Oftalmologia - Vol. 36: pp.31-35 Artigo Original Lesões Oculares Relacionadas com o Desporto: Casuística dos Últimos 5 Anos da Consulta de Oftalmologia Desportiva Pedro Brito, Vitor Fernandes, Vitor Leal, F. Falcão-Reis RESUMO Introdução: A consulta de Oftalmologia Desportiva, foi criada em 1992, com o objectivo de estudar a epidemiologia das lesões oculares relacionadas com o desporto (LORD). O objectivo deste trabalho é relatar a casuística dos últimos 5 anos, bem como elaborar uma breve revisão sobre os principais conceitos relativos a esta temática. Métodos: Estudo retrospectivo baseado nos processos clínicos, dos doentes que recorreram à consulta desde Janeiro de 2005 a Dezembro de 2009. Os dados recolhidos incluem: idade, desporto praticado, mecanismo da lesão, acuidade visual, tecidos oculares lesionados e tipo de tratamento. Resultados: Nos últimos 5 anos, foram observados 95 doentes. Os desportos com mais casos de LORD foram: futebol, hóquei em patins e desportos de raquete. As lesões foram mais frequentes nas estruturas da câmara anterior (68.4%), sendo o hifema (68.4%), o diagnóstico inicial mais frequente. No futebol o mecanismo principal foi o impacto directo da bola na órbita e no caso do hóquei os golpes acidentais com o stick foram o principal agente causador de LORD. A grande maioria (88%) dos doentes obteve uma acuidade visual final de 20/20. Conclusões: Verificamos que com a excepção do hóquei, os desportos de elevado risco de LORD têm pouca expressão em Portugal. A grande maioria dos casos que ocorreram no futebol evoluíram favoravelmente com tratamento médico o que está de acordo com a atribuição de risco moderado a este desporto. Os dados epidemiológicos obtidos na consulta de Oftalmologia Desportiva permitem compreender melhor o risco e os mecanismos das lesões oculares associadas ao desporto. Palavras-chave Trauma, ocular, risco, desporto ABSTRACT Introduction: The Sports Ophthalmology Unit was created in 1992 with the objective being to study the epidemiology of sports related ocular injuries (SROI). The goal of this study is to report on our case series from the last five years. Methods: Retrospective study based on the clinical records of all patients seen in our department from January 2005 to December 2009. Retrieved data includes: patient age, sport played, injury mechanism, initial and final visual acuity, the injured ocular structures and type of treatment. Results: In the last 5 years, we observed 95 patients with SROI. The sports with higher number of injuries were: soccer, roller hockey and racquet sports. Injury was more frequent on the Vol. 36 - Nº 1 - Janeiro-Março 2012 | 31 Pedro Brito, Vitor Fernandes, Vitor Leal, F. Falcão-Reis anterior chamber structures, with hyphema being the most common initial diagnostic. In soccer the most common injury mechanism was due to direct impact of ball in the orbit, while in hockey, accidental blows with the hockey stick were the cause of SROI. The majority of patients (90.5%) achieved a final visual acuity of 20/20. Conclusions: We verified that excluding roller hockey, other sports with high risk of SROI have little expression in Portugal. The large majority of cases occurred in soccer and had a favorable clinical course, requiring only medical treatment, such fact is in concordance with the classification of soccer as a sport with moderate risk of SROI. The epidemiologic data obtained in the Sports Ophthalmology Unit allows us to better understand the risk an of ocular injury associated to sports. Key-words Trauma, ocular, risk, sports Introdução Apesar do globo ocular se encontrar protegido pela órbita, estima-se que nos EUA ocorram cerca de 100.000 lesões oculares relacionadas com o desporto (LORD), por ano1. Sendo este tipo de traumatismo uma das principais causas de cegueira em crianças2. As primeiras iniciativas por parte de oftalmologistas, com objectivo de alterar a incidência de LORD, decorreram nos EUA e foram direccionadas inicialmente ao hóquei3, em 1971 e posteriormente ao baseball4 em 1980. Os bons resultados obtidos nesses desportos colocaram em evidência a importância de trabalhos que visam identificar quais os desportos com maior risco de lesão ocular, bem como os mecanismos que favorecem a ocorrência de lesão. Em Portugal não existe nenhum registo oficial deste tipo de lesões, pelo que com o objectivo de estudar a epidemiologia das LORD no nosso país, foi criada no serviço de Oftalmologia do Hospital de S. João (HSJ), por iniciativa do Prof. Capão Filipe, a primeira e única consulta de Oftalmologia Desportiva (COD) a funcionar desde Abril de 1992. O objectivo deste trabalho é relatar a casuística dos últimos 5 anos, procurando caracterizar aos padrões epidemiológicos actuais das LORD. Método Estudo retrospectivo, tendo sido analisados os processos clínicos de todos os doentes que recorreram à COD desde Janeiro de 2005 a Janeiro de 2010. As fichas da consulta são adaptadas do modelo usado pelo United States Eye Injury 32 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Registry e incluem os seguintes dados: identificação do doente, desporto praticado, nível de prática desportiva, mecanismo da lesão, acuidade visual e exame oftalmológico Resultados A idade média foi de 25 (desvio padrão=10), variando entre os 5 e os 54 anos. O grupo etário entre os 25-29 anos, foi aquele com maior número de casos (34%, n=32), seguido do grupo entre os 15-19 anos (18%, n=17). Os doentes considerados pediátricos (<18 anos) corresponderam a 26% (n=25) dos casos. Verificamos a incidência de LORD é marcadamente superior no sexo masculino (96%, n=91). Em todos os casos a LORD foi unilateral, verificando-se uma percentagem ligeiramente superior, de casos afectando o olho direito (55%). Relativamente à distribuição anual das LORD verificamos um predomínio nos primeiros seis meses do ano (79%, n=75) e um mínimo nos meses de Verão (Julho e Agosto), tendo-se registado apenas um caso. A maioria das lesões ocorreram no futebol (76%, n=72), seguido pelo hóquei em patins (6%, n=6), desportos de raquete (6%, n=6), desportos radicais (motocross e paintball, 3%, n=3) e andebol (3%, n=3) (Tabela 1). A maioria dos praticantes eram amadores (não federados), praticando desportos como passatempo (72%). A maioria dos casos foram provocados pelo impacto da bola (77%, 73) (Tabela 2). Quanto ao tecido ocular atingido, em mais de metade dos doentes foi envolvida a câmara anterior do globo ocular (68%, n=65), seguindo-se o segmento posterior (58%, n=55), a pálpebra/órbita (48%, n=46) e finalmente lesões da córnea (24%, n=23). Dos 55 doentes com lesão do Lesões Oculares Relacionadas com o Desporto: Casuística dos Últimos 5 Anos da Consulta de Oftalmologia Desportiva Tabela 1 | Número de casos por desporto Desporto Nº de casos Futebol salão 42 Futebol 30 Hóquei em patins 6 Badminton 3 Ténis 3 Andebol 3 Paintball 2 Pesca 1 Karaté 1 Golf 1 Motocross 1 Squash 1 Total 95 Tabela 2 | Discussão Agentes causadores de LORD Agente de LORD's n=9) e maculopatia traumática (8%, n=8). As lesões retinianas afectaram principalmente o quadrante supero-temporal (68%). Durante o follow-up o diagnóstico mais usual foi o recesso traumático do ângulo da câmara anterior (29.4%), seguido por rasgadura da retina (2,1%) e ruptura da coróide (2,1%), ocorreu também um caso em que se verificou a existência de buraco macular e um caso de diálise retiniana. Cinco doentes necessitaram de cirurgia que consistiu em: sutura de laceração palpebral em 3 casos e vitrectomia em 2 casos. Foi realizada fotocoagulação de retina por rasgadura traumática noutros dois casos. A melhor acuidade visual inicial variou entre 20/20 (n=33) e movimentos de mão (n=11). A maioria dos doentes apresentaram uma AV final de 20/20 (88%, n=84). Dois doentes ficaram com uma AV final no olho afectado inferior a 20/400, um era praticante de motocross e outro de futebol de cinco. A presença de maculopatia traumática com sequelas atróficas foi responsável pelo mau resultado final. Nenhum doente tinha antecedentes de cirurgia ocular. Nenhum doente estava a usar protector ocular no momento do acidente. Nº de casos Bola (vários desportos) 73 Stick de hóquei 5 Objectos exteriores 4 Volante badminton 2 Colisão (Pé) 2 Colisão (Mão) 2 Projéctil paint-ball 2 Colisão (Cabeça) 1 Colisão (Cotovelo) 1 Anzol 1 Raquete 1 Taco golf 1 Total 95 segmento posterior, 17 (31%) não apresentavam qualquer alteração no segmento anterior. O diagnóstico inicial mais frequente foi hifema (68.4%, n=65) seguido de hematoma palpebral (45%, n=43), edema retiniano traumático (34%, n=32), hemorragia da retina (21%, n=20), hemovítreo (9%, O entendimento do risco de lesão associada a um determinado desporto requer o conhecimento de alguns princípios teóricos básicos. Sabemos que a gravidade de uma lesão ocular após trauma contuso, depende sobretudo de três factores: força de impacto, medida em Newtons (N), velocidade com que a força de impacto máxima é atingida (N/milisegundo) e a energia cinética do objecto impactante (expressa em Joules). O espectro das lesões oculares tende a ser progressivo, à medida que aumenta a força de impacto e diminuí o tempo que demora a atingir a força máxima, as lesões ocorrerão primeiro nas estruturas do ângulo da CA, seguindo-se lesões vitreorretinianas e finalmente ruptura do globo nos impactos de elevada energia5. Sendo assim, o risco de lesão ocular não se correlaciona com a classificação dos desportos em colisão, contacto ou não contacto. Em vez disso o risco de lesão ocular é grosseiramente classificado em alto, moderado, baixo ou seguro6 (Fig. 1), dependendo esta classificação da probabilidade de ocorrer, durante a prática desportiva, um impacto com energia suficiente para provocar lesão7. Apesar de em Portugal não existir um registo nacional de lesões oculares relacionadas com o desporto a nossa experiência e de outros autores permite-nos afirmar que os traumatismos oculares relacionados com o desporto são responsáveis por um número significativo de lesões oculares graves1,2,6,8 (Fig.2). Na série que relatamos, verificamos Vol. 36 - Nº 1 - Janeiro-Março 2012 | 33 Pedro Brito, Vitor Fernandes, Vitor Leal, F. Falcão-Reis Risco Elevado Projécteis pequenos e rápidos • Espingardas/pistolas pressão ar • Paintball Projécteis pesados, sticks, contacto próximo • Basquetebol • Basebol / softball / críquete • Hóquei • Squash / racquetball • Esgrima • Boxe • Artes marciais de contacto Risco Moderado • Ténis/badminton • Futebol/voleibol • Pólo aquático • Futebol americano • Pesca desportiva • Golfe Baixo Risco • Natação / mergulho • Esqui neve • Artes marciais não contacto • Luta greco-romana • Ciclismo Seguro para o olho • Provas de orientação e atletismo • Ginástica Adaptado de Filipe JAC, Visão e Desporto, Lisboa: Lidel, 2003; págs. 29 a 51. Fig. 1 | Categorias de risco de lesão ocular por desporto (atleta não protegido). que as LORD’s traduzem a popularidade dos desportos praticados numa determinada população. No caso de Portugal temos então o futebol como a principal causa de LORD’s. As lesões associadas ao futebol ocorrem sobretudo no segmento anterior. Tal constatação está de acordo com a atribuição de risco moderado a este desporto, pois embora tenhamos verificado um grande número de traumatismos, a grande maioria apresentaram boa recuperação apenas com tratamento médico. O segundo desporto com mais LORD’s foi o hóquei em patins, que tem expressão sobretudo nos países mediterrânicos e por isso não consta nas tabelas de risco publicadas pelas organizações americanas. No entanto o projéctil usado no hóquei em patins é muito semelhante ao do hóquei no gelo e temos ainda de considerar o stick de hóquei, que na nossa série foi o principal agente causador de LORD’s (5 em 6 casos). Considerando que o número de praticantes desta modalidade é muito inferior ao número de praticantes de futebol, os 6 casos que observamos adquirem um maior significado. Parece-nos então adequado considerar o hóquei em patins como um desporto de alto 34 | Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia Fig. 2 | Retinografia de um caso que sofreu traumatismo com bola de futebol. O exame ocular externo desde doente era normal o que o fez não recorrer a observação especializada. Oito dias depois notou diminuição da acuidade visual e recorreu ao SU de Oftalmologia, tendo-lhe sido diagnosticado um buraco macular traumático e hemorragia pré-retiniana. risco. Outro resultado importante foi o predomínio de lesões retinianas no quadrante temporal superior, resultado semelhante ao trabalha anterior de Capão et al9, mas que contraria as observações de outros autores que indicam que as rasgaduras traumáticas ocorrem com mais frequência nos quadrantes infero-temporal e supero-nasal10. A explicação apontada reside no facto de na maioria dos casos o impacto da bola descrever uma trajectória ascendente e que associado ao efeito protector que o nariz exerce sobre os quadrantes nasais, torna o quadrante supero-temporal mais susceptível ao traumatismo. Sabemos que uso dos protectores oculares reduz o risco de lesão ocular em pelo menos 90%6,7,8. No entanto nenhum caso na nossa série estava a usar protector. O principal obstáculo a uma maior aderência ao uso de protectores oculares é o desconhecimento da sua importância por parte de todos os elementos ligados ao desporto3. A decisão de utilizar ou não protector ocular na prática de um determinado desporto deve ter em conta o risco de lesão ocular, os regulamentos específicos do desporto, protectores oculares disponíveis e condições particulares de cada atleta. Os atletas funcionalmente monoculares devem ser vivamente aconselhados a utilizar protector ocular em desportos mesmo de risco baixo tendo em conta o potencial impacto físico, psíquico e económico de um traumatismo ocular em olho único. Também os atletas com doença ocular ou antecedentes de cirurgia ocular considerada pelo oftalmologista como debilitante para a estrutura do globo ocular, devem ser aconselhados Lesões Oculares Relacionadas com o Desporto: Casuística dos Últimos 5 Anos da Consulta de Oftalmologia Desportiva a utilizar protector. Em especial no caso de praticantes de desporto como hobby, deve ser compreendido o possível impacto de um défice visual na sua actividade profissional, pelo que indivíduos que têm profissões altamente dependentes de visão binocular devem ser incentivados a utilizar protector ocular. Não obstante, a última decisão deve caber ao atleta sendo obrigação do médico garantir que aquele toma uma decisão informada. No caso do futebol, o desporto mais frequentemente associado a lesões oculares desportivas em Portugal, não existe nenhum protector ocular standard sendo contudo o protector conforme os requisitos da American Society for Testing and Materials - ASTM F803 o mais recomendado (Fig.3). Entre os milhões de jogadores que utilizam este protector actualmente não está documentado nenhum caso de lesão ocular grave4. No caso do hóquei o uso de protecção deve ser obrigatório no guarda-redes segundo o modelo ASTM F1587 (Fig.3) e muito recomendável nos restantes jogadores, parecendo-nos o modelo ASTM F803 adequado à modalidade praticada no nosso país. Não devem ser utilizados protectores oculares não certificados nem óculos de uso comum os quais podem mesmo provocar lesão ocular em caso de traumatismo. Fig. 3 | A. Protector ocular ASTMF803 recomendado para prática de: desportos de raqueta (badminton, ténis, squash); hóquei, basebol, basquetebol e futebol. B. Protector ocular ASTMF1587 recomendado para guarda redes nas várias modalidades de hóquei. Verificamos também que quase um terço dos doentes com a do segmento posterior não apresentavam lesões do segmento anterior quando recorreram ao Serviço de Urgência de Oftalmologia, o que realça a importância de um exame oftalmológico completo pois uma percentagem significativa de lesões oculares potencialmente graves não seriam detectadas com base no exame ocular externo. Assim, a necessidade de referenciar um doente que sofreu um traumatismo ocular, para exame oftalmológico por um médico especialista, deve ter por base a energia do impacto e não apenas as manifestações oculares externas no momento do traumatismo. Concluímos admitindo que a existência de uma consulta de Oftalmologia Desportiva permite identificar as principais lesões oculares associadas a um determinado desporto, este conhecimento por sua vez, permite um melhor aconselhamento aos atletas sobre o risco de sofrerem uma lesão ocular e tem o potencial de ajudar a elaborar e implementar medidas de prevenção eficazes. Bibliografia 1. Harrison, A., & Telander, D.G. (2002). Eye Injuries in the youth athlete: a case-based approach. Sports Medicine, 31(1), 33-40. 2. Ducharme, J.F., & Tsiaras, W.G. (2000). Sports-related ocular injuries. Medicine and Health, Rhode Island, 83(2), 45-51. 3. Pashby TJ. Ocular injuries in hockey. In Ophthalmol Clin. 1988;28:228-231. 4. Vinger PF, Duma SM, Crandall J. Baseball hardness as a risk factor for eye injuries. Arch Ophthalmol Clin. 1988;28:199-202. 5. Berger R: A model for evaluating the ocular contusion injury potential of propelled objects. J Bioeng 2:345, 1987. 6. 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