Fragmentos da história musical brasileira

Propaganda
Fragmentos da história musical brasileira
Simone Luci Pereira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil
Mestre em História ; Doutoranda em Ciências Sociais ; Bolsista FAPESP
[email protected]
Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo apontar fragmentos da história musical brasileira a fim de
salientar as origens do movimento e do estilo musical Bossa Nova. Entrelaçando-se estilo musical,
forma, campo artístico, a história do rádio e da indústria fonográfica brasileira, historia social e
cultural, busca-se compreender - a partir deste tema central – fragmentos para uma historia da
comunicação no Brasil, dos meios comunicacionais musicais.
Palavras-chave: música brasileira ; rádio ; indústria fonográfica
A Bossa Nova mostra-se como um movimento e um estilo musical que guarda inúmeras
características: uma batida diferente no violão, salientando um ritmo diferenciado ; inovações harmônicas e
melódicas advindas do jazz norte-americano ; e também novas formas de linguagem poética, com letras mais
simples, diretas, que falam do cotidiano do Rio de Janeiro, de maneira coloquial, leve, revelando uma certa
especificidade carioca no jeito de cantar a vida, de fazer uma crônica sobre o cotidiano do Rio, falando da
própria cidade e seus espaços físicos, do amor, das mulheres, etc.
Podemos argumentar que estas características são inovadoras na Bossa Nova, que são elementos
novos trazidos pelo novo estilo/movimento, resultado de uma influência cada vez maior da cultura americana
no Brasil do pós-guerra, em que ícones da indústria cultural dos EUA eram difundidos entre nós, como o
cinema hollywoodiano e seus musicais, ou o jeito de cantar de Frank Sinatra e Chet Baker, revelando formas
mais “aveludadas” de voz e um certo ar cool presente nos anos 50, entre outras influências. Por outro lado, é
impossível negar que uma forma de compor letras mais coloquiais nas canções, usando expressões simples,
diretas, sem arroubos de sentimentalismo, e um jeito de cantar mais baixo, mais intimista, de “cantar
falando” da Bossa Nova, já estavam presentes na própria música brasileira: tem suas raízes em Noel Rosa (no
caso das letras), Mário Reis (no caso da forma de se cantar), entre outros.
Assim, o que se procura neste texto é tentar buscar as matrizes culturais 1, as origens históricas da
Bossa Nova, compreendendo que essas matrizes e origens não são únicas - o que traria uma noção histórica
simplista de causalidade e linearidade – mas sim múltiplas, plurais, dinâmicas. Parece que, para compreender
este estilo e este movimento musical nos anos 50 e 60, é fundamental compreender também a sua formação
histórica, as bases de sua constituição.
A partir disso, como definir a Bossa Nova ? Há algo que está presente (para reforçar ou refutar) na
maioria das definições existentes na vasta bibliografia sobre o assunto: uma preocupação em fixar, em
conceituar a Bossa Nova como popular ou erudita; como música de classe média ou de elite ; ou mesmo
como música que transpassa as barreiras sociais. Ou ainda, como uma música fruto dos grandes meios
1
urbanos, em contato e influenciados pela indústria cultural americana, dando bases à uma cultura de massas
no Brasil que viria a se consolidar uma década mais tarde, com o advento de uma indústria de bens culturais
simbólicos no Brasil 2.
Assim, se faz necessário compreender também as matrizes históricas do que conceituamos como
popular e massivo em oposição ao erudito, como conceituações também históricas, como argumenta Jesus
Martin-Barbero. A partir disso é que podemos argumentar que a cultura vista nas sociedades urbanas
brasileiras deste século não se encontram compartimentadas entre cultura popular, massiva e erudita, de uma
forma cristalizada, estanque, mas sim envolvidas numa cadeia complexa de interferências, contaminações,
misturas, onde não se pode alimentar uma visão utópica de um popular, de um povo bom, ingênuo, autêntico
porque ligados ao passado, ao rural, em detrimento do que é urbano, moderno, visto como ruim. E mais
ainda, como se encontrassem-se separados, isolados. Deve-se pensar sim, a cultura urbana moderna não só
como aquilo que é produzido pelo povo, mas pelo que o povo consome, seus hábitos de leitura, audição,
diversão. Isso tudo sugere a idéia de mestiçagem3, e não de pureza racial, com a complexidade do urbano,
que une moderno e arcaico juntos, e não com um passado rural intacto e sem contaminação.
Portanto, o que nos orienta na reflexão sobre cultura urbana no século XX, são as noções de
complexidade e pluralidade, onde nada é estanque, separado, mas sim mantém relações dialógicas, como
rural e urbano, indígena e rural, folclore e popular, popular e massivo, massivo e erudito, erudito e popular,
etc.
Já em meados do século XVII, tem-se o lundu, um tipo de música e dança trazida pelos negros da
África, sendo uma espécie de batuque com coreografia sensual que teve seu esplendor no Brasil em fins do
século XVIII e início do XIX, tornando-se uma referência na bibliografia sobre música como sendo o
primeiro ritmo musical afro-brasileiro. Apenas em 1830 (quando começa a impressão musical no Brasil) é
que esta música se transforma, passa a se chamar lundu-canção, nome atribuído pela elite, tendo a partir daí
reconhecimento social, sendo praticado nos salões da aristocracia, escrito em partituras e praticado por
músicos que conheciam a teoria musical. Eis aqui uma forma de apropriação do popular pela elite, em que
ocorrem, é claro, modificações do estilo original, adaptado às novas ambiências e às novas finalidades que
teria. Deixa de ter um caráter mais original, de resistência dos escravos, de forma de sociabilidade e
integração dos mesmos, e passa a ser muito mais comportado, acompanhado não mais por viola ou violão,
tocados nas ruas, mas sim acompanhado pelo piano nos salões imperiais, sendo então proibido fora deste
espaço. Porém, se argumentamos que não se trata de buscar uma autenticidade ideal nas formas culturais,
uma não contaminação das mesmas por elementos externos aos quais foi criada, o que podemos ver no lundu
é, não uma deformação estética, uma perda, mas uma modificação, uma reciclagem, uma adaptação à outras
esferas sociais. Pois é através do lundu que a cultura africana negra dá o seu maior legado à música brasileira
e que dará origem ao samba mais tarde: a síncope4.
2
Um outro estilo musical contemporâneo ao lundu e muito próximo a ele é a modinha. Gênero de
romança de salão, fortemente marcado pela influência da ópera italiana, fez de certa forma, o caminho
inverso ao do lundu, pois saiu dos salões e foi para as ruas, socializando-se. Foi exatamente por Caldas
Barbosa (também compositor de lundus) que a modinha se popularizou, pois sendo um gênero musical
aristocrático, possuía traços eruditos no ritmo, na tessitura musical, uma vez que foi influenciado pela ópera.
Mas, com este padre negro poeta brasileiro que foi para Portugal, a modinha adquiriu um tom mais popular e
mais nacional também, no sentido de se afirmar (nas letras) como brasileiro e de se tornar mais malicioso,
mais satírico. É neste sentido que se misturou muito ao lundu, pois foi o mesmo poeta que disseminou os
dois gêneros, transmitindo-lhes elementos como requebros, letras maliciosas, bem humoradas. Com a
popularização desta música nas ruas, o acompanhamento deixou – é claro – de ser feito pelos aristocráticos
pianos e começou a ser feito por violão (que era tido como instrumento menor, ligado aos boêmios,
vagabundos). Acabou também por servir como prática social que tinha a função de socialização, onde os
bares e esquinas em que se reuniam os músicos eram também pontos de encontro, pontos de referência das
cidades ou vilas. Os filhos da classe média urbana, ligados às profissões liberais e ao cultivo da literatura, em
meados do século XIX, foram um dos grandes responsáveis por esta popularização da modinha. Poetas,
escritores, estudantes de Direito reuniam-se no Rio de Janeiro, na Tipografa de Paulo Brito, onde hoje se
encontra a Pça. Tiradentes. Neste espaço, que era tipografia, livraria, papelaria e loja de chá ao mesmo
tempo, reuniam-se Gonçalves Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, dentre
outros. Um espaço urbano, portanto, onde se encontravam os homens cultos, os boêmios, os poetas, mas
também os cantadores e compositores de modinha, como Laurindo Rabelo. Esta troca entre poetas mais
eruditos e compositores populares é algo peculiar na cultura boêmia das cidades e proporciona uma
circulação de referências e matrizes culturais, uma vez que os compositores de modinhas acabavam
absorvendo elementos do Romantismo que imperava entre os poetas e estes últimos, mais tarde, acabariam
compondo modinhas abandonando o preciosismo rasgado de seus versos e adquirindo uma linguagem mais
coloquial. Isso daria origem, mais tarde, à uma tradição de pernosticismo das letras do cancioneiro popular
brasileiro. Pode-se notar isso também na Bossa Nova.
Um outro aspecto a salientar quanto à modinha, é que ela parece ter sido o primeiro estilo de canção
popular no Brasil, muito influenciada pelo Romantismo. O Romantismo na música erudita pode ser
caracterizado como uma tentativa de romper com o equilíbrio entre a estrutura formal e a expressividade que
se notava até o Neo-Classicismo, pois buscavam maior liberdade de forma, expressão mais intensa das
emoções, abandonando as regras, a disciplina, o rigor e a objetividade do estilo clássico5. Quanto à estrutura
musical, pode-se notar uma maior riqueza harmônica, na incorporação mais sistemática de dissonâncias e
maior lirismo nas melodias, onde assemelhavam-se às canções. Quanto à inspiração para as músicas (uma
vez que não eram cantadas) vinha do sentimento nacionalista (R.Wagner) ou da natureza, com a noite, o luar,
3
a mata, o mistério. Muitos músicos compunham sua peças tendo como inspiração, não mais a melodia ou
ritmos clássicos, mas sim os gêneros folclóricos de seus países, compondo valsas (Liszt), polcas (Brahms),
polonaises (Chopin), noturnos (Schumann). As peças se tornaram mais curtas, o que também se assemelha às
canções. Mais ainda, o Romantismo como visão de mundo, sugere um voltar-se para o passado, para o
mundo arcaico, para uma negação do presente e da modernidade, num refúgio na autenticidade da vida,
encerrada na natureza e não nas cidades, na noite e não no dia (espaço do trabalho, da fábrica, da
racionalidade). É assim que se cultiva um valor aos espaços noturnos, como a boêmia, o ambiente artístico.
Desta maneira, a modinha como gênero musical que guardava ressonâncias com o Romantismo,
parece introduzir em nossa música e em nossa prática musical, a canção, que é a junção de letra e música e
tudo que isso traz – uma maior informalidade no jeito da apresentação, uma abertura maior para o intérprete
da canção, uma possibilidade de encontros e sociabilidades em torno da música, uma inclinação a se falar dos
sentimentos, dos amores, da mulher amada ; estas parecem ser características que são verdadeiras instituições
em nossas práticas musicais até hoje e que se fazem muito presentes na Bossa Nova.
Mas, voltando-se às relações entre modinha e lundu, pode-se argumentar que foram contemporâneos e
muitas vezes confundidos na literatura musical, uma vez que o lundu se aristocratizou e a modinha se
popularizou, parece ter havido aí um ponto de encontro e até (em alguns momentos) de coincidência dos dois
estilos, que se confundiam.
No entanto, há um traço característico do lundu, que parece o singularizar e que foi – a despeito de
toda a modificação que sofreu – sua marca, sua herança deixada à música que viria a se estabelecer no Brasil
no século XX: a síncope. Síncope esta que, na quebra do ritmo, salienta um certo requebrado, que está na
estruturação musical e também no jeito de dançá-la. Interessante notar como no lundu (tal qual na modinha),
há sempre um falar à mulher, “cantá-la”, com malícia, humor, unindo muitas vezes – uma vez que era uma
expressão afro-brasileira – a idéia da mulher e sua sensualidade com as comidas afro-brasileiras, articulando
o requebrar do ritmo com o requebrar da mulata.
Um outro tipo de música que também contém esta característica da síncope é o maxixe, encarado
como antecessor direto do samba. Esta dança, surgida no final do século XIX, era urbana, popular e do Rio
de Janeiro. Surgiu no bairro da Cidade Nova, local fruto do aterro do Canal do Mangue, sendo espaço de
divertimentos e inclusive de má fama. Assim, num bairro recém construído, mais afastado, longe da
burguesia urbana que se achava em formação, surgia uma Cidade Nova, suja e pobre. Interessante perceber
que moravam ali não apenas negros livres ou escravos, mas também portugueses e outros imigrantes
recentes, atraídos pelos preços baixos dos aluguéis. Isso acabou por gerar uma mestiçagem muito grande e a
configuração de um espaço urbano muito diferenciado e peculiar no Rio de Janeiro ; um local com
comportamento social e cultura própria, onde, entre outras coisas surgia uma dança nova.
4
Se até aqui o que vemos é a música dos negros, a música de origem africana ser designada por
diferentes nomes, tendo em comum a umbigada, o ritmo sincopado que dá origem à uma dança requebrada,
identificada sempre por um acompanhamento feito por batuques (nome genérico dado a todos os gêneros
africanos ou praticados por negros), o que se tem a partir do início do século XX, é uma outra palavra geral
para designar estas sonoridades – o samba. Esta palavra não é nova, mas é encontrada em documentos
diversos desde o século XVIII, referindo-se sempre ao universo cultural negro, sendo, no entanto, ligada à
uma tradição rural e não urbana. Quando, no início do século, passa-se a denominar o ritmo urbano carioca
popular de origem africana que se praticava como samba, isso indicava um duplo movimento: um, ligado ao
folclórico, da raízes coloniais rurais (principalmente da Bahia), de se denominar samba o que até aí era ligado
ao “batuque” ; e outro, ligado ao popular urbano carioca, substituindo o maxixe (ou até o tango brasileiro).
Isso é importante na medida em que salienta um tentativa de definição (depois de inúmeras definições
e redefinições) de um gênero musical com dupla filiação: uma folclórica, rural, colonial e outra popular,
urbana, fruto da modernidade da virada do século. Estas duas filiações fundidas numa única palavra, num
único gênero musical, para além de deixarem entrever a dificuldade de se estabelecer separações entre
folclórico, popular e mais tarde, massivo, salientando a miscigenação cultural existente, denota também uma
“convergência ideológica”6, do que se queria que fosse o ritmo nacional por excelência – o que só
aconteceria, de fato, na década de 30.
Mas é preciso entender quais as relações entre este folclórico e este popular num mesmo gênero, o
que se remete às relações de origem de cada vertente – a primeira na Bahia, e a segunda no Rio de Janeiro.
Porém, faz-se necessário entender a história social desta relação entre cultura baiana e carioca no Rio de
Janeiro da virada do século. Compreendendo o trajeto histórico carioca neste momento, evidencia-se um
espaço urbano marcado por um cosmopolitismo repleto de contradições, fragmentado entre o universo rural e
o mundo urbano, onde despontariam tensões sociais e culturais elaboradas pelas experiências de negros,
diversos imigrantes e indivíduos vindos do campo, a maioria sobrevivendo como sub-empregados,
desempregados, ambulantes, pequenos artesãos, operários, etc. Toda esta trama social proporcionou
conflitos/encontros sócio-culturais muito peculiares, que acabaram por dar um tom à trilha sonora do
cotidiano carioca, uma sociedade repleta de tensões e contradições, que se intensificam na nova realidade
urbana que se construía a partir de então, lembrando que a música popular é parte de uma realidade urbana
com certa diversificação social.
No contexto de um país em transformação pelas mudanças econômicas e financeiras a partir do ciclo
cafeeiro, explicitando um ambiente que se modificava rapidamente e intensamente, havia por outro lado, uma
vasta população empobrecida e miserável à margem deste processo. Ora, as malhas urbanas, não possuindo
condições de absorvê-los em atividades produtivas (pois eram negros recém-libertos, imigrantes e migrantes
nordestinos), expulsou-os a viver na semi-legalidade de precária cidadania, incorporando-se ao pequeno
5
comércio de rua e ao sub-emprego. Vale lembrar ainda que cada um desses grupos e ainda os cidadãos
brancos da cidade já traziam consigo um conjunto de experiências sociais específicas, e que, ao se
encontrarem nas ruas e espaços públicos criaram-se diversas situações de tensão, onde as representações
culturais estabeleceriam a luta pela permanência e sobrevivência através das misturas, associações, formas de
solidariedades e conflitos.
Parece ter sido justamente nas fusões e confrontos entre essas diversas experiências que o samba iria
se estabelecer e se reproduzir, onde o processo de constituição da música carioca popular oscilava na
instabilidade das relações e mútuas influências entre o universo rural e as formas de representação
proporcionadas pelo mundo urbano. Isso fica ainda mais claro ao lembrarmos das transformações urbanas
desta cidade em expansão, onde houve mudanças estruturais em bairros, ruas, tendo em seguida ocorrido
uma ação e um controle do poder público municipal no sentido de estabelecer uma “nova ordem urbana” que
se preocupava com o embelezamento, saneamento e normatização do espaço urbano, e da exclusão de áreas e
personagens que não se conformavam à este projeto, como mendigos, ambulantes, negros, mulatos,
nordestinos, prostitutas e os cortiços, perfazendo assim, uma segregação nos ambientes urbanos, constituindo
áreas nobres e locais pobres. É aí que se ressaltam os espaços de convivência que passaram a ser formados
pelos excluídos deste projeto urbano. Os muitos nordestinos baianos que migraram para o Rio acabavam por
formar uma certa “comunidade baiana” na cidade, mais precisamente nos bairros da região portuária, ligados
por fortes laços de solidariedade.
Isso se deveu em grande parte pelo poder agregador das famosas “tias”, velhas baianas que exerciam
liderança na organização da família, da religião e do lazer. Promoviam reuniões em suas casas, ajuntamentos
e dentre elas, temos Tia Amélia e Tia Perciliana, mães de Donga e João da Baiana, respectivamente, que se
tornaram - até hoje – famosos sambistas. E, a mais famosa delas, Tia Ciata, a qual entrou para a história do
samba por promover reuniões em cuja casa, na Praça Onze, foi composto coletivamente (embora seja Donga
seu autor oficial) o primeiro samba gravado, em 1917, Pelo telefone. Foram estes sujeitos, nas reuniões nas
casas das tias baianas que criaram uma produção musical classificada e batizada por eles como samba.
Pode-se ver, portanto, que aqui perfaz-se um perfil das festas ou bailes populares no Rio de Janeiro,
salientando que espaços outros de convivência eram esses que as camadas populares vinham constituindo,
uma vez que criaram novos espaços de reprodução e difusão de sua cultura, num momento em que ainda não
haviam se configurado efetivas modificações produzidas pelos meios modernos de reprodução, gerados na
indústria radiofônica e fonográfica.
Nesse sentido, é que é possível pensar a música urbana carioca, e neste caso específico, o samba,
como manifestação popular sim, mas um popular que em sua constituição histórica, tem relações com o
folclórico, com o rural, como também é fruto do urbano, de um incipiente cosmopolitismo carioca da virada
do século em que convivam influências culturais negras, européias e também se percebia grande nível de
6
diversificação econômica e social, sendo exemplar para pensarmos numa idéia de “cultura híbrida” 7, como
sugere Nestor Canclini, aludindo este hibridismo à idéia de uma cidade, onde entramos pelo popular, saímos
pelo massivo, passamos pelo erudito, cruzamos com o rural/folclórico. Assim é que se compreende a cidade
do Rio de Janeiro, bem como as manifestações culturais inscritas nela, a trilha sonora das experiências
cotidianas das camadas populares.
Só assim é que podemos compreender o momento em que o samba se tornou mais popularmente
conhecido na sociedade, com a gravação da primeira música intitulada “samba”, em 1917, que foi Pelo
telefone. O primeiro aspecto que chama a atenção é que a música tem como autor Donga, um dos muitos
frequentadores das reuniões em casa de Tia Ciata. No entanto, o que se sabe, é que os sambas ali compostos
eram coletivos, isto é, feitos por todos juntos, improvisando uma melodia, alterando uma nota ou outra,
acrescentando um verso, enfim, compondo conjuntamente, como mais uma atividade de sociabilidade que se
praticava ali. Isso se deve às necessidades de um mercado fonográfico que se instituía, onde a figura do autor
era importante para dar legitimidade à nova música, sendo que ela era também registrada na Biblioteca
Nacional, garantindo os direitos autorais ao seu compositor. Isso é fundamental, pois compreender a história
musical do Brasil até aqui era tarefa em que se supunha não encontrar, (ou encontrar muito dificilmente) o
autor das músicas. As reuniões musicais, apresentações, etc, eram coisas coletivas, onde os músicos reuniamse como amadores, num tom informal e de sociabilidade, sem tanta preocupação comercial ou de mercado,
pois a concepção de autoria individual não se mostrava como algo que merecesse atenção por parte dos
músicos, uma vez que a música não era propriamente um meio de vida para aqueles frequentadores das
reuniões. A partir daqui, com o sucesso alcançado pela gravação, a busca pela afirmação da autoria, do
direito autoral, passou a ser cada vez mais constante e assumida, o que gerava inclusive brigas entre os
músicos, como Donga, Sinhô e outros.
O sucesso da música se deveu também aos esforços do mercado fonográfico em lançá-la para o
Carnaval de 1917 (inclusive fazendo mudanças na letra, que passava a citar o Carnaval). O Carnaval era o
momento ideal, no Rio de Janeiro, para o lançamento de canções a fim de que se tornassem sucesso popular.
Assim, o samba, juntamente com a marcha, eram ritmos que foram muito bem aceitos na musicalidade
carioca, entre outros motivos, por darem um rosto, uma identidade ao Carnaval, por se tornarem as músicas
de Carnaval, pois nos primeiros anos do século XX, o Carnaval carioca parecia expressar as contradições,
multiplicidades e diversidade social da cidade, onde misturavam-se elementos de diferentes matrizes
culturais. Desta forma, temos a instauração de um ritmo oficial para o Carnaval e a fixação deste como
grande lançador de gêneros e, mais ainda, de músicas novas, onde passou-se a compor, gravar e lançar
músicas para que fizessem sucesso nesta época do ano. Se delineia aí um incipiente mercado fonográfico,
que será melhor discutido adiante.
7
Detendo-se um pouco mais nos detalhes da gravação do primeiro samba, é possível perceber a
modificação de elementos musicais que denotam uma ação do mercado na arte e na cultura. Sandroni cita
depoimentos dos primeiros sambistas em que estes contam que tiveram - na hora de gravar o primeiro samba
- de escolher algo do repertório coletivo que seria melhor aceito na sociedade, o que parece dizer que foram
escolhidas letras, imaginários, elementos culturais mais adaptados, “arrumados” para virem à tona, para
serem lançados fora do circuito das festas das tias baianas. Moldar estes elementos culturais para se
adequarem aos meios de divulgação existentes, significava tanto escrever em partituras para piano, identificar
o autor, fixar o gênero a que pertencia (o que era inscrito tanto na partitura como no disco), fazer arranjos
para a banda, como também, mudar inclusive a letra da música. Quanto à este último aspecto convém
salientar que a letra original foi modificada por diferentes motivos. Ao invés de “o chefe da polícia pelo
telefone manda me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”, foi gravado e impresso “o chefe da
folia pelo telefone manda me avisar que com alegria não se questione para se brincar”. Se em lugar de “chefe
da polícia” se colocou “chefe da folia”, isso tem a ver tanto com a tentativa de ressaltar o Carnaval na letra,
com intenções mercadológicas de fixar o novo gênero como música associada ao Carnaval, música de
Carnaval, como também foi uma forma de amenizar uma crítica ao poder, às autoridades, onde a letra sugeria
uma possível indiferença ou complacência por parte da polícia frente ao jogo, que era proibido. Mais ainda,
versos foram mudados para que pudessem rimar formalmente, obedecer às regras de rima tradicionais, algo
que não aparecia na letra original por não ser uma preocupação dos sambistas.
Pode-se verificar portanto, que o samba, ao entrar para o mercado, modifica-se, perde alguns
elementos mais originais, autênticos, ingênuos, espontâneos, fruto da sociabilidade e da informalidade das
reuniões na Praça Onze. Como atesta Claudia Neiva Matos8, deixa de ter apenas valor de uso e passa a ter
valor de troca, ou seja valor comercial, produto de um mercado fonográfico em vias de industrializar-se.
Assim, passa a seguir as regras também de um campo cultural em busca de hegemonia, em busca de firmarse como música popular por excelência, o que traz, invariavelmente, a tentativa de se enquadrar a arte, a
produção cultural em regras estabelecidas pelo mercado, ainda que fosse neste momento incipiente.
Entretanto, não se procura firmar aqui uma visão purista acerca da cultura, resvalando numa análise que vê
na gravação do primeiro samba exatamente o momento de sua morte, ou seja, no fim de sua característica
espontânea, autêntica, amadora e por isso, melhor. O que se compreende é que o samba se modificou sim, se
alterou, se ajustou, se adaptou à exigências do mercado, mas continuou a guardar traços de sua matriz
cultural original, da cultura negra, das camadas baixas do Rio de Janeiro, sendo uma expressão de sua
cultura. Mesmo modificado, hibridado, miscigenado, o samba continuaria ativo, inovador, expressivo,
revelando elementos populares que nos interpelam a partir da cultura massiva. Mesmo sem os elementos
mitificados da origem, da raiz, ou com estes elementos muito menos aparentes, a cultura negra e o samba se
tornariam “popular-massivos”, ou seja como exemplares de um campo cultural de contradições, movediço,
8
fluido, onde figuram trabalho e ócio, legalidade e ilegalidade, ordem e resistência, num circuito de
entrelaçamentos, de idas e vindas, superposições que evidenciam uma outra lógica, repleta de estratégias,
táticas, que se revelam como o caminho utilizado pelas classes dominadas para o reconhecimento social.
Portanto, a partir da década de 20, o que se tem é o desenvolvimento e paulatina aceitação deste novo
gênero musical, onde ele ainda se definia. Note-se aqui a presença de um fator muito importante na
implementação de uma cultura massiva no país (o que só se efetivaria na década de 40), que foi o surgimento
do rádio. Introduzido no Brasil em 1922, quando da abertura da Exposição Mundial, foi o despertar para uma
novidade que se tornaria um dos meios comunicacionais de maior alcance e mais popular. No dia 7 de
setembro, 80 rádios-galena foram distribuídos, para captar o discurso do então presidente Epitácio Pessoa na
abertura da Exposição, no Rio de Janeiro. O número de emissoras e de aparelhos receptores cresceu
rapidamente. Nos anos 20, existiam 19 emissoras; em 1940, elas já somavam 78; em 1944, 106; em 1945,
111; e, em 1950, 300. Do mesmo modo, o número de radio-receptores, que era de 30 mil em 1926, chegou a
659.762 em 1942. Trinta e três anos depois da primeira transmissão, existiam, no Brasil, 477 emissoras de
rádio, e o número de aparelhos receptores atingia quase um milhão.
Até a década de 30, o rádio no Brasil se organizava basicamente em termos não-comerciais, as
emissoras se constituindo em sociedades e clubes cujas programações eram sobretudo de cunho erudito e
lítero-musical. Mesmo considerando-se o seu crescimento em números, na década de 20 ainda existiam
poucos aparelhos e o ouvinte tinha que pagar uma taxa de contribuição para o Estado pelo uso das ondas.
Esta década se configura, assim, como um período de experimentação do novo veículo, não podendo ser
considerada uma organização de tipo empresarial, uma vez que o espaço de irradiação sofria contínuas
interrupções, não havia programação que cobrisse inteiramente os horários. Só na década de 30, com a
introdução dos rádios de válvula, é que vê-se a sua difusão junto a um público ouvinte mais amplo, uma vez
que a custos de produção dos aparelhos foi barateada. Mais ainda, em 1932, uma mudança na legislação
permitiria a publicidade no rádio, fixada inicialmente em 10% da programação total 9. Isso acabou por
transformar o caráter do rádio no Brasil, pois, deixando seu caráter amadorístico e virando uma empresa
comercial, anunciantes tornaram-se suportes eficazes no financiamento do funcionamento das emissoras, que
podiam assim, fixar e estruturar sua programação, com noticiários, programas de auditório, radionovelas,
programação musical, concurso de calouros, entre outros.
Em outro sentido, o rádio vai assumindo uma função de integração nacional, de ligar a todos, a partir
de uma voz sem rosto. Um som que se transmite no espaço, que se pode ouvir em diferentes lugares das
casas, onde o som, os signos periódicos remetem-se ao ouvir. São variadas as referências que relacionam a
comunicação radiofônica ao exercício de sua aplicação. De tal forma incrustada no cotidiano, extrapola o
tradicional aparato dos sistemas de comunicação, se apresentando como campo instrumental da ciência, arte
e tecnologia. Descrevendo um processo (a comunicação radiofônica) que pode ser considerado centenário,
9
Lilian Zaremba10 coloca, segundo Marshall McLuhan - com suas idéias sobre o rádio como implosão
eletrônica, tambor tribal e sistema nervoso de informação – que a mensagem do rádio é uma mensagem de
ressonância e de implosão unificada e violenta. Segundo a autora, McLuhan solidificou premissas arcaicas na
definição de um modelo de radiofonia que não deixava escapar o fenômeno, mas o inseria nos meios e forças
elétricas. Assim, ao mesmo tempo em que desenha a mensagem radiofônica como sistema tecnológico capaz
de se constituir como rede poderosa na reversão da direção e sentido da civilização ocidental letrada, admite
ser a experiência radiofônica algo particular, onde as profundidades subliminares estão carregadas daqueles
ecos ressonantes das trombetas tribais com seu poder de transformar a psique e a sociedade numa única
câmara de eco.
O que se verificava neste momento também, era o crescimento da indústria fonográfica. Esta, depois
de iniciar no Brasil com o repertório clássico/erudito, alguns tangos argentinos e ritmos americanos como
jazz e foxtrot, neste momento, já descobria e começava a prosperar com a música popular, com destaque para
as marchinhas e sambas cariocas de Carnaval, além de algumas canções sertanejas paulistas. Mas, segundo
Nicolau Sevcenko11, foi quando as gravadoras se cruzaram com o potencial do rádio na difusão da música
popular que a grande “mágica” se deu, gerando o início da era de ouro do rádio, onde a vibração do público,
aos poucos, se ampliava. O rádio valia-se dos discos, produtos das gravadoras, que usavam o primeiro como
divulgador de sua produção, sendo que muitos proprietários das gravadoras acabaram por comprar também
emissoras de rádio. Em meio a isso, vê-se que a produção se expandia de forma admirável, beneficiada pelo
desenvolvimento econômico do setor urbano, onde as tiragens de discos tornavam-se cada vez maiores.
Desta maneira, não tardou muito até o Estado populista que se instaurava na década de 30 no Brasil,
descobrir no rádio um eficaz veículo para a afirmação de seu poder, utilizando-se das qualidades sensíveis da
enunciação sonora, onde, como diz o historiador Antônio Pedro Tota, o receptor via-se diante de um
momento em que, vários elementos e mecanismos, contribuíam para passar-lhe dados necessários ao
fortalecimento de uma posição ideológica indispensável ao novo status quo, uma ideologia identificada com
o trabalho e com a construção de um Brasil grande do futuro12.
O Estado acabou por trazer, assim - numa política nacionalista de difusão, através do rádio, de um
sentimento nacional, de busca pelas raízes culturais do Brasil - a popularização do samba, passando este
gênero a ser usado para legitimar uma cultura nacional por excelência. Um movimento em que “do combate
ao samba” dos primeiros tempos do século, passou-se a utilizar um “samba de combate”, com uso político e
ideológico. Passa a haver assim, um intuito de integrar o popular e o folclórico, buscando na raiz negra e
colonial do samba, a legitimidade para afirmá-lo como gênero oficial, onde nacional e popular se unem,
trazendo à tona o elemento folclórico, evocando um passado ao qual o samba deveria pertencer. Um
nacionalismo musical que buscava implantar uma espécie de “república musical platônica, assentada sobre o
ethos folclórico”13.
10
Jesús Martin-Barbero oferece ainda mais subsídios para se abordar esta questão. Salienta que, para se
delinear as relações entre massificação e populismo, é preciso compreender que, no caso brasileiro, não foi só
a crise do mercado mundial com a recessão de 1929 que desencadeou a crise nacional, mas sim uma crise de
hegemonia interna que colocou as massas frente a frente com o Estado. A partir disso, o Estado procurou
resolver a situação, se auto-intitulando defensor dos direitos das classes populares e, ao mesmo tempo,
dirigente do processo de modernização do país, o que denota contradições que se expressaram na cultura,
particularmente na música. O nacionalismo seria capaz de encobrir a tensões e dissensões da heterogeneidade
que vivia a sociedade urbana brasileira naquele período, onde o popular, orientado pelas mãos do Estado e
difundido nos rádios em escala agora nacional, legitimava o popular oficial.
Segundo Canclini, na América Latina, o início da massificação coincidiu com a vigência dos
governos populistas e com o processo de construção das identidades nacionais, onde as indústrias culturais
tiveram uma missão das mais importantes. Pode-se afirmar que a implantação dos meios massivos latinoamericanos é concomitante ao ingresso das massas no cenário de reivindicações e de consumo, sendo a mídia
uma conseqüência da massificação, e não a sua causa. Tem-se assim, uma idéia de se depurar um popular em
termos de folclore, raiz, origem, lugar idealizado de essência, autenticidade no mundo do passado rural,
nomeando o povo como sendo a própria alma da nação, na tentativa de estabelecer uma tradição – ligada ao
passado, à pureza cultural, autenticidade - que a própria modernidade urbana, massificada e industrial
engendrou.
Ao mesmo tempo, intensificava-se a repressão policial e a censura, onde começa a haver um combate
ao indivíduo alijado da produção, aos sub-empregados, ao trabalho ilegal em nome da austeridade, honra do
Estado e grandeza do país. Passa a ocorrer também uma censura prévia às músicas, evitando que temas como
política, fossem tratados (a não ser que elogiassem o Estado Novo), bem como a exposição e afirmação de
formas ilegais de vida, como a malandragem, o que incitaria à desordem, a não-legalidade, o que não era
condizente com o Estado totalitário e ditatorial que se implantava. Em 1940, por exemplo, o DIP,
Departamento de Imprensa e Propaganda - órgão do governo que cuidava da censura e das propagandas
estatais - proibiu mais de 370 músicas e mais de 100 programas de rádio.
Na tentativa de oficializar os mais diversos segmentos da sociedade, o Estado Novo - a exemplo do
que fez com os sindicatos, trazendo-os para seu domínio, oficializando-os, instituindo o “sindicalismo de
estado” para assegurar o controle sobre os trabalhadores - criou também o Dia da Música Popular Brasileira,
homenageando artistas e tornando a data oficial, uma maneira de enaltecer um gênero, oficializá-lo, garantirlhe as melhores condições e de assim, mantê-lo sob sua égide. Mais ainda, o governo Vargas tratou de
oficializar o Carnaval, a partir de 1933, mesmo antes de ser instaurado o Estado Novo, com programas
organizados pela prefeitura, concurso de músicas de Carnaval, oferecendo subvenções ao concurso das
Escolas que começaram a existir a partir de 1928, quando no Largo do Estácio, na zona norte do Rio, surge a
11
“Deixa Falar”, num local frequentado pela malandragem do samba (como se verá mais à frente). Já na década
de 30, várias escolas desfilavam, em particular a Mangueira, que venceu os carnavais de 1932 até 1935,
sendo que os desfiles das escolas mantidos pelo Estado, deveriam apresentar temas ligados à grandeza da
nação, em caráter didático, dando origem aos samba-enredos na forma como o conhecemos até hoje.
Além disso, era de propriedade estatal a rádio mais ouvida na época, a Rádio Nacional, que contratava
os artistas mais populares e prestigiados do país. A produção musical, em certo aspecto, ia se tornando
expressão deste “Brasil grande”, em que as letras iam pouco à pouco, cada vez mais mostrando as grandezas
do país, trazendo o samba-exaltação, que talvez Aquarela do Brasil, composta em 1939 por Ary Barroso, seja
a melhor e mais conhecida expressão. Vê-se assim, a constituição e consolidação, cada vez maior, da idéia de
um Brasil musical, um país afirmado por sua música, que tem nela sua mais perfeita expressão, que salienta
peculiaridades e especificidades do país, onde seríamos a partir daí, cada vez mais identificados lá fora, no
exterior, por esta expressão cultural.
É preciso lembrar que o rádio e a indústria fonográfica lançavam músicas que alcançavam cada vez
mais ouvintes, muito em função de uma nova sociedade que se instituía no Brasil, que era urbana, fruto do
crescimento industrial, caracterizada pelo crescimento e consolidação paulatina dos setores médios da
população. Quando, na canção Cantores do rádio, se diz “de noite embalamos teu sono e de manhã nós
vamos te acordar”, isso parece denotar a presença deste veículo na vida cotidiana das pessoas deste meio
urbano, acordando e fazendo dormir o cidadão médio, que trabalha, tem horários a cumprir, uma vida
regrada, ressaltando o público para quem se dirigia esta música propagada no rádio e condizente com as
intenções do Estado: o trabalhador. Samba, assim, não deveria mais ser identificado ao batuque dos negros, à
boêmia, à malandragem, ao mundo do não-trabalho, mas ao mundo regrado, da ordem, da legalidade, da
oficialidade e da organização. Parece surgir aqui a idéia de uma música a ser consumida por todos, que
expressasse a maioria, delineando o samba como música ligada à cultura de massas, ao “povo brasileiro”
indiferenciado. A ideologia populista do Estado Novo se assentava no trabalhismo, o que tinha de ser
secundado por uma intensa campanha discursiva acerca do papel do trabalhador na construção do país,
enaltecendo o operário e o próprio trabalho.
Já na década de 30, a malandragem tornou-se a temática principal dos compositores populares, dos
sambistas, onde a figura do compositor passou a ser confundida com a do malandro, numa identificação onde
os sambistas acabam por aproximar-se da malandragem, seja como recurso temático, seja pelo modo boêmio
de viver, não ter horários fixos, trabalho fixo e remunerado, vida regrada, seja pela observação próxima do
malandro, a convivência com ele. Desta forma, além de não se buscar ver no samba da década de 30 apenas
um produto cultural contaminado e dissuadido pela lógica do mercado e do Estado, busca-se também
perceber neste gênero musical, elementos, nuances, traços de suas características elementares –
transformadas, re-adaptadas, articuladass às novas tecnologias, é claro, mas ainda assim populares.
12
Interessante assim, notar como embora possa-se argumentar que o samba do Estácio, o samba dos
anos 30, perdia em autenticidade, suas raízes genuínas da música negra, tornando-se utilizado pelo Estado e
mercantilizando-se, ele mantinha neste estágio suas características rítmicas de maneira inusitada,
constituindo-se como muito mais duradouras e permanentes da cultura afro-brasileira e popular do que se
poderia supor. A própria idéia de “samba de breque”, instituída a partir desta fase, aponta para esta
característica, uma vez que mostra-se como sendo uma parada (do inglês, break), produzida com o fim da
segunda parte da música para garantir o recomeço, com a introdução da fala do intérprete, salientando como
um expediente utilizado para dar ares de ironia, malandragem sem dizê-la propriamente, sem assumí-la na
letra, mas dando seu toque através da estrutura musical, mostrando-se uma forma de desvio, de improviso, de
fuga às imposições e até de tática, no sentido que Michel de Certeau 14 nomeia a forma de transformar o que é
dado pela cultura oficial, pelo poder, em astúcia cotidiana de fuga aos padrões convencionais, de maneira
subliminar, não assumida e não explícita.
Num outro sentido, esta improvisação do cotidiano, esta tática, pode ser vislumbrada nas formas
destes músicos sobreviverem e manterem suas características dentro do mercado fonográfico, dentro da
lógica industrial e mercantil que se impunha cada vez mais à música naquela época. Os músicos podem ser
vistos como aqueles que se utilizam da tática, a qual não pode contar com um lugar próprio, mas tem como
espaço, o lugar do outro, utilizando-se de artimanhas para reverter o poder a seu favor. Isso pressupõe a idéia
da existência da criatividade, mobilidade, das formas de fuga dentro da indústria., em ações parciais, subreptícias, individualizadas, microbianas.
Neste momento, assim, tem-se a efetivação de uma produção estável da música popular, com cantores
e compositores com uma produção estável, o rádio e o disco consolidando-se na difusão e propagação das
músicas e dos cantores, a diversificação e ampliação do público, potencializando um consumo musical e de
outros meios ligados à música (como revistas, jornais, produtos) que crescia cada vez mais. O Rio de Janeiro
se colocava assim, como um espaço assim que ia dando os contornos de uma profissionalização dos músicos,
parecendo não haver mais lugar ao malandro, à música ingênua, descompromissada, sem autor, fruto das
reuniões informais, formalizando-se uma disciplina no mercado de trabalho musical.
É, portanto, a partir da década de 40 que se pode considerar efetivamente a presença de uma série de
atividades vinculadas à uma cultura de massas no Brasil, em consonância à existência de uma sociedade
urbano-industrial. Como aponta Ortiz, não é que antes desta época não existissem meios de comunicação,
mas neste momento eles começam a se instaurar enquanto cultura de mercado, a partir da reestruturação
também sofrida pela sociedade, como já se apontou. No início da década de 40, segmentos da indústria
fonográfica, sobretudo os que representavam pessoas ligadas indiretamente à produção de discos,
mobilizavam-se no sentido de regulamentar suas atuações profissionais neste contexto, onde as empresas
13
multinacionais já dominavam o cenário, surgindo a Associação Brasileira de Compositores e Editores, e em
1942, a União Brasileira de Compositores (UBC). 15
Se por uma lado temos o rádio e a indústria fonográfica nesta época já estruturados, de grande
abrangência, trazendo novos parâmetros para a problemática da cultura e da sociedade, como já vimos, não
podemos esquecer também do cinema. Nesta época, ele se torna um bem de consumo, não só com a presença
de filmes americanos – que ganham cada vez mais espaço no pós-guerra - , mas também a produção nacional
começa a se mostrar, com a criação da Atlântida, em 1941 e da Vera Cruz, em 1949. Não se pode esquecer
também do mercado de publicações, com o aumento do número e da tiragem de livros, jornais e revistas, com
o surgimento de revistas de variedades e também as ligadas às atividades do rádio, como revistas de
fotonovelas, revistas sobre os astros e estrelas do rádio, etc. Há que se lembrar da área publicitária, que vai se
efetivando também por esta época, lançando revistas especializadas, criando entidades profissionais, etc.
Mais ainda, em 1950 temos a inauguração da TV no Brasil. Enfim, o que também está presente em todos
estes setores, e que vai dando mostras da presença de uma cultura de massas, é o desenvolvimento de uma
racionalidade capitalista e de uma mentalidade gerencial, salientando uma economia que começa a se
organizar unicamente com vistas à produção de bens de troca e não mais de bens de uso, estabelecendo e
consolidando, por esta época, elementos de uma cultura média, de um padrão médio de cultura, o que viria a
ser a base para a real efetivação de uma indústria cultural, ou um “mercado de bens simbólicos” no Brasil, no
final da década de 60.
Mas, centremo-nos no rádio e na área musical. Na década de 40, após a estatização da Rádio Nacional
e a chegada dos representantes do Bureau Interamericano ao Brasil (órgão americano destinado a coordenar
os esforços dos EUA no plano das relações econômicas e culturais com a América Latina) e a difusão de um
american way of life entre nós, o rádio torna-se, mais ainda, o veículo mais cobiçado pelos anunciantes, pois
atrações de sucesso no rádio eram sinônimo de consumo garantido dos produtos16. Com esta parceria emissoras e anunciantes - efetivada em termos sólidos, os artistas de rádio teriam emprego garantido,
sucesso, e o rádio no país viveria, portanto, sua fase de ouro, como rico influenciador de hábitos e costumes
de milhões de ouvintes, ocupando espaço cada vez maior na vida das pessoas.
Marta Avancini, em seu trabalho sobre os cantores do rádio, enfatiza o processo de popularização
destes, chegando aos anos 50 como um dos focos principais de atenção do público radiofônico. Os auditórios
dos programas de rádio ficavam lotados por pessoas ávidas por encontrar seus artistas preferidos, juntamente
com os fãs-clubes organizados por estes, eram eixos de sustentação e promoção dos artistas. Mais ainda, as
revistas especializadas catalisavam o interesse pelos artistas, incitando o público a opinar e participar da vida
de seus preferidos, onde as reportagens ajudavam a criar um clima de curiosidade e euforia acerca deles.
Avancini lembra ainda que, para se analisar o papel desempenhado pelos ídolos do rádio nesta época, é
preciso observar a complexidade existente ao nível da constituição destes, não tratando de apreendê-los
14
somente como modelos ideológicos exteriores ao contexto social, mas sim compreender que tipo de relação
se articula a partir de sua presença no social, ou seja, perceber formas de subjetividade, de identificação dos
fãs frente aos seus ídolos dentro de um quadro mais complexo da sociedade daquele momento, como fazendo
parte de uma generalização de formas de sensibilidades em jogo à época.17
Para complementar esta discussão sobre o rádio, lembra-se que Gisela Ostriwano18 argumenta que
este meio comunicacional fala e, para receber a mensagem, é apenas necessário ouvir. A linguagem oral
pressupõe a presença das virtudes da linguagem coloquial como clareza, objetividade, simplicidade. E, apesar
de ainda não funcionar efetivamente com dupla mão-de-direção, o rádio nasceu como um meio de
comunicação interativo que se viu limitado em sua capacidade bidirecional à medida em que se constituía o
sistema econômico de sua exploração. A dupla mão-de-direção permite, por outro lado, o diálogo real entre
emissor e receptor. Segundo Ostriwano, ainda, o rádio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por intermédio
da criação de um diálogo mental com o emissor, sendo que a sensorialidade se faz presente. O ouvinte
visualiza fatos, acontecimentos, performances artísticas através dos estímulos sonoros que recebe, da
entonação vocal, da tonalidade, do ritmo da mensagem. A imaginação é despertada pela emocionalidade das
palavras e dos recursos de sonoplastia, permitindo que o receptor dê asas às suas expectativas individuais, à
sua imaginação. Nesse sentido, o rádio acaba sendo visto como um amigo, ou o substituto de um amigo
ausente. Por intermédio do diálogo mental, os apresentadores, cantores tornam-se íntimos do ouvinte.
É portanto neste meio cultural, social, econômico que percebemos o nascimento da Bossa Nova,
como fruto desta efervescência que vivia a sociedade brasileira dos grandes centros urbanos, como o Rio de
Janeiro, e da incipiência - e ao mesmo tempo, desenvolvimento – de uma indústria cultural ou de bens
simbólicos.
1MARTIN-BARBERO,
Jesús. Dos meios às mediações : comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984.
3 MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações : comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
4 ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1972.
5 ELLMERICH, Luis. História da Música. São Paulo: Boa Leitura Editora, s/d.
6 SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 2001.
7 CANCLINI, Nestor G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998.
8 MATOS, Cláudia Neiva. Acertei no Milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
9 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1984.
10 ZAREMBA, Lilian. Idéia de rádio entre olhos e ouvidos. In : Revista Famecos (Prog. De Pós-Graduação em Comuincação da PUC/RS). n.10.
11 SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______(Org).História da vida privada no Brasil: República- da
Belle Epòqueà Era do Rádio. v 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
12 TOTA, Antônio Pedro. Samba da Legitimidade. São Paulo, 1980. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH-USP.
13 WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. O nacional e o popular na cultura brasileira – Música. São Paulo: Brasiliense, s/d.
14 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano : 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
15 SILVA, Edison Delmiro. Origem e desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV
Congresso da INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001.
16 MOREIRA, Sônia Virgínia. O rádio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1991.
17 AVANCINI, Maria Marta. Nas tramas da fama : as estrelas do rádio em sua época áurea (Brasil, anos 40 e 50). Campinas, 1996.
Dissertação (Mestrado em História). IFCH- UNICAMP.
18OSTRIWANO, Gisela. Rádio: interatividade entre rosas e espinhos. Texto disponível na Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação,
2000.
2
15
Download