending a Social Assistance Reference Center of Canoas/
RS. Data were collected by a sociodemographic questionnaire as well as by the Self-Reporting
Questionnaire (SRQ-20). The sample consisted of all 94 women with ages between 19 and 84 years
(mean=44,5 years), family income up to one minimal salary (76,6%), less than first school grade
(58,5%), Caucasian (73,4%), single (41,5%) and married (35,1%), with a mean of 3,3 children. The
prevalence of common mental disorders was 52,1% and there were not significant association with
the risk factors included in the study. The high prevalence of common mental disorders suggests that
socioeconomic conditions, as low income, low education and lack of partnership, are potentially
strong stressors to develop common mental disorders reinforcing the need to focus on specific
health problems and risk groups to improve the impact of care.
Keywords: Common mental disorders; Social Assistance Reference Center; women.
Introdução
O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é uma unidade pública
estatal descentralizada da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). O CRAS é
responsável pela organização e oferta de serviços de proteção social básica nas áreas de
vulnerabilidade e risco social.
O serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), vinculado ao
CRAS, é de execução obrigatória e exclusiva àquelas famílias que são beneficiadas
com o programa bolsa família por possuírem renda per capita mensal inferior a cento
e cinquenta e quatro reais. O PAIF visa fortalecer a função protetiva das famílias,
prevenindo a ruptura de vínculos, promovendo o acesso e usufruto de direitos e
contribuindo para a melhoria da qualidade de vida (Ministério Desenvolvimento
Social, 2014).
A equipe do CRAS é constituída por profissionais (assistente social, psicólogos,
advogados, psicopedagogos, dentre outros) responsáveis pela gestão territorial da
proteção básica e pela oferta do serviço do PAIF. Sendo assim, o CRAS possui
informações sociodemográficas que podem ser utilizadas para auxiliar na identificação
da prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) em seus usuários (Oliveira et
al., 2013).
Transtornos mentais comuns, assim definidos por Goldberg e Huxley (1992),
estão relacionados a sintomas como sofrimento psíquico, insônia, cefaleia, fadiga,
irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração, tristeza, ansiedade e
preocupação somática. A prevalência de TMC situa-se entre 12% e 50%, dependendo
da população estudada e dos critérios diagnósticos utilizados (Gonçalves & Kapczinski,
2008) sendo cerca de 90% constituído por transtornos não psicóticos (Maragno et al.,
2006).
Sabe- se que o TMC é uma das maiores causas de incapacidade funcional e
que acometem em maior número as mulheres e populações economicamente mais
desfavorecidas (Fonseca, Guimarães, & Vasconcelos 2008; Aquino, Nicolau, & Pinheiro
2011). Eventos de vida estressantes e desempenho insatisfatório de papéis sociais podem
acarretar baixa autoestima, aumentando assim a suscetibilidade de transtornos mentais
comuns. Outros fatores relevantes ao aumento do TMC são internações hospitalares,
problemas interpessoais, mudanças de moradia, acesso desigual aos cuidados de saúde,
problemas de saúde, desemprego, condições inadequadas de habitação e ser vítima de
violência e criminalidade (Fonseca et al., 2008).
Jansen et al. (2011) apontam que o uso do tabaco, álcool e sedentarismo também
mostram associações com transtornos mentais comuns. O uso da nicotina pode tanto
levar ao desenvolvimento do TMC quanto ao aumento da probabilidade de tornar-se
um fumante, uma vez que o seu uso pode ser utilizado como “automedicação” para
baixar o nível de ansiedade.
Segundo Fonseca et al. (2008), os transtornos mentais comuns podem se
manifestar através de múltiplos sintomas, tais como queixas somáticas inespecíficas,
irritabilidade, insônia, nervosismo, dores de cabeça, fadiga, esquecimento, falta de
concentração, assim como uma infinidade de manifestações que poderiam se caracterizar
como sintomas depressivos, ansiosos ou somatoformes. Estudos apontam que as queixas
somáticas inespecíficas, que não são classificáveis nos manuais diagnósticos médicos
ou psiquiátricos, podem estar relacionados às relações sociais, familiares, laborativas
e econômicas (Costa & Ludermir, 2005).
Neste sentido, pesquisas têm sido realizadas em âmbito nacional e internacional
visando analisar a ocorrência de TMC na população e os resultados indicam que a
Aletheia 45, set./dez. 2014
169
associação de fatores sociodemográficos (socioeconômico e a baixa escolaridade) tem
apresentado grande relevância para o risco de ocorrência de TMC, bem como o uso de
medicações (Moreira et al., 2011).
Fonseca, Guimarães e Vasconcelos (2008) atentam para o fato de que o TMC é
uma das mais importantes causas de morbidade na atenção primária de saúde (Coutinho,
1995). Tem sido observado que indivíduos com transtornos mentais comuns apresentam,
em média, duas vezes mais queixas de saúde física do que aqueles sem TMC (Araújo
et al., 2003).
Embora os transtornos mentais não sejam causa significativa de mortalidade, são
responsáveis por mais de 12% da incapacitação decorrente de doenças, principalmente
em mulheres, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento
(Andrade, Viana, & Silveira, 2006).
No Brasil, o TMC tem apresentado grande impacto econômico em função
das demandas nos serviços de saúde e do absenteísmo no trabalho. Neste sentido, a
Organização Mundial da Saúde (2002) aponta para a importância de monitorização
da saúde mental das comunidades, através de indicadores que incluam o número de
indivíduos que apresentem este problema e a qualidade de cuidados que os mesmos
recebem.
Lima et al. (2008), em estudo desenvolvido com médicos em dois municípios
do Rio Grande do Sul, ressaltam a dificuldade em diagnosticar e tratar pacientes com
TMC e comentam que os cuidados com estes pacientes deveriam ser prestados por
especialistas e não no contexto de atenção primária, enfatizando assim a importância
da saúde mental nas comunidades. Moreira et al. (2011) apontam que no Brasil poucos
estudos foram realizados para investigar a prevalência de transtornos mentais comuns
em populações assistidas, considerando a importância do assunto para a organização
e planejamento de serviços de saúde mental.
Isto demonstra que parte dos profissionais da área da saúde carece de maior
preparação e informações sobre TMC, pois geralmente esta demanda é classificada
como pacientes poliqueixosos, psicossomáticos, funcionais, psicofuncionais, histéricos
e pitiáticos (Fonseca et al., 2008). O TMC é um problema de saúde pública que merece
ações preventivas devido às consequências sociais, econômicas e psicológicas, sendo
necessária sua identificação precoce para auxiliar e orientar os profissionais nas
intervenções.
Neste sentido, o presente estudo pretende verificar a prevalência e fatores
associados ao TMC em usuárias adultas de uma unidade do Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) da cidade de Canoas/RS.
Método
Estudo transversal, realizado com 94 mulheres usuárias de um Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) da região Nordeste de Canoas/RS. Amostra
foi constituída por todas as usuárias, com idade acima de 18 anos, que buscaram
atendimento no CRAS por um período de 15 dias consecutivos em novembro de
170
Aletheia 45, set./dez. 2014
2014. Foi aplicado um questionário sociodemográfico, desenvolvido para este estudo,
investigando as variáveis: idade, raça, escolaridade, estado civil, número de filhos e
renda familiar.
Para avaliar a prevalência de transtornos mentais comuns foi utilizado o Self
Report Questionare (SRQ-20) elaborado por Harding et al. (1980). O SRQ-20 foi
validado no Brasil para o rastreamento de transtornos mentais não psicóticos. As
respostas são do tipo sim/não e resposta positiva equivale a um ponto. Para que seja
caracterizada a presença de TMC é necessário que o sujeito atinja a pontuação acima
de 7 pontos independente do sexo. Este instrumento é recomendado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) para estudos coletivos por apresentar critérios como facilidade
de aplicação e custo reduzido (Gonçalves, Stein, & Kapezinski, 2008).
Após obter a autorização da Diretoria de Proteção Especial Básica responsável
por coordenar os CRAS, as entrevistas foram realizadas individualmente em uma
sala fornecida pela coordenação do local. As participantes da pesquisa assinaram o
termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), sendo informados os objetivos
e procedimentos do estudo, bem como assegurado o sigilo das informações
fornecidas.
Os dados coletados foram digitados em planilha Excel® e inseridos no software
SPSS 18,0 for WINDOWS (Statistical Package for the Social Sciences). Os dados foram
submetidos à análise univariada para descrição da amostra e análise bivariada (teste quiquadrado para variáveis qualitativas; teste t de student para variáveis quantitativas) para
verificar a associação entre as variáveis sociodemográficas com TMC. Foi considerado
o nível de significância P≤ 0,05.
Esta pesquisa foi submetida pelo Comitê de Ética em pesquisa da Ulbra/Canoas
com o protocolo de número 890.956 de acordo com as normas vigentes expressas na
Resolução N˚ 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde.
Resultados
Foram estudados 94 mulheres com idade entre 19 e 84 anos. A maioria era de
raça branca (73,4%), estudou até o primeiro grau incompleto (58,5%), apresentou renda
familiar inferior a um salário mínimo (76,6%), sendo 41,5% solteiras e 35,1% casadas.
A média de idade foi 44,5 anos (DP=15,5) e a média de filhos foi 3,3 (DP=2,2) (Tabela
1). A prevalência de transtornos mentais comuns foi de 52,1%. Na comparação entre as
mulheres com e sem TMC, não foram encontradas diferenças significativas em relação
às variáveis estudadas.
Aletheia 45, set./dez. 2014
171
Tabela 1 – Prevalência de transtorno mental comum (TMC) em usuárias de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) segundo variáveis sociodemográficos. Canoas/RS, 2014.
Com TMC
Variável
n
%
%
Xa
p
0,000
0,988
4,069
0,254
2,473
0,650
1,449
0,229
p
Raça
branca
69
73,4
52,2
não branca
25
26,6
52,0
solteira
39
41,5
48,7
Estado Civil
casada/união estável
33
35,1
45,5
separada
12
12,8
58,3
viúva
10
10,6
80,0
Escolaridade
1º grau incompleto
55
58,5
56,4
1º grau completo
13
13,8
53,8
2º grau incompleto
4
4,3
50,0
2º grau completo
17
18,1
35,3
Ensino superior incompleto
5
5,3
60,0
Até um salário mínimo
72
76,6
55,6
Superior a 1 salário mínimo
22
23,4
40,9
M
DP
tb
45,4
43,6
15,8
15,2
0,585
3,6
3,1
2,1
2,6
0,846
Renda familiar
Idade (anos)
Com TMC
Sem TMC
Número de filhos
Com TMC
Sem TMC
0,560
0,400
a teste do qui-quadrado, b teste t de Student.
Discussão
A prevalência de TMC nesta pesquisa foi de 52,1%, o que indica uma elevada taxa
na população alvo investigada. Estudos internacionais mostram uma prevalência de TMC
entre 24,6% e 45,3% na população geral (Ribeiro et al., 2009). No cenário brasileiro,
as pesquisas sobre TMC demonstraram taxas de prevalência que variaram de 17 a 35%
(Gomes, Miguel, & Miasso 2013). Vidal et al. (2013) mencionam que a prevalência
mundial e nacional de transtornos mentais na atenção básica é relevante, chegando a
um terço da demanda, taxas essas que alcançam e até ultrapassam os 50%. Em pesquisa
realizada no CRAS da cidade de São Lourenço do Sul- RS, foi encontrada prevalência
de 48,3% de TMC em mulheres, estando este resultado próximo ao do presente estudo
(Moreira et al., 2011).
172
Aletheia 45, set./dez. 2014
Em relação aos fatores associados ao TMC, é consenso na literatura que baixa
escolaridade, baixa renda e sexo feminino aumentam a tendência dessas manifestações
(Fonseca, Guimarães, & Vasconcelos, 2008; Gomes, Miguel, & Miasso, 2013). Costa e
Ludermir (2005) encontraram em sua pesquisa 36% de índice de TMC, relacionando os
resultados à fatores como pobreza e baixa escolaridade.
As mulheres experimentam taxas mais elevadas de transtornos do humor e
transtornos de ansiedade que os homens, estando associado a variáveis relativas às
condições de vida, às características sociodemográficas e à estrutura ocupacional (Araújo,
Pinho, & Almeida. 2005; Martin, Quirino, & Mari. 2007). Nas últimas décadas, ocorreram
mudanças consideráveis no papel da mulher na sociedade o que pode ter contribuído para
o aumento dos problemas de saúde mental nessa população (Rocha et al., 2010).
Galvão et al. (2007) destacam que, em estudos com populações femininas, há
uma maior prevalência dos transtornos mentais comuns em mulheres com piores níveis
educacionais. No caso específico da pesquisa ao se considerarem os indivíduos com 1º
grau incompleto estes representam o maior número de indivíduos com TMC, reforçando
as tendências apresentadas em outros estudos.
Júnior (2010) destaca que a baixa escolaridade pode resultar em uma diferença
significativa da capacidade de lidar com adversidades, assim como nas possibilidades
de desempenho socioeconômico, como ocupação, renda, condições de moradia, posse
de bens fundamentais, entre outros aspectos relacionados à saúde física e mental. Estas
comparações são observadas principalmente nos países desenvolvidos, onde a maioria
expressiva da população tem altos índices de escolaridade.
Considerando que o baixo nível escolar propicia menor possibilidade de inserção no
mercado de trabalho, essas duas variáveis, muitas vezes, estão associadas. A amostra do
presente estudo foi constituída exclusivamente por mulheres provenientes de um centro
de atendimento para pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social.
Em sua grande maioria, a amostra apresentou renda familiar de até um salário mínimo
e baixo nível educacional (até o primeiro grau), além de ser constituída unicamente por
mulheres. Esses fatores, conforme mencionado na literatura, podem ter potencializado
a ocorrência de TMC.
Famílias numerosas podem aumentar a possibilidade de desenvolvimento de TMC.
Araújo, Pinho e Almeida (2005) entrevistaram 2055 mulheres maiores de 15 anos na Bahia
e obtiveram uma relação diretamente proporcional entre o número de filhos e a prevalência
de TMC (30,9%), aumentando a tendência de desenvolvimento em função da sobrecarga de
trabalho, atividades domésticas e pela falta de apoio. A média do número de filhos obtida
na presente pesquisa (3,3) não contribuiu para diferenciar mulheres com e sem TMC.
Em relação à raça, o presente estudo encontrou percentuais iguais de TMC em
mulheres brancas e não brancas, contrariando achados de outros estudos. A pesquisa de
Araújo, Pinho e Almeida (2005), mencionada anteriormente, revelou maior presença de
TMC em mulheres de cor de pele negra ou parda. Estes autores igualmente mostraram
associação entre estado civil e TMC. A maioria das mulheres por eles estudadas declararam
ser solteira, separada ou viúva o que pode contribuir no aumento da jornada de trabalho
e consequente sofrimento mental proveniente da intensidade destas atividades (Araújo,
Pinho, & Almeida, 2005).
Aletheia 45, set./dez. 2014
173
A idade da mulher pode ser considerada um fator preponderante para o
desenvolvimento de TMC em função do climatério, que representa o período de vida da
mulher em que ocorre a transição da fase reprodutiva para a não reprodutiva. Esta fase é
caracterizada por profundas mudanças físicas e emocionais, as quais sofrem influência
de fatores inerentes à história de vida pessoal e familiar, ao ambiente, à cultura, aos
costumes e ao psiquismo, dentre outros (Galvão et al., 2007). A média de idade das
mulheres do presente estudo foi semelhante entre aquelas com e sem TMC (45,4 e 43,6
anos, respectivamente).
Considerações finais
A presente pesquisa permitiu verificar o perfil de mulheres que utilizaram o CRAS
no período em que os dados foram coletados e a prevalência de TMC. Embora nenhuma
das variáveis sociodemográficas estudadas tenha apresentado associação com o TMC,
considera-se que características específicas dessa população, como sexo feminino e
pertencer ao estrato populacional com maior vulnerabilidade social, contribuíram para
a alta prevalência do TMC.
Neste sentido, há evidências de que estas mulheres necessitam de atenção especial
no que se refere à promoção e proteção de sua saúde mental, fomentando a discussão
em torno da inclusão de políticas públicas e sociais que minimizem as possibilidades de
desenvolvimento de TMC.
Existe a necessidade de mecanismos efetivos que identifiquem as pessoas com
TMC e que realizem intervenções efetivas para evitar prejuízos físicos e psicológicos a
populações menos favorecidas,
Como limitações do estudo, pode-se mencionar a amostra relativamente pequena,
sugerindo-se pesquisas mais amplas, neste mesmo contexto, que ofereçam maior
possibilidade de indicar a presença de fatores associados ao transtorno mental comum.
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_____________________________
Recebido em setembro de 2015
Aceito em outubro de 2015
Letícia da Silva Kaspper: Acadêmica do Curso de Psicologia. Universidade Luterana do Brasil (ULBRA),
Canoas, RS.
Lígia Braun Schermann: Orientadora, professora do curso de Psicologia – ULBRA, Canoas, RS.
Endereço para contato: [email protected]
176
Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, p.177-189, set./dez. 2014
O corpo (im)possível através da intervenção cirúrgica:
uma revisão sobre imagem corporal, obesidade
e cirurgia bariátrica
Fabiana Brum Schakarowski
Viviane Ziebell de Oliveira
Resumo: A insatisfação com o corpo conduz cada vez mais pessoas a modificar a própria aparência.
As motivações de indivíduos obesos para a cirurgia bariátrica têm como foco principal a apropriação
da imagem corporal idealizada, calçada nos retornos sociais, padrões estéticos e desejo imediato
de mudança de vida. Porém, o processo psíquico de construção da imagem corporal é complexo,
estendendo-se ao longo da vida. Foram revisados 28 artigos sobre o tema, submetidos à análise
de conteúdo, sendo encontradas seis categorias temáticas, identificando uma lacuna a respeito da
atualização da imagem corporal no psiquismo, após a cirurgia bariátrica. O estabelecimento de
uma linha de investigação que se dedique à questão da imagem corporal poderá contribuir para
a consolidação do conhecimento sobre o tema e subsidiar uma prática clínica mais consistente e
resolutiva.
Palavras-chave: Imagem corporal; obesidade; cirurgia bariátrica.
The (im)possible body through surgical intervention:
A review on body image, obesity and bariatric surgery
Abstract: The body dissatisfaction leads more people to change their appearance. The motivations
of obese individuals for bariatric surgery have mainly focused on ownership of idealized body
image, based on social returns, aesthetic standards and immediate desire to change lives. However
the psychic process of building the body image is complex, extending throughout life. 28 articles
on the subject were reviewed, subjected to content analysis, and found six thematic categories,
identifying a gap regarding the updating of body image in the psyche after bariatric surgery.
The establishment of a line of research that engages the issue of body image may contribute
to the consolidation of the knowledge about the topic and subsidize a clinical practice more
consistent and resolute.
Keywords: Body image; obesity; bariatric surgery.
Introdução
Em nossa sociedade, a relação do indivíduo com seu corpo ganhou importância
significativa, fruto da expressão psíquica, de uma identidade social e de um modo de
vida. Houve uma mudança no estatuto do corpo, que se tornou mais vulnerável por ser
discriminado, provocando sentimentos de inadequação. A relação dos sujeitos com seus
corpos, a partir disso, passou a ser permeada por sofrimento (Campos & Rosa, 2008).
A exigência de uma aparência magra e as formas de emagrecimento vêm sendo mais
enfatizadas, muitas vezes em prejuízo da saúde do sujeito (Nozaki & Rossi, 2010). Assim,
no caso da obesidade, o que está em jogo enquanto limite da expressão do sofrimento do
sujeito é o corpo (Fônseca, 2009).
O quesito corpo passou a ser pensado de diferentes modos desde que Freud
(1923/1973) postulou que o eu (ego) é, antes de tudo, uma instância do Eu corporal: a
projeção mental de uma superfície. Através de sensações originadas no mundo externo
e das exigências pulsionais, o corpo intervém na formação do eu. Para que o Eu se
constitua, ele necessita ser informado, justamente pelo corpo, dos limites e referências
que marcam suas fronteiras (Ceccarelli, 2011). Em “Inibições, sintomas e ansiedade”,
Freud (1925) defende que a autoestima é remanescente do sentimento de onipotência
existente na infância, sendo sustentada pelo ideal. Quando esse ideal é um corpo
magro, e o indivíduo não consegue corresponder à sua própria expectativa, instalam-se
sentimentos de inferioridade. A percepção de um corpo obeso produz sentimento de culpa
e frustração, e essa evidente ameaça à autoestima faz com que o psiquismo busque meios
de satisfação, muitas vezes através do resgate de sentimentos de felicidade primitivos,
ligados à amamentação.
A expressão “imagem do corpo” foi utilizada por Paul Schilder em 1923, para
designar as representações conscientes e inconscientes da posição do corpo no espaço,
enfocando aspectos de suporte fisiológico, estrutura libidinal e significação social. Estes
estudos analisaram a formação da imagem que cada um tem de si próprio na articulação
da realidade biológica do corpo com sua realidade erógena e sua projeção no mundo. O
autor estudou minuciosamente a imagem corporal e o problema psicológico da relação
entre as impressões dos sentidos, movimentos, motilidade em geral em sua relação com o
Outro (Schilder, 1999), evidenciando que a representação mental que um indivíduo faz de
seu corpo integra aspectos físicos, emocionais e sociais. Assim, o que temos como sendo a
percepção corporal é o resultado da relação feita entre um esquema postural e a informação
dada pela nova postura ou movimento. Por meio de perpétuas alterações de posição,
o sujeito constrói um modelo postural de si mesmo, que se modifica constantemente.
Dolto (2010) utiliza o termo “imagem do corpo” para designar a encarnação simbólica
do inconsciente do sujeito desejante, ou seja, uma representação inconsciente do corpo,
distinta do esquema corporal, que seria sua representação consciente ou pré-consciente.
Segundo a autora, o esquema corporal faz parte de uma forma de percepção neurobiológica
que é a mesma para todos. A imagem do corpo é exclusiva de cada indivíduo, ligada a sua
história e relação com o mundo. Ela é eminentemente inconsciente, suporte do narcisismo
e encarnação simbólica do sujeito desejante.
As reflexões de Lacan (1998) sobre o corpo também trouxeram elementos para a
compreensão das relações entre o sujeito e o corpo próprio. A obesidade mórbida revela
um desejo sempre em falta, inserido num meio que cultua o estético e visual, que sem
saber lidar com o Outro, gera sofrimento, dúvida sobre si e relações sociais precárias.
Até o estádio do espelho o corpo é fragmentado, despedaçado, e o reconhecimento deste,
pelo sujeito, ocorre de fora para dentro, por meio da visão parcial de seu corpo e dos
dizeres acerca deste, vindos de outras pessoas. A partir do estádio do espelho, começa a
se formar um eu narcísico, em função das expectativas que o sujeito carrega em relação
ao Outro.
À luz da Fenomenologia Existencial, Merleau-Ponty (2011) traz o reconhecimento
que estamos em um mundo que, ao mesmo tempo parece nos anteceder e ter existência
independente, é inseparável de nós, e neste espaço, nesta abertura entre o eu e mundo,
178
Aletheia 45, set./dez. 2014
entre o interno e externo, inaugura um pensamento que percorre entre os dois. A
fenomenologia descreve o corpo como fenomenal, agente ativo na produção da
experiência, e como virtual, um campo de possibilidades que se volta para um ambiente
que ele mesmo constrói. A psicossomática (Kahtalian, 1992) conceitua a obesidade
como expressão sintomática dos conflitos internos e externos. Nestes indivíduos, a
imagem corporal é distorcida da realidade porque muitas vezes ela se associa a aspectos
idealizados ou patológicos que refletem dificuldades profundas de aceitação do próprio
corpo. Assim, a nova imagem adquirida após o tratamento de emagrecimento tende
a forçar, inconscientemente, o restaurar da imagem corporal introjetada na infância,
tornando-se necessário para o sucesso da intervenção que ela seja introduzida na
realidade psíquica dos sujeitos.
Como se pode ver, a construção da identidade está relacionada ao corpo, segundo
diferentes autores e linhas teóricas, dependendo das vivências e escolhas pessoais do
indivíduo, bem como da influência do meio e da história pessoal. Porém, é necessário
haver o diferencial, e a melhor maneira de se distinguir, num mundo tão visual, é com o
corpo (Le Breton, 1992). No processo de construção da identidade, a imagem corporal
assume o papel de principal veículo da identificação, pois, por intermédio dela, o sujeito
se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave de sua
evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam. Para interagir
com a cultura, adere a uma identidade exterior, abrindo mão de parte da sexualidade e da
agressividade. A identidade, para ser reconhecida, precisa do reconhecimento do outro,
e o corpo, ao invés de ser agente, passa a ser objeto da cultura (Roudinesco & Plon,
1998). As representações do corpo operam de acordo com as representações disponíveis
na sociedade, de acordo com as visões do mundo das diferentes comunidades humanas.
Neste sentido, o corpo é socialmente construído (Le Breton, 1992).
Frois, Moreira e Stengel (2011) enfocam que embora a reconstrução da imagem
corporal seja um processo contínuo, é na adolescência que esta se dá de modo estruturante,
configurando a conquista de uma identidade corporal que propõe, na melhor das hipóteses,
um desfecho com uma corporeidade bem estruturada e equilibrada na relação com o
mundo. Assim, a necessidade de ajustar a imagem corporal a novas demandas deve ser
seguida pela correspondente reorganização dessa imagem, promovendo estabilidade do
corpo e consequente reposicionamento no mundo. Em alguns casos, a reconstrução do
próprio corpo é um dos mecanismos de reconstrução da identidade, da autoestima e do
estabelecimento da relação com o mundo.
A obesidade é considerada uma doença crônica, multidimensional e com alto
grau de comorbidades (Neto & Vasconcelos, 2008). Está determinada na sociedade
como uma doença exclusivamente do corpo, o que não facilita que o sujeito construa
um questionamento acerca desta condição. Desse modo, alguns indivíduos obesos têm
dificuldade de subjetivar sofrimentos que permanecem atribuídos ao corpo (Seixas, 2008).
A cirurgia bariátrica tem sido considerada método eficaz para o tratamento da obesidade
mórbida (Cecconello, Riccioppo & Santo, 2010). Mesmo sendo um tratamento resolutivo
para doenças complexas, evidencia-se intensa busca de indivíduos obesos pela cirurgia
bariátrica, tendo como demanda principal a apropriação da imagem corporal determinada
pelos padrões estéticos atuais – e não a busca de cura de patologias associadas. Esta
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179
demanda se fundamenta na busca de retornos sociais, acompanhada pelo desejo imediato
de mudança de vida (Frois et al., 2011).
Diante da complexidade do tema, torna-se necessário aprofundar e contextualizar, na
área específica, maior conhecimento sobre as representações e interpretações relativas ao
corpo, e sua influência no processo pós-cirúrgico bariátrico. As pesquisas sobre o assunto
deixam uma lacuna a respeito da atualização do processo de restituição da imagem corporal
após a cirurgia. Neste sentido, este trabalho objetivou revisar e analisar a literatura acerca
do tema, e a partir disto, articular uma compreensão das possíveis mudanças ocorridas
após a cirurgia bariátrica no que tange a imagem corporal, destacando as condições
pertinentes ao pós-operatório de sujeitos obesos mórbidos.
Método
Foi realizada uma revisão da produção científica publicada nos últimos cinco anos,
identificada através de pesquisa em bases de dados (MEDLINE, LILACS, SCIELO),
através do Portal CAPES. Foram utilizadas as palavras chaves: imagem corporal,
obesidade e cirurgia bariátrica. Os artigos encontrados foram considerados como dados,
sendo submetidos à análise de conteúdo (Bardin, 1977). Os achados foram discutidos
à luz da psicanálise e outras teorias clássicas, com foco no tema da imagem corporal e
seus desdobramentos relacionados à obesidade e cirurgia bariátrica.
Tabela 1 – Autores informantes.
Nº
AUTOR(ES)
Nº
1
Campos, D. T. F., & Rosa, T. do V.
24
Berg, R.
2
Fônseca, P. C. A.
25
3
Ferreira, F. R.
26
Seixas, M. C.
Novaes, J. de V., Rocha, L. J. L. F., & Vilhena,
J. de
4
Carvalho, R. S. de, Castro, M. R. de, Ferreira, M. E. C., & Ferreira, M. E. C.
27
5
Ferreira, F. R.
28
6
Barros, L. P. de
29
Novaes, J. de V., Rocha, L. J. L. F., & Vilhena,
J. de
Campos, D. T. F., & Rosa, T. do V.
7
Rocha, L. J. L. F.
Carvalho, R. S. de, Castro, M. R. de, Ferreira, M. E. C., Ferreira, V. N., & Pereira,
H. A. do C.
Carvalho, R. S. de, Castro, M. R. de, Ferreira, M. E. C., & Ferreira, M. E. C.
Frois, E., Moreira, J., & Stengel, M.
Novaes, J. de & Vilhena, J. de
30
Ferreira, F. R.
31
Sepúlveda, K. R., & Vasconcelos, S. C.
32
Novaes, J. de & Vilhena, J. de
33
35
Seixas, M. C.
Campana, A. N., Campana, M. B., & Tavares,
M. da C. G. C. F.
Turato, E. R., & Vieira, C. M.
36
Barros, C. A. M.
37
Costa, R. F. da, Cordás, T. A., & Machado, S.
de C.
8
9
10
11
12
13
14
180
Frois, E., Moreira, J., & Stengel, M.
Carvalho, R. S. de, Castro, M. R. de, Ferreira, M. E. C., & Ferreira, M. E. C.
Frois, E., Moreira, J., & Stengel, M.
34
AUTOR(ES)
Bruno, C.A.N.B.
Aletheia 45, set./dez. 2014
Nº
AUTOR(ES)
Nº
15
Turato, E. R., & Vieira, C. M.
38
16
Turato, E. R., & Vieira, C. M.
39
AUTOR(ES)
Araújo, G. F. de, Barros, L. C. M., Cardoso, L.
de O., Silva, A. A. M. da, Sousa, S. M. A. de, &
Yokura, A. V. C. P.
Ferreira, F. R.
17
Marchesini, S. D.
Chillof, C. L. M., Leite, C. V. de S.,
Mendes, F. H., Pinho, P. R., & Viterbo, F.
Martins, D. da F., Noronha, A. D. P., &
Nunes, M., F., O.
40
Campos, D. T. F., & Rosa, T. do V.
41
Bertoldo, R. B., Camargo, B. V., & Secchi, K.
42
Marchesini, S. D.
18
19
20
Frois, E., Moreira, J., & Stengel, M.
43
21
Seixas, M. C.
44
22
Novaes, J. de & Vilhena, J. de
45
23
Campos, D. T. F., & Rosa, T. do V.
Loureiro, S. R., Ribeiro, G. A. N. de A., &
Santos, J. E. dos.
Oliveira, J. H. A. de, & Yoshida, E. M. P.
Carvalho, R. S. de, Castro, M. R. de, Ferreira,
M. E. C., Ferreira, V. N., & Pereira, H. A. do C.
Nota: Referências completas dos autores informantes ao término deste artigo.
Resultados
Mediante análise de conteúdo dos 28 artigos encontrados, emergiram seis categorias
temáticas que ajudaram na compreensão do tema principal deste trabalho, descritas a
seguir. Os autores (considerados neste estudo como informantes) serão identificados pela
letra A e o número correspondente segundo a Tabela 1:
Corpo e identidade corporal: Os autores pesquisados tenderam a situar o corpo
como base para suas reflexões, buscando nas referências de Freud (1926) o fundamento
teórico. Assinalaram a importância do corpo na criação e também no restabelecimento da
noção de si para si próprio e sua função ordenadora (implícita) neste processo. A partir
disto, a possibilidade de um sintoma se manifestar através do corpo ocorre quando há
uma falha na qualidade de sua representação. Lembraram ainda que nas situações em
que um sujeito vivenciou cisão anterior aos processos integradores, as fragmentações
corporais poderão colocar em risco a memória do corpo. O indivíduo pode perder a
ligação com suas sensações e percepções internas, comprometendo e experimentando
impacto negativo na imagem corporal já construída. A partir de Le Breton (1992) e
Merleau-Ponty (1999), os autores pesquisados trouxeram que a (re) construção da
identidade se estabelece através do vínculo e da relação do indivíduo com o mundo.
Portanto, a reorganização do esquema corporal exige do sujeito desenvolver um novo
estilo de visão de si e do próprio corpo. A partir disto, concluíram que, no caso de sujeitos
obesos, estes se deparam com referências fragmentadas e relações sociais fragilizadas,
não contando com nada concreto que lhes sustente, nem mesmo a sua imagem. Portanto,
passar de um corpo obeso a um corpo magro não é um processo simples, já que não
significa apenas desengordar. (A1, A2, A3, A4, A5, A6, A7, A8)
Imagem corporal: A imagem corporal apareceu nos estudos como outro fator
importante no desenvolvimento do sujeito, sendo estruturada a partir de uma troca
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181
contínua do indivíduo com o Outro desde o nascimento e reconhecida através da
projeção com o Outro, resultando em um processo cíclico e gradativo ao longo da
vida, implantado de significações a partir das vivências e referências do indivíduo.
Sendo assim, mudanças físicas e psíquicas suscitam a necessidade de constante
reorganização da imagem corporal. Os autores, usando referência de Schilder (1994),
focaram a questão da obesidade, salientando que esta será imediatamente influenciada
por modificações em qualquer função orgânica, em decorrência da transmutação
exigida a partir da diferença estática e de imagem. Nesta lógica, a incongruência entre
o corpo real e a imagem corporal é entendida como um fenômeno estruturante do
indivíduo, pois a todo instante as inscrições iniciais advindas das primeiras relações
externas são comparadas a novas imagens vivenciadas pelo indivíduo. Questões de
ordem emocional, misturadas às influências de origem cultural, podem dificultar a
idealização de um modelo de beleza inatingível, ocasionando desequilíbrio na aceitação
da imagem corporal e no desenvolvimento da autoestima. Os estudos associaram o
comportamento alimentar compulsivo à dificuldade em aceitar o próprio corpo e as
dietas restritivas à tentativa de melhorar a imagem corporal. Fatores relacionados
à imagem corporal, como a espontaneidade e diferenças no intercurso sexual para
homens e mulheres também foram estudados. Os autores também salientaram a
impossibilidade de afirmar que a personalidade do obeso seja padronizada, embora a
maioria dos pacientes tenha apresentado baixa autoestima pela não aceitação de sua
imagem corporal, além da compulsão alimentar. Afirmaram ainda a não existência
de uma imagem corporal coletiva. Justificaram explicando que o ajuste da imagem
corporal, através da estabilidade do corpo e da constante reorganização da mesma,
somente é possível perpassando as definições obtidas a partir dos outros e das mídias,
mas cabe ao indivíduo, a partir de lugares, espaços e dimensões, ir construindo a
formação harmônica da sua imagem corporal. (A9, A10, A11, A12, A13, A14, A15,
A16, A17, A18, A19, A20)
Obesidade e sofrimento psíquico: A obesidade foi vista pela sociedade como
uma doença do corpo, sendo considerada um sintoma por alguns autores. Outros
consideraram que, se a expressão do corpo é a expressão de si mesmo, a obesidade não
pode ser reduzida a um sintoma, pois coloca em destaque a relação do obeso com seu
corpo para além da noção de um corpo biológico, enfocando a recorrência de sofrimento
psíquico. O indivíduo obeso nem sempre consegue elaborar um questionamento acerca
de sua real obesidade e seus conflitos psíquicos ficam camuflados pela determinação
social. Numa sociedade onde a obesidade é considerada padronizada, a compulsão
se torna uma das formas de sofrimento. Quando não vivenciado conscientemente, o
sofrimento psíquico pode provocar quebra do sistema regulador dos afetos, canalizando
para a compulsão, cuja função seria de ajudar a suportar uma dor de ordem emocional,
transformando-a em dor corporal. A dor psíquica é suportada através de uma ação
repetitiva e angustiada pela via do corpo. No entanto, nesta situação, a imagem corporal
do indivíduo e sua relação com o Outro, pode trazer consequências e sofrimento. Nesta
mesma linha, os autores afirmaram que disfunção genética, maus hábitos alimentares
ou do estilo de vida contemporâneo, também não podem ser restringidos a sintomas.
(A21, A22, A23, A24, A25, A26, A27, A28, A29)
182
Aletheia 45, set./dez. 2014
Representação social do corpo: Segundo o material analisado, a produção
de sentidos sobre a imagem do corpo e a percepção que o sujeito tem do mesmo é
individual, mas é também coletiva. Ela opera no social, mas não se limita a ele, se amplia
para além do indivíduo, das relações interpessoais ou dos complexos intrafamiliares,
mesclando intensidades pré-verbais, afetos e códigos sociais de conduta. Com seu
corpo excessivamente cheio, o obeso denuncia o mal estar social perante os ideais
requeridos, demonstrando “na carne” que não se pode escapar às marcas da cultura.
Quando práticas corporais equilibradas não são cultivadas, pessoas obesas infringem
um lugar social. A partir disto, a obesidade passa a ser determinada socialmente como
uma doença do corpo, disfarçando os conflitos psíquicos, não permitindo que o obeso
construa um questionamento acerca de sua real situação. (A30, A31, A32, A33)
Insatisfação com a Imagem corporal: O contínuo desagrado com a imagem
corporal está diretamente ligado à insatisfação corporal. Porém, ao fixar-se na
insatisfação com sua imagem corporal, o indivíduo tenta desviar o foco do processo de
adoecimento crônico por síndrome metabólica, o que poderá interferir negativamente
no desenvolvimento do autocuidado. A insatisfação corporal poderá gerar situações que
terminarão por deixar marcas com outras roupagens na vida do adulto. Outro exemplo
pode ser encontrado em mulheres obesas portadoras de transtorno de compulsão
alimentar periódico, que apresentam maior preocupação com sua aparência física e
maior insatisfação corporal. Autoestima e qualidade de vida do indivíduo, através de
constantes insatisfações estigmatizam o corpo, comprometendo a imagem corporal
(A34, A35, A36, A37, A38).
Cirurgia bariátrica e suas repercussões: Os autores lembraram que os processos
fisiológicos e psíquicos são interdependentes e desde os primórdios da construção da
subjetividade, dialogam entre o biológico e o simbólico. Num movimento inconsciente
de corte no real para estancar um corte no simbólico, a escolha de indivíduos obesos
pela cirurgia bariátrica se inscreve em uma dinâmica singular. A mudança física
decorrente do procedimento ocasiona adaptação à sua identidade, mecanismos de
defesa e organização psíquica, causando grande impacto na relação entre subjetividade
e corpo. Representações sociais e vivência subjetiva, ligados à imagem corporal podem
ser incompatíveis. O material analisado evidencia que pacientes submetidos à cirurgia
bariátrica podem apresentar maiores distorções perceptivas corporais, ocasionando
defesas visuais e reganho de peso excessivo, bem como alterações psicológicas
relacionados à autoimagem. As mudanças físicas decorrentes da cirurgia podem
ocasionar efeitos psicológicos negativos. Foi ainda constatado que, contando com o
recurso de cura, pacientes enquanto candidatos à cirurgia bariátrica não se preocupam
em perder peso. Frente a isto, o emagrecimento pela cirurgia bariátrica poderá gerar
desejos, planos e sentimentos ambivalentes, ocasionando frustração e culpa (A39, A40,
A41, A42, A43, A44, A45).
Discussão
A proposta inicial deste trabalho foi estudar as possíveis articulações entre os temas
obesidade, imagem corporal e cirurgia bariátrica. No entanto, a relevância da problemática
Aletheia 45, set./dez. 2014
183
da obesidade e suas repercussões psíquicas na constituição da imagem corporal ampliaram
o foco do trabalho para a influência do corpo na constituição do sujeito, destacando a
importância da compreensão deste processo como base na cirurgia bariátrica. A partir
do material selecionado, verificou-se que os autores utilizaram referenciais teóricos da
psicanálise (Freud, Lacan), fenomenologia existencial (Merleau Ponty) e relativismo social
(Le Breton). Para discutir os achados deste estudo, partiremos da obesidade mórbida tipo
III, cujo método de tratamento considerado mais eficaz, para a redução de comorbidades
e melhora na qualidade de vida do sujeito, tem sido a cirurgia bariátrica (Araújo, et al.,
2011; Berg, 2011; Boscatto, Duarte, Gomes & Gomes, 2010). Esta proposta de tratamento,
muitas vezes é a forma imediata de assegurar qualidade de vida ao sujeito, mas pode
desencadear sintomas psicopatológicos pré e pós-operatórios (Campos & Rosa, 2008).
Procedimentos drásticos com relação à obesidade somente devem ser adotados quando
houver ameaça a vida do sujeito, e quando tratamentos convencionais não atingiram
o efeito desejado (Marcelino & Patrício, 2011). O material estudado evidenciou que a
realização da cirurgia bariátrica envolve uma série de expectativas, sendo que muitas
vezes o paciente não se dá conta da complexidade cirúrgica e suas implicações no pósoperatório no que se refere à imagem corporal. Apesar dos benefícios proporcionados pela
cirurgia, alguns pacientes apresentam dificuldades em lidar com a manutenção do peso
e/ou com o impacto decorrente de conflitos relacionados ao ajuste da imagem corporal.
Ao mesmo tempo, percebe-se que a cirurgia bariátrica pode ser utilizada como barreira
no controle das emoções, refletida sobre o ato de comer, que o obeso não desenvolveu
de forma equilibrada.
Segundo Schilder (1999), a descrição do modelo postural do corpo será a base das
atitudes emocionais para com o mesmo. As impressões provenientes desta desempenham
papel na construção do conhecimento do corpo, mas se confundem com a estrutura erógena
e libidinal, com o suporte biológico e fisiológico, com a projeção da imagem corporal
no meio social. Mudanças drásticas na imagem corporal de indivíduos obesos podem
ocasionar angústia pelo não reconhecimento em seu novo corpo (Campos & Rosa, 2009),
havendo necessidade de um longo período de ajuste psíquico ao novo esquema corporal,
que dependerá dos processos integradores anteriores à cirurgia. Padrões estáveis, sobretudo
familiares são primordiais para apropriação de uma imagem corporal equilibrada, por não
comprometerem a estruturação da corporeidade do sujeito (Frois et al., 2011).
Quanto mais o sujeito se afasta do próprio corpo, menos promove sua saúde mental
e qualidade de vida. Com o distanciamento gradativo, ele canaliza a energia mental
para seu próprio Eu. Sentidos e significados devem ser equilibradamente construídos e
reconstruídos ao longo do tempo, contribuindo para posterior apropriação da imagem
corporal na vida do sujeito (Frois et al., 2011). O desenvolvimento da imagem corporal é
guiado pela experiência, erro e acerto, esforço e tentativa (Schilder, 1999). Nesse sentido,
a formação da imagem corporal ocorre em uma relação intrínseca com a formação da
própria identidade (Carvalho et al., 2010). No presente estudo enfoca-se a imagem
corporal como um processo contínuo de construção e desconstrução, e as vivências do
movimento como vias de aquisição de significações que se apresentam ao corpo (Berg,
2011; Barros, 2009; Ceccarelli, 2011; Ferreira, 2008; Schilder, 1999). O corpo que não
integra percepções e sensações de forma equilibrada, não forma limites entre o dentro
184
Aletheia 45, set./dez. 2014
e o fora, tornando-se impedido de estabelecer trocas (Campana, Campana & Tavares,
2009). Neste contexto, foi possível compreender que a cirurgia bariátrica vem a serviço
do imediatismo do sujeito. Porém, a apropriação da nova imagem corporal não ocorre
logo após a cirurgia, aumentando a frustração e angústia, pois o sujeito não se reconhece
em seu novo corpo. Com o tempo, a tendência do indivíduo é restaurar a imagem
corporal introjetada na infância (Kahtalian, 1992). Esse processo de introjeção é iniciado
a partir da experiência alternada entre fome e saciedade, juntamente com as sensações
vividas pelo bebê. Dificuldades na função materna neste período inicial, possivelmente
desencadearão dificuldades na aquisição dos mecanismos de projeção (Fônseca, 2009).
O precário conhecimento de si e as próprias limitações também podem comprometer as
mudanças de atitude após o procedimento.
No estágio do espelho, Lacan (1998) aponta o momento de organização da estrutura
do sujeito, a referência simbólica que o outro ocupa, o modo como o sujeito, em relação
ao outro, regula sua própria imagem. Esta identificação jamais se tornará completa, não
havendo correspondência possível entre um Eu social e o inconsciente, gerando uma eterna
busca por aquele momento em que a criança se volta para o adulto, como se buscasse seu
consentimento. Isto leva a pensar que, o que necessita a mudança é a imagem que cada
um tem de si mesmo, mais do que o corpo em si, pois aceitar-se como pessoa é aceitar a
própria aparência. É necessário destituir da ideia de saúde do sujeito à cirurgia com caráter
estético, pois as intensas mudanças físicas decorrentes exigem uma resposta intrapsíquica
dinâmica, para a qual nem sempre o sujeito está minimamente organizado.
A obesidade se utiliza da inscrição corporal para dar vazão às emoções (Berg,
2011). Para dar conta dessa problemática, o indivíduo precisaria de organização psíquica
estável e identidade estruturada antecedendo o processo cirúrgico. Este resultado exigiria
um investimento em tratamento psicoterápico, processo geralmente negado por requerer
investimento emocional do sujeito e adiamento da demanda de resultado imediato. Em
contraponto, cada vez mais sujeitos se apropriam do discurso médico para falar de sua
obesidade como doença, se eximindo da responsabilidade frente sua real patologia
(Sepúlveda & Vasconcelos, 2011). Nesse momento surgem divergências no discurso
da medicina e psicologia, no que tange ao processo de construção do saber em torno
do corpo. Semelhanças e diferenças em cada especialidade dependem, além da própria
estrutura, do recorte feito por cada um, contribuindo para um trabalho multidisciplinar
(Berg, 2011). A medicina, através da cirurgia bariátrica, trabalha o “corte” no orgânico,
visando uma ruptura radical no real do corpo, enquanto que a psicologia oportuniza ao
sujeito, através da psicoterapia, reavaliar o verdadeiro “corte no simbólico” através de
seus desejos e investimentos, confrontando com sua falta e sua própria história (Campos
& Rosa, 2008).
Cada sujeito elabora a imagem de seu corpo à sua própria maneira, tendo por base
vivência passada e presente. Alteração em uma parte do corpo, como ocorre através
do controle das alterações metabólicas pela cirurgia bariátrica, são insuficientes para
promover modificações na imagem corporal. O resultado desta construção não é consciente
e envolve mecanismos complexos de projeção, introjeção, identificação, dentre outros,
evidenciando também que a constituição do corpo sofre forte influência social (Le
Breton, 1992). O contexto sociocultural também foi ressaltado alusivo à discriminação
Aletheia 45, set./dez. 2014
185
com indivíduos obesos, pela imposição de padrões sociais de beleza, produzindo grande
impacto na subjetividade do indivíduo; e cada época pode lhe atribuir um significado,
o construir e reconstruir, o decorar e o desvelar (Ceccarelli, 2011). Neste processo de
construção da identidade, a imagem corporal assume papel de principal veículo de
identificação (Ferreira, 2008).
Pelo que se discutiu até o momento, a modificação corporal pós-cirúrgica se mostra
tarefa ampla, árdua e difícil, pois envolve processos complexos e mobiliza desejos que
agem e que esperam serem elaborados enquanto representação (Campos & Rosa, 2008),
mas por outro lado, o emagrecimento advindo da cirurgia bariátrica também produz efeitos
positivos, fortalece o ego e sustenta, em parte, uma tentativa de mudança, de realização
do desejo inconsciente (Campos & Rosa, 2008).
O material revisado corrobora a observação clínica de que a maioria dos sujeitos que
buscam a cirurgia bariátrica apresentam importantes alterações emocionais relacionadas ao
sofrimento por ser obeso. Nesse processo, muitas vezes o sujeito não consegue identificar
os limites de expressão do sofrimento, depositando no próprio corpo suas frustrações.
A mudança no corpo faz refletir a identidade, mecanismos de defesa e organização
psíquica. Fatores de risco psicossociais vinculados à realização da cirurgia, como a
presença de alguma psicopatologia também podem complicar ainda mais o ajuste da nova
identidade corporal no pós-operatório. Portanto, a psicologia tem papel insubstituível, para
trabalhar as vivências de angústia pela obesidade e as decorrentes dos possíveis desejos
não conquistados através cirurgia, de forma que elas se tornem menos ameaçadoras,
restaurando e promovendo a saúde e a qualidade de vida do indivíduo.
Considerações finais
Este estudo evidenciou que, ao mesmo tempo em que a cirurgia bariátrica representa
um desejo do sujeito de realizar mudanças imediatas no corpo e na própria vida, ela
também impõe vivências inerentes ao processo de emagrecimento. Após a cirurgia, os
indivíduos continuam enfrentando o desafio de experimentar uma nova apropriação de
sua imagem corporal. Esse processo de adequação da imagem corporal é complexo e
ocorre ao longo da vida, exigindo tempo diferente do momento coadjuvante de intervenção
cirúrgica. Por conta disto, a intervenção psicológica sistemática se faz imprescindível
no processo de reorganização saudável da imagem corporal. Somente através da adesão
ao tratamento e corresponsabilidade do sujeito os resultados da intervenção cirúrgica
serão atingidos, tornando o corpo resultante desta intervenção “possível”. A partir dessas
reflexões, esperamos ter contribuído para melhor entendimento acerca da temática
discutida, estimulando novas pesquisas que possam ser úteis na prática clínica dentro da
complexidade que envolve a obesidade e a cirurgia bariátrica.
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_____________________________
Recebido em julho de 2013
Aceito em abril de 2015
Fabiana Brum Schakarowski: Psicóloga. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Hospital de Clínicas de
Porto Alegre – HCPA. Mestre em Psicologia (UNISINOS).
Viviane Ziebell de Oliveira: Psicóloga contratada do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA. Doutora
em Psicologia (UFRGS). Psicoterapeuta (IEPP).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
189
Aletheia 45, p.190-201, set./dez. 2014
Múltiplas definições de ser fumante e diagnóstico
de tabagismo: uma revisão sistemática
Arianne de Sá Barbosa
Layrianne de Sá Barbosa
Lidiane Rodrigues
Karla Loureto de Oliveira
Irani Iracema de Lima Argimon
Resumo: Esta é uma revisão sistemática de artigos que trataram sobre as definições de ser
fumante, dependente químico de cigarro e tabagista e os elementos associados a cada definição.
A busca em bases eletrônicas de dados foi realizada no mês de abril de 2013, no PUBMED,
MEDLINE, LILACS e PSYCINFO. Os descritores foram: smoker OR tobacco addicted OR
nicotine addicted OR tobacco user OR nicotine user, que deveriam aparecer no título dos artigos.
Foram selecionados 17 artigos do total de 235. Destes, foram encontradas 16 definições diferentes
para o que é ser fumante, sendo que apenas dois artigos apresentavam uma definição comum
para o termo. Conclui-se que não há uma definição única de ser fumante: há diversos fatores
envolvidos na identificação do tabagista. Porém, a formulação de definições mais consistentes e
de instrumentos validados de avaliação são importantes para a melhor qualidade de intervenções
e pesquisas na área do tabagismo.
Palavras-chave: Revisão sistemática; fumante; tabagismo.
Multiple definitions and diagnosis of smoking: A systematic review
Abstract: This study aims to conduct a systematic review of articles that dealt with the definitions
of being a smoker and cigarette addict and the elements associated with each setting. The search
in electronic databases was conducted in April 2013, on PUBMED, MEDLINE, LILACS and
PSYCINFO. The descriptors were: smoker OR tobacco addicted OR nicotine addicted OR tobacco
user OR nicotine user, which should appear on the articles titles. Out of 235 references, 17 articles
were selected. Of these, there were 16 different definitions for what is a smoker, and only two
articles had a common definition for the term. There isn´t a general definition of being a smoker:
there are several factors involved in the smoker’s identification. However, the formulation of more
consistent definitions and validated assessment instruments are important for the best quality of
interventions and research in the smoking area.
Keywords: Systematic review; smoker; diagnosis; smoking.
Introdução
O tabagismo é hoje um dos principais problemas de saúde pública. É notória a
participação do tabaco no aumento e/ou agravamento de doenças cardiovasculares,
pulmonares, circulatórias e numerosos tipos de câncer, contribuindo para o incremento
da morbidade e mortalidade populacional (Moriel, Madureira, Uwagoya, Wlian, &
Pincinato, 2010; Oga, 1996; World Health Organization, 2011).
Tabagistas se expõem continuamente a cerca de 4.720 substâncias tóxicas, fazendo
com que o tabagismo seja fator causal de aproximadamente 50 patologias (International
Agency for Research on Cancer, 1987; Rosemberg, 2002; U.S. Surgeon General,
1988; World Health Organization, 2002a). O total de mortes no mundo, decorrentes
do tabagismo, é de aproximadamente cinco milhões ao ano.
Se tais tendências se mantiverem, as mortes causadas pelo uso desta substância
psicoativa (SPA) alcançarão 8,4 milhões/ano em 2020. No Brasil, ocorrem cerca de
200 mil mortes por ano em consequência do tabagismo (Brasil, n.d.; Corrêa, Barreto,
& Passos, 2009; Instituto Nacional do Câncer, 1997; World Health Organization,
2002b).
Diante de tal realidade, foram desenvolvidos vários estudos sobre tabagismo,
porém ainda não há uma definição única sobre o que é ser fumante (Barbosa, 2010;
Barbosa & Bizarro, 2012). O aumento da compreensão sobre as definições de ser
fumante pode levar à formulação de estratégias de prevenção e de tratamento mais
eficazes.
Sendo assim, este estudo tem como objetivo realizar uma revisão sistemática
da literatura sobre a produção científica na área da saúde de artigos e periódicos que
trataram do tema: ser usuário, dependente químico de tabaco, tabagista, fumante, exfumante, fumante leve, moderado, pesado, ocasional, social, situacional, dentre outras
dimensões e definições relacionadas.
Método
Trata-se de um estudo descritivo, de revisão sistemática da literatura nacional e
internacional. A revisão sistemática da literatura permite a busca, a avaliação crítica
das evidências disponíveis sobre um determinado tema investigado. Proporciona uma
síntese do conhecimento já produzido e fornece subsídios para melhoria da assistência
à saúde (Reinaldo, Goecking, Almeida, & Goulart, 2010).
A busca ativa em bases eletrônicas de dados foi realizada em abril de 2013. A
procura pelos artigos foi realizada nas bases de dados: PUBMED, MEDLINE, LILACS
e PSYCINFO. Os descritores utilizados foram: smoker OR tobacco addicted OR
nicotine addicted OR tobacco user OR nicotine user, que deveriam aparecer no título
dos artigos. A opção por limitar a busca dos descritores aos títulos se deu para que
houvesse uma seleção prévia dos artigos que traziam uma perspectiva de definição dos
descritores no resumo ou corpo do texto. Observou-se que, quando tal restrição não
era realizada, a maioria dos artigos que aparecia fugia do tema desta revisão. A Figura
1 ilustra os passos utilizados para rastrear e selecionar os artigos.
Aletheia 45, set./dez. 2014
191
Figura 1 – Fluxograma de seleção de artigos incluídos na revisão.
Definição de termos de busca:
smoker OR tobacco addicted OR nicotine
addicted OR tobacco user OR nicotine user
Definição de limites
- Linguagem: Inglês e Português
- Estudos em humanos com resumo disponível
- Descritores no título do artigo
- Ano de publicação: de 2009 a 2013
- Empíricos ou Revisões
- Trazer perspectiva de definição dos descritores
no resumo ou corpo do texto
Identificação de artigos com termos de busca
- Pubmed: base de dados
-Medline: base de dados
- Lilacs: base de dados
- PsycINFO: base de dados
Inclusão dos artigos
- Estudos na população tabagista
- Trazer definição clara dos descritores no texto,
ou seja, do que é ser fumante OU dependente de
tabaco OU de nicotina OU usuário de tabaco OU
de nicotina
Exclusão dos artigos
- Artigos com enfoque em outra doença, tendo o
tabagismo como fator de risco ou fator de
confusão
- Avaliação de subpopulação específica
- Artigos de avaliação de serviços de saúde ou
de abordagem sobre o conhecimento dos
profissionais de saúde
- Intervenções terapêuticas sem caracterização
do fumante OU dependente de tabaco OU de
nicotina OU usuário de tabaco OU de nicotina
- Estudos sobre tabagismo passivo
Artigos incluídos na revisão
Os trabalhos encontrados foram divididos entre três pesquisadores para a seleção
dos artigos a serem incluídos na revisão. O estudo foi classificado em incluído, excluído
ou dúvida, utilizando os critérios de seleção descritos. Os trabalhos que geraram
dúvidas foram avaliados pelos três pesquisadores para definição por consenso sobre sua
classificação final.
Dos incluídos, foram registrados o título, o ano de publicação, o primeiro autor,
o tema principal, a língua, o país de origem, a população alvo, o registro sobre o uso
de instrumentos e o critério de definição dos descritores, bem como o tipo de método
utilizado (artigo de revisão ou empírico) e a base de dados no qual foi encontrado. Foram
anotadas as razões de retirada dos excluídos.
Critérios de inclusão e exclusão
Os artigos encontrados foram submetidos aos critérios de inclusão: artigo escrito
em português ou inglês, tempo de publicação de, no máximo, cinco anos (2009-2013),
192
Aletheia 45, set./dez. 2014
população alvo composta por fumantes, usuários e/ou dependentes químicos de
tabaco e perspectiva de definição dos descritores no resumo ou corpo do texto. Foram
excluídos aqueles estudos que não apresentavam resumo, os publicados há mais de
cinco anos, aqueles que não apresentavam como público-alvo os fumantes, usuários
e/ou dependentes químicos de tabaco, que não apresentavam uma perspectiva de
definição dos descritores no resumo ou no corpo do texto e aqueles que não estavam
com o texto completo. Mesmo com a busca dos descritores limitada ao título, ainda
apareceram alguns artigos que fugiram do objetivo do estudo (conforme Figura 1).
Todos foram excluídos.
Metodologia de classificação
Fez-se a leitura, inicialmente, dos resumos encontrados para identificar a
pertinência ao objeto estudado. Posteriormente, buscou-se os artigos na íntegra, os
quais foram analisados e selecionados. Por fim, as evidências oriundas deles foram
interpretadas.
Resultados
Os descritores, depois de utilizados nas bases de dados, revelaram a existência,
na ocasião da coleta de dados da pesquisa, do total de 235 artigos. A partir dessa
etapa, obedecendo-se aos critérios de inclusão e exclusão previamente estabelecidos
para a seleção dos resumos, obtiveram-se 55 artigos, avaliados, aqui, de forma
independente.
No PUBMED, foram encontrados 124 artigos que obedeceram aos limites, sendo
que 21 deles obedeceram aos critérios de inclusão desta revisão. No MEDLINE, não
foram encontrados artigos que obedecessem aos limites e preenchessem os critérios
de inclusão. No LILACS, foram encontrados 61 artigos que obedeceram aos limites,
e, destes, um obedeceu aos critérios de inclusão. No PSYCINFO, foram encontrados
50 artigos que obedeceram aos limites, sendo que 33 deles obedeceram aos critérios
de inclusão.
Após esta primeira etapa de seleção, foi iniciada a busca pelos 55 artigos completos
para a sua leitura integral. Deste universo, 33 não preencheram os critérios de inclusão,
sendo excluídos da análise dos dados. Um não era artigo de revisão ou empírico: era
um comentário que parecia uma revisão através da leitura do resumo; 16 artigos não
tinham texto completo disponível para leitura; 16 não apresentaram definição clara
sobre nenhum dos descritores.
Assim, através da segunda etapa de seleção (leitura dos textos completos), restaram
17 artigos que foram analisados e discutidos nesta revisão, já descontando os artigos
que apareceram repetidos em diferentes bases de dados (cinco artigos). Todos estes
resultados estão ilustrados na Figura 2.
Aletheia 45, set./dez. 2014
193
Figura 2 – Fluxograma com resultados obtidos na seleção de artigos.
Critério de busca
Artigos encontrados: 235
• 61 (Lilacs)
• 0 (Medline)
• 124 (Pubmed)
• 50 (PsycInfo)
Critérios de seleção dos resumos
Artigos selecionados: 55
• 1 (Lilacs)
• 0 (Medline)
• 21 (Pubmed)
• 33 (PsycInfo)
Critérios de seleção após leitura
dos artigos completos
Artigos selecionados: 22
• 1 (Lilacs)
• 0 (Medline)
• 10 (Pubmed)
• 11 (PsycInfo)
Exclusão dos artigos repetidos
(05 artigos)
Artigos selecionados: 17
Características das publicações
Entre os trabalhos selecionados, 94,12% (n=16) eram escritos na língua inglesa e
apenas 5,88% (n=1) era escrito na língua portuguesa. Além disso, 58,82% (n=10) eram
originários dos Estados Unidos, 23,53% (n=4) de países europeus (2 da Inglaterra, 1
da Grécia e 1 da Finlândia/Suécia), 11,76% (n=2) do Brasil e 5,88% (n=1) da Nova
Zelândia (Oceania).
Dos 17 artigos analisados integralmente, 16 (94,12%) não traziam utilização de
um instrumento testado ou validado para a definição do que é ser um fumante: apenas
um utilizou um questionário do Centers for Desease Control and Prevantion (CDC) e o
California Tobacco Survey for Youths. Do restante, oito artigos consideraram o autorelato
do fumante (este se intitular tabagista), sete utilizaram questionários desenvolvidos pelos
seus grupos de pesquisa e dois, entrevistas.
194
Aletheia 45, set./dez. 2014
Categorização dos principais resultados
Todos os artigos analisados eram oriundos de pesquisas empíricas. Foram
categorizados conforme o tema principal que abordaram e os critérios que utilizaram
para definir o que é ser fumante.
Os artigos foram divididos em cinco categorias, conforme a predominância do
tema que abordavam. Seis artigos tratavam de temas relacionados a Fatores associados
ao tabagismo, como comorbidades psiquiátricas, desempenho de comportamentos
exploratórios e alterações no processamento de recompensa neural. Cinco artigos
abordavam temas relacionados à Opiniões/Percepções sobre o tabagismo, como a
percepção dos jovens sobre fumantes de sua idade, os tipos de fumantes na visão dos
adolescentes, relatos negativos de se autodeclarar fumante, definição de ser fumante,
fumante incondicional e tabagismo continuado.
Três artigos traziam temas relacionados à Perfil e Prevalência, como prevalência
do consumo de tabaco e perfil do tabagismo em Joaçaba, perfil do fumante brasileiro
e incidência de fumantes fantasma, ou seja, de fumantes que não se declaram
fumantes. Dois artigos traziam temas que debatiam os fatores associados à Cessação
do tabagismo, como motivadores e marcos característicos para parar de fumar. Um
artigo relatava o desenvolvimento de um Instrumento de Avaliação do Fumante.
Quanto ao resultado principal revelado por esta revisão, apenas dois artigos
trouxeram a mesma definição do que é ser fumante. Foram encontradas 16 definições
diferentes para o que é ser fumante entre os 17 artigos desta revisão: 1) fumante é
aquele que fumou mais de 100 cigarros na vida e o último fumo foi há menos de 30
dias (n=2); 2) fumante é aquele que declara fumar todos os dias; 3) fumante é aquele
que fuma nove cigarros por dia; 4) fumante é aquele que fuma diariamente 5 ou 6
cigarros há mais de 5 anos, sem pretensão de parar de fumar; 5) fumante é aquele
que fuma pelo menos sete cigarros por dia e tem uma concentração de monóxido de
carbono (CO) maior ou igual a 6 ppm; 6) fumante é aquele que fuma pelo menos
dez cigarros por dia e tem uma concentração de CO maior a 10 ppm; 7) fumante é
aquele que fuma há pelo menos três anos, relata o uso de 5-30 cigarros por dia e não
tem a intenção de parar de fumar em 3 meses; 8) fumante é dividido em fumante
ocasional, tabagista diário moderado (fuma de 1 a 10 cigarros por dia) e tabagista
diário pesado (mais de 10 cigarros dia); 9) fumante é aquele que tem uma pontuação
entre 10-70 na Escala de Classificação de Fumantes avaliada no estudo; 10) fumante é
definido considerando-se a frequência, os fatores do contexto (sozinho ou em festas),
o tempo desde o início, se compra cigarros ou os pede emprestado, em termos de ter
o vício e parar sem esforço, se o fumar é habitual e tem características físicas e de
personalidade; 11) fumante pode ser regular ou ocasional; 12) fumante é definido de
acordo com a frequência, quantidade, local e duração; 13) fumante é aquele que fuma
pelo menos um cigarro por semana; 14) fumante é aquele que fumou nos últimos
30 dias; 15) fumante é aquele que fumou alguma vez na vida; 16) fumante é aquele
que se autodeclara fumante.
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195
Discussão
Aspectos gerais sobre as publicações
A maioria dos artigos encontrados estavam escritos em língua inglesa (n=16) e
eram originários dos Estados Unidos (n=10), o que reflete a importância que este país
confere a pesquisas na área do tabagismo. Esta é uma realidade já percebida por outros
estudos, que mostram que os EUA responderam por 30% de todos os artigos publicados
no mundo (Santos, Silveira, Oliveira, & Caiaffa, 2011).
Somente dois artigos oriundos do Brasil foram encontrados, um número pequeno
e paradoxal frente às políticas de controle do tabagismo desenvolvidas pelo governo
brasileiro, que são referências para todo o mundo (Brasil, 2001; Brasil, 2003; Brasil,
2009). A quantidade de artigos que não utilizou instrumento testado ou validado para
a definição do que é ser um fumante também é preocupante (n=16), pois demonstra a
falta de critérios unificados para o diagnóstico adequado do tabagista, o que interfere na
abordagem que será realizada junto a este público.
Múltiplas definições de ser um fumante
O tabagismo passou a ser visto como uma enfermidade a partir de um relatório
sobre estudos que mostram a capacidade do tabaco de causar dependência, publicado
pelo Ministério da Saúde dos Estados Unidos em 1988 (U.S. Surgeon General, 1988).
Em 1992, a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO) incluiu o tabagismo no grupo
dos transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de substâncias psicoativas,
na Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Tabagismo e
dependência química de tabaco, a partir de então, passaram a ser vistos como sinônimos.
No Brasil, essa versão da CID-10 somente foi publicada em 1993 (Slade, 1993; World
Health Organization, 1992).
Justamente devido ao fato histórico de o tabagismo ter sido definido como uma
doença somente na década de noventa, percebe-se que ainda há uma confusão sobre o
que é ser fumante, já que diversas dimensões associadas ao tabagismo ainda estão sendo
descobertas. Nesta revisão, os resultados obtidos mostram diferentes concepções sobre
quem é o tabagista, o que pode gerar discrepâncias na comparação de estudos em uma
mesma população ou dificultar a comparação de dados sobre o tabagismo em diferentes
populações.
Além disso, o uso de conceitos distintos pode influenciar a interpretação sobre
os resultados de pesquisas sobre intervenções terapêuticas. Provavelmente, um grupo
de fumantes que fuma um cigarro por semana irá responder de forma diferente a um
tratamento em relação a um grupo de fumantes que fuma 10 cigarros por dia (Santos et
al., 2011).
Percebe-se que mesmo havendo uma convergência entre os dois principais critérios
diagnósticos (CID-10 e DSM-IV-TR). Quanto à classificação e definição da dependência
química de tabaco, na prática, estes critérios não são totalmente utilizados pelos programas
de tratamento e pelas pesquisas sobre o tabagismo (American Psychiatric Association,
2008; WHO, 1992).
196
Aletheia 45, set./dez. 2014
A dependência química é vista como uma enfermidade incurável e progressiva,
apesar de poder ser estacionada pela abstinência. É o conjunto de fenômenos
comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o repetido consumo
de uma substância psicoativa (SPA). Estes são os critérios adotados pela Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) e
pela 4ª edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV-TR)
para o diagnóstico da dependência química, que deve ser feito somente se três ou mais
dos referidos critérios tenham sido preenchidos por algum tempo durante o último ano
(APA, 2008; WHO, 1992). Porém, nem todo fumante pode ser considerado dependente
químico de tabaco.
Há estudos que consideram como fumantes pessoas que declaram consumir, pelo
menos, um cigarro por dia (alguns destes estudos exigem que esse hábito exista por, no
mínimo, um ano), independentemente se estas preenchem ou não os critérios diagnósticos
da CID-10 ou do DSM-IV-TR (Lopes, 2009; Rondina, Gorayeb, Botelho, & Silva, 2005a;
Rondina, Gorayeb, Botelho, & Silva, 2005b). Além disso, Rondina et al., (2005b) fez uma
diferenciação entre fumantes com alto grau de dependência e fumantes não dependentes,
de acordo com a pontuação que os participantes do estudo obtiveram no Questionário
de Tolerância de Fagerström.
Este instrumento é utilizado para a avaliação dos tabagistas do programa de
tratamento para a cessação do tabagismo oferecido pelo Sistema Único de Saúde
(Heatherton, Kozlowski, Frecker, & Fagerström, 1991). Ele define a dependência
de cigarros como uma variável contínua, mas que apresenta uma linha divisória que
permite diferenciar fumantes com alto grau de dependência, daqueles com menor grau
de dependência (Pomerleau, 1997).
Uma soma acima de seis pontos no Questionário de Tolerância de Fagerström
revela que provavelmente o indivíduo sentirá os sintomas de síndrome de abstinência, ao
interromper o consumo de tabaco (Instituto Nacional do Câncer, 1997). Assim, Rondina
et al., (2005b) considerou como fumantes com alto grau de dependência os participantes
que apresentaram pontuação superior a 06 no Teste de Fagerström. Foram classificados
como fumantes não dependentes participantes com pontuação igual ou menor a seis.
Mesmo flexibilizando o conceito de fumante, em relação à CID-10 e ao DSMIV-TR, considerando-o como o participante que declarara consumir pelo menos um
cigarro por dia, há pelo menos um ano, Rondina et al., (2005b) ainda encontraram
dificuldades quanto à detecção de tabagistas em seu estudo. Segundo esta, é possível que
esse critério tenha excluído um número significativo de adolescentes e adultos jovens
que, porventura, tenham iniciado o hábito há menos de um ano, à época em que se deu
a coleta de dados.
No entanto, evidências sugerem que mais da metade dos estudantes que fumam em
baixos níveis em sua juventude (ainda não considerados fumantes) irão continuar fumando
quando estiverem mais velhos, sendo que, destes, 30% fumará diariamente (Kenford et
al., 2005). Dependendo de sua etnia, mais de 40 a 50% dos fumantes adultos regulares
iniciam o hábito de fumar em sua juventude (Trinidad, Gilpin, Lee, & Pierce, 2004).
Schane, Glantz e Ling (2009) definem o fumar não diário como o comportamento
de fumar em alguns dias, que estaria associado com o início ou o cessar do hábito de
Aletheia 45, set./dez. 2014
197
fumar. Porém, outro estudo revelou que o fumar não diário pode representar uma forma
estável do nível leve de consumo crônico desta SPA (menos do que 10 cigarros por dia)
(Hassmiller, Warner, Mendez, Levy, & Romano, 2003). Neste contexto, o fumar social
seria uma subcategoria do comportamento de fumar não diário, sendo basicamente
definido como fumar, principalmente, em contextos sociais.
O comportamento de fumar de jovens e estudantes universitários sempre foi
descrito como fumar socialmente. Também é definido de diversas formas: 1) fumar não
diariamente que ocorre na maioria das vezes em bares, restaurantes e clubes noturnos
(Philpot et al.,1999); 2) fumar não diariamente de adultos jovens que ocorre somente na
presença de outros fumantes (Gilpin, White, & Pierce, 2005); 3) fumar de adultos jovens
que ocorre principalmente na presença de outras pessoas ao invés de sozinhos (Moran,
Wechsler, & Rigotti, 2004).
Levinson et al., (2007) ratifica que os ditos fumantes sociais podem não se identificar
como fumantes e, assim, desvalorizarem as consequências de seu hábito à sua saúde.
Observou ainda que muitos fumantes ocasionais se dizem não fumantes (Luoto, Uutela,
& Puska, 2000). Desenvolveu uma pesquisa com 1.401 estudantes universitários de 18 a
24 anos que relataram ter fumado em um ou mais dias no último mês (últimos 30 dias).
Estes responderam à pergunta: “Você se considera um fumante?”. Participantes que
fumavam um ou mais cigarros nos últimos 30 dias e que não se consideravam fumantes
foram classificados como “negadores”.
No questionário que continha esta pergunta-chave, também havia um espaço em
que os participantes poderiam se identificar como fumantes sociais. Como resultado,
obteve-se que mais da metade dos estudantes entrevistados se consideraram não fumantes,
o que sugere que não há uma consistente definição do que é ser um fumante, um fumante
ocasional ou um fumante social entre os universitários, pesquisadores e população em
geral. Este resultado também revela como é comum, entre os estudantes fumantes, haver
uma negação em relação ao fato de serem fumantes (Levinson et al., 2007). No sentido
de superar as falhas de comunicação dos relatos dos fumantes, alguns estudos já estão
mensurando também a concentração de monóxido de carbono (CO) encontrada no ar
expelido para a identificação do tabagista (Addicott, Pearson, Wilson, Platt, & McClernon,
2013; Diggs, Froeliger, Carlson, & Gilbert, 2013).
Conclusão
A revisão de todas as definições de ser fumante, dependente de tabaco, de nicotina,
usuário de tabaco ou de nicotina, bem como de dependência química de tabaco, de
tabagismo e das mais variadas dimensões do ser fumante (com alto grau de dependência,
não dependente, não diário, ocasional, social, regular, negador, fantasma). Sugere que não
há uma definição única e generalizada que englobe todas essas categorias de análise.
Por um lado, isto se deve à riqueza de fatores envolvidos no ser fumante. Há
diversos aspectos importantes que devem ser considerados no diagnóstico do tabagista:
1) histórico do tabagista (idade de início, histórico familiar); 2) tentativas de parar de
fumar; 3) nível de dependência; 4) apoio social; 5) grau de motivação e prontidão para
198
Aletheia 45, set./dez. 2014
parar de fumar; 6) doenças médicas e psiquiátricas associadas; 7) estímulos associados
ao fumar; 8) nível de fissura quando não fuma; 9) sintomas de abstinências quando não
fuma, dentre outros (Berg et al., 2010; Santos et al., 2011).
Mas essa mesma riqueza que impede que haja uma definição única de ser fumante
deve ser utilizada para a formulação de definições mais embasadas e consistentes e de
instrumentos validados de avaliação que deem conta desta diversidade. Somente através
de estudos aprofundados sobre as múltiplas definições de ser fumante pode-se pensar na
estruturação de programas de tratamento específicos, individualizados para cada perfil
de tabagista, que provavelmente, trarão mais sucesso na cessação do tabagismo.
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_____________________________
Recebido em novembro de 2013
Aceito em janeiro de 2014
Arianne de Sá Barbosa: Psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas de Gravataí; Doutoranda
em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Layrianne de Sá Barbosa: Graduanda em Medicina da Universidade de Fortaleza.
Lidiane Rodrigues: Mestranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Karla Loureto de Oliveira: Graduanda em Medicina da Universidade de Fortaleza.
Irani Iracema de Lima Argimon: Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
201
Aletheia 45, p.202-221, set./dez. 2014
Hardiness em profissionais de primeira resposta:
uma revisão sistemática
Mariana Esteves Paranhos
Irani Iracema de Lima Argimon
Blanca Susana Guevara Werlang
Resumo: Esta revisão sistemática da literatura trata do construto teórico de hardiness dirigido
a profissionais de primeira resposta, detectando sua aplicabilidade em contextos de exposição
regular a incidentes críticos. Consultou-se bases de dados (EBSCO, Web of Science e PsycINFO)
no período de abril a junho de 2013, restringindo-se a artigos em português, inglês e espanhol
publicados entre 2003 e 2013. Assim, 10 artigos compuseram esta revisão, sendo estes agrupados
em um bloco temático – hardiness como agente amortecedor dos efeitos nocivos do estresse.
Bombeiros, profissionais de enfermagem, médicos, paramédicos, militares e policiais compuseram
os profissionais estudados. Hardiness mostrou estar negativamente relacionado ao mal-estar
psíquico, ao desenvolvimento de quadros de adoecimento emocional e exercer influência negativa
no uso de mecanismos desadaptativos e de risco, considerando as amostras elencadas nas pesquisas.
Também mostrou relação positiva com bem estar psicológico e com a capacidade de enfretamento
eficiente, útil e saudável em ambientes altamente estressantes.
Palavras-chave: Hardiness; profissionais de primeira resposta; incidentes críticos.
Hardiness in first responders: A systematic revision
Abstract: This article provides a systematic revision in the literature regarding the hardiness construct,
aimed to first responders, checking its applicability on scenarios where there is a regular exposure to
critical incidents. From April to June, 2013, the EBSCO, Web of Science and PsycINFO databases
were searched, looking for articles in Portuguese, English and Spanish, published between 2003
and 2013. After applying the inclusion and exclusion criteria, 10 articles ended up being included
in this revision. They were then grouped, based on their goals and identified associations, in a
single thematic block – hardiness as a weakening agent from the harmful effects of stress. The
professionals studied comprised firemen, nurses, doctors, paramedics, military and policemen. From
the studies analysis it is concluded that hardiness was shown to be negatively related to psychological
distress, development of emotional illness and negatively influence the use of maladaptive and
risky mechanisms, considering the samples listed in researches. Likewise, it showed a positive
relationship with psychological well-being and the ability of efficient, helpful and healthful coping
in highly stressful environments.
Keywords: Hardiness; First responders; Critical incidents
Introdução
Sabe-se que profissionais que atuam na linha de frente de acidentes, emergências
e desastres, chamados também de profissionais de primeira resposta (first responders),
como bombeiros, médicos, enfermeiros, policiais, guarda costeira, defesa civil,
funcionários de emergências hospitalares, entre outros, são expostos sistematicamente
a situações traumáticas e a diferentes estressores relacionados ao cenário em que seu
trabalho acontece, enfrentando assim diariamente riscos reais e/ou percebidos para sua
segurança e para o bem estar de sua saúde física e psíquica. Neste contexto, a literatura
científica tem reportado que estes possuem maior vulnerabilidade para patologias como
o Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT) (Almeida, 2012; Benedek, Fullerton, &
Ursano, 2007; Corrigan et al., 2009; Lima & Assunção, 2011; Perrin et al., 2007; Vieweg
et al., 2006), depressão, ansiedade e abuso de substâncias (Alexander, 1996; Bennett,
Williams, Page, Hood, & Woollard, 2004; Brough, 2004; Fullerton, Ursano, & Wang,
2004; Hoge, et al., 2004; Klein & Alexander, 2006; Lima & Assunção, 2011; Monnier,
Cameron, Hobfoll, & Gribble, 2002; Stewart, Mitchell, Wright, & Loba, 2004; Ward,
Lombard, & Gwebushe, 2006).
Paralelo às pesquisas que visam a compreensão de quadros nosológicos nestes
grupos de profissionais, tem-se desenvolvido diversos conceitos que buscam descrever as
consequências da relação dos profissionais de primeira resposta com sua tarefa constante
de salvar quem precisa, não relacionado somente à presença de sinais e sintomas que
configuram um transtorno mental. A ideia é de que profissionais de emergência não são
somente afetados pelo impacto dos eventos em si e da sua experiência traumatizante, o
sofrimento seria advindo também de ajudar constantemente pessoas que correm grande
perigo de vida, expondo muitas vezes a sua própria integridade (Beaton, Murphy,
Johnson, Pike, & Cornell, 1998). É possível então encontrar na literatura termos como
“desgaste por empatia” (Figley, 1995), “síndrome de burnout” (Maslach & Jackson,
1982), “traumatização vicária” (McCann & Pearlman, 1990; Palm, Polusny, & Follette,
2004), e “estresse traumático secundário” (Figley & Kleber, 1995).
No entanto, apesar das evidências científicas da ligação entre eventos de grande
estresse e o desenvolvimento do adoecimento emocional, é sabido também que a maior
parte dos indivíduos, como bem afirma Skomorovsky e Sudom (2011), ainda que possuam
maior disposição para tais desfechos, não irá apresentar problemas de saúde e manterão seu
bem estar psicológico mesmo sob circunstâncias extremamente adversas. Quando o tema
é a saúde de profissionais de emergências, muitas vezes negligencia-se o conhecimento de
que, após experiências de grande impacto, o comum é o sujeito retornar ao seu equilíbrio
dentro das próximas horas ou em dias, mesmo sem nenhuma intervenção formal de
saúde mental (Alexander & Klein, 2009; Bonanno, 2004; Jeannette & Scoboria, 2008;
Mullen, 2005; Ritchie, Leavitt, & Hanish, 2006; Rose, Bisson, Churchill, & Wessely,
2002; Stuhlmiller & Dunning, 2000; Wessely, 2005). De acordo com alguns autores,
estes seriam capazes de desenvolver uma proteção contra estímulos negativos, evitando
assim o adoecimento físico e emocional, sendo possível observar inclusive o relato de
sentimentos positivos em relação ao impacto da atividade laboral (Davies et al., 2008;
Moran & Colless, 1995; Stamm, 2010).
Dentre as possibilidades de compreensão dos mecanismos que atuam como
protetores, ou que exerçam influência na redução do resultado negativo gerado para
pessoas que realizam uma atividade laboral marcada por experiências altamente
estressantes, está o construto teórico chamado Hardiness, traduzido para o português
como resistência. O termo em questão foi abordado por Kobasa (1979a) em um estudo
longitudinal, como a hipótese de que pessoas que vivenciam um alto grau de estresse,
sobretudo no local de trabalho, sem adoecer teriam uma estrutura de personalidade
Aletheia 45, set./dez. 2014
203
diferenciada das que acabavam adoecendo sob estresse, por isso também a utilização
das denominações hardiness personality, psychological hardiness ou ainda stress
resistance. Trata-se, de acordo com Kobasa, Maddi, e Kahn (1982) de uma variável de
personalidade que funciona como um recurso para resistir às consequências negativas
de condições adversas.
Estudos seguintes indicaram o conceito como um “tampão” contra o estresse, capaz
de moderar a relação estresse-doença (Kobasa, 1979a; Kobasa, 1979b; Kobasa, Maddi,
& Courington, 1981; Kobasa et al., 1982), pois se trataria de um “sentimento geral de
que o ambiente é satisfatório” (Maddi & Kobasa, 1984, p.50). Para Maddi (2002), o
construto está calcado na coragem existencial, ou seja, é a disposição de seguir adiante,
promovendo motivação para fazer frente a todas as dificuldades. Neste sentido, o mesmo
autor, em 2005, complementa que hardiness emerge de um padrão de atitudes e ações
que ajudam na transformação de estressores potenciais em oportunidades de crescimento.
Pessoas que apresentam tal estilo de personalidade, possuem uma tendência a aumentar
a prontidão para aprender e se desenvolver, assim como estariam melhor equipadas para
fazer frente a situações que exigem mais dos aspectos cognitivos e emocionais (Dolan
& Adler, 2006).
Aprofundando melhor o referido construto, ainda de acordo com Maddi
(2002), as atitudes mencionadas, ações e até mesmo sentimentos que surgem como
“amortecedores” do estresse parecem ser bem conceituados no que foi chamado de
3Cs – compromisso, controle e desafio (commitment, control e challenge), que interrelacionados formam o próprio conceito. Compromisso trata-se de uma predisposição
para se envolver com pessoas, fatos e com o contexto, em vez de ficar “desconectado”,
isolado, ou alienado. Controle é traduzido através do envolvimento e busca para ter
influência sobre os resultados e acontencimentos em torno de si mesmo, ao invés
de mergulhar na passividade e impotência. Já o desafio, significa querer aprender
continuamente a partir de sua própria experiência, seja positiva ou negativa, ao invés
de tentar ficar em uma zona segura, evitando incertezas e ameaças potenciais. Assim,
a presença da resistência trata da combinação de todos os domínios citados, pois as
pessoas utilizariam as três atitudes sobre si mesmas para enfrentar ou lidar com o seu
ambiente (Maddi, 2002; Maddi & Hightower, 1999). A pessoa hardy, portanto, encara
as situações potencialmente estressantes com significativo interesse (compromisso),
percebe os estressores como mutáveis (controle) e entende a mudança como um aspecto
normal da vida, que pode ainda representar uma oportunidade para o crescimento
(desafio) (Funk, 1992; Maddi & Kobasa, 1984).
Desde o desenvolvimento do conceito, Mullen (2005) aponta que um crescente
volume da literatura tem mostrado que este funciona como um processo dinâmico
para mitigar o sofrimento psicológico enfrentado por diferentes pessoas, ocasionado
pela experiência com significativos eventos estressantes. Várias pesquisas também
tem se empenhado para demonstrar os efeitos de hardiness como fator protetor contra
consequências negativas, como o desenvolvimento de perturbações psicológicas, em
profissões que são reconhecidas pelo ambiente e tarefas carregadas de estímulos e
agentes agressores, como é o caso da enfermagem (Keane, Ducette, & Adler, 1985; Van
Servellen, Topf, & Leake, 1994), serviço militar (Bartone, 1999; Florian, Mikuliner, &
204
Aletheia 45, set./dez. 2014
Taubman, 1995; Waysman, Schwarzwald, & Solomon, 2001) e polícia (Hills & Norvell,
1991; James, 2005; Radisic, 2005).
Desta forma, no cenário de situações de emergências e desastres, o conhecimento
das características de personalidade que podem proteger indivíduos contra o padecimento
físico ou mental, ou mesmo reduzir a propensão, pode ser valioso para assegurar o bem
estar psicológico dos profissionais atuantes nestas circunstâncias. O domínio deste
conhecimento pode ainda gerar implicações práticas para qualquer organização, pois
através da educação para o desenvolvimento destas habilidades, se reduz custos financeiros
e humanos, uma vez que diminui o número de pessoas sem condições para o trabalho e
auxilia o trabalhador a ter mais recursos a disposição para lidar com os conflitos inerentes
à tarefa de prestar socorro.
Sendo assim, o presente estudo tem por objetivo revisar de forma sistemática na
literatura científica o construto de hardiness aplicado a profissionais de primeira resposta,
detectando sua aplicabilidade em contextos em que há a exposição regular a incidentes
críticos. Apesar do conceito não ser uma novidade, detecta-se uma carência de estudos
relacionados à população de profissionais de emergências, ao mesmo tempo em que se
compreende este como uma próspera ferramenta para entendimento e implementação de
ações de prevenção neste grupo de trabalhadores.
Método
Foram consultadas as seguintes bases de dados: EBSCO, Web of Science e
PsycINFO. A busca foi realizada no período de abril de 2013 a junho de 2013, e
restringiu-se a artigos de língua portuguesa, inglesa e espanhola, publicados entre
2003 e 2013.
Foram selecionados dois descritores principais, sendo que a partir destes expandiu-se
a busca em outros termos, de acordo com as indicações encontradas na lista de descritores
indexados e na própria literatura científica a respeito da temática (Bartone, 2006; Bartone,
Hystad, Eid, & Brevik, 2012; Carston & Gardner, 2009; Hystad, Eid, Laberg, & Bartone,
2011; Lima & Assunção, 2011), para o afunilamento da pesquisa (Quadro 1).
Quadro 1 – Lista de descritores originais e expandidos utilizados na busca nas bases de dados.
Descritor original
Descritor expandido
Hardiness
“hardiness personality”, “psychological hardiness”, “stress hardiness”.
Profissionais de primeira
resposta/First Responders
“Emergency Responders”, “Emergency service personnel”, “Emergency
Medical Technicians”, “Ambulance personnel”, “Firefighters”, “Police”,
“Firemen and Policemen in Disasters “, “Civil Defense”, “Rescue Work”,
“Disasters”.
Foram incluídos no processo de revisão artigos completos que preenchessem os
seguintes critérios: ter disponibilidade do resumo nas bases de dados, amostra composta
por profissionais que atuam em cenários de emergências e/ou tratar do construto hardiness
empiricamente no contexto de situações de emergências.
Aletheia 45, set./dez. 2014
205
Da mesma forma, foram excluídos artigos que não preenchiam os critérios de
inclusão e publicações na forma de editoriais, entrevistas ou relacionadas a cursos,
congressos e conferências.
Os dados foram analisados e extraídos dos artigos selecionados de acordo com os
seguintes tópicos: tipo de estudo, objetivos, amostra, instrumentos, resultados e principais
pontos debatidos na discussão.
Resultados
Na primeira etapa do processo de revisão, a partir da busca nas bases de dados
estabelecidas e utilizando os descritores previamente apresentados, chegou-se a uma
lista de 74 artigos potencialmente relevantes para a pesquisa. Assim, seguindo no
andamento do projeto de revisão, realizou-se a leitura dos resumos, o que possibilitou
a exclusão de 58 artigos pelos seguintes motivos:
• 51 artigos não apresentavam relação com o tema principal de estudo –
hardiness;
• 3 artigos estudaram outras amostras, como por exemplo universitários ou outras
classes de profissionais de forma geral;
• 1 artigo tratava da discussão de um workshop;
• 1 artigo tratava de um relato de experiência;
• 2 artigos se encontravam em outra língua.
Chegou-se, portanto, à terceira etapa com 16 artigos selecionados. Nesta fase
ainda, um artigo foi excluído por não ter sido localizado o trabalho completo, perfazendo
então um total de 15 artigos submetidos para leitura na íntegra. Utilizando-se mais uma
vez os critérios de inclusão e exclusão para filtrar aqueles que realmente se encaixavam
no escopo da pesquisa, dois artigos foram excluídos por não utilizarem uma amostra de
profissionais de primeira resposta e mais três artigos por trabalharem com o construto
teórico de hardiness apenas como embasamento e não como uma variável a ser estudada
na pesquisa. Finalmente, chegou-se a 10 manuscritos que compuseram a presente
revisão. O processo de revisão e análise é melhor visualizado de acordo com a figura
1. Vale mencionar que nestes resultados não estão incluídos artigos que se repetiram
na busca com diferentes cruzamentos dos descritores.
206
Aletheia 45, set./dez. 2014
Figura 1 – Fluxograma do processo de seleção e análise dos artigos que compõe a revisão.
Etapa 1: busca nas bases de
dados EBSCO, Web of
Science e PsycINFO
74 artigos
potencialmente
relevantes
58 artigos excluídos
•
Etapa 2: leitura
e análise dos
resumos
•
•
•
Ausência do tema principal de estudo –
hardiness (n=51)
Amostras diferentes (n=3)
Outras formas de publicação (n=2)
Idioma fora dos critérios de seleção
(n=2)
1 artigo excluído
16 artigos
selecionados
•
Não localizado o artigo completo
15 artigos
selecionados
5 artigos excluídos
Etapa 3: análise
dos artigos na
íntegra
•
•
Amostras diferentes (n=2)
Ausência de hardiness como variável em
estudo (n=3)
10 artigos incluídos na
revisão
O público escolhido para examinar o comportamento de Hardiness e sua
aplicabilidade foi o de profissionais de primeira resposta, por ser uma categoria profissional
que está exposta regularmente a incidentes críticos. No entanto, entre os estudos
encontrados, não foi identificado este grupo de profissionais com esta nomenclatura. A
relação mais próxima estabelecida foi na tese de Mullen (2005), que utilizou o termo
Aletheia 45, set./dez. 2014
207
“Pessoal de Serviço de Emergência” para as categorias de bombeiros, paramédicos,
técnicos de emergência e médicos. Desta forma, bombeiros, profissionais de enfermagem,
médicos, paramédicos, militares e policiais compuseram os profissionais estudados nesta
revisão. Vale mencionar que todos estes, ainda que na maioria dos estudos tenham sido
avaliados de forma separada, compõe o grupo de profissionais que atua ou atuará diante
de uma emergência.
Quase que a totalidade dos estudos teve um delineamento de pesquisa de tipo
transversal, centrando seu objetivo na relação de hardiness com situações estressantes ou
no impacto de hardiness sobre o adoecimento/preservação da saúde psíquica no ambiente
de trabalho. Observa-se ainda que em parte dos trabalhos encontrados o construto de
hardiness foi associado com outros construtos relacionados a mecanismos de resposta de
enfretamento frente a exigências do ambiente, como Coping e autoeficácia, podendo se
considerar estes como variáveis análogas à variável de interesse nesta revisão – hardiness.
Assim, os instrumentos selecionados para compor as pesquisas refletiram a necessidade
de medir tais variáveis. Na tabela 1, objetivando uma apresentação geral dos trabalhos
encontrados, os artigos selecionados para esta revisão foram organizados de acordo com
seus autores, ano, país de origem e local de publicação, tipo de publicação, objetivo,
amostra, instrumentos e variáveis análogas.
208
Aletheia 45, set./dez. 2014
Aletheia 45, set./dez. 2014
209
Analisar a associação entre Hardiness,
estresse e uso de licença médica
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Artigo/estudo
empírico de tipo
transversal
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Meta-análise/
estudo empírico de
tipo transversal
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Judkins, Massey
& Huff (2006),
EUA, EUA
Jiménez, Natera,
Muñoz & Benadero (2006),
Espanha,
Espanha
Andrew et. al
(2008), EUA,
EUA
Carston &
Gardner (2009),
Nova Zelandia,
Nova Zelandia
Alarcon, Eschleman & Bowling
(2009), EUA,
Reino Unido
Rísquez, Meca
& Fernández
(2010), Espanha, Espanha
Profissionais de
enfermagem de
urgência e cuidados
intensivos (n=97)
Não houve uma
amostra específica
Examinar as relações entre personalidade (composta pelo Modelo dos
5 Fatores de Personalidade, Núcleo
de autoavaliação – CSE, Afetividade Negativa e Positiva, Otimismo,
Personalidade Proativa, Hardiness e
Personalidade Tipo A) e três dimensões
do Burnout (Exaustão emocional, despersonalização e realização pessoal)
Capacidade preditiva de hardiness e
autoeficácia generalizada sobre a percepção do estado de saúde geral
Militares (n=439)
Oficiais de polícia
(n=105)
Bombeiros (n=405)
Avaliar estresse, hardiness e enfretamento no ambiente militar
Examinar a associação dos componentes de Hardiness com depressão, TEPT
e mal-estar psíquico
Examinar se Hardiness atua como
moderador na relação entre estressores
laborais e Burnout
Bombeiros, paramédicos, técnicos
de emergência e
médicos (n= 112)
Verificar o papel de Hardiness na
manutenção do bem-estar psicológico
do pessoal de serviços de emergências
expostos a estressores relacionados a
incidentes
Tese de Doutorado/
estudo empírico de
tipo transversal
Mullen (2005),
EUA, EUA
Gerentes de enfermagem (n=16)
Amostra
Objetivo
Tipo de publicação
Escala de Autoeficacia Generalizada (EAG), Escala de
Personalidad Resistente (CPA) e Questionário Geral de
Saúde (GHQ-28)
Busca em base de dados
Cognitive Appraisal Scale (CAS), The Brief COPE,
Job-Related Affective WellBeing Scale (JAWS) e Cognitive Hardiness Scale (CHS)
Hardiness Scale , Center for Epidemiological Studies
Depression Scale (CES-D), Impact of Events Scale
(IES), Brief Symptoms Inventory (BSI)
Cuestionario Breve de Burnout (CBB), Cuestionario de
Personalidad Resistente, Inventario de Sintomatología
de Estrés (ISE)
Hardiness Scale (HS), Perceived Stress Scale (PSS)
Bartone’s Short Hardiness Scale, The Brief Symptom
Inventory (BSI), Scales of Psychological Well-Being
(SPWB) e Duty_related Incident Stressors Measure
Instrumentos
Tabela 1 – Artigos sobre Hardiness e Profissionais de Primeira Resposta incluídos na revisão.
Autores, ano,
país de origem
e local
Autoeficácia generalizada
Coping
Bem estar
psicológico
Variáveis
Análogas
210
Aletheia 45, set./dez. 2014
Tipo de publicação
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Artigo/ estudo
empírico de tipo
transversal
Artigo/ estudo
empírico de tipo
prospectivo
Autores, ano,
país de origem
e local
Delahaij,
Gaillard & van
Dam (2010),
Holanda, Reino
Unido
Skomorovsky &
Sudom (2011),
Canadá, EUA
Bartone, Hystad,
Eid & Brevik
(2012), EUA,
EUA
Avaliar a associação de Hardiness estilo
de enfrentamento de evitação com os
padrões de uso de álcool em militares
Examinar o papel de Hardiness na
percepção de bem estar e estresse numa
amostra de militares
Investigar se as estratégias de coping e
a autoeficácia mediam as relações entre
Hardiness e as respostas a uma situação
estressante.
Objetivo
Militares (n=1402)
Militares (n=200)
Militares (n=207)
Amostra
Dispositional Resilience Scale (DRS-15R), Coping
Style Questionnaire (CSQ) e o CAGE (Cut down, Annoyed, Guilty, Eye-opener)
Trait-Self Descriptive Personality Inventory, Military
Hardiness Scale, Satisfaction with Life Scale, General
Health Questionnaire (GHQ-12), Job Satisfaction Scale
Dispositional Resilience Scale-II, Coping
Inventory for Stressful Situations (CISS), coping selfefficacy scale (construída para o estudo), Stress Questionnaire, Coping e Inventory for Task Stressors (CITS)
Instrumentos
Coping
Estratégias
de Coping
e autoeficácia
Variáveis
Análogas
Desta forma, de acordo ainda com o levantamento realizado a partir da leitura
dos artigos selecionados é possível agrupá-los, conforme seu objetivo e associações
identificadas, em um único bloco temático, intitulado: hardiness como agente
amortecedor dos efeitos nocivos do estresse.
Hardiness como agente amortecedor dos efeitos nocivos do estresse
Dois pontos fundamentais, considerando os resultados e discussões apresentados nos
estudos alocados nesta revisão sistemática da literatura, são percebidos – o primeiro, que
hardiness pode atuar como preditor de mal-estar psíquico e de quadros de adoecimento
emocional, e o segundo, que hardiness interfere no tipo de resposta a situações de estresse
relacionadas à ocupação.
Em relação ao primeiro ponto, Rísquez, Meca e Fernández (2010) trabalharam com
uma amostra de profissionais de enfermagem de urgência e cuidados intensivos, com
idades entre 24 e 59 anos, sendo em sua maioria mulheres (74,6%) e com 6 a 15 anos
de serviço, com o intuito de verificar a capacidade preditiva de hardiness e autoeficácia
generalizada sobre a percepção do estado de saúde geral. Além da relação positiva entre as
duas variáveis avaliadas, os resultados indicam que hardiness (construto global) apresenta
uma correlação significativa e negativa com a frequência total de sintomas de mal-estar
psíquico (r= -0,435; p<0,001). Para examinar a capacidade preditiva de autoeficácia e
hardiness sobre os sintomas de mal-estar psíquico, foi utilizada a correlação canônica,
sendo o conjunto de variáveis dependentes a pontuação total do GHQ-28 e suas quatro
escalas, e no conjunto de preditores, a pontuação total de autoeficácia, hardiness e seus três
domínios (controle, compromisso e desafio). A pontuação total de hardiness demonstrou
ser um preditor significativo para mal-estar psíquico em geral e nos diferentes sintomas
que constituem o GHQ-28 (suas quatro escalas), atuando portanto, como fator protetor
frente ao adoecimento emocional, considerando a amostra em estudo. O mesmo não
ocorreu com a autoeficácia. Os autores ainda salientam que sintomas depressivos foram
o componente mais relevante do conjunto de sintomas de mal-estar psíquico em relação
ao modelo preditivo proposto, e hardiness global (pontuação total) foi o que apresentou
maior potência preditiva, seguido da dimensão controle.
Na amostra de oficiais policias (n=105) estudada por Andrew et al., (2008), a
dimensão controle também desempenhou papel importante na relação com depressão.
Esta foi associada negativa e significativamente com sintomas depressivos. O mesmo
ocorreu com a dimensão compromisso, no entanto apenas com as mulheres participantes
do estudo. Compromisso foi relacionado ainda negativamente com os escores de malestar psíquico entre os homens. Tais diferenças entre gêneros são apontadas pelos autores
como indicativas de que para sintomas depressivos a dimensão de compromisso pode
ser mais protetiva em oficiais mulheres do que em homens.
Em se tratando de quadros de adoecimento psíquico relacionados diretamente
com a ocupação profissional, também foram identificados estudos que demonstraram
a interferência de hardiness. Na meta-análise desenvolvida por Alarcon, Eschleman e
Bowling (2009), dentre as diferentes variáveis de personalidade examinadas, hardiness
foi a mais fortemente associada de forma negativa com três dimensões que compõem
o burnout – exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal. Já
Aletheia 45, set./dez. 2014
211
no estudo realizado por Jiménez, Natera, Muñoz e Benadero (2006), com objetivo de
avaliar se hardiness atua como moderador na relação entre estressores laborais e burnout
no contexto de profissionais do corpo de bombeiros (n= 405) com mais de 12,3 anos
de experiência, mais uma vez o construto mostrou ter valor impactante na relação. As
dimensões de hardiness foram significativa e negativamente corelacionadas com burnout,
sendo compromisso a de maior correlação (r= -0,42; p<0,001) e controle a de menor
correlação (r= -0,14; p<0,001). Da mesma forma, as dimensões compromisso (r= -0,16;
p<0,001) e desafio (r= -0,16; p<0,001) foram significativa e negativamente relacionadas
com a sintomatologia associada à Síndrome de Burnout. Os autores encontraram ainda
que desafio, antecedentes organizacionais e experiência laboral foram preditores de
burnout, relacionando assim que, quanto mais alto os níveis de desafio, mais atenuante
será a influência negativa das variáveis organizacionais geradoras do burnout (β= -090;
p<.01). A dimensão compromisso também foi apontada como moderadora, porém sob o
efeito da sintomatologia associada à Síndrome de Burnout.
Hardiness se mostra ainda promissor como fator protetor frente ao uso de
mecanismos de enfretamento desadaptativos que levam a quadros mais preocupantes.
Bartone et al., (2012) postulam que pessoas com baixa pontuação em hardiness são
mais propensos a usar a evasão ou abordagens de enfretamento mais regressivas em
reposta ao estresse, incluindo drogas e abuso de álcool. Assim, os autores realizaram um
estudo prospectivo com uma amostra com oficiais das Forças de Defesa da Noruega,
verificando se os baixos níveis de hardiness foram preditivos do abuso de álcool. Para
isso hardiness foi medido na pesquisa anual nacional de saúde da defesa (NDHS) de
2007 da Secretária de Saúde das Forças Armadas, e os outros dados, incluindo o uso de
álcool, foram medidos em 2010. Na amostra total, em 2010, trabalhou-se apenas com
aqueles que indicaram ter sido enviados a uma missão nos últimos três meses, perfazendo
então 1402 participantes. Na NDHS de 2010 foram incluídos 17 itens relacionados a
experiências e situações encontradas durante a missão. As respostas para estas perguntas,
após uma análise exploratória, geraram dois fatores: exposição ao combate e privação
das necessidades básicas. Os resultados demonstraram que, para cada aumento de um
ponto na pontuação da presença de hardiness, há uma diminuição concomitante de 8%
nas chances de estar em risco para o abuso de álcool. O aumento deste risco também
esteve associado a baixos índices na dimensão desafio e a presença do fator privação
das necessidades básicas.
De fato hardiness parece ter influência no aparecimento de enfermidades
relacionadas à ocupação. Judkins, Massey e Huff (2006) se propuseram a investigar
a relação entre hardiness, estresse e tempo de afastamento do trabalho por motivos de
saúde em gerentes de enfermagem, e encontraram resultados significativos. A amostra
arrolada por conveniência, contou com 15 gerentes de enfermagem, entre 40 e 60 anos,
de um hospital no Texas. Concluiu-se que os gerentes com altos níveis de hardiness se
afastavam menos tempo do que aqueles com baixos níveis de hardiness.
E se a não presença de hardiness tem sido obervada diante do sofrimento
emocional de trabalhadores de emergências, a presença deste possui relação com o
bem estar psicológico. Mullen (2005) examinou o papel de hardiness na manutenção
do bem estar psicológico em uma amostra de bombeiros, paramédicos, técnicos de
212
Aletheia 45, set./dez. 2014
emergência e médicos, denominada na pesquisa como Pessoal de Serviço de Emergência.
Os profissionais em questão tinham entre 22 e 62 anos, de 1 a 20 anos de trabalho e
trabalhavam de 12 a 200 horas por mês. O autor encontrou um relacionamento positivo
entre o construto e a medida de bem estar psicológico, ainda que esta relação não sofra
influência direta da quantidade de estressores de incidentes ligados à ocupação a que
o profissional esteja exposto. Foi possível observar também a conexão inversa entre
hardiness e a medida geral de sofrimento mental (r= -221; p<0,05).
Já o estudo de Skomorovsky e Sudom (2011) com 200 candidatos as Forças Oficiais
Canadenses em formação (154 homens, 37 mulheres e nove sem informação de sexo)
mostrou, através de estudos de correlação, que hardiness e o Modelo dos Cinco Fatores
de Personalidade são construtos distintos, mas que podem ser utilizados em um modelo
aditivo para prever bem estar psicológico. Ou seja, na amostra em questão, os construtos
se mostraram importantes, porém independentes em relação à manutenção do bem estar
psicológico.
Em relação ao segundo ponto – a presença de hardiness e o tipo de resposta a
situações de estresse relacionados à ocupação, a capacidade de enfrentamento em
ambientes altamente estressantes, como avaliações no contexto militar, foi medida por
Carston e Gardner (2009). Os autores exploraram uma série de hipóteses sobre esta
temática em uma amostra de 439 militares da Nova Zelândia (entre soldados e oficiais
superiores) sendo elas: hardiness seria positivamente associado a uma perspectiva
desafiadora das avaliações (desempenho) e negativamente associado com uma
perspectiva ameaçadora das mesmas; afeto positivo seria positivamente associado com
a avaliação como desafiadora, enfrentamento focado na tarefa, apoio social e hardiness;
afeto negativo seria positivamente associado com a avaliação como ameaçadora e
evitação; afeto negativo seria negativamente associado com hardiness; assim como o
segundo seria negativamente associado com ausência por motivos de saúde e intenção
de sair da carreira militar; hardiness iria mediar a relação entre a avaliação como
desafiadora e enfretamento focado na tarefa, e entre avaliação como desafiadora e
apoio social; também iria mediar a relação entre enfretamento focado na tarefa e afeto
positivo, e entre apoio social e afeto positivo; o mesmo construto mediaria a relação
entre a avaliação como ameaçadora e evitação; e por último mediaria a relação entre
evitação e afeto negativo.
Assim, os participantes foram convidados a responder os questionários a partir
de uma situação estressante que tivessem vivenciado no trabalho ou como resultado
dela nas últimas semanas. No levantamento das respostas foi possível afirmar que
hardiness realmente é positivamente associado a uma perspectiva desafiadora das
avaliações (desempenho) e negativamente associado com uma perspectiva ameaçadora
das mesmas. Da mesma forma o construto foi associado positivamente com afeto
positivo, que por sua vez está também associado de maneira positiva com a avaliação
como desafiadora, enfrentamento focado na tarefa e apoio social. Já o afeto negativo foi
positivamente associado com a avaliação como ameaçadora, evitação e negativamente
com hardiness. Verificou-se ainda que o construto em questão é capaz de mediar
parcialmente as relações entre a avaliação como ameaçadora, evitação e afeto negativo.
No entanto, não houve evidências de que hardiness teria influência na ausência por
Aletheia 45, set./dez. 2014
213
motivos de saúde ou intenção de sair da carreira militar, tampouco na interposição
entre a avaliação como desafiadora e enfretamento focado na tarefa, e entre avaliação
como desafiadora e apoio social. Hardiness também não se mostrou capaz de mediar
a relação entre enfretamento focado na tarefa e afeto positivo, e entre apoio social e
afeto positivo.
Nesta mesma perspectiva, Delahaij, Gaillard e van Dam (2010) analisaram se os
efeitos individuais de hardiness, as estratégias de coping e autoeficácia influenciam
na forma como militares reagem a uma situação estressante específica. Assim, duas
amostras independentes de militares foram avaliadas, uma composta por 109 cadetes da
academia de defesa da Holanda com 18 semanas de treinamento militar básico (amostra
1); e outra de 98 recrutas da infantaria com 22 semanas de treinamento militar básico
(amostra 2). Ambas as amostras foram avaliadas na primeira semana de treinamento,
na décima sétima semana para a amostra 1 e na décima quinta semana para amostra 2.
A situação estressante específica foi considerada, nos dois grupos, como um exercício
de autodefesa contra dois ou três adversários, conhecido pela maioria como muito
estressante. Após o exercício, que ocorreu na décima oitava semana para a amostra 1 e
na décima sétima semana para a amostra 2, os militares foram convidados a responder
novamente aos questionários. Os resultados demonstram que pessoas consideradas hardy
tinham um estilo de enfretamento mais eficaz, ou seja, mais focado na tarefa e menos
na emoção. Também foi possível observar que a autoeficácia atua como mediadora
entre hardiness e a avaliação das situações ditas estressantes. Quem apresentava
níveis importantes para hardiness demosntravam mais confiança na sua capacidade
de lidar com a situação estressante e avaliavam a situação como mais desafiadora do
que ameaçadora.
Discussão
Desde a primeira citação do conceito de hardiness em 1979 por Kobasa (1979a)
que autores vêm se empenhando na demonstração deste como efeito protetor para saúde
e bom desempenho em variados grupos de profissionais (Bartone et al., 2012; Hystad
et al., 2011; Maddi & Kobasa, 1984; Sheard, 2009). Em se tratando especificamente
de profissionais de primeira resposta, o presente estudo demonstrou que os trabalhos
concentram-se nas categorias de enfermeiros, médicos e paramédicos, bombeiros, policiais
e militares. Considerando o universo de pessoas necessárias e que comumente fazem
frente a diferentes eventos críticos, bem como a própria frequência de ocorrência de
acontecimentos traumáticos e infortúnios, percebe-se que a dedicação ao conhecimento
deste importante construto teórico, contribuinte para promoção da saúde emocional, ainda
é tímida e insuficiente no contexto das emergências.
Entretanto, os resultados apresentados evidenciam a interação positiva entre
hardiness e a amostra em questão. Entre os estudos alocados para esta revisão
sistemática, foi possível perceber que a ideia de que hardiness atuaria como um
“tampão” contra estresse tem sustentação em trabalhadores de primeira resposta
(examinando as amostras relacionadas nos estudos apresentados). O construto mostrou
estar negativamente relacionado ao mal-estar psíquico geral, ao desenvolvimento de
214
Aletheia 45, set./dez. 2014
quadros de adoecimento como a Síndrome de Burnout, bem como exercer influência no
uso de mecanismos desadaptativos e de risco, como é o caso do uso abusivo de álcool.
Da mesma forma, a relação positiva com bem estar psicológico e com a capacidade
de enfretamento eficiente, útil e saudável em ambientes altamente estressantes foi
demonstrada.
De forma geral, os resultados possuem valor frente ao movimento que se tem
feito no sentido de compreender e dominar as características e fatores de proteção
daqueles indivíduos que acabam resistindo, se moldando e se transformando, mesmo
frente à constante exposição a eventos críticos, neste caso, relacionados à ocupação.
Trata-se do interesse por analisar de que forma mais é possível prevenir o prejuízo
crônico no desempenho profissional e pessoal destes indivíduos, e, por conseguinte, a
incapacitação física e mental destes, além da assistência direta quando da instauração
do problema emocional. Ainda que, como bem lembram alguns autores (Carston &
Gardner, 2009; Klag & Bradley, 2004), não esteja bem claro os mecanismos pelos quais
hardiness atua no enfretamento de situações estressantes, é indiscutível que o construto
mostra-se bastante promissor quando o tema é o fomento à saúde em ambientes e
tarefas insalubres.
Neste sentindo muitos autores (Bartone, 2006; Maddi, 2002; Maddi, Harvey,
Khoshaba, Fazel, & Resurreccion, 2009; Phillips, 2011) tem discutido a possibilidade
de desenvolver hardiness em populações potencialmente vulneráveis ao estresse. De
fato, de acordo com Maddi (2007), através de estudos que incluíram na investigação a
história de vida dos participantes, os resultados sugerem que hardiness não é inato, e
sim aprendido. Desta forma, a proposta da criação de programas de desenvolvimento
do conjunto de atitudes hardy tem sentido. Judkins, Reid e Furlow (2006), por exemplo,
aumentaram os níveis de hardiness em gerentes de enfermagem através de um programa
de treinamento. Os autores afirmam ainda que este aumento de hardiness foi sustentável
ao longo do tempo, influenciado inclusive nas taxas de turnover e satisfação no trabalho.
Bartone (2006) defende a ideia de que o sucesso para operacionalizar o construto
está na propagação de exemplos de como lidar de forma positiva com adversidades.
Assim, para o autor, através das lideranças, cognições e comportamentos relacionados
a pessoas hardy em circunstâncias esgotantes poderiam ser influenciados no grupo de
subordinados por meio, por exemplo, do balizamento do entendimento comum a eventos
estressantes, direcionando estes para uma compreensão positiva e construtiva. Trata-se
de interferir na forma como as experiências são interpretadas por meio da própria cultura
organizacional.
No entanto cabe a ressalva de que o aprendizado de hardiness é, sem dúvida,
interessante, mas este não pode ser tomado, como afirma Hague e Leggat (2010), como
um indicador validado de eficácia. É importante mencionar ainda que o incentivo a
outros aspectos de uma vida saudável devem ser encorajados pelas organizações que
trabalham com e em cenários de grande risco, uma vez que o próprio construto está
intimamente associado com práticas benéficas, como um regime de exercícios físicos
regulares, alimentação balanceada e um equilíbrio entre o investimento no trabalho e
atividades de lazer (Brehm, 1998; Hague & Leggat, 2010). Assim, a manutenção do bem
estar emocional passa também pela percepção de apoio social, ou seja, promover ações
Aletheia 45, set./dez. 2014
215
que permitam o compartilhamento de emoções, opiniões e participação nas políticas
da instituição (Fonseca & Moura, 2008). Isso se torna fundamental na medida em que
se tem o conhecimento de que o apoio social é fator protetor para o desenvolvimento
de patologias como o TEPT (Maia et al., 2007).
Igualmente pertinente é o levantamento da questão de que hardiness parece ser
um construto de personalidade que não se apresenta sozinho em pessoas que o tem
altamente desenvolvido. Por meio dos estudos aqui apresentados, foi possível observar
que outras variáveis relacionadas ao modo de enfretamento de problemas, chamadas
neste estudo de variáveis análogas, como o coping e autoeficácia, se mostraram
satisfatoriamente relacionadas ao conceito em questão. De acordo com Delahaij et al.,
(2010), hardiness produziria seu efeito através de características pessoais tais como as
citadas, por isso as atitudes destes indivíduos seriam mais ativas e eficazes no manejo
de situações estressantes. Desta forma é possível compreender que hardiness trata-se
da soma de emoções, cognição e comportamento, e que o resultado desta equação
atuaria em conjunto com estas capacidades adaptativas para a manutenção do bem
estar psicológico global.
Finalmente, ponderam-se aqui algumas limitações deste estudo. Um primeiro
ponto refere-se à consulta de apenas algumas bases de dados específicas. Certamente,
para resultados mais abrangentes e conclusivos é indicada a busca em um maior número
de bases de dados que apresentem também relevância reconhecida, ampliando-se
assim as possibilidades de artigos importantes para a temática. Um segundo ponto a ser
considerado, refere-se à heterogeneidade dos estudos e das próprias amostras. Ainda que
se tenha tido como objetivo a busca pelo uso do construto hardiness em profissionais
de primeira resposta, o que já pressupõe diferentes grupos de profissionais, este é um
ponto que dificulta qualquer tipo de generalização. Adiciona-se o fato de que os estudos
encontrados apresentavam diferentes objetivos, variáveis, metodologia e instrumentos
de mensuração, o que leva a uma dificuldade para a comparação dos resultados. No
entanto, a apresentação destes de forma conjunta, como foi a proposta desta revisão,
apoia a ideia de que hardiness tem um espaço positivo e prático a ser desenvolvido no
cenário das ocupações profissionais em emergências, principalmente se houver maior
dedicação investigativa na área.
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____________________________
Recebido em fevereiro de 2014
Aceito em maio de 2014
Mariana Esteves Paranhos: Psicóloga. Mestre em psicologia clínica (PUCRS – Brasil). Especialista em
Couseling e Intervenção em Urgências, Emergências e Catástrofes (Universidade de Málaga – Espanha).
Doutoranda em Psicologia (PUCRS – Brasil).
Irani Iracema de Lima Argimon: Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS – Brasil). Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS – Brasil). Bolsista Produtividade do CNPq.
Blanca Susana Guevara Werlang: Psicóloga, Doutora em Ciências Médicas/Saúde Mental pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP – Brasil). Professora Titular da Faculdade de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS – Brasil).
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
221
Aletheia 45, p.222-237, set./dez. 2014
Símbolos, complexos e a construção da identidade
na psicoterapia com crianças
Clarice Haubert
André Guirland Vieira
Resumo: O presente estudo apresenta um relato do processo psicoterapêutico de uma criança e sua
família com o objetivo de estudar a função dos símbolos, complexos e dos conflitos familiares na
construção da identidade de um menino de 8 anos. Os dados foram registrados através de entrevistas
com a criança, pais, professoras. Foram também feitos registros diários das sessões. A análise da
produção simbólica mostrou um conflito na identidade sexual, construído a partir da história familiar.
A partir dos resultados, é possível concluir que o trabalho sobre a expressão simbólica exerce uma
função terapêutica, na medida em que possibilita uma melhor compreensão dos conflitos por parte
do psicoterapeuta, da família e da própria criança. O estudo também mostrou o papel crucial da
família tanto na origem dos conflitos psicológicos da criança como em sua resolução.
Palavras-chave: Sandplay; brinquedo simbólico; psicoterapia infantil; identidade; Psicologia
Analítica.
Symbols, complexes and the construction of identity in children
psychotherapy
Abstract: This study presents an account of the psychotherapeutic process of a child and his family
in order to investigate the role of symbols, complexes and family conflicts in the construction of
the identity of an 8-year-old boy. Data was gathered from interviews with the parents and teachers
as well as from the registration of the daily sessions with the child. The analysis of the symbolic
production showed that the main conflict was related to sexual identity, originated in the family
history itself. From the results it is possible to conclude that to work on the symbolic expression has
a therapeutic role, since it provides a better understanding of the conflicts to all, the psychotherapist,
the family and the child. The participation of the family in both, the origin of the child psychological
conflicts and in their resolution, was also shown as crucial.
Keywords: Sandplay; symbolic play; children psychotherapy; identity; Analytical Psychology.
Introdução
Identidade, complexos e história familiar
O presente estudo é o relato de experiência com uma criança e sua família em
um processo de psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica. Investigamos ali a
função dos símbolos, complexos e dos conflitos familiares na construção da identidade
de um menino de 8 anos.
Jung (1926/1986) concebe o desenvolvimento da Personalidade em um percurso
que inicia na infância e que se estende ao longo da vida da pessoa. Até cerca de 3 anos
de idade, por um estado de inconsciência de si mesma, a criança está relativamente
fundida às condições do meio ambiente, de modo que ocorre uma identificação entre seu
estado psíquico e a psique dos pais. Somente na adolescência o sujeito assume relativa
independência em relação ao psiquismo dos progenitores. Em função desta identificação
inconsciente, a criança tende a assimilar e reproduzir a visão de mundo dos pais, suas
formas de sentir, de se comportar e de se posicionar na vida, aspectos peculiares de cada
família que geralmente passam despercebidos. A esta visão de mundo adquirida, Jung
chamou de complexo. Os complexos são transmitidos de geração em geração, justamente
devido à tendência de repetição dos modelos parentais.
Enquanto elementos constituintes da personalidade, os complexos são formadores
da individualidade. Jung (1907/1986) já havia apontado para o fato de certos complexos
possuírem um efeito duradouro na personalidade, o que em geral era causado por
experiências de vida marcantes. Tais experiências podiam ser eventos traumáticos, como
acidentes que acabavam deixando sequelas determinantes ao rumo de uma vida, mas
também por uma fragilidade exposta que acabava construindo um modo específico de
se relacionar com os outros ou também por uma educação familiar e cultural capaz de
construir uma determinada visão de mundo. Jung (1934/1984) entendeu que a diversidade
dessas experiências proporcionada pelas diferenças nas trajetórias históricas de cada pessoa
estabelecia a base psicológica para a construção da singularidade dos indivíduos. Assim,
a individualidade seria construída a partir de uma história familiar de posicionamentos
diante da vida, sejam eles problemáticos ou não (Jung, 1926/1986).
A função do símbolo na psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica
Segundo Jung (1912/1999) o homem possui dois tipos de pensamento: o pensamento
lógico e o pensamento fantasia. O pensamento lógico é voltado à realidade externa
e objetiva, visando à adaptação. Ele trabalha com conceitos linguísticos e constitui o
instrumento da cultura. O pensamento fantasia é espontâneo e opera por associações,
produzindo analogias e metáforas. Ele é o veículo das tendências subjetivas, sendo
expressão dos motivos inconscientes. Por isso, sua linguagem é simbólica. Símbolo é uma
imagem que embora possa ser familiar, tem uma conotação para além do seu significado
manifesto, imediato e convencional, implicando algo vago, desconhecido ou oculto
(Jung, 1964/1977). Os símbolos são produzidos pelo inconsciente, e os sonhos são sua
via régia. Segundo Jung, os sonhos são orientados para uma meta, contendo um sentido
e uma finalidade. Mediante os sonhos, o inconsciente compensa a consciência, visando
o restabelecimento de um equilíbrio psíquico eventualmente perdido (Jung, 1964/1977;
1916/2000b). Imagens e associações análogas a mitos e ritos primitivos muitas vezes
emergem nos sonhos. Tais símbolos não têm origem individual, sendo representações
coletivas que perpassam a história de povos e culturas. A esta porção da psique, Jung
(1916/2000b) deu o nome de Inconsciente Coletivo.
Na psicoterapia com orientação na Psicologia Analítica, a análise dos sonhos assume
lugar central como método investigativo. Os sonhos são dramatizações da situação atual
da psique, tanto inconsciente como consciente, propiciando acesso aos complexos e à
dinâmica psicológica do sujeito. Ao representar os conteúdos psíquicos através de uma
imagem, cena ou drama, o sonho permite ao sonhador a tomada de consciência sobre
o modo como tem se posicionado diante das mais variadas situações de vida, o que o
permite agir em prol da restauração de seu equilíbrio psicológico. Dessa forma, os sonhos
Aletheia 45, set./dez. 2014
223
exercem uma função autorreguladora do psiquismo. Esta função autorreguladora ocorre
igualmente em outras expressões criativas e simbólicas, como a pintura, a modelagem,
o brinquedo e as artes de modo geral, pois “os símbolos não ocorrem apenas nos sonhos:
aparecem em todos os tipos de manifestações psíquicas” (Jung, 1964/1977, p.55).
Os sonhos de crianças são particularmente significativos; não raro, esses primeiros
sonhos apresentam uma antecipação do seu destino (Jung, 1938/2011). O conteúdo dos
sonhos e de toda produção simbólica da criança exprime muitas vezes conflitos parentais
e dramas familiares, alguns deles preexistentes à própria criança (Jung, 1926/1986).
Através das imagens retratadas em desenhos e pinturas, o distúrbio emocional e os afetos
podem ser expressados, clarificados e posteriormente trabalhados pelo psicoterapeuta
(Jung, 1916/2000b). Silveira (1982; 1992/2001) referiu que o desenho, a pintura e a
modelagem quando feitos livremente, permitem acesso aos fenômenos internos, aos
conteúdos arcaicos invasores do inconsciente, provindos dos estratos mais profundos da
psique; tais imagens expressam a situação do consciente e do inconsciente, constelados
por experiências vividas pelo indivíduo.
O brincar na caixa de areia ou Sandplay, tal como proposto por Kalff (1980), é
outra modalidade de acesso ao inconsciente da criança. Utiliza-se uma caixa de areia
com dimensões de 72 x 50 x 7,5 cm, junto com uma série de brinquedos em miniatura,
representando objetos, situações e seres do mundo concreto ou mítico para que a criança
construa cenários de forma espontânea. Na construção dos cenários, busca-se que a criança
dramatize seus conflitos. Visa-se também que, a partir dessa dramatização, uma solução
seja encontrada (Ammann, 2002; Vieira, 2006a; Weinrib, 1983/1993).
O processo de interpretação dos símbolos na Psicologia Analítica
Para Jung (1916/2000b), a interpretação dos sonhos e fantasias envolve dois
processos: a contextualização e a amplificação. A contextualização consiste em reconstituir
o contexto do sonho, visando estabelecer seu texto. Ela baseia-se na consideração objetiva
da imagem do sonho, nas associações do sujeito sobre os elementos oníricos, na série
de sonhos e na situação atual da consciência, dada pela história de vida da pessoa. No
tratamento de crianças é relevante considerar também a história familiar. A amplificação
consiste em buscar representações das imagens ou dos símbolos na cultura, de modo a
traçar analogias com as fantasias do indivíduo (Jung, 1916/2000b; Vieira, 2006b).
O sonho apresenta estruturas ou fases semelhantes ao drama, com início, meio
e fim. O sonho é um drama vivido internamente. A primeira fase é a exposição, a qual
indica o lugar da ação, os personagens e a situação. A segunda é o desenvolvimento da
ação; aqui, a situação se complica, o problema passa a atuar e torna-se mais complexo,
além de haver certa tensão. A terceira fase é a culminação ou peripécia, em que ocorre
algo decisivo ou a situação muda inteiramente. A quarta fase, por fim, é a lise, contendo a
solução ou o resultado produzido pelo trabalho do sonho (Jung, 1916/2000b; 1938/2011;
Vieira, 2006a). A análise de uma série de sonhos mostra uma interligação coerente entre
os temas oníricos (Jung, 1938/2011), clarificando o teor dos conflitos psicológicos. Isto
proporciona uma tomada de consciência dos problemas mais significativos que afligem
uma pessoa e em alguns casos permite um vislumbre sobre como esta falta pode ser
compensada ou corrigida. No tratamento de crianças, as produções simbólicas podem ser
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analisadas e interpretadas pelo mesmo processo proposto para os sonhos. Quando lidas
em uma série, estas imagens e dramatizações são capazes de revelar de forma objetiva os
conflitos mais significativos. Considerando que o pensamento e a linguagem da criança
são eminentemente simbólicos e que ela expressa seus sentimentos e conflitos mediante
o brincar, temos por objetivo estudar a maneira como os símbolos contribuem para a ação
terapêutica em uma psicoterapia com criança.
Método
Participou deste estudo uma criança com idade de 8 anos, do sexo masculino,
frequentando o Ensino Fundamental, residente no Rio Grande do Sul, morando com os
pais e duas irmãs. O participante foi selecionado dentre as crianças que vivenciaram um
conflito psíquico e estiveram em tratamento psicoterápico com orientação na Psicologia
Analítica conduzido pela pesquisadora.
O levantamento dos dados foi procedido mediante os seguintes instrumentos: a)
entrevista aberta com os pais: foram investigados o motivo da consulta, a história de
vida da criança com os respectivos sintomas e sua evolução, a história familiar e dados
de anamnese, conforme necessário; b) entrevista aberta com professora e orientadora
educacional: levantamento da situação da criança na escola em termos de desenvolvimento
cognitivo, emocional, social, vivências e eventos significativos; c) registros diários
das sessões de psicoterapia: verbalizações da criança, os eventos relatados por ela, os
comportamentos não verbais e as atividades realizadas; d) produção plástica realizada pela
criança, através de desenhos, pinturas e modelagens: disponibilizados materiais plásticos
para a realização livre e espontânea de desenhos, pinturas e modelagens, e registrados
os relatos, as estórias e as associações da criança sobre os mesmos (Jung, 1916/2000b;
1917/2004; Silveira, 1992/2001; e) fotografias do brincar simbólico na caixa de areia:
foram disponibilizados brinquedos e uma caixa de areia para que a criança criasse cenários
de forma livre e espontânea; foram fotografados os cenários que a criança construiu
na caixa de areia e registrados os relatos, as estórias e as associações da criança sobre
os mesmos (Jung, 1916/2000b; 1917/2004; Vieira, 2006; Ammann, 2002); f) sonhos:
foram registrados os sonhos relatados pela criança e suas respectivas associações (Jung,
1916/2000b; 1917/2004; Vieira, 2006).
Foi utilizado delineamento de estudo de caso único (Yin, 1994/2001), buscando
analisar os símbolos e sua função terapêutica na psicoterapia infantil, bem como uma
compreensão do caso analisado. Foi efetuada a seleção do participante dentre os pacientes
atendidos pela pós-graduanda, e procedeu-se o contato inicial para propor a participação na
pesquisa junto ao responsável legal, com os devidos esclarecimentos acerca dos objetivos,
privacidade e o caráter voluntário. Após, a criança foi consultada sobre a possibilidade
de sua participação, também sendo esclarecida conforme descrito antes. Confirmado o
interesse de participação, foi lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
pelo responsável legal e pelo participante. Posteriormente, os instrumentos de coleta de
dados foram organizados para proceder ao levantamento e à análise dos dados.
Foram adotados os princípios éticos referentes à proteção dos direitos, bem-estar
e dignidade dos participantes, conforme Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
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Saúde do Ministério da Saúde, e a resolução número 016/2000 do Conselho Federal de
Psicologia, dispondo sobre a realização de pesquisas em psicologia com seres humanos.
No presente estudo, os nomes dos sujeitos de pesquisa foram omitidos, tendo sido
substituídos por nomes fictícios.
Toda produção simbólica foi analisada e interpretada conforme proposto pela
Psicologia Analítica, contemplando os processos de contextualização e amplificação. Os
sonhos e narrativas foram analisados segundo o modelo de análise dramática de Jung
(1916/2000b; 1917/2004), que organiza a produção simbólica em quatro proposições
macro narrativa: exposição, desenvolvimento da ação, peripécia, e solução. A análise dos
dados contemplou as intervenções clínicas procedidas com a criança e com a família, bem
como os resultados obtidos de tais intervenções. Para a elaboração deste estudo, foram
selecionados alguns relatos e produções simbólicas realizadas pelo participante durante
as primeiras 15 sessões dentre as 83 procedidas ao longo do tratamento.
Resultados e discussão
Paulo tinha 8 anos quando foi encaminhado à psicoterapia. O motivo da consulta
apresentado pela escola era o fato de Paulo mentir e ter dificuldade de relacionamento
com colegas meninos, preferindo relacionar-se com meninas. A mentira foi descrita como
inventar estórias, como a de ter um irmão pequeno e coisas que o irmão fazia em casa.
Também se dizia gay, o que era motivo de chacota pelos colegas. Paulo residia com os
pais e duas irmãs: Carla, com 17 anos, e Marina, com 11 anos; o pai chamava-se Antônio,
tinha 43 anos e trabalhava como auxiliar de almoxarifado; a mãe, Luciana, tinha 38
anos e cuidava do lar. Paulo veio trazido à terapia apenas pela mãe, o pai recusou-se a
participar do tratamento. Paulo sempre foi brigão, e havia cerca de quatro meses que ele
estava mais agressivo: irritado e ciumento, empurrava a mãe, brigava e implicava com as
irmãs e queria ter autoridade sobre elas; colocado de castigo, chorava e esperneava como
bebê. Luciana não o deixava jogar bola com os meninos na rua nem brincar com meninos
maiores, embora ele pedisse. Paulo considerava que os colegas da escola eram chatos;
também falava que o pai era chato, porque não brincava com ele. Luciana descreveu
o esposo como enérgico, briguento, como alguém que não demonstrava carinho e era
exigente; tinha como aspectos positivos preocupar-se quando os filhos adoeciam e não
bater neles. Tendo engravidado de Paulo, Luciana queria que fosse uma menina, “porque é
mais companheira e mais fácil de criar”. Decepcionou-se ao saber que era menino; até ele
nascer, acreditou que pudesse haver engano. Desde que nasceu, Paulo presenciou muitas
brigas entre o casal, devido ao marido ter ciúmes e achar que a esposa o traía com outros
homens. Paulo foi concebido em uma relação sexual forçada pelo pai. Segundo a mãe,
o casal não tinha mais vida sexual porque ela queria separar-se. Luciana desesperou-se
ao engravidar, pensou em suicídio e se expôs a situações de risco. Antônio pensou que
o filho não era dele; depois que Paulo nasceu, o pai só olhou para o menino aos 9-10
meses. Há quatro meses o casal brigou, e desde então não se fala.
Aos 4-5 anos, devido ao afastamento de Luciana, que esteve acompanhando seu
pai, avô de Paulo, em um período de hospitalização, Paulo regrediu, voltando a chupar
bico e apresentando enurese noturna. No momento da entrevista, aos 8 anos, continuava
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com a enurese, apresentando algumas vezes encoprese. Dormia com fralda presa ao
dedo, chupava bico à noite para dormir e algumas vezes durante o dia enquanto assistia
à televisão.
Na primeira sessão, Paulo modelou dois falos, os quais designou como “pau” (Figura
1). A seguir, fez duas árvores. Do que sobrou da massa que estava usando, modelou uma
cabeça e colocou junto às árvores (Figura 1), dizendo que era uma menina, a Ana, colega
com quem brincava na escola de “mamãe e filhinho, papai e filhinha”. Enquanto modelava,
Paulo perguntou se sua mãe, que o aguardava na sala de espera, estava rezando; segundo
ele, ela estaria rezando “pra nenhum homem mau pegar ela”.
Figura 1 – Os falos e as árvores com a menina.
Após, Paulo fez uma pintura (Figura 2) narrando a seguir: “É um planeta, o Saturno
(exposição); a grama preta apodreceu porque faltou água, o planeta era terra e pegou toda
a água; o verde é grama que ficou com água. O azul é vários fios pelos quais sai água para
o planeta; o amarelo é o que sai dos fios (desenvolvimento da ação). As bolas cor-de-rosa
um homem mau fez (peripécia). No planeta não mora ninguém, porque é terra e secou”
(solução). Por fim, desenhou a Bandeira do Brasil (Figura 2).
Figura 2 – O planeta Saturno e a Bandeira do Brasil.
Aletheia 45, set./dez. 2014
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Na segunda sessão, Paulo construiu duas caixas de areia. Na primeira (Figura 3),
disse que ia fazer um castelo com a areia (exposição); fez um pequeno monte, colocou
uma bola enterrada na areia e falou que era uma bomba (desenvolvimento da ação); pôs
uma menina em pé sobre o monte (peripécia), ela logo caiu, ele a retirou (solução). Na
segunda caixa de areia, refez o monte, colocou quatro bolas sobre ele (Figura 3) e narrou:
“são bombas, é o mal (exposição); as bolas se abrem e soltam uns fios (desenvolvimento
da ação), os fios entram no monte (peripécia) e suga o sangue de quem está dormindo
lá dentro” (solução).
Figura 3 – A bomba no castelo e as bombas vampiras.
A seguir, vamos analisar a série de conteúdos simbólicos que surgiu nesses dois
primeiros encontros. Uma série consiste na representação sucessiva de um mesmo tema, o
qual vai se desdobrando mediante imagens ou narrativas subsequentes. Para compreendêlas, vamos contextualizar, buscando a conexão do seu sentido com a história de vida de
Paulo e da família. Quando necessário, procederemos à amplificação, retomando a título
de esclarecimento, como tais símbolos têm sido lidos pelas diversas culturas ao longo da
história das civilizações. Considerando que no material de Paulo surgiram várias imagens
sem narrativas, para entendê-las precisamos buscar seu significado na cultura.
Assim como Jung (1916/2000b) apontou que os sonhos iniciais de uma psicoterapia
possuem um valor diagnóstico e prognóstico, as produções simbólicas iniciais de Paulo
mostraram o conflito e a demanda central a ser tratada na psicoterapia e sua possível
evolução. Nesta primeira série Paulo assinalava duas questões centrais. A primeira
envolvendo o casamento dos pais, mais especificamente a sexualidade vivida nesse
casamento, o modo como ele foi gerado e o sentido para a família de sua geração. A
segunda refere-se ao processo de construção da identidade sexual de Paulo.
As imagens dos falos e das árvores junto à cabeça de uma menina (Figura 1)
evocam o mito de Átis e Cibele. Segundo o mito, Átis, enlouquecido pela mãe, que por
ele se apaixonara, praticou a autocastração debaixo de um pinheiro, transformando-se
posteriormente em pinheiro. Cibele, desesperada pela morte do filho, levou-o até sua
gruta onde o pranteou. O pinheiro, na antiguidade, era a árvore dedicada a Cibele, deusa
da fecundidade (Chevalier & Gheerbrant, 1982/2003). A árvore, nesse contexto, significa
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o filho que a mãe recolheu à caverna, ou seja, ao seio materno; ao mesmo tempo, a
árvore também significa o materno, pois no culto prestado ao deus Átis, sua imagem
era pendurada em uma árvore, que depois era cortada. A transformação em pinheiro
simboliza, no culto, a identificação e o sepultamento do filho na mãe, enquanto o corte
da árvore representa a castração e o sacrifício do filho (Jung, 1912/1999). Mediante esse
mito, vemos o efeito do complexo materno no filho que permanece identificado à mãe,
o que traz consequências importantes em termos de sexualidade. Esse conflito ficou
expresso tanto na imagem dos falos quanto na das árvores onde é colocada a cabeça de
uma menina. A criação de Paulo como uma menina, conforme assinalado na primeira
entrevista com Luciana, constituía o fator determinante de sua identificação massiva com
a mãe e do conflito na construção de sua identidade sexual. Diante disso, e dizendo-se
gay, implicitamente ele se perguntava: “sou menino ou sou menina? Se sou menina, o
que faço com tudo aquilo que me caracteriza como menino?”. Criando Paulo como uma
menina e promovendo o apego e a infantilização, a mãe o mantinha preso e identificado
com ela. Tal como simbolizado no mito, ela psiquicamente o “castrava”. Por outro lado,
a imagem das árvores com cabeça de menina pode também simbolizar um feminino
infantilizado vivenciado pela mãe, que não integrava a sexualidade na relação do casal
e cuja libido se mantinha apenas no nível de “mamãe e filhinho”, tal como retratado na
brincadeira de Paulo com a amiga de escola. Jung (1939/2000a) propôs que o complexo
materno na filha pode gerar tanto a hipertrofia quanto a atrofia do feminino. No aspecto
negativo do complexo materno, a meta da mulher consiste em parir, sendo o homem
apenas instrumento de procriação, de modo que o Eros desenvolve-se apenas como
relação materna.
A terceira imagem desta série foi a pintura e a narrativa acerca do planeta Saturno
(Figura 2). Podemos observar aqui a presença de um complexo familiar que suga toda a
vitalidade e anula toda potência e a própria vida. Uma significativa metáfora da dinâmica
familiar que tanto através da ação do pai via rejeição e distanciamento na relação
com o filho, quanto da mãe, pela superproteção e projeções relativas ao masculino,
retirava de Paulo a necessária energia para crescer de maneira saudável. O homem mau
mencionado por Paulo é a representação da imagem negativa de masculino que Luciana
tinha, pois considerava que nenhum homem valia, conforme expressou em entrevista.
Essa representação era transmitida a Paulo tanto via identificação inconsciente, como
verbalmente, à medida que denegria a imagem do pai. Isso é ratificado pela fantasia de
Paulo de que a mãe devia estar rezando para que nenhum homem mau a pegasse. Estando
identificado à mãe, ele compartilhava os mesmos sentimentos em relação ao pai-marido,
tomando o partido dela nos desentendimentos com o esposo. Tal identificação produzia
no menino um tom afetado em um processo de exclusão do aspecto masculino de sua
identidade, visto pela mãe como algo mau, violento e perverso. Devido a essa situação,
a vida tornava-se estéril e triste como a representação do planeta Saturno (Figura 2) e sua
transposição para o local em que viviam, mediante a representação da Bandeira do Brasil
(Figura 2). Jung (1926/1986; 1916/2000b) descreveu a identificação entre a psique dos
pais e a da criança como um estágio normal dentro do desenvolvimento da personalidade
e estabeleceu um paralelo com o conceito de participação mística proposto por LévyBruhl (1947) no campo da Antropologia. Tal identificação inconsciente da criança com
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a psique dos pais deve-se ao estado de inconsciência em que ela se encontra. Quanto
mais frágil ou incipiente for a consciência do eu, mais ela ‘participa’, por assim dizer, da
psique dos pais (Jung, 1926/1986).
As duas narrativas seguintes surgidas nesta série contêm um mesmo elemento: a
bomba. Na primeira narrativa (Figura 3) a personagem é uma menina, na segunda (Figura
3) é alguém que dorme, isto é, que se encontra em estado de inconsciência, e está tendo seu
sangue sugado. A menina no castelo remete a anima. Para Jung (1939/2000a; 1928/2003;
1917/2004), a anima representa o aspecto feminino da personalidade masculina, tendo a
mãe como primeiro modelo, a anima é também uma ponte de ligação com o inconsciente
e com a vida em seu aspecto mais instintivo. Em sua escolha amorosa, o homem tende a
projetar na mulher amada sua imagem de feminino (Jung, 1928/2003). Desse modo, “em
cada complexo materno masculino, ao lado do arquétipo materno, a anima do parceiro
sexual masculino desempenha um papel importante” (Jung, 1939/2000a, p.95). Vemos
que a menina, aqui, sendo a anima de Paulo, representava ao mesmo tempo a mãe como
modelo de anima para Paulo e a anima do pai de Paulo, e ela estava sobre uma bomba. A
bomba pode ser lida como uma metáfora do casamento dos pais e dos conflitos familiares
que essa situação suscitava face à inconsciência do casal, que mantinha um casamento
baseado no utilitarismo. A imagem da menina sobre a bomba também se remete ao
processo de construção da identidade de Paulo, que criado artificialmente como uma
menina, identifica-se com a mãe.
Na quarta sessão, Paulo contou o seguinte sonho: estava dormindo, acordou e viu
uma aranha sobre a cama (exposição), a aranha encostou-se nele, ele não sentia as cobertas
nem a aranha, só sentia a si mesmo se ele se tocava (desenvolvimento da ação). A aranha
se enroscou nas suas pernas, braços e pescoço e o enforcou, ele morreu (peripécia). A
mãe acordou e, quando o viu, desmaiou (solução).
Na quinta sessão, Paulo montou uma caixa de areia: juntou oito bastões, fez um
retângulo com eles e colocou o Power dentro (Figura 4). Depois narrou: “o Power ficou
preso (exposição), ele caiu ali (desenvolvimento da ação), foram os maus que fizeram
isso (peripécia), eram paredes que iam se fechando” (solução).
Figura 4 – O herói preso.
A série seguinte contempla as imagens e narrativas da quarta e quinta sessão. A
aranha aparece no sonho de Paulo, e ela o enforcou e matou. A aranha é uma imagem
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arquetípico-cultural do aspecto destrutivo do complexo materno (Jung, 1912/1999),
aparecendo aqui como símbolo da mãe devoradora que infantiliza e promove a dependência
do filho. O sonho da aranha encontra uma correspondência com a caixa de areia, na qual
o herói Power encontra-se preso (Figura 4). O herói é um antigo símbolo do impulso no
sentido da liberdade e da autonomia, sendo um modelo de desenvolvimento para o eu.
O herói encarcerado é uma metáfora do impulso de individuação do eu submetido ao
complexo materno.
Na sétima sessão, Paulo fez uma caixa de areia (Figura 5) retomando o tema do
herói: tomou o Power Ranger e falou que ia enterrá-lo, puxou areia fazendo um túmulo
(exposição). Disse que ele foi morto por um raio que caiu na sua cabeça, que ele estava
lutando com os malcriados que não obedecem aos outros (desenvolvimento da ação).
Depois, começou a desenterrar o boneco e novamente colocou areia sobre ele, puxava a
areia com vigor e disse que era para ficar bem morto; inseriu três estacas, disse que era
uma placa (peripécia). Desfez o túmulo e retirou o Power e a placa e voltou a construir
um monte de areia, agora ao centro da caixa: disse que estava enterrando o raio porque
agora eles viram que não foi o Power (solução).
Figura 5 – O herói que luta com os malcriados e o herói morto.
Esta narrativa da morte do herói que luta com os malcriados (Figura 5) complementa
a imagem anterior (Figura 4). O herói é um ser dotado de coragem e determinação que
luta para superar os obstáculos: vencer o dragão/baleia/serpente/mãe, aventurar-se numa
região perigosa (fundo do mar, caverna, floresta) ou encontrar o tesouro difícil de ser
resgatado (Jung, 1912/1999). O herói é uma figura-modelo, um ideal ou um fator de
direção gerado pelo inconsciente quando a pessoa precisa adotar uma atitude heroica
para vencer uma dificuldade (Franz, 2003). Psicologicamente, a luta do herói representa
a luta para superar uma inferioridade moral. Por inferioridade moral compreende-se algo
que está faltando para que a personalidade possa se desenvolver. A luta heroica implica
coragem, autonomia e esforço para empreender uma conquista, como a necessidade
de libertar-se do mundo materno, para crescer e tornar-se adulto. Na caixa de areia, o
herói morre sem ter cumprido a função de inspirar o eu a se libertar da infantilidade,
Aletheia 45, set./dez. 2014
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o que demonstra que esse impulso de crescimento não está suficientemente forte para
fazer frente ao complexo materno. Paulo reage a este desafio sentindo-se exigido e
inventando dores para fugir a suas obrigações, tal como ir à escola.
Na décima segunda sessão, Paulo propôs a brincadeira de achar o tesouro
escondido. Escondeu um baú no armário e criou a brincadeira, dizendo o que devíamos
fazer, dizer e como agir; colocou uma escada no meio da sala para ser uma divisão
de ambientes e uma passagem; era para procurarmos muito, não era para a terapeuta
abrir a porta onde estava o tesouro, somente ao final e quando ele dissesse. Depois de
procurarem bastante, ele propôs que a terapeuta tentasse enganá-lo, pegando o tesouro
e dizendo que não estava ali.
Na décima terceira sessão, ao chegar, Paulo buscou chamar atenção com uma
atitude histriônica, jogando-se ao sofá e respirando com sofreguidão, dizendo-se
cansado. Construiu uma caixa de areia (Figura 6): apanhou duas bonecas e uma
vassoura para limpar a sujeira que um homem fez (exposição). Uma das bonecas
queria namorar o homem, a outra era amiga dela; o diálogo inicial entre as duas foi
sobre isso. A fala do homem foi pretensiosa e de pouco caso, dizendo: “vou sair com
umas mulheres!”. Quando o homem se aproximou, as duas se assustaram, caíram para
trás e tiveram dificuldade de se recompor por ficarem muito atrapalhadas, tentavam
levantar e caíam. Quando se levantaram, o homem empurrou e chutou uma delas,
Paulo passou a vassoura sobre o pé do homem e fez barulho de escarro. Depois Paulo
retirou a boneca da caixa de areia, pegou a vassoura e fez que limpava o lugar onde
ela estava, emitindo uma expressão de nojo, com isto expressava que ela fez sujeira
ou coco. Em seguida, falou em tom irritado: “cadê a sua bota?”, ficara sob a areia;
recolocou a boneca na areia e a fez afundar, então Paulo disse: “é areia movediça”,
e a boneca ficou enterrada até o pescoço. A amiga foi ajudá-la e terminou afundando
também; o homem entrou na caixa para ajudar, mas não fez nada (desenvolvimento da
ação). Paulo enterrou as duas bonecas totalmente, buscou uma pá para colocar mais
areia, depois começou a retirar a areia. Retirou a primeira boneca e a deitou dentro
da caixa; a amiga tentou sair da areia, levantou-se e se afastou do monte e Paulo
disse: “ele tem poderes”, e começou a jogar areia na boneca com a mão, a terapeuta
perguntou: “que poderes ele tem?”, respondeu “de magnetismo”. Ficou jogando areia
na boneca, que ficou tentando levantar-se, mas caiu por causa da areia que lhe era
jogada (peripécia). Paulo largou o boneco e passou a brincar com as duas bonecas,
elas ficaram afundando e saindo da areia de modo saltitante. A terapeuta perguntou
o que estava acontecendo e Paulo respondeu: “elas estão brincando”. Depois, ele
segurou cada boneca na mão e colocou areia sobre elas (Figura 6), manifestando que
estava tomado por um desejo de sujar (solução).
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Figura 6 – O namoro e o desejo de sujar.
Na décima quarta sessão, Paulo repetiu esta brincadeira com as bonecas e o boneco,
com algumas variações: propôs dizer às bonecas que iam salvá-las e logo sussurrou:
“vamos enterrá-las, tá? Nós dissemos que vamos salvar, mas vamos é enterrar!”.
Na décima quinta sessão, Paulo contou à terapeuta que sua mãe ingeriu comprimidos
para dormir e que tiveram dificuldades em acordá-la. A seguir, brincou na caixa de areia
(Figura 7): montou um castelo e quatro edifícios. Escolheu três personagens: o homem
de roupa cor de laranja foi nomeado Robin; o de roupa azul, Mateus e o de roupa roxa,
Andy (exposição). Eles começaram a pular e a se enterrar na areia, Paulo disse que ali
era “aquele lugar frio... a neve”. Em determinado momento, enterrou os três juntos,
cobrindo-os totalmente com areia, depois eles subiram sobre o castelo e começaram a
saltar e se afundar na areia/neve, gritavam enquanto se atiravam e se afundavam. Gritando
de modo histérico, Paulo fez com que os bonecos derrubassem os prédios, de maneira
que eles passaram a ser designados ‘quebradores’. Depois apanhou montes de areia e
colocou sobre o castelo, então derrubou o castelo. Disse que os homens eram irmãos, que
brigavam entre si e que um batia no outro. Eles se odiavam. Enterrou os três, cobrindo-os
com um monte de areia/neve, retirou-os do monte e eles lutaram entre si. Um enterrou
o outro na areia, que ficou com a cabeça coberta e o corpo de fora. Paulo arrumou o
prédio verde e os irmãos voltaram a derrubá-lo, a luta ocorria ora diretamente entre os
personagens, ora com eles jogando os prédios de um lado para o outro. Então apareceu
um coelho. Primeiro, ele se escondeu atrás de um prédio, depois subiu nele e desafiou
os homens, dizendo que tinha poderes. Paulo apanhou uma escada vermelha e a apoiou
no prédio vermelho, Mateus subiu e atirou-se dali; os irmãos continuaram se enterrando
e saindo da areia/neve. Veio um tubarão que andou atrás do Robin, Paulo falou que o
tubarão era o Robin que se transformava em tubarão (desenvolvimento da ação). Robin
levantou os prédios e os reorganizou, apoiou a escada no prédio verde e subiu. O tubarão
ainda andou atrás dele. Depois Robin veio até os outros dois que estavam juntos e gritou
que os odiava, porque o tratavam como um bebê; depois, ele chutou todos os prédios,
derrubando-os. Mateus e Andy também foram derrubados. Depois, Robin ficou doente e
Mateus e Andy pegaram um carro para levá-lo ao médico (peripécia). Andy foi para trás
Aletheia 45, set./dez. 2014
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do castelo junto com Robin, o qual ficou no médico. Mateus deitou-se na areia, Robin e
Andy vieram, falaram com ele e ele não respondeu. Eles aproximaram-se perguntando
o que houve, mas Mateus continuou não respondendo, então os dois saíram gritando
“ambulância”. Mateus levantou-se e disse: “enganei eles” (solução).
Figura 7 – Destruição da cidade e a manipulação.
Sobre a aparente tentativa de suicídio, Luciana relatou à terapeuta que ela queria
falar com o esposo sobre a separação, mas ele não quis; brigaram e ele a acusou de traição.
Primeiro, Luciana disse que ingeriu os comprimidos porque queria dormir; depois, colocou
que queria morrer, estava pensando em seu pai, pensou que se ela morresse o marido ia ter
que assumir os filhos. A terapeuta enfatizou a necessidade de ela buscar uma psicoterapia
para tratar-se. Depois de alguns meses, Luciana aceitou o encaminhamento para terapia
e começou a tratar-se. Paulo prosseguiu o tratamento psicoterápico.
Esta última série contempla o material simbólico surgido na décima segunda até
a décima quinta sessão. Inicia com a brincadeira do tesouro escondido. A partir dessa
brincadeira, desvelou-se o tema da perversidade nas relações interpessoais. Através da
identificação, Paulo reproduz a vivência dos pais, na qual o sentimento de ser enganado
é decisivo: segundo Luciana, a situação do casal complicou-se quando Antônio suspeitou
que ela o traísse, foi este o momento em que as brigas iniciaram. Quando Luciana
engravidou, o esposo verbalizou que não acreditava que o filho fosse seu. Segundo a
mãe, Paulo foi concebido através de uma relação sexual forçada. O sentimento de ser
enganado mantinha-se vivo por parte de Antônio. A recusa em ter relações sexuais por
parte de Luciana também parece ter alimentado esta fantasia do esposo. As narrativas
nas caixas de areia com as bonecas e o boneco (Figura 6) mostram um caráter perverso
na relação entre o homem e a mulher, baseada em uma sexualidade utilitária e em uma
visão grosseira da sexualidade, associada à sujeira e à postura cafajeste do homem. No
homem predomina a agressividade, enquanto que na mulher, a atitude histriônica de
desejo e repulsa diante da sexualidade. Paulo reage a esse imaginário e prática sexual
dos pais, reproduzindo-o e assumindo uma postura de defesa e de identificação em
relação à mãe. O desfecho é a impossibilidade de uma relação heterossexual imaginária
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Aletheia 45, set./dez. 2014
que mantenha uma paridade ontológica entre o homem e a mulher, de maneira que cada
um possa ser e expressar-se livremente. É provável que o tesouro escondido no baú, o
qual necessitava ser descoberto na psicoterapia fosse o fato de a personalidade de Paulo
estar sendo construída sobre uma base falsa. Estão sendo proporcionadas a Paulo duas
possibilidades de identificação, dois modelos de construção de identidade para a vida
adulta: se ele assumir a identificação com o masculino e adotar a masculinidade, será
como o homem retratado na caixa de areia (que representava a imagem que a mãe tinha
dos homens e/ou a imagem da sexualidade do pai); se assumir a identificação com o
feminino, poderá apresentar uma personalidade histriônica ou assumir a identidade sexual
feminina, tornando-se gay, como dizia na escola. A última narrativa da série (Figura 7)
traz a destruição da cidade e é condizente com a tentativa de suicídio da mãe ocorrida
naquela semana: os personagens destroem o próprio cenário de atuação, assim como a
mãe esteve em vias de destruir a si mesma e, com isso, a família. A destrutividade da
situação familiar é também representada através da imagem do tubarão. A neve simboliza
o congelamento da situação, que se revela estática e paralisada: a tentativa de suicídio,
em vez de uma saída que promova o crescimento e a transformação. Ao tentar o suicídio,
Luciana estava pensando em seu pai, e o fez para que o marido assumisse os filhos. Em
entrevista anterior, ela relatou que sempre comparou o marido ao pai, e ressentia-se por
seu esposo não ser como ele. Com isso, mostrava-se como uma mulher que permaneceu
na condição de filha e, portanto, infantilizada. Posicionando-se como filha e buscando
no casamento uma relação de parentalidade, a sexualidade precisava ser excluída. A
partir da cena na caixa de areia, na qual Robin derruba os prédios e agride seus irmãos
porque o tratam como um bebê, podemos considerar que a agressividade como defesa
frente à infantilização era uma forma típica de funcionamento dentro desta família. Ainda
que inconscientemente, Paulo compreendeu a tentativa de suicídio da mãe como uma
manobra manipulativa, o que é representado na caixa de areia pelo personagem Mateus,
que finge estar morto.
Considerações finais
A psicoterapia com crianças implica a participação da família no processo
terapêutico: a produção de reflexões acerca de suas próprias dificuldades e a busca de
recursos necessários a sua superação mostrou-se no presente caso como uma importante
ferramenta de trabalho. Foi particularmente importante a tomada de consciência, por parte
da família, da influência que exerce na organização psicológica e no desenvolvimento da
criança. No caso clínico analisado, vimos que a produção simbólica de Paulo, interpretada
a partir do contexto de sua história pessoal e familiar, possibilitou compreender que
seus conflitos referiam-se à construção da identidade sexual e a uma problematização
da sexualidade do pais.
Ficou evidenciado o papel dos complexos familiares nos conflitos. Alguns desses
complexos mostraram um caráter transgeracional, como o que predominava na relação
conjugal, pois o ciúme e desconfiança de traição reproduziam-se na família desde o avô
paterno: Antônio não foi criado por seus pais, que tiveram várias separações devido aos
ciúmes, culminando em uma separação definitiva quando ele tinha 10 anos. Antônio
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agora atualizava o complexo reproduzindo-o com sua esposa. Outro complexo familiar
decisivo envolveu o desejo da mãe de que Paulo fosse uma menina, fazendo com que
ela, inconscientemente, o criasse como uma menina. Este complexo reforçado em sua
constelação pela rejeição do pai provocou uma dificuldade na identificação de Paulo com
o masculino, o que fez com que ele se mantivesse emocionalmente identificado com a
mãe. A neurose produzida pelos conflitos familiares dificultou tremendamente o processo
de desenvolvimento de Paulo, dificultando que ele realizasse suas potencialidades. O
que restou foram as dificuldades a ser superadas, como a inabilidade para conviver com
outros, o sentimento de incapacidade para brincar e jogar bola com os pares, para cuidar
de si próprio e para ter autonomia.
Apesar da adesão ao tratamento, a tentativa de suicídio impôs limites à
psicoterapia, imprimindo um ritmo mais lento e uma extrema cautela na abordagem
relativa à participação da família. Outra dificuldade foi o pai não aceitar participar na
psicoterapia de Paulo. A situação do casal era grave e representava um obstáculo para
uma melhor evolução do menino. Compreendemos que nessa situação o prognóstico
era desfavorável, pelo menos naquele momento. Pelas identificações que lhe eram
proporcionadas, Paulo tendia a apresentar dificuldades para lidar com o feminino na
vida adulta, quer se optasse pela construção de uma identidade masculina ou feminina,
a menos que o grupo familiar decidisse rever suas próprias representações e reorganizar
suas relações.
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_____________________________
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
Clarice Haubert: Psicóloga; Especialista em Psicologia Clínica; Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS.
André Guirland Vieira: Psicólogo, Doutorado em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Luterana
do Brasil – ULBRA.
Endereço para contato: [email protected]
Aletheia 45, set./dez. 2014
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Aletheia 45, p.238-242, set./dez. 2014
Reabilitação neuropsicológica na prática clínica
Rita de Cássia Silva da Rosa
Silvana Soriano Frassetto
Segundo a organizadora Jacqueline Abrisqueta Gomez, a obra Reabilitação
neuropsicológica: abordagem interdisciplinar e modelos conceituais na prática clínica
nasceu de uma necessidade de compreender melhor a reabilitação neuropsicológica
(RN) no Brasil, também chamada Reabilitação Cognitiva (RC), e sua característica
holística e integrada. A autora questiona e discute a falta de um modelo que norteie
o processo de RC em nível nacional. Reabilitar é um desafio múltiplo com diversas
faces nas várias dimensões do ser, do criar, do conviver, do aprender e do aprender a
aprender. Atualmente a RC é considerada a melhor abordagem para o tratamento de
pessoas com sequelas cognitivas moderadas ou graves. Contudo, ainda são poucos os
investimentos para pesquisas nessa área. Além da organizadora, o livro tem mais 43
autores, é composto por 31 capítulos divididos em 06 partes, que serão apresentadas
a seguir.
A primeira parte contempla os capítulos de 01 a 05, e aborda aspectos que
devem ser considerados sobre a RN. No primeiro capítulo, escrito pela organizadora,
são apresentados os fundamentos teóricos e modelos conceituais para a prática da RC
interdisciplinar, como as mudanças na prática clínica, a falta de um modelo de RN
e as etapas do modelo compreensivo. No capítulo dois, Mauro Muszkat e Claudia
Berlim de Mello dissertam sobre a neuroplasticidade, que é a capacidade do indivíduo
de reorganizar seus diversos padrões de resposta e conexões diante da experiência,
mesmo após sofrer danos cerebrais; abordam mecanismos moleculares e nível de alerta
da neuroplasticidade e os princípios neurobiológicos básicos em RC. Já os aspectos do
tratamento farmacológico relacionados à RC de Lesões Cerebrais Adquiridas (LCA),
as alterações do comportamento e cognitivas relacionadas aos Acidentes Vasculares
Encefálicos (AVEs) e aos Traumas Cranioencefálicos (TCEs), bem como as alterações
cognitivas de ambos, são apresentados por Paulo H. F. Bertolucci no terceiro capítulo.
No capítulo seguinte, Elizabeth Belich Piovezan mostra a relevância da reserva
cognitiva no processo reabilitador. Por fim, Carla Cristina Adda encerra a primeira
parte onde descreve que a self-awareness ou autoconsciência pode contribuir para o
processo de RC.
A segunda parte compreende os capítulos de 06 a 09 que abordam o processo
de avaliação nos programas de RC. O sexto capítulo de autoria de Márcia Maria
Pires Camargo Novelli e Mariana Boaro Fernandez Canon apresenta o constructo de
funcionalidade e seus aspectos conceituais e metodológicos, passando pelas formas de
avaliação, instrumentos utilizados, e como as LCAs e as patologias neurodegenerativas
podem comprometer o desempenho da pessoa de executar atividades rotineiras. O
capítulo sete complementa o anterior, escrito por Rubens Goulart Panico, e traz um
breve histórico das Funções Executivo-Atencionais (FEA), que visa auxiliar o leitor a
compreender melhor as deficiências nessas funções, bem como uma lista dos erros mais
comuns nos pacientes em reabilitação, e um caso clínico. A avaliação das habilidades
de comunicação é apresentada no oitavo capítulo de Isabel Carvalho, onde a autora
afirma que esta é fundamental na análise do comportamento. Todavia, para atingir
resultados mais satisfatórios, ela deve ser o mais individualizada possível, pois cada
pessoa responde de uma forma às influências do meio. Encerrando a segunda parte,
Alfonso Caracuel-Romero, Andrew Bateman e Thomas W. Teasdale disponibilizam o
Questionário de Lesão Cerebral (EBIQ), constituído de 63 itens, cujo objetivo é avaliar
a experiência subjetiva dos pacientes com LCA e seus familiares, assim como o modelo
Rasch e os fatores que influenciam as respostas do questionário.
As evidências científicas da eficácia das estratégias de intervenção e técnicas
da RC são apresentadas nos capítulos 10 a 16 da terceira parte. A autora do livro é
quem escreve o décimo capítulo, onde ela busca demonstrar as revisões sistemáticas
que baseiam as recomendações das boas práticas em RC com o objetivo de minimizar
as deficiências intelectuais e melhorar as habilidades sensoriais, psicomotoras e
comportamentais, aumentando assim a independência do indivíduo. Descreve também
as principais evidências científicas em RC em outros transtornos psiquiátricos e
em crianças. O capítulo onze, dissertado por Izabel Hazin, Jorge Tarcísio da Rocha
Falcão e Caroline Araújo Lemos, tem o objetivo de ressaltar a importância de levar
em consideração a memória autobiográfica no processo de RN, além de apresentar
modelos conceituais, articulações teóricas e metodológicas, e as possibilidades de
comprometimento na contribuição à RN. Ainda sobre a memória, o décimo segundo
capítulo de autoria de Carla Cristina Adda aborda brevemente a memória prospectiva.
A RN da atenção e suas características são abarcadas no capítulo treze por Liliane
Cristina de Além Mar e Silva, na busca de subsidiar o leitor para compreender melhor
o processo de desenvolvimento na reabilitação. Já o décimo quarto capítulo fala da RN
da linguagem enfocando os distúrbios nessa área causados por lesões neurológicas.
Para tanto, as autoras Mirna Lie Hosogi e Maria Teresa Carthery Goulart descrevem
brevemente as afasias, apresentam o processo de RN e discutem as metodologias
de intervenção terapêutica e seu efeito. No capítulo quinze, a autora Eliane Correa
Miotto discorre alguns pontos sobre a RN das Funções Executivas (FE) e avalia a
eficácia da RN nessa área. Ainda nessa linha, o décimo sexto capítulo postulado por
Patrícia Rzezak, apresenta evidências científicas da RC das habilidades de percepção
visuoespacial e visuoconstrução em pessoas adultas com Lesão Encefálica Adquirida
(LEA). Em virtude da dificuldade de criar técnicas avaliativas eficazes, uma vez que
normalmente as consequências das LEA são extensas e a gravidade e os efeitos variam
de pessoa para pessoa, a autora traz exemplos de algumas dessas técnicas que estão
sendo bastante utilizadas atualmente.
A quarta parte do livro mostra nos capítulos 17 a 21, a interface da RN com outras
abordagens e disciplinas. Os autores do capítulo dezessete, Noomi Katz e Carolyn
M. Baum, trazem a Terapia Ocupacional (TO), onde ressaltam a importância desta
abordagem como aprendizado de estratégias e consciência, demonstrando modelos
cognitivos de TO e treinamento de habilidades funcionais; e falam também sobre o
processo de avaliação de pessoas com suspeita de deficiências cognitivas e, sobre
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os estágios no desenvolvimento de uma avaliação cognitiva funcional. O décimo
oitavo capítulo, escrito por Sara Monteiro dos Anjos e Kamila Regolin, apresenta a
Tecnologia Assistiva para Cognição (TAC), que é utilizada como suporte técnico de
compensação e reestruturação do funcionamento cognitivo. A memória, o déficit de
aprendizagem, o planejamento diário de rotina, a orientação espacial e temporal, o
processamento da informação, o controle de ambiente e Atividades de Vida Diárias
(AVD) também são comentados no capítulo. Dentre os vários métodos e abordagens
utilizados na RN, as autoras do capítulo dezenove Maria Therezinha B. Golineleo e
Teresinha F. de Almeida Prado, apresentam o conceito neuroevolutivo de Bobath,
que diz que não se ensina movimentos a pessoas com disfunções neuromotoras, e a
reabilitação os torna possíveis. As autoras ainda mostram o histórico do conceito, as
evidências científicas, as consequências das alterações neuromotoras na cognição e a
aplicabilidade na clínica. Adriana Turchetti Pinto de Moura escreve o capítulo vinte e
apresenta propostas de trabalho para programas de reabilitação como, a psicopedagogia
de estimulação cognitiva e o Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI), de
Reuven Feuerstein; ela coloca esses instrumentos como alternativas eficazes na RC.
A arte-reabilitação neuropsicológica é o tema do capítulo vinte e um, de autoria de
Maria Cristina Anauate, que a utiliza como um recurso que atua de forma restaurativa
ou estimulativa, compensatória, combinada e preventiva, e de manutenção no processo
de reabilitação, além de apresentar brevemente casos clínicos em demência com
intervenções através da arte.
Os capítulos 22 a 26 compreendem a parte cinco que tem como temática as
intervenções psicológicas, sociais e comportamentais. A autora do capítulo 22,
Katiúscia Karine Martins da Silva, disserta sobre a importância da Terapia CognitivoComportamental (TCC) no processo de RN, uma vez que as características dessa
abordagem auxiliam pacientes e familiares a responderem de maneira mais adaptativa
frente a situações difíceis de lidar e com as limitações de uma forma geral. A autora
destaca o valor da avaliação neuropsicológica para o processo psicoterápico, as
consequências emocionais e psicossociais das LCA, trazendo também a opinião de
diferentes autores sobre a psicoterapia na RN, e, finaliza com um caso clínico. Na
mesma linha holística do processo de RN, Silvia Adriana Prado Bolognani e Maria
de Fatima Alves Monteiro tratam do trabalho de psicoterapia em grupo para pessoas
com LCA no capítulo vinte e três, apontando os benefícios e tipos de grupos que
podem ser utilizados na reabilitação de adultos com LCA. No capítulo vinte e quatro,
as habilidades vocacionais e a reinserção social com pessoas em processo de RN são
descritas, pela autora Camila da Veiga Prade, como bastante relevantes no processo
de RN, pois junto com a avaliação neuropsicológica, são instrumentos importantes
para a neuropsicologia. A autora ainda discute as principais esferas cognitivas e as
consequências das alterações na funcionalidade do sujeito, uma vez que as abordagens
funcionais de avaliação fornecessem um perfil com os pontos positivos e negativos do
sujeito, possibilitando a formulação de hipóteses mais precisas; e, encerra o capítulo
com as intervenções mais utilizadas na RN que são relacionadas ao ambiente social
e profissional. Jarbas Tadeu de Mello e Vânia Fortunato da Silva Rodrigues enfocam
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no capítulo vinte e cinco a doença de Alzheimer, trazendo as intervenções trabalhadas
nas alterações comportamentais e transtornos de humor. Os autores ainda falam
sobre a definição e etiologia, alterações comportamentais e emocionais que são as
mais comuns nos casos de demência, e como administrá-las e sobre as abordagens
de intervenções não farmacológicas. O controle das alterações comportamentais nas
demências e no processo de envelhecimento é visto no capítulo vinte e seis, escrito por
Ana Cristina Procópio de Oliveira Aguiar, onde a autora traz o exemplo do trabalho
desenvolvido no Residencial Israelita Albert Einstein (RIAE), que tem como um
dos pontos norteadores do seu programa de reabilitação a intervenção preventiva e
abordagens não farmacológicas.
A sexta e última parte do livro sobre a RN a caminho da prática clínica,
corresponde os capítulos 27 a 31. A autora Bárbara A. Wilson relata no capítulo vinte
e sete todo o histórico, filosofia e trabalho realizado no Centro Oliver Zangwill, que
desde 1996 oferece serviços de excelência em RN de forma intensiva ou orientada para
o ambiente. A instituição tem esse nome por causa de um importante neuropsicólogo
britânico, que ressalta a importância de uma abordagem teórica com base ampla e
diretrizes para boas práticas em RN. Os desafios e questões dos novos paradigmas que
vêm surgindo referente à formação do profissional em RN são abarcados no capítulo
vinte e oito por Jacqueline Abriesqueta Gomez, Adriana Turchetti Pinto de Moura e
Carmen Silvia Calandria Ponce. As autoras escrevem sobre a experiência do Checkup do Cérebro, um serviço clínico de ensino e pesquisa em temas de neurociências
cognitivas com ênfase em RN. O assunto do capítulo vinte e nove, de autoria de Sérgio
Leme da Silva, Fabrizio Veloso Rodrigues e Danilo Assis Pereira, trata igualmente da
prática na RN e seus novos paradigmas. O modelo discutido é o ecológico e sistêmico
para a reabilitação. Os autores expõem ainda experiências fora e dentro do contexto
domiciliar de intervenções com esse enfoque. Os tipos mais comuns de desenhos
experimentais de caso único é a temática do capítulo trinta de Priscila Covre, ela
apresenta essa abordagem como uma alternativa para RN quando necessário lidar só
com um indivíduo e não com grupos, utilizando a observação sistemática e medidas
repetidas. O último capítulo do livro, escrito por Marina Nery e Dagoberto Miranda
Barbosa, exemplifica e mostra todo o modelo de RN do Centro de Reabilitação e
Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER), que tem um programa especial para
indivíduos com LEAs fundamentado em três pilares: abordagem interdisciplinar, plano
de intervenção individualizado e o modelo de interdependência, sendo as pessoas o
elemento mais importante desse processo.
A obra aqui citada reúne relatos, estudos, pesquisas e experiências empíricas
sobre questões teóricas e práticas relevantes referentes à RN, com o objetivo de
subsidiar a formulação de procedimentos que orientem uma sistematização de técnicas
no processo de reabilitação através de uma perspectiva interdisciplinar, que sejam ao
mesmo tempo holísticas e personalizadas de acordo com as habilidades e limitações
de cada indivíduo.
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Referências
Gomez, Jaqueline Abrisqueta (org.) (2012). Reabilitação neuropsicológica:
abordagem interdisciplinar e modelos conceituais na prática clínica. Porto Alegre:
Artmed.
_____________________________
Recebido em maio de 2015
Aceito em junho de 2015
Rita de Cássia Silva da Rosa: Pedagoga e graduanda do Curso de Psicologia – Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA – Canoas).
Silvana Soriano Frassetto: Psicóloga e Bióloga. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental (WP
– Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental). Doutora em Bioquímica (Ênfase em Neurociência –
UFRGS). Professora do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
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adota as normas do Manual de Publicação da American Psychological Association - APA
(4ª edição, 2001).
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Normas para referências
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Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor e em
minúsculo.
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Livro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de livro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P. Papp
(Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Artigo de periódico científico
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde:
desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia,
3(1), 95-121.
Artigos em meios eletrônicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública”
ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artigo de revista científica no prelo
Albuquerque, P. (no prelo). Trabalho e gênero. Aletheia.
Trabalho apresentado em evento científico com resumo em anais
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tese ou dissertação publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de PósGraduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS.
Tese ou dissertação não-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado não publicada. Programa de
Estudos de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antiga e reeditada em data muito posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
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Autoria institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).Washington:
Autor.
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2) The maximum number of pages should be as follow: Original articles (25 pages);
Review articles/Uptade articles (20 pages); Professional experiences reports (15 pages);
Brief communications (5 pages); Book review (5 pages).
3) Submissions: All correspondence should be addressed to Aletheia in behalf of
the Editor in charge.
4) Every manuscript sent to the Journal must be accompanied by an authorization
letter, signed by all of the authors, stating:
a) The intention of submission the article to publication;
b) Authorization for modification of language if necessary;
c) Transference of copyrights for Aletheia Journal.
5) The manuscript should contain:
a) Title page: article title in Portuguese ; authors’ name; authors’ essential title and
institutional affiliation; abstract in Portuguese from 10 to 12 lines; key words, at least
3; article title in English; abstract compatible with the text of Portuguese abstract ; key
words; Correspondence address, including Zip Code, telephone and e-mail.
b) Non identified title page: article title in Portuguese; abstract in Portuguese from
10 to 12 lines; key words, at least 3; article title in English; abstract compatible with the
text of Portuguese abstract ; key words;
* If article was not written in Portuguese, it must contain the same information in
its original language.
c) Body of the text.
d) Original articles may have the following sequence: Title, Introduction,
Method (population/sample; instruments; procedures; and data analysis. In this
section the study approval in a Ethics Research Committee should be stated), Results,
Discussion, Conclusion or Final Considerations, References (in small letters and in
separate section). Use the denomination “table” and “figure” (and not graphs or other
terms). Place tables and figures embedded in the text. Tables: including title and
notes in accordance with APA’s standards . Word format - ‘Simple 1’. In the printed
version the table may not exceed 11.5 cm wide x 17.5 cm in length. The length of
the table should not exceed 55 lines, including title and footer(s). To ensure quality,
the reproduction of pictures containing drawings should have photograph quality
(minimum resolution of 300 dpi). The printed version can not exceed 11.5 cm width
for pictures. Appendixes: only when they contain new and important information,
or are essential to highlight and make more understandable any section of the paper.
The use of appendixes should be avoided.
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6) Papers with incomplete documentation or that do not attend the norms adopted
by Aletheia (APA, 4th edition) will not be appraised.
Citations norms
- The non bibliographical notes must be put in the lower margin of pages, arranged
by Arabic numerals that must appear immediately after the segment of text to which the
note refers to.
- The authors’ citations must be done in agreement with norms of APA (4th edition).
- In the case of full citation of a text: it must be delimited by quotation mark and the
author’s citation followed by the year and number of page mentioned. A literal citation
with 40 or more words must be presented in proper block and in italic without quotation
mark, starting a new line, with pullback of 5 spaces of margin, in the same position of
a new paragraph. The letter will be the same used in the remaining of text (Times New
Roman, 12).
• Citation of an author: author, last name in small letter, followed by the year of
publication. Example: Rodrigues (2000).
• Citation of two authors: cite both authors always that they are referred in the text.
Example: (Carvalho & Santos, 2000) – when the last names are cited between parentheses:
they must be connected by &. When they are cited outside the parenthesis they must be
connected by the letter e.
• Citation from three to five authors: cite all the authors in the first reference, followed
by the date of article between parentheses. Starting from the second reference, use the last
name of the first author, followed by e cols. Example: Silva, Foguel, Martins and Pires
(2000), starting from the second reference, Silva and cols. (2000).
• Article of six or more authors: cite just the last name of the first author, followed
by e cols (YEAR). In the references all the authors must be cited.
• Citation of old, classic and reedited works: cite the date of original publication,
followed by the date of edition consulted. Example: (Kant 1871/1980).
• Authors with the same idea: follow the alphabetical order of their last names
and not the chronological order. Example: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999;
Souza, 2005).
Different publications with the same date: Increase capital letter, after the year of
publication. Example: Carvalho (1997, 2000a, 2000b, 2000c).
• Citation whose idea is extracted from other or indirect citation: Use the expression
cited by. Ex: Lopes, cited by Martins (2000),...
In the Bibliographical References, include just the source consulted (Martins).
• Literal transcription of a text or direct citation: last name of author, date, page.
Example: (Carvalho, 2000, p.45) or Carvalho (2000, p.45).
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References norms
The bibliographical references must be presented at the end of article. Its disposition
must be in alphabetical order of the last name of author in small letter.
Book
Mendes, A.P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes Médicas.
Silva, P.L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento familiar.
Porto Alegre: Artes Médicas.
Chapter of book
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertility and late pregnancy. Em P. Papp
(Org.), Couples in danger,, new guideline for therapists (pp. 119-144). Porto Alegre:
Artmed.
Article of scientific journal
Dimenstein, M. (1998). The psychologist in the Basic Units of Health:
Challenges for the formation and professional performance. Studies of Psychology,
3(1), 95-121.
Articles in electronic means
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Collective Health: a “new public health”
or open field for new paradigms? Magazine of Public Health, 32 (4) Available: <http://
www.scielo.br> Accessed: 02/11/2000.
Article of scientific journal in press
Albuquerque, P. (no prelo). Gender and work. Aletheia.
Work presented in congress
Silva, O. & Dias, M. (1999). Unemployment and its repercussions in the family.
Em Annals of XX Meeting of Social Psychology, pp. 128-137, Gramado, RS.
Thesis or published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation or doctorate thesis. Program of Graduate Studies in Psychology of
Development, Federal University of Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS
Thesis or non-published dissertation
Silva, A. (2000). Genital knowledge and sexual constancy in pre-school children.
Master dissertation non-published or doctorate thesis (non-published). Program of
Graduate Studies in Psychology of Development, Federal University of Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS
Old work reedited in posterior date
Segal, A. (2001). Some aspects of analysis of a schizophrenic person. Porto Alegre:
Universal. (Original published in 1950)
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Institutional Authorship
American Psychological Association (1994). Publication manual (4th edition).
Washington: Author
Address for submissions
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
CEP: 92425-900
Sala 121 - Prédio 01
Canoas – RS – Brasil
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Instrucciones a los autores
Política editorial
Aletheia es una revista quadrimestral editada por el Curso de Psicología de la
Universidad Luterana de Brasil, destinada a la publicación de trabajos de investigadores,
implicados en estudios producidos en el área de la Psicología o ciencias afines. Serán
aceptados solamente trabajos no publicados que se encuadren en las categorías de relato
de investigación, artículo de revisión o actualización, relatos experiencia profesional,
comunicaciones breves y reseñas.
Relatos de investigación: investigación basada en datos empíricos, utilizando
metodología y análisis científica.
Artículos de revisión/actualización: revisiones sistemáticas y actuales sobre
temas relevantes para la línea editorial de la revista.
Relatos de experiencia profesional: estudios de caso, contiendo discusión de
implicaciones conceptuales o terapéuticas; descripción de procedimientos o estrategias
de intervención de interés para la actuación profesional de la psicología.
Comunicaciones breves: relatos breves de experiencias profesionales o
comunicaciones preliminares de resultados de investigación.
Reseñas: revisión crítica de libros recién publicados, orientando el lector cuanto
a sus características y usos potenciales.
Aspectos éticos: Todos los artículos implicando investigación con seres
humanos deben declarar que los participantes del estudio firmaron algún Término
de Consentimiento Libre y Esclarecido, de acuerdo con las directrices brasileñas e
internacionales de investigación. En el caso de investigación con animales los autores
deben atestar que el estudio ha sido realizado de acuerdo con las recomendaciones éticas
para este tipo de investigación. Los autores también son solicitados a declarar, en la
sección “Método”, que el protocolo de la investigación ha sido previamente aprobado
por algún Comité de Ética en Investigación del local de origen del proyecto.
Conflictos de interés: los autores deben declarar todos los posibles conflictos
de interés (profesionales, financieros, beneficios directos o indirectos), si es el caso.
El fallo en declarar conflictos de interés puede llevar a la recusa o cancelación de
la publicación.
Normas editoriales
1. Serán aceptados solamente trabajos inéditos.
2. El artículo pasará por la apreciación de los Editores.
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3. Seguido de una evaluación inicial, los Editores enviarán para apreciación del
Consejo Editorial, que podrá hacer uso de consultores ad hoc de reconocida competencia
en el área de conocimiento. La Comisión Editorial y los Consultores ad hoc analizan el
artículo, sugieren modificaciones y recomiendan o no su publicación.
4. Los artículos podrán recibir: a) aceptación integral; b) aceptación con
reformulaciones; c) recusa integral. En cualquier de estas situaciones el autor será
debidamente comunicado. Los originales, en ninguna de las posibilidades, serán
devueltos.
5. El autor del artículo recibirá copia de los pareceres de los consultores. Será
informado sobre las modificaciones que necesiten ser realizadas.
6. En el envío de la versión modificada del artículo (en el límite máximo de 15
días después del recibimiento de la notificación), los autores deberán incluir una carta
al Editor, esclareciendo las alteraciones hechas y aquellas que no juzgaran pertinentes
y la justificativa. En el texto, las modificaciones hechas deberán estar destacadas con
la herramienta Word “pincel amarillo”. El envío del archivo con las modificaciones
realizadas puede ser realizado por e-mail ([email protected]).
7. Los Editores se reservan el derecho de hacer pequeñas alteraciones en el
texto de los artículos.
8. La decisión final sobre la publicación de un manuscrito siempre será del Editor
Responsable y del Consejo Editorial, que hará una evaluación del texto original, de
las sugerencias indicadas por los consultores y las modificaciones enviadas por el
autor.
9. Los artículos podrán ser escritos en otra lengua además del portugués (español
e inglés).
10. Independientemente del número de autores, serán ofrecidos dos ejemplares
por trabajo publicado. El archivo electrónico con la publicación en PDF estará
disponible en el site www.ulbra.br/psicologia/aletheia.
11. Las opiniones emitidas en los artículos son de entera responsabilidad de los
autores, su aceptación no significa que la Revista Aletheia o el Curso de Psicología
de la ULBRA le soportan.
12. La materia editada por la Aletheia podrá ser impresa total o parcialmente,
des de que obtenida la autorización del Editor Responsable. Los derechos autorales
obtenidos por la publicación del artículo no serán repasados para el autor del
artículo.
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Presentación de los originales
1) Los artículos inéditos deberán ser enviados en disquete o CD y una vía impresa,
digitada en espacio doble, fuente Times New Roman, tamaño 12 y paginado desde la
hoja de rostro personalizada. La hoja deberá ser A4, con formatación de márgenes
superior e inferior (mínimo de 2,5 cm), izquierda y derecha (mínimo de 3 cm). La
revista adopta las normas del Manual de Publicación de la American Psychological
Association - APA (4ª edición, 2001).
2) El número máximo de laudas debe atender a la siguiente orientación: Relatos
de investigación (25 laudas); Artículos de revisión/actualización (20 laudas); Relatos
de experiencia profesional (15 laudas), Comunicaciones breves (5 laudas) y Reseñas
de libros (máximo de 5 laudas).
3) Dirección: Toda correspondencia debe ser dirigida a la Revista Aletheia, a la
atención del Editor Responsable.
4) Todo manuscrito dirigido a la Revista deberá acompañar una carta de
autorización, firmada por todos los autores, donde deberá constar:
a) la intención de sumisión del trabajo a la publicación;
b) la autorización para reformulación del lenguaje, si necesario;
c) la transferencia de derechos autorales para la Revista Aletheia.
5) El artículo debe contener:
a) Hoja de portada identificada: título del artículo en lengua portuguesa; nombre
de los autores; formación, titulación y afiliación institucional de los autores; resumen
en portugués de 10 a 12 líneas; palabras-clave, en el máximo de 3; título del artículo
en lengua inglesa; abstract compatible con el texto del resumen; keywords; dirección
para correspondencia, incluyendo CEP, teléfono y e-mail.
b) Hoja de portada no identificada: título del artículo en lengua portuguesa o
castellana; resumen en portugués o castellano, de 10 a 12 líneas, 3 palabras-clave,
título del artículo en lengua inglesa, resumen (abstract) en inglés, compatible con el
texto del Resumen en lengua original; keywords.
c) Cuerpo del texto.
d) Sugiérase que los artículos referentes a Relatos de Investigación presenten la
siguiente secuencia: Título; Introducción; Método (populación/muestra, instrumentos,
procedimientos de recogida y análisis de los datos, (incluir en esta sección afirmación
de aprobación del estudio en Comité de Ética en Investigación de acuerdo con la
Resolución 196/96 del Consejo Nacional de Salud – Ministerio de Salud o declaración de
haber atendido a los criterios de dicha resolución); Resultados; Discusión, Referencias
(títulos en letra minúscula y en secciones separadas). Utilizar las denominaciones
tablas y figuras (no utilizar la expresión cuadros y gráficas). Dejar las tablas y figuras
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incorporadas al texto. Tablas: incluyendo título y notas de acuerdo con las normas de la
APA. Formato Word – ‘Sencillo 1’. En la publicación impresa la tabla no podrá exceder
11,5 cm de ancho x 17,5 cm de largo. El largo de la tabla no debe pasar de 55 líneas,
incluyendo título y notas al pié. Para garantizar cualidad de reproducción, las figuras
que contengan dibujos deberán ser dirigidas en cualidad para fotografía (resolución
mínima de 300 dpi). La versión publicada no podrá ultrapasar el ancho de 11,5 cm
para figuras. Anexos: solo cuando tengan información original importante, o destaque
indispensable para la comprensión de alguna sección del trabajo. Recomendase
evitar anexos.
6) Trabajos con documentación incompleta o no atendiendo las normas adoptadas
por la revista (APA, 4ª edición) no serán evaluados.
Normas para citaciones
- Las notas no bibliográficas deberán ser puestas al pié de las páginas, ordenadas
por números arábicos que deberán figurar inmediatamente después del segmento de
texto al cual se refiere a la nota.
- Las citaciones de los autores deberán ser hechas de acuerdo con las normas
de la APA (4ª edición).
- En el caso de la cita integral de un texto: debe ser delimitada por comillas
y la citación del autor, seguida del año y del número de la página citada. Una cita
literal con 40 o más palabras debe ser presentada en bloque propio y en cursiva y sin
comillas, empezando en nueva línea, con una retirada de espacio de 5 espacios del
margen, en la misma posición de un nuevo párrafo. La fuente será la misma utilizada
en el restante del texto (Times New Roman, 12).
• Citación de un autor: autor, apellido en letra minúscula, seguida por el año
de publicación. Ejemplo: Rodrigues (2000).
• Citaciones de dos autores: cite los dos autores siempre que sean referidos en el
texto. Ejemplo: (Carvalho & Santos, 2000) - cuando los apellidos sean citados entre
paréntesis: deben estar separados por &. Cuando sean citados fuera del paréntesis
deben ser vinculados pela letra e, en publicaciones en portugués y por la letra y para
publicaciones en castellano.
• Citación de tres a cinco autores: citar todos los autores en la primera referencia,
seguidos de la fecha del artículo entre paréntesis. A partir de la segunda referencia,
utilice el apellido del primero autor, seguido de y cols. Ejemplo: Silva, Foguel, Martins
y Pires (2000), a partir de la segunda referencia: Silva y cols. (2000)
• Artículo de seis o más autores: cite solamente el apellido del primero autor, seguido
de y cols. (AÑO). En la sección Referencias, todos los autores deberán ser citados.
• Citación de obras antiguas, clásicas y reeditadas: citar la fecha de la publicación
original, seguida de la fecha de la edición consultada. Ejemplo: (Kant 1871/1980).
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• Autores con la misma idea: seguir el orden alfabético de sus apellidos y no el orden
cronológico. Ejemplo: (Foguel, 2003; Martins, 2001; Santos, 1999; Souza, 2005).
• Publicaciones distintas con la misma fecha: Añadir letras minúsculas, luego
el año de publicación. Ejemplo: Carvalho, 1997, 2000a, 2000b, 2000c.
• Citación cuya idea es extraída de otra o citación indirecta: Utilizar la expresión
citado por. Ej.: Lopes, citado por Martins (2000),...
En la sección Referencias, añadir solamente la fuente consultada (Martins).
• Transcripción literal de un texto o citación directa: apellido del autor, fecha,
página. Ejemplo: (Carvalho, 2000, p.45) o Carvalho (2000, p.45).
Normas para referencias
Las referencias bibliográficas deberán ser presentadas en el final del artículo.
Su disposición debe ser en orden alfabético del último apellido del autor (cuando
presente más de uno) y en minúscula. En el caso de autores hispánicos, se puede
utilizar la normativa de la APA, y presentar los dos apellidos a la vez, separados por
un guión. Ej.: Martínez-Cruz.
Libro
Mendes, A. P. (1998). A família com filhos adultos. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Silva, P. L., Martins, A., & Foguel, T. (2000). Adolescente e relacionamento
familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.
Capítulo de libro
Scharf, C. N., & Weinshel, M. (2002). Infertilidade e gravidez tardia. Em: P.
Papp (Org.), Casais em perigo, novas diretrizes para terapeutas (pp. 119-144). Porto
Alegre: Artmed.
Artículo de publicación periódica científica
Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios
para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 95-121.
Artículos en medios electrónicos
Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública”
ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32 (4) Disponível:
<http://www.scielo.br> Acessado: 02/2000.
Artículo de revista científica en prensa
Albuquerque, P. (en prensa). Trabalho e gênero. Aletheia.
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Trabajo presentado en evento científico con resumen en anales
Corte, M. L. (2005). Adolescência e maternidade. [Resumo]. Em: Sociedade
Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas. XXV Reunião
Anual de Psicologia (p. 176). Ribeirão Preto: SBP.
Tesis o monografía publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Tesis o monografía no-publicada
Silva, A. (2000). Conhecimento genital e constância sexual em crianças préescolares. Dissertação de Mestrado ou tese de Doutorado. Programa de Estudos de
Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
Obra antigua y reeditada en fecha muy posterior
Segal, A. (2001). Alguns aspectos da análise de um esquizofrênico. Porto Alegre:
Universal. (Original publicado em 1950).
Autoría institucional
American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.).
Washington:Autor
Dirección para el envío de artículos
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Psicologia
Revista Aletheia
Av. Farroupilha, 8001 – Bairro São José
Sala 121 - Prédio 01
Canoas/RS – Brasil
CEP: 92425-900
E-mail: [email protected]
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