O MERCADO DE MÚSICA DIGITAL - Stoa

Propaganda
BRENO KRUSE DE MORAIS
O MERCADO DE
MÚSICA DIGITAL
Trabalho de Conclusão de Curso
ECA - USP
Orientador: Victor Aquino Gomes Corrêa
1
BRENO KRUSE DE MORAIS
O MERCADO DA MÚSICA DIGITAL
Trabalho de Conclusão de Curso
Comunicação social - Habilitação em
Publicidade e Propaganda
Departamento de Relações Públicas,
Publicidade e Propaganda e Turismo
Escola de Comunicações de Artes
Universidade de São Paulo
Orientador: Victor Aquino Gomes Corrêa
São Paulo
2009
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SUMÁRIO
RESUMO ....................................................................................................................... 4
GLOSSÁRIO ................................................................................................................. 5
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 6
1 - O FONOGRAMA: A PRIMEIRA REVOLUÇÃO MUSICAL ................................... 11
2 - O ANTES: O SISTEMA DAS GRAVADORAS ....................................................... 16
3 - O DEPOIS: A ECONOMIA DA MÚSICA NO MUNDO DIGITAL .......................... 24
3.1 - AS NOVAS TECNOLOGIAS ................................................................................ 25
3.1.1 - MP3 e peer-to-peer ......................................................................................... 25
3.1.2 - "Rip, Mix, Burn" e o iPod ................................................................................. 27
3.2 - AS NOVAS RELAÇÕES ENTRE MÚSICA E USUÁRIO ....................................... 29
3.3 - A REAÇÃO DA INDÚSTRIA ................................................................................. 35
3.4 - O NOVO MERCADO ........................................................................................... 41
3.5 - CAMINHOS ALTERNATIVOS: BANDA CALYPSO E CANSEI DE SER SEXY ..... 48
3.5.1 - Cansei de Ser Sexy .......................................................................................... 48
3.5.2 - Banda Calypso ................................................................................................ 51
4 - O FUTURO: NOVAS VISÕES E MODELOS ......................................................... 56
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS: MÚSICA E A ECONOMIA DO GRÁTIS .................. 63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 72
ANEXOS ...................................................................................................................... 73
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RESUMO
O trabalho que se segue propõe uma breve análise de como se constituiu a
indústria do disco no século XX, e como a chegada das tecnologias digitais
reestruturou não só a comercialização, mas todo o ritual de consumo
existente. Nesse contexto, discute-se alguns dos possíveis apontamentos e
alternativas apresentados pelas novas tecnologias para o novo mercado de
música.
4
GLOSSÁRIO
ABPD - Associação Brasileira de Produtores de Disco
IFPI - Federação Internacional da Indústira Fonográfica (International
Federation of the Phonographic Industry)
RIAA - Associação Americana da Indútria de Gravação (Recording Industry
Association of America)
Peer-to-peer - rede de servidores conectados que permite o acesso,
gerenciamento e troca de conteúdo em um ambiente distribuído e em tempo
real, através de um sistema de busca avançada.
Streaming - Tecnologia para transferência de dados através da qual um
arquivo (geralmente de música ou vídeo) pode ser executado direto de um
servidor virtual, sem ocupar espaço no computador do usuário.
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INTRODUÇÃO
É absolutamente inegável que grandes transformações ocorreram com
a introdução da web e das tecnologias digitais nas sociedades e no mercado
nas últimas décadas. Poderíamos apontar dezenas de exemplos de nosso diaa-dia, em casa ou no trabalho, do quanto nossa rotina se transformou. No
entanto, poucos setores sofreram essa mudança de forma tão profunda e
emblemática quanto a indústria fonográfica.
O chamado “mercado de disco” se resignificou completamente, ao
longo dos pouco mais de dez anos subseqüentes a mudanças como a
chegada da internet aos computadores pessoais e a reprodução doméstica de
Cds, que no princípio confundiam-se com modismos restritos a uma pequena
parcela do público, mas que mostraram-se poderosos transformadores da
sociedade e do consumo de cultura.
O objetivo desse trabalho é comparar, dentro das esferas de marketing
e comportamento de consumo,
o mercado musical antes e depois da
revolução digital. Para tanto, apresentaremos uma análise do cenário da
música e das gravadoras, antes, durante e depois da mudança.
Como a evolução da técnica de gravação e comercialização dos
fonogramas resultantes evoluiu num mercado que ao longo do século XX se
tornou
uma
indústria
milionária
que,
em
seu
auge,
criou
mitos,
comportamentos e movimentos culturais, e se tornou um dos mais lucrativos
segmentos da indústria de entretenimento, chegando a um cenário no qual
mais de 80% do comércio de música no mundo chegou a ser dividido entre
apenas quatro empresas multinacionais, que através de sistemas de marketing
e fórmulas de divulgação estabelecidas, definiram os rumos da música pop.
A chegada do digital a princípio não negava os paradigmas
estabelecidos
tecnologias
pela
eram
indústria.
apenas
As
primeiras
formas
manifestações
“marginais”
de
das
novas
reprodução
e
compartilhamento do conteúdo construído pelas grandes gravadoras dentro
6
do esquema citado no parágrafo anterior. No entanto, a evolução da relação
entre música e web mostrou-se muito mais – uma profunda transformação na
relação entre música e público. O formato MP3 e as redes peer-to-peer
trouxeram possibilidades inéditas no modo como se descobre e se divulga
música.
A união desses três fatores – A internet cada vez mais popular, o
formato MP3 e as redes peer-to-peer - rapidamente surtiu efeitos no mercado
fonográfico, atingindo especialmente a fatia mais ativa de seus consumidores:
Os jovens. A liberdade trazida pelos novos meios era extremamente atraente,
as possibilidades infinitas de trocas de referências,
a facilidade para se
encontrar e distribuir música independente, e a liberdade quanto a uma das
convenções mais significativas da história da música gravada até então: O
formato "álbum".
As mudanças em pouco tempo foram ganhando um grande numero de
adeptos, e a indústria, sentindo-se ameaçada, passou a tratar como criminosa
todo tipo de manifestação que envolvesse qualquer das tecnologias digitais
"ilegítimas", considerando o compartilhamento digital tão ilegal quanto a
venda de Cds falsificados. O problema que surge daí, é o fato de que a música
em formato digital e a música no suporte físico não são o mesmo produto. A
luta inicial, portanto, não foi contra a utilização ilegal do produto existente, mas
contra o nascimento de uma nova forma de distribuição e de ritual de
consumo. A indústria "legal" da música demorou tanto tempo para incorporar
o MP3 e a distribuição digital, que quando o fez, as atividades marginais
estavam tão evoluídas que se tornara impossível destruí-las.
Mas se a mudança brusca, de um lado, enfraquece um sistema, cria
novos. Ao mesmo tempo em que os grandes êxitos fonográficos, nos moldes
como foram construídos ao longo do século passado, perderam muito de sua
força (e tornam-se cada vez mais difíceis de serem repetidos), outros
caminhos surgiram, permitindo que artistas cresçam em meios alternativos, de
forma como não cresceriam no cenário predominante até a década de 90.
7
Construiremos algumas breves análises das realidades a serem
comparadas, analisando meios de consumo, distribuição e promoção, nos
dois contextos em que se foca o trabalho. O primeiro momento, discutindo o
mundo dominado pelas majors - as grandes gravadoras - funciona quase
como um relato histórico das estratégias que funcionaram no passado. As
discussões seguintes têm a intenção de apontar alguns novos caminhos
abertos pela revolução digital.
A análise referente ao passado, naturalmente é mais simples. Não
somente pelo fato de que o passado já tem seus êxitos bem definidos, ou por
ser mais fácil construir um olhar crítico sobre um fenômeno estático, mas
neste caso, por uma questão estrutural que se reconstruiu dentro do mercado
da música: O conceito de “sucesso”.
Segundo as fórmulas tradicionais da indústria fonográfica, a definição
do sucesso é absolutamente objetiva: Grande vendagem de discos. As
gravadoras foram construídas sobre esse objetivo fundamental.
No Brasil dos anos 80, as corporações responsáveis pelo mercado de
disco haviam criado fortes sistemas de promoção e venda de seus
lançamentos, e atingiam grandes vendagens em um cenário que proliferava
financeiramente e parecia crescer indefinidamente, tanto do ponto de vista dos
artistas quanto dos empresários. Essa indústria contrastava grande sucesso
com manobras políticas e econômicas, quando o resultado nas lojas dependia
da criação de esquemas favoráveis de distribuição, através de boas relações
com grandes e pequenos varejistas, e a popularidade estava atrelada ao
pagamento do "jabá" radiofônico e televisivo.
O contexto atual, no entanto, se mostra muito mais complexo e múltiplo
no que diz respeito às praticas do mercado musical. A própria delimitação do
que era esse mercado perdeu sentido - se antes o foco era a venda física (LP
e, posteriormente, CD), hoje as atividades que podem ser entendidas como
integrantes desse segmento são inúmeras. Desde o entendimento de que o
show, sempre visto pelas gravadoras como uma ferramenta de divulgação,
pode ser em si uma fonte de renda, até o surgimento de possibilidades
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inéditas, como a exploração de conteúdo (musical ou não) gerado pelos
artistas em plataformas variadas dentro de um ambiente digital. E dentre essas
inúmeras novas concepções, a boa e velha venda de disco, ou mesmo a
venda da música para o consumidor final, ocupa um espaço muito menor no
montante geral da indústria da música.
Em face desse quadro, como podemos então, definir o sucesso na
música contemporânea? Não existe mais uma maneira objetiva ou absoluta de
fazê-lo. Um conjunto ou artista de sucesso é aquele que cresce e desenvolve
uma carreira estável, conquistando uma base de consumidores que permitam
à “máquina” que faz a banda existir e produzir, se sustentar e crescer. E isso
depende de uma longa série de variáveis, discutidas posteriormente neste
trabalho, que possibilitarão a existência de diversos tipos de sucesso, dos
quais selecionei dois exemplos bem distintos para a análise da indústria
contemporânea da música. São eles: Banda Calypso e Cansei de Ser Sexy.
O primeiro desses, nascido dentro de um contexto extremamente
específico, dos shows populares, da guitarrada (estilo musical do norte do
país) e do brega paraense, utilizou desde o início formas alternativas de
comercialização do seu produto, tirando proveito da pirataria (apontada como
o coração da ruína da indústria pelas grandes gravadoras) e da grande
quantidade de shows realizados pelo grupo, para alcançar vendagens
impressionantes e construir um fenômeno que se espalhou por todo o Brasil.
O segundo exemplo, também oriundo de uma cena isolada - das casas
underground e da música independente da cidade de São Paulo; tomou para
si a imagem da revolução digital e independente, e produziu, a partir de shows
registrados em vídeo e foto, e divulgados em sites de relacionamento, além de
distribuição de material musical gerado pela banda, um conteúdo online com
um caráter de buzz que fez a banda ser conhecida por sua ousadia não só
aqui no Brasil como em todo o mundo, e transformou o Cansei de Ser Sexy no
maior nome da música contemporânea brasileira, com direito a contrato de
licenciamento com uma das principais gravadoras independentes do mundo
(Sub Pop Records) e participação nos maiores festivais de rock e música pop
dos Estados Unidos e da Europa.
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Ambos são casos atuais de inegável sucesso, que tem em comum o
fato de terem utilizado meios não tradicionais de music business, e por isso,
de não poderem ter existido da mesma forma dez anos atrás. As novas
práticas e caminhos, como nos dois exemplos acima citados, aconteceram
num contexto onde ainda existem os esquemas tradicionais, onde o sucesso
da Banda Calypso e do Cansei de Ser Sexy convivem lado a lado com
sucessos criados nos moldes de grandes vendedores como Roberto Carlos,
dentro do mercado da música considerado “legítimo” pelas grandes
gravadoras. No entanto, as estruturas tradicionais estão se enfraquecendo, e
os moldes sobre os quais elas foram construídas geram cada vez menos
resultado. As novas práticas não devem extinguir completamente as antigas,
nem as grandes gravadoras devem desaparecer, mas é certo que a receita do
sucesso mudou.
A conclusão traz algumas considerações desenvolvidas a partir do olhar
crítico sobre os acontecimentos descritos ao longo do trabalho. Quais são
algumas das possibilidades que podem surgir no futuro do mercado da
música, e para que tipo de evolucões a indústria pode caminhar, tendo em
vista as mudanças que vêem ocorrendo.
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1. O FONOGRAMA
A Primeira revolução musical
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Desde o surgimento das primeiras formas de expressão musical, ainda
em sociedades tribais, até o fim do século XIX, todo tipo de música era
marcado por um ponto em comum: A efemeridade da performance. "Ouvir
música" fazia parte de um ritual social, e só era possível através do encontro
entre músico e público. Um indivíduo que não tivesse domínio de nenhum
instrumento (ou seja, incapaz de produzir sua própria música) jamais poderia
ouvir música sozinho. Qualquer evento musical existia somente durante sua
execução, e o indivíduo que quisesse desfrutá-lo novamente precisaria
aguardar uma nova performance (que, por mais próxima que fosse, não seria
igual à primeira).
No entanto, num cenário pré-fonograma, já existia um mercado
musical,posteriormente, pelo comércio de partituras. Ainda assim, a audição
estava necessariamente presa à performance e, por conseqüência, música era
essencialmente um evento social.
Com a invenção da tecnologia de gravação e reprodução de áudio, no
final do século XIX, o que surgiu foi mais do que a simples possibilidade de se
ouvir repetidas vezes a mesma obra musical. O papel da música na sociedade
se alterou, e posteriormente, com o desenvolvimento do mercado, diversos
setores da indústria se desenvolveram a partir disso, e transformaram não só o
modo como se ouve música, mas que tipo de música se ouve e de onde ela
vem. O nascimento da indústria fonográfica criou novas categorias de ouvintes
e de músicos, criou novos eventos sociais e culturais, e trouxe uma infinidade
de novos significados para a música, sem no entanto, eliminar os rituais
antigos. Os concertos e exibições públicas continuaram existindo, as
partituras continuaram sendo produzidas e vendidas. A revolução não excluiu
os rituais existentes, mesmo que tenha alterado seus significados. No entanto,
os meios pelos quais se consumia música antes da tecnologia de gravação
deixaram de ser os meios principais. Em compensação, o volume de música
consumido por cada indivíduo passou a ser maior.
Como costuma ocorrer no surgimento de uma tecnologia muito
inovadora, no início da tecnologia de gravação, grande parte dos envolvidos
no que então era conhecido como "mercado de música" se mostraram
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avessos ao novo sistema. Os músicos em especial, temiam que a
comercialização da música através de disco os faria perder oportunidades de
trabalho, já que as pessoas, tendo acesso à musica em suas casas, não
precisariam se movimentar para ir aos concertos e apresentações. Algumas
histórias interessantes sobre as primeiras gravações de Jazz relatam que
vários dos intérpretes mais reconhecidos da época se negaram a serem
registrados, com medo de que isso colocasse em cheque a unicidade de sua
música, que se tornaria mais fácil de imitar. A primeira gravação de Jazz da
história foi feita com o grupo Original Dixieland Jass Band, formado por
músicos brancos, sabidamente inferiores aos grandes intérpretes de New
Orleans, pois os últimos renegavam a produção dos fonogramas.
Ao cabo de alguns anos porém, a nova indústria foi aceita pelos
músicos, que perceberam no disco, além de uma fonte de renda, uma
possibilidade de aumentar a popularidade de seus shows. Esse fato trouxe
uma novidade que ia além do ritual propriamente dito de se ouvir música. A
partir do momento em que cada performance se torna um produto, a figura do
intérprete ganha um peso inédito até então. A indústria fonográfica passa a se
sustentar sobre personalidades, artistas como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald
e Frank Sinatra tornaram-se fundamentais para o desenvolvimento do
mercado musical como ele viria a se tornar.
Poucos anos depois da legitimação dos formatos criados pela indústria
nascente
das
gravadora,
um
novo
meio
surgiu
como
ferramenta
profundamente transformadora da realidade que se instalava: O rádio. Tal qual
a reação dos artistas ao fonograma, a reação das gravadoras ao rádio foi
inicialmente negativa. Os produtores imaginavam que a possibilidade de se
ouvir músicas através de um novo aparelho, sem pagar individualmente pelos
discos, acabaria com as companhias que dependiam da venda. Mais uma vez
a suposição mostrou-se infundada, e o que ocorreu foi justamente o oposto.
O rádio mostrou-se uma poderosa ferramenta de promoção, e mostrou
que o consumidor não se satisfazia com uma programação feita por terceiros,
sentia a necessidade de, mais do que ouvir a música, possuí-la. Num
crescente mercado fonográfico, a compra do disco era a única maneira de se
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ter a possibilidade de ouvir qualquer coisa que se quisesse, em qualquer
momento desejado. Ainda assim, o rádio tornou-se uma peça fundamental no
dia-a-dia da sociedade, e uma das principais formas de consumo de
entretenimento e de informação. Especialmente para a indústria de música,
inaugurava possibilidades poderosas.
Até então, a única forma de se conhecer novos artistas eram os shows.
Portanto, o único caminho que as gravadoras tinham de promover
eficientemente suas apostas eram as excursões (turnês) dos músicos. Mesmo
que outros tipos de divulgação fossem usados, como cartazes, ou divulgação
em mídia impressa, a única maneira realmente eficiente de persuadir o
consumidor a adquirir um disco era (e desde então continua sendo) fazendo
com que a música pudesse ser ouvida.
Essa relação apresentava dificuldades nas duas pontas do consumo:
Os produtores não conseguiam fazer com que a música chegasse a todos os
lugares em que poderiam ser vendidos discos, e os consumidores muitas
vezes não podiam comprar a música que ouviam, visto que muitos artistas que
se apresentavam em shows e concertos não tinham registro em disco. O rádio
transformou profundamente essa relação. Com a possibilidade de se ouvir
novos artistas em casa, em diferentes situações, criou-se um cenário em que
o rádio passou a ser a principal forma de o ouvinte descobrir novos números
musicais. Vislumbrando, através disso, conquistar novos consumidores e
expandir o mercado, as gravadoras passaram a promover suas atrações
através da programação musical das estações de rádio.
A mudança trazida pelo rádio para a vivência musical da sociedade, no
entanto, representou mais que simplesmente um novo canal de descoberta de
artistas. O consumo tornou-se muito maior. O que antes se restringia a
concertos e apresentações, que exigiam o deslocamento do indivíduo até o
local onde aconteciam, ou, posteriormente, a audição proporcionada pelos
poucos produtos oferecidos por uma indústria incipiente e socialmente
restrita, se transformava em uma atividade diária.
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Essa mudança de foco trouxe o que poderia ser entendido como uma
forma de "banalização" da música, que deixava de ser um ritual atrelado a
uma determinada situação, num instante específico e num espaço ideal. Mas o
fato é que nunca se havia consumido tanta música no mundo. O mercado
fonográfico se aproveitou dessa condição para expandir a oferta de produtos,
que com o novo meio poderiam ser promovidos e vendidos de forma quase
livre de barreiras geográficas.
Essa relação criada entre ouvinte, veículo e gravadora, que se traduzia
comercialmente na relação consumidor, loja de disco e gravadora, ditaria todo
o desenvolvimento posterior da indústria fonográfica. Os canais agregados
posteriormente (cinema e televisão, principalmente) traziam apenas novos
elementos à mesma lógica. O objetivo passou a ser a criação, através dessa
força de promoção, de personalidades que fossem capazes de conquistar
grandes massas de fãs, e nas quais se apoiariam as grandes vendagens de
disco.
Discutiremos a seguir, as formas através das quais a indústria construía
e transformava em fonte de grandes lucros os grandes personagens da
música. O sucesso alcançado pelos grandes ícones era, sem dúvida, resultado
de uma convergência de fatores culturais e musicais - a identificação do artista
com o contexto sócio-cultural, a habilidade
de sintetizar artisticamente o
pensamento comum, a qualidade musical, o talento e o carisma, todos esses,
pontos comuns às figuras realmente relevantes da música do século XX .
Ainda assim, tudo isso estava intimamente relacionado aos fortes métodos de
divulgação utilizados pela indústria, e pelo contexto midiático criado pelo rádio
e televisão. Os caminhos utilizados pela indústria que se desenvolveu
incrivelmente desde seu surgimento até atingir seu auge absoluto entre 1990 e
2000, para perder quase que completamente o sentido no curtíssimo intervalo
de tempo em que as tecnologias digitais revolucionaram o consumo midiático.
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2. O ANTES
O Sistema das gravadoras
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O sistema que tornou-se absoluto na segunda metade do século XX na
indústria fonográfica mundial, era aquele construído e administrado pelas
gravadoras, essas empresas que, detentoras exclusivas dos meios de
produção dos fonogramas e dos discos por eles compostos, definiam o que
existiria ou não no mercado da música, e teriam poder absoluto sobre a maior
parte da informação musical que chegava aos consumidores. A vivência do
mercado de disco ao longo dos anos levou essas corporações a desenvolver
alguns sistemas de produção, distribuição e promoção que ditariam todo o
comportamento do consumo de música.
O selo, ou a gravadora, numa realidade como a que descreveremos
nesse capítulo, era o único caminho possível para que um artista pudesse
existir em qualquer situação que fosse além da performance ao vivo. E os
caminhos possíveis para o músico que quisesse alcançar o público dessa
forma eram bem definidos dentro desse sistema. Existia um profissional
responsável pela contratação de novos artistas, cujo cargo era conhecido
como A&R (a sigla é de origem inglesa, e significa "Artist and Repertoire").
Essa figura seria responsável por freqüentar os bares e casas de show, afim
de encontrar novos talentos, e analisar quaisquer materiais artísticos que
fossem enviados à gravadora por aspirantes. O A&R era, para o artista, a porta
de entrada da gravadora.
Dentre as bandas e artistas selecionados pelos recrutadores, apenas
alguns chegariam a fazer gravações, que muitas vezes não chegavam a
compor um disco completo. Esse processo dependia de duas figuras-chave:
O diretor artístico da gravadora, e o produtor musical. O diretor artístico era
responsável por separar, entre as apostas trazidas pelo A&R, aqueles em que
valia a pena apostar. A escolha desse artista era seguida pela escolha de um
produtor musical responsável. Esse profissional deveria organizar e auxiliar,
artística e tecnicamente, a gravação, definindo coisas como repertório,
músicas de trabalho e sonoridade do álbum.
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Ao fim da gravação, terminava a parcela artística do trabalho, para se
iniciar o processo mercadológico. Via de regra, o trabalho se fazia em torno de
um lançamento. O disco ou o compacto em questão deveria ser fabricado,
distribuído e promovido. Cada lançamento tinha a intenção de sustentar-se, ou
seja, o resultado de venda da unidade precisaria justificar sua produção e
promoção, e gerar lucro para a companhia. O resultado dessa equação era
fator determinante para a manutenção do trabalho do músico ou banda em
questão.
No caso de novos artistas, muitas vezes, se fazia o lançamento do
compacto, a versão nacional do single americano, que continha normalmente
duas músicas, uma em cada lado do pequeno disco de vinil. O sucesso desse
primeiro formato determinaria se seria ou não gravado o disco completo.
A distribuição era um ponto fundamental no sucesso de um
lançamento, especialmente no período entre os anos 60 e os anos 90. Nesse
período, diferente do cenário que se constituiria a partir dos anos 90, o único
canal através do qual se comprava música eram as lojas de disco. Nesse
cenário, a boa relação entre as distribuidoras e as redes de lojas, tanto os
grandes como pequenos comerciantes, era fundamental para o sucesso de
um determinado produto. A figura do vendedor era bastante influenciável, e a
disposição dos discos era um diferencial importante. Apesar de existirem
cadeias poderosas, responsáveis por grandes volumes de venda, a presença
dos pequenos varejistas era marcante, existiam muitos pequenos pontos de
venda que atendiam a demandas locais, mas que, juntos, respondiam por uma
parcela relevante do mercado.
No entanto, o coração da estratégia de lançamento e de vendas da
indústria fonográfica era o rádio. As estações de rádio eram fonte quase
exclusiva de descoberta de novos artistas ao redor do país, e mesmo nas
grandes capitais, eram extremamente fortes, e os programadores das rádios,
os disc-jóqueis, posteriormente conhecidos pela abreviação "dj", eram fortes
influenciadores da cultura musical. O sucesso deveria, necessariamente,
passar por eles.
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Em função dessa posição privilegiada de contato com o público, as
gravadoras sempre buscaram boas relações com esses profissionais. Tão
antiga quanto o mercado fonográfico é a figura do divulgador. O divulgador
era, de uma certa forma, o "representante de vendas" da gravadora, diante
dos programadores de rádio. Expunham o catálogo e apresentavam as
novidades. Desde o início, sempre houveram incentivos, ou formas de pressão
por parte das gravadoras. No entanto, a relação não era direta entre as
compensações oferecidas pela gravadora e o repertório selecionado pelo dj.
Essa realidade se alteraria quando, no início da década de 70, se criaria um
movimento em que os programadores de rádio passariam a cobrar das
gravadoras para tocar seus discos.
Essa prática ficaria popularmente
conhecida como jabá, ou jabaculê.
O jabá é considerado uma prática imoral, uma forma de corrupção, e
sua existência sempre foi negada tanto pelas rádios quanto pelas gravadoras.
Diversos profissionais do mercado, no entanto, entre músicos e executivos de
gravadora, já vieram a denunciar o sistema publicamente. Em 2003, o
executivo André Midani, que acabara de se aposentar de uma notável carreira
na indústria fonográfica, explicou, em breve entrevista à Folha de S. Paulo,
como funcionava o jabá na mídia brasileira, e como se desenvolveu desde seu
início.
André Midani, sírio radicado brasileiro, envolveu-se com o mercado
nacional de música já em sua chegada ao Brasil em 1955. Ao longo de sua
carreira tornou-se uma das figuras mais relevantes da indústria fonográfica
nacional, tendo sido responsável pelo lançamento de dezenas de artistas de
alguns dos movimentos mais importantes da cultura brasileira, figuras como
Tom Jobim, Chico Buarque, Nara Leão, Raul Seixas, Ultraje a Rigor, Paralamas
do Sucesso, entre outros, tendo sido diretor das gravadora Philips e Polygram
e, posteriormente, fundado a filial nacional da Warner Music. Aposentou-se do
cargo de vice-presidente da matriz Nova-iorquina da Warner Music Group.
Após decretar o fim de sua carreira fonográfica, aos 71 anos, Midani
denunciou publicamente diversas práticas controversas da indústria. Ele conta
que, entre 1971 e 1972, quando comandava a holandesa Philips, diversos
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disc-jóqueis importantes de São Paulo e do Rio de Janeiro se uniram, em um
movimento em que sugeriam que as gravadoras "reconhecessem seus
méritos". A partir desse momento, as empresas teriam que pagar às rádios
para que seus artistas tivessem músicas executadas. Esse sistema era
desorganizado
e
pouco
profissional,
não
haviam
acordos
precisos
relacionando o quanto se pagava ao quanto se tocava. O pagamento era feito
em espécie, pelos divulgadores aos programadores, o que provocava uma
perda de controle por parte dos executivos de gravadoras e dos dirigentes das
rádios. Com o crescimento da prática e dos volumes de capital envolvidos, a
relação passou a ser feita, em diversos casos, entre a gravadora e a direção
da rádio, constituindo uma institucionalização do jabá, encarado como verba
publicitária em cada lançamento.
A lucratividade que o sistema gerava para as rádios fez com que outros
segmentos de entretenimento aderissem à prática. O próprio André Midani
conta que o programa do Chacrinha, conhecido por apadrinhar novos artistas,
alguns anos depois passou a cobrar para incluir artistas em sua programação.
A cultura se espalhou, e não muito tempo depois, grande parte dos programas
de rádio e televisão passavam a cobrar de formas semelhantes.
O sistema de promoção dos lançamentos englobava outras formas de
mídia, jornais, televisão, mídia exterior; os grandes lançamentos podiam contar
com grandes campanhas televisivas, como era o caso de artistas como
Roberto Carlos, que tinha cada um de seus lançamentos vastamente
alardeados em todas as mídias.
Outro ponto importante da divulgação de lançamentos eram os shows,
e no caso as turnês que levavam o nome de cada disco. No Brasil, em geral,
essa parte não era necessariamente relacionada à gravadora. Existiam
"agentes de show", pessoas responsáveis exclusivamente por esse lado, que
para muitos artistas era a principal fonte de renda. Em alguns casos, a
gravadora contribuía com a promoção e execução de alguns shows
diretamente relacionados ao lançamento do disco, mas no geral a circulação
de shows acontecia de forma independente dessas empresas.
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Internacionalmente, a turnê era encarada de uma forma um pouco
diferente. Tanto para a gravadora quanto para grande parte dos artistas,
shows eram uma ferramenta exclusivamente promocional. Não consistia em
fonte de renda, e em geral dependia de incentivos financeiros da gravadora,
que fornecia o chamado tour support - quantia em dinheiro que tinha como
finalidade cobrir os custos extras da turnê.
David Byrne, músico escocês naturalizado americano, líder da banda
Talking Heads, conta em artigo de 2006 sobre a indústria fonográfica, que as
bandas entravam em dívida com as gravadoras (através de avanço de royalties
a serem compensados com vendas de disco), para poderem promover seus
discos em turnês. Os shows em si não eram vistos como atividade
isoladamente rentável, eram apenas mais um meio de divulgação. Esse foco
só mudou muito recentemente, quando as vendas de disco passaram a ser
menos representativas, e grandes agências de show começaram a se
destacar. Mas no geral, em se tratando de artistas de alcance internacional, a
circulação de show em diferentes países era um importante canal de
promoção e de conquista de novos mercados.
De volta ao Brasil, a promoção feita pelas gravadoras acontecia em
várias frentes, mas o rádio era o veículo principal. A instituição do jabá tornou
essa prática o elemento mais importante da estratégia de publicidade de um
lançamento. Novamente segundo André Midani, o orçamento de divulgação
de um disco, nos anos 80, era de cerca de 10% das vendas. Desse total,
cerca de 70% eram destinados ao jabaculê, em rádio e televisão.
Hoje o jabá em rádio ainda é amplamente praticado. Alguns
divulgadores em atividade no mercado afirmam que cerca de 80% das rádios
FM das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro trabalham com alguma forma
de jabá. Em televisão a cultura é menos difundida atualmente, e os programas
de maior audiência se afastaram da prática. Ainda assim, o jabá continua
sendo um ponto fundamental na divulgação de música.
A divulgação bem feita não era, no entanto, capaz de, sozinha, construir
um grande fenômeno, ou mesmo um sucesso expressivo de vendas. Os
21
grandes ídolos eram resultado de uma série de fatores: Carisma, identificação
popular, contexto cultural e social, além de, naturalmente, qualidade musical.
Todos os movimentos realmente representativos da música uniram
essas qualidades. No Brasil podemos citar a Bossa Nova, expressão da
geração que vivia o pós-guerra, e a política de aproximação dos EUA com os
países sul-americanos, que promoveu a entrada de diversos números
brasileiros no mercado internacional, aliado a esse movimento ocorria o
crescimento da classe média, consumidora do movimento, e por fim, sua
concretização através da produção de artistas de alto nível de qualidade
musical, como Tom Jobim e Baden Powell, e poética, como Vinícius de
Moraes.
A mesma lógica se aplica à tropicália, expressão nacional da
contracultura, que assumia postura crítica diante de um governo ditatorial,
alinhando-se perfeitamente com as necessidades de consumo cultural de uma
juventude politizada que creditava grande valor à manifestações artísticas, e
reconhecia as mesmas características e posturas em seus ídolos musicais.
Esses dois cenários, no entanto, eram possíveis graças à produção das
gravadoras, que reconheciam os artistas potencialmente interessantes para o
mercado e investiam nos mesmos, inclusive através do pagamento do jabá.
Até meados dos anos 80, esse processo tinha como forças igualmente
competentes a direção artística e empresarial das companhias.
O retorno
financeiro era significativo, porém, a liberdade em relação aos investidores era
grande, o que permitia aos executivos apostarem em projetos muitas vezes
mais interessantes no sentido artístico que no financeiro, sem causar, a médio
ou longo prazo, prejuízos para a companhia, que ganhava em imagem e
reconhecimento de público e crítica. As matrizes internacionais eram pouco
exigentes, possibilitando manobras mais ousadas por parte dos executivos.
"As companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de
cada conglomerado." Diria André Midani, décadas depois.
A partir da segunda metade da década de 80, as gravadoras foram
tornando-se parte de conglomerados cada vez mais poderosos, dirigidos de
22
forma rígida pelas matrizes, que passavam a vislumbrar a potencialização dos
lucros e o crescimento cada vez maior do mercado de música. A partir de
então, com o surgimento de fenômenos gigantes da música pop, o objetivo da
indústria passou a ser a conquista de resultados cada vez maiores e
imediatos. Essa mentalidade resultou numa reestruturação do sistema de
promoção, a partir da qual, cada lançamento deveria ter o objetivo de bater
recordes de vendagem, e para isso, precisava de grandes investimentos em
divulgação, que traduziam-se em grandes somas destinadas ao jabá. Esse
comportamento gerou uma série de sucessos radiofônicos auto-sustentados,
que alcançavam marcas de milhões de cópias, mas pressupunham
investimentos proporcionalmente altos, e resultados imediatos. Essa prática
levou as gravadoras a uma economia de excessos que, no futuro, mostrar-seia extremamente frágil, se desestabilizando quase completamente, diante das
baixas de vendas provocadas pela chegada da internet.
23
3. O DEPOIS
A economia da música digital
24
3.1 - AS NOVAS TECNOLOGIAS
3.1.1 - MP3 e peer-to-peer
O nascimento da internet não teve um impacto imediato sobre o
mercado de música - seu efeito seria sentido de forma relevante apenas cerca
de 5 anos depois de sua apresentação para o grande público. Mas os
primeiros fatores que desencadeariam a crise do disco surgiram junto com a
web. O primeiro dos elementos decisivos para essa mudança é o formato de
compactação conhecido como MP3, criado em 1991 pelo grupo Moving
Picture Experts Group (MPEG).
O Moving Picture Experts Group foi formado pela Organização
Internacional para Padronização (ISO) para desenvolver padrões para
compressão e transmissão de áudio e vídeo. O primeiro dos formatos criados,
batizado de MPEG-1, foi desenvolvido para permitir que filmes e vídeos
pudessem ser codificados no bitrate (velocidade de processamento de
informação) de um Compact Disc. Em função disso, essa codificação
simplificava os arquivos de forma que, apesar de uma perda sensível de
qualidade, eles pudessem ser leves o suficiente para serem transmitidos via
CD. Um dos desdobramentos desse formato de compactação, o MPEG-1
Audio Layer 3 tornaria-se o mais popular formato de compactação de música
da próxima década.
A conveniência trazida pela compactação do MP3, no entanto, se
mostraria muito mais eficaz fora do suporte do CD. O poder de compactação
do formato permitia ao usuário obter arquivos até vinte vezes menores que os
arquivos de áudio encontrados no Cds originais, onde o arquivo vinha sem
compressão. Essa característica permitiu que, mesmo em uma realidade onde
as conexões de internet eram extremamente lentas,
esses arquivos
começassem a aparecer disponíveis na web. No início, existiam sites que
ofereciam o download, alguns disponibilizando uma ou outra música, e outros
com imensas listas de músicas. O volume de arquivos circulando ainda era
pequeno em comparação ao que existiria pouco tempo depois - o download
25
era
extremamente
lento,
e
a
capacidade
de
armazenamento
dos
computadores era baixa, mas os fãs de música já usavam a internet como
fonte de pesquisa, e começavam a montar suas bibliotecas de MP3.
Nesse contexto primitivo no entanto, as fontes de música no novo
formato ainda eram bastante limitadas. Não existiam catálogos "oficiais" de
MP3, o formato não era reconhecido pelas gravadoras, portanto, os usuários
precisavam produzir e disponibilizar os próprios arquivos e, para tanto,
precisavam de algum conhecimento específico em tecnologia, além de tempo
e disposição, o que fazia com que apenas uma pequena parcela de usuários
se dedicasse a disponibilizar músicas. Esse quadro se reverteria quando, em
junho de 1999, o estudante americano Shawn Fanning lançaria o Napster.
A proposta era simples: Um software que simplificasse a busca e
possibilitasse o compartilhamento de arquivos MP3. Para alcançar esse
objetivo, o Napster criava uma rede entre todos os usuários conectados no
serviço, e reconhecia como fonte as bibliotecas de arquivos de todos eles.
Dessa forma, quando o usuário buscava uma música, o sistema localizava
todas as máquinas conectadas que possuíssem o arquivo da música buscada,
e realizava a transferência diretamente do computador (ou dos computadores)
fonte para o computador que solicitava o arquivo. Esse sistema ficou
conhecido como peer-to-peer (traduzido como "par-a-par" ou "ponto-aponto"), onde todas as máquinas da rede fazem papel tanto de servidor
quanto de cliente.
Duas características principais desse sistema foram determinantes para
a sua rápida popularização, que também traria a popularização do MP3 e do
consumo digital (ilegal) de música. Primeiro, a agilidade de pesquisa,
proporcionada pela centralização dos catálogos num único canal coletivo; e
depois, e principalmente, a possibilidade de converter todo usuário e
consumidor de música em uma fonte, o quê potencializava de forma
impressionante a possibilidade de se encontrar cada vez mais títulos
diferentes, gerando um catálogo praticamente infinito, centralizado em um
único canal.
26
O surgimento dessas possibilidades de acesso até então inéditas, e a
gigantesca adesão ao sistema fez com que a indústria fonográfica destinasse
grande atenção ao assunto, devido à enorme quantidade de conteúdo ilegal
que passava a circular. Em julho de 2001, o Napster foi legalmente forçado a
encerrar suas atividades, ao fim de um processo de dois anos de duração
contra a Recording Industry Association of America (RIAA). A essa altura,
porém, o sistema peer-to-peer já havia se popularizado, e outros softwares
fortes como o Kazaa e o LimeWire continuaram espalhando a cultura instalada
pelo Napster.
3.1.2 - Rip, Mix, Burn e o iPod
Paralelamente a esse processo, uma outra inovação tecnológica
também criava ferramentas que contribuiriam com a desestruturação do
mercado fonográfico. A popularização da tecnologia de gravação de Cds em
computadores pessoais, e a filosofia "Rip, Mix, Burn" (sintetizando o processo
de extrair músicas de cds, misturá-las e gravar novos cds personalizados)
propagada pela campanha homônima da Apple permitiam situações em que
as empresas que produziam e comercializavam música pouco tinham a ver
com o processo de consumo da mesma.
A possibilidade de se colocar músicas de diversos títulos, a gosto do
usuário, em uma mídia personalizada não era, por si só, uma grande novidade.
Desde a década de 70, quando as fitas K7 se popularizaram, a chamada
"mixtape", exatamente uma coletânea de músicas aleatórias montada pelo
usuário, era bastante comum. A princípio o que acontecia com os Cds era
apenas uma evolução de formato. No entanto, no caso das fitas, a fonte
original de áudio era necessariamente um disco produzido de maneira
legítima, ou pelo menos uma outra fita, que por sua vez teria de ter sido
gravada a partir de uma fonte original. Como a existência do fonograma estava
atrelada ao suporte físico, não se podia fazer de outra maneira. Num contexto
digital, onde o usuário usava a internet para obter arquivos de áudio, que
27
seriam usados na montagem de seus cds personalizados, o disco como
produto, como fonte original da música, começava a perder espaço.
Ao mesmo tempo em que o consumo online de MP3 se popularizava,
surgiu um produto que viria a se tornar icônico no consumo de música no
mundo digital. Em 23 de outubro de 2001, a Apple lançou o iPod. Um aparelho
portátil, que armazenava e reproduzia arquivos digitais de música, em
especial, o MP3. O iPod não foi o primeiro tocador de MP3 do mercado, mas
nenhum dos
similares
lançados
anteriormente
conseguiu
alcançar
a
popularidade e a representatividade que ele conquistou junto ao novo
consumidor de música. Numa primeira análise, o novo objeto pouco difere do
walkman lançado pela Sony em 1979. O aparelho da Apple tinha como
vantagem nítida a capacidade de armazenamento - A primeira geração do
iPod já tinha capacidade de 5GB, o que equivalia a mais de 80 horas de
música, contra menos de uma hora da fita K7 do walkman; além disso, a união
dessa enorme quantidade de músicas com a interface simples e didática
representou a popularização de um conceito que até então pouco ou nada
significava, mas que desse momento em diante, definiria quase que a
totalidade do consumo de música digital: as playlists.
A possibilidade de se ouvir tantas horas ininterruptas resignificava os
conceitos sobre os quais se organizava o ritual de ouvir música. Até então,
existiam apenas dois caminhos possíveis: Ou se respeitava a ordem e o tempo
determinados pelo álbum, ou se ouvia a seleção de algum indivíduo que
estivesse controlando manualmente a exibição musical (o disc-jóquei, tanto no
rádio quanto em festas ou quaisquer eventos onde houvesse música). Quando
se tem uma quantidade gigantesca de informação sonora que pode ser
executada sem interrupção, os padrões impostos pelo álbum tornam-se
insuficientes. O iPod trazia, além da opção de ouvir os álbuns um depois do
outro sem intervalo, a interessante opção do shuffle, através da qual o
aparelho misturava músicas de todos os álbuns e artistas da biblioteca do
usuário, e a possibilidade de se montar playlists, ou seja, de organizar a
biblioteca de MP3 de qualquer forma que agrade o ouvinte.
28
Apesar de proporcionar enorme controle do ritual "ouvir música" ao
consumidor, o iPod pressupõe o uso de um sistema fechado para o
funcionamento completo. A única interface com a qual o iPod se comunica
para receber as músicas, é o programa iTunes, também da Apple. A biblioteca
de arquivos MP3 deve ser montada com base nesse software. Além disso,
para justificar o consumo legal do aparelho, a Apple criou a "iTunes Music
Store", uma loja de arquivos digitais de música, mais uma vez, com foco
principal no MP3.
Todas essas inovações, que surgiram e ganharam gigantesca
popularidade em um curtíssimo intervalo de tempo, seriam responsáveis por
uma profunda alteração no comportamento de consumo de música e, mais
que isso, na relação do indivíduo com a música. O acesso às novas
tecnologias criou uma geração de consumidores cujos meios de interação e
modos de compreensão da música são completamente diferentes daqueles
existentes num mundo de rádios e discos.
3.2 - AS NOVAS RELAÇÕES ENTRE MÚSICA E USUÁRIO
Os meios e maneiras de se consumir música, ao longo da história,
sofreram diversas alterações, mais ou menos significativas, ao longo do
tempo. Desde as diferenças entre orquestras, orquestras de câmara, quartetos
ou apresentações de solistas, formatos que possibilitavam maneiras de se
interagir com a música em diferentes espaços, passando pelas caixinhas de
música e pelas pianolas mecânicas (engenhocas criadas no fim do século XIX,
que consistiam em um piano que tocava sem músico, através de um
mecanismo acionado por uma folha de papel perfurado), pelo comércio de
partituras
até
a
invenção
do
fonograma,
todas
essas
mudanças
transformações transformaram de alguma forma o modo de se produzir,
comercializar e consumir música.
29
Depois da revolução trazida pelo rádio, algum tempo depois
resignificada pela televisão, a música já não era mais necessariamente
associada à presença física do músico. No entanto, ainda existia a
necessidade de concentração em torno de um aparelho capaz de reproduzir
ou captar áudio, o que naquele momento significava estar em uma sala, em
casa ou em algum ambiente mais ou menos preparado para esta situação,
onde se encontraria o rádio ou a vitrola.
Poucas décadas depois do surgimento dos aparelhos de rádio usados
domesticamente,
as empresas produtoras começaram a flertar com a
portabilidade. Surgiram na década de 50 rádios menores, facilmente
transportáveis, e que passaram também a ser instalados em automóveis. Com
essa nova possibilidade, a música tornava-se ainda mais presente no dia-a-dia
da sociedade, consumia-se mais música, em situações cada vez mais
diversas.
Em 1960 a Sony lançou um novo modelo de rádio que substituía as
válvulas, usadas até então na reprodução de som, pelo transistor, que
possibilitava a criação de um aparelho de rádio tão pequeno que poderia
caber no bolso do usuário. Mas essa portabilidade só se extendia à recepção
do sinal de rádio a princípio. Com a popularização das fitas cassete nos anos
70, surgiram novos caminhos - Os rádios de automóveis passaram a portar
essa tecnologia, abrindo espaço para a que o produto musical vendido pelas
gravadoras pudesse se desassociar do ritual caseiro de audição. Desenvolveuse então mais uma possibilidade de mercado, om a produção do novo
formato. Mas essa produção ainda era muito inferior à tradicional produção de
LPs, pois a qualidade de som era baixa, e trazia a necessidade de um aparelho
diferenciado.
Só em 1979 é que a portabilidade se tornou absoluta para os produtos
das indústria fonográfica. O lançamento do Walkman, produzido pela Sony,
criou uma nova série de interações com a música. O advento do fone de
ouvido (que já existia nos aparelhos domésticos, mas só no Walkman tornavase obrigatório) transformou uma atividade essencialmente social e coletiva em
um prazer solitário. O usuário isolava-se do ambiente externo completamente,
30
e se relacionava apenas com a informação sonora transmitida pelo aparelho.
No entanto, à exceção do fone, que era realmente uma mudança de rumo no
consumo musical, a evolução portátil trazida pelo Walkman era bastante
condizente com o sentido de crescimento do mercado fonográfico como vinha
acontecendo. Através dessa nova tecnologia o mercado de fitas cassete
cresceu, apesar de lutar contra a popularidade das fitas regraváveis, que
permitiam a montagem de seleções dos próprios ouvintes. Ainda assim, o foco
estava no produto disco ou na fita adquirida oficialmente, uma vez que a fita
regravável precisava de uma fonte original de áudio para ser preenchida.
Em que medida essa realidade foi transformada pelo crescimento das
tecnologias digitais, o MP3, o peer-to-peer e o iPod?
Desde a invenção do fonograma, todas as renovações descritas acima
foram mudanças de formato que eram fortemente conectadas - ou mais,
dependentes - do produto fornecido pelas gravadoras. Mesmo que a
aquisição não fosse sempre direta - em alguns casos o conteúdo poderia ser
copiado de produtos adquiridos por outras pessoas que não o usuário final, a
interação que existia era com o produto disco, era uma relação de posse de
um objeto, e assim, estava ligada basicamente à compra.
Essa situação se inverteu no mundo digital. A perda do suporte físico, a
possibilidade de reprodução infinita dos arquivos, sem perda de qualidade e
sem custo, e a possibilidade de compartilhamento de um banco de dados por
milhares de usuários, fez com que uma parte das convenções entendidas
como verdade nos contextos anteriores fossem desaparecendo em ritmo
acelerado.
A descoberta de novas referências e a obtenção de conteúdo se
desligavam completamente da idéia de compra, num sistema
que,
comercialmente, era totalmente independente da indústria fonográfica (mesmo
que utilizasse na maioria absoluta dos casos, conteúdos produzidos por ela).
O consumidor encontrava um cenário em que poderia adquirir o que desejasse
da forma que desejasse, sem pagar por isso. Mas a liberdade criada pelo
"sistema de compartilhamento" de arquivos MP3 ia além da questão financeira
31
- mesmo que fosse essa a principal para o mercado. A unidade básica de
consumo passava a ser uma música, contrariando o que sempre fora
praticado pelas gravadoras, que pensavam o álbum como unidade básica. A
liberdade em relação ao suporte também era profundamente transformadora.
Dentro de pouco tempo, o Cd deixaria de ser o objeto de desejo para tornarse um formato inconveniente, para um usuário que concentrava seu consumo
em um iPod, e não precisava ocupar espaço com um disco de plástico.
A fatia do público responsável por essa mudança era justamente o filão
mais interessante para o mercado, o grupo que movimentava a maior parte
das vendas: Os jovens.
Em 1999, ano em que o Napster nasceu, os jovens entre 15 e 24 anos
representavam 27% do mercado americano (fonte: IFPI). Era exatamente essa
a faixa etária que seria a primeira a aderir ferozmente ao formato mp3 e ao
compartilhamento de arquivos. Do ponto de vista desse usuário, o download
era uma forma muito mais cômoda de adquirir novas referências musicais.
Não exigia do consumidor qualquer movimentação geográfica, não envolvia
um aparelho específico para esse fim, já que a música podia ser ouvida no
próprio computador e, em pouco tempo de existência, já era possível ter
acesso a um vasto catálogo, de maneira rápida e através de uma busca
organizada.
As desvantagens ainda pesavam nos primeiros anos - A velocidade de
transferência
de
arquivos
era
extremamente
baixa,
o
espaço
de
armazenamento dos computadores pessoais da época também era pequeno,
o que impedia o usuário de acumular um catálogo expressivo, e a qualidade
do áudio era nitidamente inferior à do Cd. Ainda assim, os atrativos principais
(gratuidade e o catálogo gigantesco) faziam com que a prática do download
ganhasse adeptos. A venda de música em formato físico começou a sofrer
quedas sucessivas, que se tornaram especialmente significativas quando, no
final de 2001, o iPod chegou ao mercado. Ganhando imensa aceitação
popular já de início, o iPod criou um mundo no qual o Cd tornava-se cada vez
menos necessário. Se a maior parte do consumo de música passa a ser feita
através dele e, portanto, através dos arquivos MP3 que ele carregava, que
32
podiam ser encontrados na rede, o Cd tornava-se quase completamente
obsoleto.
No entanto, se o Walkman da Sony já trazia a possibilidade de
portabilidade, quais as transformações que a nova de fato trazia para o
consumidor? A relação com o iPod ia mais longe do simples fato de se ter o
MP3 ao invés da fita cassete. Pela primeira vez, existia a possibilidade de se
concentrar uma quantidade imensa de conteúdo num só aparelho. O primeiro
modelo lançado tinha capacidade para cerca de 1000 músicas. Esse fato gera
uma grande alteração no foco de consumo. O Walkman, assim como o
Discman, versão do player portátil lançada posteriormente, mas que suportava
o formato Cd, era uma fonte complementar de consumo musical. Compravase o Cd para ser ouvido num aparelho de som tradicional, e em algumas
situações apenas, no Discman. E a fita cassete do Walkman era em muitos
casos gravada a partir de um LP ou Cd que se escutava em um outro
aparelho. Isso ocorria principalmente por quê a portabilidade oferecida por
esses aparelhos apresentava uma forte limitação: A mídia fita ou Cd - da qual
o aparelho era dependente, e que carregava uma quantidade pequena de
músicas. Assim, o consumidor só poderia "tornar portátil" uma pequena fração
de sua discografia.
O iPod em seu formato inicial poderia carregar cerca de 65 discos, O
que dava ao usuário a possibilidade de tê-lo como única fonte de música por
um longo intervalo de tempo. A popularidade do aparelho alcançou níveis
elevados, tornando-o um objeto de desejo em muitos países.
A combinação de uma série de fatores envolvendo o iPod e a cultura
MP3 resultou em um enorme aumento no consumo per capita de música em
todo o mundo. E da mesma forma, atribui novas funções e novos contextos à
música.
A rápida evolução da tecnologia trouxe conexões mais rápidas e
sistemas mais eficientes de integração e busca de conteúdos, além do
progressivo crescimento da capacidade de armazenamento tanto dos
computadores pessoais quanto dos dispositivos portáteis. Essas mudanças
33
fizeram com que o consumidor de música pudesse ter, sem dispor de muito
tempo ou dedicação, coleções gigantescas de arquivos de áudio, que
circulavam entre seu computador, o MP3 player de sua preferência e,
eventualmente, os Cds gravados de forma caseira, a partir de arquivos
conseguidos via internet. Nenhum desses caminhos estava diretamente
relacionado à indústria fonográfica, nem a qualquer relação que envolvesse a
compra de música.
Essa explosão da disponibilidade de conteúdo e acesso a esse, faz com
que esse consumo de música, maior hoje que em qualquer momento da
história,
continue
aumentando.
O
iPod
com
maior
capacidade
de
armazenamento suporta hoje 160 GB, o que equivale a mais de trinta mil
músicas, ou cerca de 2.500 horas ininterruptas de áudio. Levando-se em
conta que um álbum tem em média 45 minutos, o iPod com 160 GB poderia
carregar mais de 3.000 álbuns. Um jovem fã de música com alguma dedicação
poderia, em menos de um ano, conseguir conteúdo suficiente para preencher
esse espaço. Há vinte anos atrás, um colecionador com a mesma dedicação
poderia levar toda a vida para reunir esse conteúdo. A oferta de música
também é hoje maior do que nunca (o iTunes Music Store tem hoje um
catálogo que ultrapassa 10 milhões de músicas).
Essa abundância de informação se justifica de certa forma no cenário
atual, pois é muito maior o tempo que as pessoas ficam expostas à música. O
estabelecimento do MP3 player como fonte principal de consumo (podendo
este ser tanto o iPod como o celular, ou qualquer semelhante), que pode estar
junto do usuário o tempo todo, criou um cenário em que ouvir música é uma
atividade constante. A todo momento, seja no ônibus, em casa, caminhando
pela rua ou praticando algum esporte, pode-se ter o aparelho lhe fornecendo a
trilha sonora.
Essa condição inaugura uma nova relação de atenção. Se antes era
necessário um dado grau de dedicação na escolha do disco que seria
executado e, após o seu término, trocá-lo, em uma determinada circunstância
de espaço e tempo, no mundo do iPod, o ritual se dava de forma
completamente diferente. A audição ocorria muitas vezes de forma aleatória,
34
no simples ato de se ligar o aparelho e escutar o que quer que estivesse
dentro dele, mas sem nunca dedicar total atenção a esse ato, que ocorria
simultaneamente às situações cotidianas. O disco era substituído pela playlist,
uma coleção de músicas organizadas de acordo com os critérios que o
usuário achasse convenientes. A grande diferença da playlist para as Mixtapes
e Cds montados pelo usuário era a ausência de limite de tempo, e a
possibilidade do shuffle, ferramenta através da qual as músicas eram
executadas de forma aleatória, gerando uma sensação semelhante à do rádio,
onde não se sabe o que vai tocar na seqüência, mas com a vantagem de toda
a programação ser escolhida pelo próprio ouvinte, e sem intervalos.
A realidade da música digital cria um usuário que tem a sensação de
absoluto poder em relação ao conteúdo musical ao qual é exposto. O
consumidor de música online quer (e em grande parte dos caso, tem) acesso a
um catálogo infinito, 100% de domínio de sua biblioteca de sons, podendo
organizá-los como quiser, e reorganizá-los facilmente durante o período de
audição e, acima de tudo, poder levar sua coleção de MP3 para todos os
lugares, e poder ouvi-las em todas as situações.
3.3 - A REAÇÃO DA INDÚSTRIA
No fim da década de 1990, quando começou a se popularizar o formato
MP3, a indútria fonográfica vivia o seu auge. As quatro majors dominavam
80% do mercado mundial de música, e ano após ano criavam fenômenos pop
que batiam recordes de vendagem. A distribuição nas lojas de disco, que eram
fortes tanto comercialmente quanto culturalmente, unia-se às massivas vendas
de Cds em grandes lojas de departamento como a rede Wal-Mart nos Estados
Unidos e as Lojas Americanas no Brasil.
Ainda nessa época, um outro fenômeno impulsionava as vendas: O
ciclo de substituição do disco de vinil pelo CD ainda proporcionava venda de
35
títulos antigos em muitos países, a atualização dos catálogos das gravadoras
continuava em processo.
Esse cenário proporcionava às empresas produtoras de música uma
altíssima lucratividade, mas que, por sua vez, construiu um sistema de alto
custo. A produção e divulgação de discos de grandes artistas era um
investimento que pressupunha altas vendagens. Até então era viável pensar
dessa forma, num mundo onde os números cresciam ano após ano.
As
primeiras
manifestações
da
"cultura"
MP3
não
pareciam
particularmente ameaçadoras às gravadoras, não diferiam, aos olhos da
indústria, da reprodução ilegal de Cds ou mesmo da produção caseira de
Mixtapes, e de cópias ilegais de fitas k7 populares desde o final dos anos 70.
Desde o seu surgimento, e mais incisivamente após o nascimento das redes
peer-to-peer, o MP3 vinha sendo encarado apenas como mais um formato de
pirataria. As campanhas que surgiram, a postura das empresas, e as decisões
legais adotadas, pouco diferiam das usadas para combater a pirataria em
suportes físicos.
É interessante notar a semelhança no tratamento, se compararmos
campanhas capitaneadas pelas associações ligadas às majors no passado
com algumas mais recentes. A semelhança é assustadora. No início dos anos
80, a associação British Phonographic Industry (BPI) lançou a campanha
"Home Taping is Killing Music", que usava como argumento o fato de que, as
gravadoras perdendo em vendas de discos, deixariam de investir em seus
artistas, que ficariam impossibilitados de produzir música. Mais de duas
36
décadas depois, as campanhas anti-pirataria que circulam usam o mesmo tom
fatalista, os mesmos argumentos e, em muitos casos até se assemelhan no
design e na construção discurso. Um exemplo particularmente próximo do
citado acima é o da campanha "Piracy Kills Music", da filial norueguesa da
International Federation of the Phonographic Industry (IFPI), veiculada entre
2007 e 2008, que valia-se da mesma lógica da campanha dos anos 80, e
ostentava um logotipo curiosamente semelhante (ambos sugeriam a imagem
de uma caveira através de objetos relacionados à música).
Mas mais do que combater os downloads ilegais de MP3, as
gravadoras ignoraram completamente o formato no início, marginalizando-o
sem considerar qualquer potencial de comercialização. Em parte isso se deu
pela baixa qualidade dos primeiros MP3, que precisavam ser leves para ter
funcionalidade numa realidade onde as conexões eram lentas, mas essa
negligência colaborou para que o universo dos downloads ilegais crescesse e
se desenvolvesse de forma totalmente desassociada das empresas detentoras
de copyright. A iTunes Store, que é hoje a maior loja de arquivos digitais de
áudio no mundo, só foi inaugurada em 2003, em um cenário onde o
compartilhamento de arquivos peer-to-peer já havia alcançado um grande
desenvolvimento, dois anos depois do boom do Napster.
A negligência da indústria frente às novas tecnologias foi nociva não só
economicamente, mas também culturalmente. A postura das grandes
corporações da música fez com que elas ganhassem a imagem quase que de
inimigo público. O caso do fechamento do Napster é emblemático nesse
sentido. O processo através do qual as atividades da empresa foram
efetivamente fechadas foi aquele movido pela RIAA, mas outras batalhas
legais surgiram na mesma época, inclusive movidas por alguns artistas, como
é o caso do Metallica, que foi largamente coberto pela mídia - A banda
acusava o software de violação de direitos autorais, depois de uma música
ainda inédita da banda surgir no sistema em versão "demo". Mas mais que
isso, Lars Ulrich, baterista e representante da banda, manifestou-se
publicamente em diversos canais criticando o Napster. Nos dois anos em que
se desenvolveram esses processos, o software recebeu gigantesca atenção
37
da mídia, o que fez crescer a popularidade dos sistemas de compartilhamento
de
arquivos,
diminuindo
drasticamente
a
popularidade
da
indústria
fonográfica, que passou a tratar como criminosos todos aqueles que
adquiriam conteúdo ilegal de música, uma vez que, nesse primeiro momento,
não se considerava reconhecer o formato MP3 como legítimo. Essa escolha
transformou consumidores em inimigos.
Quando a indústria finalmente decidiu aderir aos formatos digitais,
através de lojas virtuais como o iTunes e o próprio Napster em seu novo
formato - após ser adquirido pelo grupo alemão Bertelsmann, em 2002, a
empresa abandonou o sistema de compartilhamento e converteu-se em loja
de arquivos digitais, que funcionava (além de vender arquivos avulsos), através
de um serviço mensal, no qual o usuário pagava uma taxa fixa e fazia
downloads livremente - criou-se uma série de empecilhos e condições de
utilização dos arquivos pelo usuário.
A preocupação inicial desses serviços era evitar que as cópias vendidas
legalmente fossem reproduzidas de forma indiscriminada e compartilhadas
nas redes ilegítimas. Para que fossem eliminadas essas possibilidades, foram
criadas algumas tecnologias de Digital Rights Management (DRM), que
pudessem ser aplicadas aos arquivos digitais de áudio.
As condições de reprodução variavam de acordo com a loja. No caso
da iTunes Music Store, as músicas compradas estavam atreladas a um
software, o Apple iTunes, e o software se comunicava com o iPod,
transferindo as músicas presentes na biblioteca do computador para o
aparelho, permitindo assim, a portabilidade dos arquivos adquiridos. No
entanto, as músicas não podiam ser transferidas de uma máquina para outra,
e todo o conteúdo do iPod estava necessariamente atrelado ao iTunes ao
qual ele fora ligado. Não se podia misturar, dentro do aparelho, músicas
vindas de computadores diferentes.
No caso do Napster, as músicas só podiam ser ouvidas através do
Windows Media Player, e apenas no computador através do qual elas foram
adquiridas. Se o usuário quisesse gravar a música comprada em um Cd,
38
precisaria pagar um valor adicional de 0,99 dólares por faixa. Para obter a
possibilidade de transferir os arquivos para um tocador portátil, pagava-se
uma taxa de 5 dólares sobre o valor mensal da assinatura. Ainda assim, os
arquivos só poderiam ser executados em aparelhos que contessem o selo
Microsoft PlaysForSure, o que naturalmente, excluía o iPod, da Apple.
A soberania absoluta do iPod como tocador portátil, e sua dependência
do sistema iTunes foram, em boa parte, responsáveis pela liderança absoluta
da iTunes Music Store como fonte de download legal (ela hoje é responsável
por cerca de 70% do total das vendas de música digital).
O esforço no
sentido da venda de música em formatos digitais vem sendo encarado como
positivo. Desde 2003, a participação da música digital na receita das grandes
gravadoras cresce ano a ano, e também se multiplicam os serviços bem
sucedidos de venda de música online.
No entanto, esses serviços encontraram uma realidade na qual a cultura
de compartilhamento ilegal já era extremamente forte. Tanto quanto crescem
os downloads legalizados, crescem também os ilegais, que já no início
somavam uma quantidade muito maior de arquivos. Em janeiro de 2009, a
iTunes Music Store declarou ter alcançado a marca de 6 bilhões de
downloads. A campanha norueguesa "Piracy Kills Music" divulgava que,
39
apenas em 2005, 20 trilhões de arquivos de música foram baixados
ilegalmente.
Ao lado desse crescimento do consumo de música digital (legal e
ilegalmente) e, principalmente por causa da força dos novos meios, nos pouco
menos de dez anos em que a música digital tomou as proporções atuais, o
mercado de Cds vem diminuindo drasticamente. O mercado brasileiro vendeu,
em 2000, 94 milhões de unidades. Em 2005, esse numero caiu para 53
milhões de unidades, segundo dados da Associação Brasileira de Produtores
de Disco (ABPD). O Disco de Ouro, um dos prêmios mais tradicionais da
indústria fonográfica, concedido ao artista que superava a marca de 100 mil
cópias vendidas, em 2003, passou a representar a marca de 50 mil cópias,
anunciando a gravidade da crise.
As lojas de disco desapareceram quase completamente, os pequenos
comerciantes fecharam as portas, as cadeias sobreviventes são aquelas que
diversificaram seus serviços, deixando de depender das vendas de música. A
Virgin Megatores, uma das cadeias de lojas de Cds mais conhecidas do
mundo, anunciou em 2008 o fechamento de suas últimas unidades, incluindo a
icônica loja da Times Square, em Nova Iorque.
Em dez anos, o mercado de música mundial caiu de 38 bilhões de
dólares (IFPI, 1998) para apenas 18 bilhões (IFPI, 2008), sendo que o valor
atual inclui formatos de vídeo musical (DVD, VHS, VCD), enquanto o valor
anterior contabilizava apenas formatos de áudio. Nos EUA ocorreu uma queda
de quase 70% - o mercado de 13 bilhões de dólares em 1998 hoje é de
apenas 4 bilhões. No Brasil, a diminuição do mercado foi ainda mais drástica:
de 1,2 bilhões para 180 milhões de dólares (ABPD, 2009), o que representa
uma queda de cerca de 85%.
Tradicionalmente, o Brasil é um dos mais fortes mercados para a
indústria fonográfica mundial, mas vem perdendo espaço gradativamente.
Desde os anos 60, se alternou entre o 5º e 6º lugar entre os maiores mercados
de música (ao lado da França). Em 1998 ocupava o sexto lugar, porém em
2006, aparecia somente em 12º. Essa diferença seria tradicionalmente
40
associada à expansão da pirataria física, que atinge mais ferozmente os países
menos desenvolvidos. No entanto, não houve, nesse intervalo, crescimento da
pirataria de formato físico, proporcionalmente ao tamanho do mercado. O IFPI
aponta que, em 1999, cerca de 50% das unidades vendidas no Brasil eram
piratas. O mesmo estudo sobre pirataria promovido pelo IFPI aponta que, em
2006, a porcentagem de unidades piratas no Brasil era de 40%.
Esses fatores nos levam mais uma vez a pensar que a diminuição do
mercado fonográfico no Brasil, e da mesma forma no mundo, é resultante de
mudanças de cultura. E essas mudanças devem ditar a sobrevivência ou não
das grandes gravadoras, e o futuro do mercado de música.
3.4 - O NOVO MERCADO
A crise que se instalou na indústria fonográfica nos últimos 8 ou 9 anos,
no entanto, não deve de forma alguma ser entendida como uma crise da
música. É inegável que existe uma crise nas gravadoras tradicionais, e nos
sistemas tradicionais de consumo, no suporte físico que vinha até então sendo
comercializado como se fosse ele - o disco - a música em si. Mas instalados
todos estes problemas, tornou-se nítido o fato de que nem as gravadoras,
nem os discos, nem mesmo os MP3 são a música. A web nos mostrou que
nunca existiu tanta música em circulação quanto hoje, ou ainda, que nunca se
produziu tanta música como tem se produzido no mundo digital.
A evolução que ocorreu no equipamento e nas técnicas de gravação
nos últimos 15 anos é tão transformadora quanto a revolução digital como um
todo, para os produtores de música. A grande justificativa para a "ditadura"
das gravadoras, ou seja, a necessidade de se passar por elas para se
comercializar fonogramas fora, desde o seu surgimento, o altíssimo custo das
gravações. A montagem de um estúdio só poderia ser arcada por grandes
41
empresas, e o custo de produção de um disco já pressupunha a venda de
milhares de cópias, para que o produto fosse economicamente viável.
Com a popularização de computadores pessoais cada vez mais
potentes, e com a digitalização do processo de gravação, que tornava
materiais de alto custo (como as fitas magnéticas até então usadas)
desnecessários, e permitia a criação de equipamentos de alto padrão com
custo baixo custo, aos poucos foram se democratizando os meios de
produção de música. Saímos assim de um cenário onde a produção de
música gravada era uma atividade altamente restrita, para um mundo em que,
pouco mais de uma década depois, qualquer indivíduo com pouca coisa além
de um computador pessoal, algum conhecimento e boa vontade pode se
tornar um produtor de conteúdo musical.
No entanto, o surgimento de um mercado "alternativo" de música, fora
do domínio das majors, não dependia exclusivamente da possibilidade de
produzir conteúdo a custo mais acessível.
Outros dois fatores eram
determinantes para se constituir um mercado: Distribuição e promoção.
Esses dois fatores também ganhavam significados absolutamente
novos dentro da internet, e de uma realidade que tinha o MP3 como principal
formato de música. Se o suporte físico era desnecessário, e o arquivo de áudio
digital podia ser copiado e compartilhado indefinidamente sem praticamente
nenhum custo (a princípio haveria um custo de servidor, mas não demoraram
a aparecer servidores online gratuitos), o problema da distribuição mudava de
foco, e passava a ser exclusivamente como levar a música até o consumidor
em potencial. Na web, esse problema se confunde com a promoção. Se a
música está disponível online, o contato com o consumidor pode ser, ao
mesmo tempo, promoção, pois exibe o conteúdo que não é necessariamente
familiar ao usuário - ou mesmo que seja, ainda não foi adquirido - e
distribuição, uma vez que, já no contato com a informação, existe a
possibilidade de se adquirir o produto (ou conteúdo). Essa lógica, no entanto,
ainda encontra muitos problemas para se sustentar financeiramente. Em
muitos casos, a distribuição online de MP3 é usada por produtores
independentes apenas como estratégia de divulgação, para que eles possam
42
buscar lucros em outros tipos de relações, como shows e venda de produtos
como camisetas, ou até cds e dvds por canais não digitais.
A cultura criada pelo digital cria uma nova relação dos produtores com
o mercado de música independente. Até o fim do século XX, uma produtora de
música independente era uma empresa constituída e organizada, e se
intitulava independente por não estar ligada a nenhum grande conglomerado
empresarial, sustentava-se por si própria. No geral eram estruturas menores,
mas não necessariamente pequenas, grandes gravadoras existiram de forma
independente, algumas de grande popularidade, como a Motown e a SubPop.
No entanto, no decorrer dos anos 80 e 90, essas gravadoras foram aos
poucos sendo adquiridas por grandes empresas de mídia. Apesar disso,
mesmo no auge das grandes gravadoras, no fim dos anos 90 e início da
década atual, cerca de 20% do mercado fonográfico mundial ainda funcionava
dessa forma independente.
A grande novidade é que, no contexto digital, o conceito de
independente passou a significar, em muitos casos, a cultura "faça você
mesmo", em que o próprio artista, ou o artista e seu empresário produzem o
disco, divulgam, distribuem e vendem os shows. Se por um lado isso pode
não contribuir para a profissionalização dos sistemas online de distribuição,
por outro, essa possibilidade de se trabalhar com estruturas menores - ou com
estruturas de qualquer tamanho conveniente - que podem se sustentar
relativamente bem com um pequeno capital, permitiu com que uma classe
média de artistas surgisse. Músicos que não cabiam na estrutura das grandes
gravadoras poderiam tomar a iniciativa de produzir e conduzir suas próprias
carreiras através da internet, usando os meios que a rede oferece para se
divulgar e estabelecer contato direto com seu público, criando meios de fazer
seu trabalho crescer e às vezes, promovendo estratégias de grande sucesso
fora dos sistemas tradicionais de circulação de música.
O "novo mercado", no entanto, não tem nos produtores e gravadoras
independentes o foco principal das novas propostas. É certo que essas
iniciativas são fundamentais, mas a mudança de foco mais relevante no
mercado não é das majors para os produtores independentes. As grandes
43
oportunidades de novos negócios
surgiram justamente fora do que era
tradicionalmente entendido como "indústria fonográfica". A versatilidade dos
formatos digitais de música chamou a atenção de diversos tipos de empresas,
que buscavam diferenciar seus serviços ou desenvolver estratégias de
comunicação mais ousadas.
Esses novos caminhos tornaram-se possíveis também em função da
redução de custos de produção musical, em contraponto aos investimentos
drasticamente reduzidos das gravadoras, que mesmo com as facilidades de
gravação reduziram seus catálogos.
Algumas empresas, relacionadas a música ou não, chegam a tornar-se
gravadoras e distribuidoras de artistas, transcendendo o conceito de
patrocínio. Casos como o da agência de shows Live Nation que, em 2007,
optou por expandir suas atividades, tornando-se selo de artistas como
Madonna e U2, mas em acordos mais liberais que os das gravadoras
tradicionais, responsabilizando-se pela promoção e distribuição dos artistas,
mas sem a exigência de vários lançamentos, comum em outras gravadoras, e
em alguns casos, como o da cantora Shakira, sem envolver nem mesmo a
venda dos discos em si, restringindo-se à promoção da artista como um todo,
além dos shows.
Um exemplo de empresa totalmente desligada do mercado da música,
mas que vem desenvolvendo cada vez mais atividades nesse sentido é o da
Natura, que empreende o projeto "Natura Musical". Nesse projeto, a empresa
vai além do patrocínio tradicional e, ao invés de simplesmente apoiar as
atividades de artistas, promove e financia completamente, através de editais,
projetos que vão de turnês nacionais e gravação de álbuns a pesquisas e
workshops musicais.
Esses novos agentes, ou novos papéis atribuídos aos agentes
tradicionais trazem uma dinamicidade cada vez maior ao mercado. Nos casos
acima, temos novas abordagens, ou meios diferentes de se alcançar os
sistemas tradicionais. Mas as relações se constroem de forma realmente nova
quando empresas que desenvolviam serviços digitais originalmente não
44
associados à música, perceberam nela uma forma de tornar seu produto mais
atraente e expandir suas atividades.
O
caso
mais
emblemático
é,
naturalmente,
o
da
Apple.
O
desenvolvimento do software iTunes e da iTunes Music Store transformou
uma empresa tradicionalmente associada à informática em uma das figuras
mais importantes do mercado de música. A grande sacada desse sistema foi,
observando o comportamento do consumidor de MP3 via internet, criar um
sistema rápido e organizado que levasse a loja de música para dentro do
computador do usuário, tal qual acontece nos softwares peer-to-peer.
Outras empresas que adquiriram grande força na distribuição de música
em formato digital foram as operadoras de telefonia celular, bem como as
produtoras desses aparelhos. A primeira forma de utilização de conteúdo
musical em aparelhos celulares foram os ringtones, toques que continham
melodias que faziam parte dos catálogos de grandes gravadoras. Essa
possibilidade surgiu ainda em 1998, quando os primeiros toques foram
disponibilizados para a compra em aparelhos na Finlândia. De lá pra cá a
evolução tomou diversos caminhos, e hoje a telefonia móvel representa um
importante filão da indústria fonográfica, tendo sido responsável, em 2008, por
47% das vendas digitais.
A popularização dos celulares com suporte para o MP3 potencializou a
relação de portabilidade e de ubiqüidade trazida para a música pelo iPod mas,
por outro lado, inaugurou uma série de possibilidades novas de criar relações
mercadológicas com o consumidor. No Brasil, produtores como a Sony
Ericsson e a Motorola criaram pacotes bem sucedidos em que os aparelhos
eram vendidos já com algum conteúdo musical, geralmente algumas faixas
acompanhadas de material de divulgação (vídeo e fotos), ou até um álbum
completo. Esse sistema trouxe fontes de renda alternativas para as
gravadoras, mas ainda era pouco satisfatório para o usuário. A possibilidade
de se agregar algumas músicas ou um álbum ao aparelho era insignificante
diante do universo de conteúdo disponível online.
45
Foram criados sistemas de lojas virtuais gerenciadas pelas operadoras
de telefonia móvel, que funcionavam num sistema semelhante ao da iTunes
Music Store. No entanto, especialmente no Brasil, os catálogos são reduzidos
e os preços extremamente altos - variam entre R$ 3,99 e R$ 5,00 por música,
enquanto o iTunes vende faixas a U$0,99. Ainda assim, em função da
ausência de um canal forte de venda de arquivos de áudio pela internet, o
consumo via celular responde hoje por 78% do mercado digital nacional
(ABPD, 2009), o que corresponde cerca de 33 milhões de reais.
O mercado de música em telefonia móvel é um dos terrenos mais férteis
da indústria. É talvez o meio que apresente maiores e mais variadas
possibilidades. A relação que se constrói entre o usuário e o aparelho de
celular é extremamente profunda e, em muitos casos, o celular torna-se uma
grande fonte de conteúdos digitais de entretenimento. Tendo isso em vista, as
operadoras buscam a todo momento meios de explorar novos tipos de
conteúdo, que ao mesmo tempo são fonte de renda e fortes atrativos do
serviço. Nesse sentido, algumas empresas buscam novas formas de oferecer
conteúdo musical como diferencial.
O caso do "Nokia Comes With Music" é um dos que receberam maior
destaque nos últimos tempos. É o primeiro projeto de grande porte que se
baseia na idéia do "All you can eat" (Tudo o que você pode comer), que
consiste na possibilidade de downloads ilimitados ao participante, dentro de
algumas condições favoráveis a ambos os lados. No caso desse sistema da
Nokia, os downloads ilimitados são atrelados a um aparelho específico. Todos
os compradores desse aparelho têm livre possibilidade de adquirir quantas
músicas puder por um ano, em um vasto catálogo, que conta com cerca de
3,6 milhões de músicas. O programa chegou ao Brasil esse ano, sendo
anunciado como "o maior acervo de música digital legalizada do país".
Outro caso que merece destaque no Brasil é o da operadora Oi. Uma
das mais novas operadoras do mercado, a Oi tem como alvo o público jovem,
e trata a música como um importante diferencial, e vem desenvolvendo
diversas ações nesse campo. Fora do espaço diretamente associado ao
46
telefone móvel, a Oi abriu estações de rádio em diversas grandes cidades
brasileiras. Essas rádios funcionam normalmente, em frequência FM, mas têm
sistemas integrados com outros canais - internet e o próprio celular. O cliente
Oi interage através do celular com a rádio, criando possibilidades
interessantes de mercado musical. Pode-se opinar e interferir na programação,
ou adquirir os conteúdos exibidos através de download pela loja virtual.
E a operadora ainda vai mais longe nesse sentido. Na intenção de
oferecer conteúdo exclusivo e em condições cada vez mais interessantes, foi
fundado o selo Oi Música, que promove e distribui digitalmente artistas de um
catálogo próprio, reunido em parceria com o selo carioca MZA. Além disso, a
empresa ainda sustenta o portal Oi Novo Som, no qual podem se cadastrar
bandas independentes, buscando divulgação. Através desse canal, a Oi
promove festivais, programas de rádio e internet, promovendo os artistas e a
marca. Todos os eventos são abertos ao público, mas oferecem incentivos
especiais aos usuários da Oi.
Por outro lado, apesar dos projetos desenvolvidos, o conteúdo
disponível por canais realmente diferenciados na Oi ainda é restrito, apesar de
ela possuir também a tradicional loja virtual de música, ela funciona pelos
mesmos altos preços praticados no mercado nacional.
A popularização da tecnologia 3G e do uso massivo de internet por
celular traz um sem-número de possibilidades, não só para as operadoras,
mas também para quaisquer empresas que venham a desenvolver idéias
aplicáveis a esses aparelhos, pois se por um lado a telefonia móvel é
inevitavelmente controlada por essas companhias que vendem o acesso, a
liberdade trazida pelo 3G possibilita a entrada de quaisquer outras tecnologias
interessantes para o consumidor. Ainda assim, com a tendência de união entre
os celulares e os MP3 players, que vem se mostrando cada vez mais forte (o
iPhone, atualmente um dos maiores objetos de desejo do mercado, nada mais
é que um iPod que contém a função telefone), tudo parece apontar para a
consolidação do dispositivo móvel (que passa a incluir o telefone celular, e não
mais ser somente ele) como fonte primária de consumo de música.
47
3.5 - CAMINHOS ALTERNATIVOS - Banda Calypso e Cansei de Ser Sexy
Todas as mudanças que ocorreram na estrutura da indústria nos últimos
anos colocaram em cheque principalmente uma noção prática, profundamente
arraigada na cultura das gravadoras: Existe um modelo básico para a venda de
música. Se há alguma certeza que podemos absorver da revolução trazida
pelo digital, é a de que os sistemas criados ao longo do século XX para o
comércio de fonogramas já não funcionam mais da forma como outrora
funcionaram. Se ainda não se extinguiram, claramente não são mais
suficientes para sustentar o mercado. Nesse cenário normalmente entendido
como negativo e prejudicial, surgem alguns casos de sucesso que valem-se
de estratégias absolutamente originais.
Os dois aqui apresentados têm em comum uma relação em que o
negócio está muito mais centrado no próprio artista (ou na figura do agente,
desassociado das gravadoras), uma relação onde o conteúdo é entregue
diretamente ao consumidor, e na qual o artista, apesar de ter de empenhar
mais volume e energia, também recebe uma fatia maior dos lucros que gera.
Esses dois casos, no entanto, são completamente diferentes no que se refere
aos pontos de contato com o consumidor e aos canais e estratégias de
divulgação. Eles comprovam que no momento atual do mercado, o ponto
principal é conhecer as múltiplas possibilidades existentes online e offline, e
desenvolver sistemas personalizados, calcados na identidade do artista e do
público, e na criatividade.
3.5.1 - Cansei de Ser Sexy
Formado em 2003, em São Paulo, pelo baterista e produtor Adriano
Cintra, e por 4 garotas que, segundo elas mesmas, mal sabiam tocar seus
instrumentos, o "CSS", como se tornaria conhecido anos depois, começou a
48
carreira se apresentando em bares de rock e música eletrônica, e lançou, no
ano seguinte, dois EPs ("Extended Play", formato entre o "Single" e o Álbum,
que contém de 4 a 6 músicas) produzidos pelo próprio Adriano Cintra.
O grupo alcançou destaque imediato no cenário paulistano, em parte
devido a alguma fama de que gozava o baterista como DJ em casas noturnas
de São Paulo, e também graças à popularidade dos fotologs (site tipo blog,
exclusivo para exibição de fotos do usuário) comandados pela vocalista, Luisa
Lovefoxxx. Atentos à rapida ascensão da banda, alguns jornalistas influentes
publicaram matérias a respeito, contribuindo para o crescimento do CSS fora
da cena "underground" de São Paulo. Formadores de opinião como Lúcio
Ribeiro e Erika Palomino, ambos da Folha de S. Paulo, lideraram o movimento.
O carisma da vocalista, e a atitude despojada da banda, além do aspecto
visual, com as roupas coloridas e as presenças femininas, faziam do Cansei de
Ser Sexy um forte produto midiático.
Em 2005 a gravadora Trama assina contrato com a banda, que já vinha
se destacando nos canais digitais, inclusive o site "TramaVirtual", da própria
gravadora. Só então seria lançado o primeiro álbum, intitulado simplesmente
"Cansei de Ser Sexy", também produzido por Adriano Cintra. O Cd foi
lançado com distribuição nacional, e divulgação em mídias digitais e
tradicionais. Em seguida, o mesmo foi lançado em edição especial que trazia,
além dó próprio disco, um Cd em branco, gravável, no qual o comprador
poderia copiar o Cd original, para presentear um amigo. Posterior a esse
lançamento, foi feito o EP "CSS Suxxx", distribuído somente em formato
digital, ou em formato físico apenas nos shows. Essas atitudes atribuíram ao
grupo uma imagem extremamente favorável, com a qual simpatizava
imediatamente o consumidor de MP3 e música digital em geral.
O resultado em vendagem de discos foi modesto, mas a popularidade
da banda crescia progressivamente. A convite da Trama e do empresário da
banda na época, alguns jornalistas de publicações estrangeiras escreveram
sobre o CSS, conferindo alguma visibilidade fora do Brasil. O jornal inglês
"The Guardian" publicou uma matéria em que o repórter Peter Culshaw, que
49
havia assistido um dos shows de lançamento do Cd em São Paulo, afirmou:
"Essa pode ser a maior banda já vinda da América do Sul".
Em função dessa projeção, o grupo assinou, em 2006, um contrato para
o licenciamento do primeiro disco com a gravadora independente Sub Pop, de
Seattle, nos EUA. Apesar de contar a partir desse ponto, com duas
gravadoras, uma responsável pelo território brasileiro, e outra pela América do
Norte e Europa, o Cansei de Ser Sexy centraliza as atividades na própria
banda - Os discos são licenciados por tempo determinado, a própria banda os
produz (através do baterista) e tem a propriedade de seus fonogramas. A partir
daí, os acordos fechados visam necessidades que não possam a princípio ser
supridas pelos integrantes, como distribuição e divulgação.
A partir do contrato com a Sub Pop, foi produzido um video clipe, da
música escolhida como single (música de trabalho) do álbum fora do Brasil. O
clipe de "Let's Make Love and Listen to Death From Above" passou a ser
exibido com frequência na MTV européia e, em menor grau, também na matriz
americana do canal. Esse fator foi decisivo para o crescimento da
popularidade do CSS fora do Brasil. Com uma base inicial de fãs constituída, o
grupo partiu, em Julho de 2006 para sua primeira turnê internacional, junto
com a banda "Bonde do Rolê", também brasileira e com o Dj americano
"Diplo". A partir dessa turnê e do lançamento internacional, a banda passou a
receber destaque em importantes mídias internacionais, dentre as quais se
destaca o periódico inglês "New Musical Express" (NME). A partir daí,
alcançaram popularidade inédita entre artistas brasileiros no circuito de
rock/pop.
Em 2007, o Cansei de Ser Sexy participou de alguns dos maiores
festivais de Rock e música Pop do mundo, como o "Lollapalooza", em
Chicago, ao lado de artistas como Pearl Jam e Amy Winehouse o "O2
Wireless", em Londres, que contou também com White Stripes e Daft Punk, e
o "Coachella Valley Music and Arts Festival", ao lado de Red Hot Chilli
Peppers e Rage Against The Machine, entre outros.
50
O segundo disco da banda, "Donkey", lançado em 2008 foi recebido
com alarde pela mídia especializada no Brasil e no exterior. Em território
nacional, foi também lançado pela Trama, mas dessa vez inaugurando um
sistema inovador promovido pela gravadora, o "Álbum Virtual", que funciona
através de um sistema por eles batizado como "Download Remunerado".
"Donkey" foi o primeiro álbum a ser lançado nesse formato, que consiste em
oferecer os arquivos de áudio em MP3 e todo o material gráfico do disco de
forma gratuita para o consumidor que, mediante um cadastro no site da
Trama, é exposto à um anúncio de um patrocinador (nesse caso específico, a
Volkswagen), que paga os custos do artista e do selo. Em território
internacional, o álbum foi lançado normalmente, através da Sub Pop, com a
distribuição física tradicional, e digital em lojas como a iTunes Music Store.
No geral, o Cansei de Ser Sexy nunca foi um grande suceso de venda
de discos. O primeiro disco do grupo, segundo o jornalista Lúcio Ribeiro,
vendeu no primeiro ano cerca de 60 mil cópias. No mesmo ano (2006), o
álbum Stadium Arcadium, do Red Hot Chilli Peppers, vendeu mais de um
milhão de cópias apenas na primeira semana. No ano seguinte, a cantora
brasileira Céu, com menos exposição na mídia e longe dos grandes festivais,
vendeu 100 mil cópias pelo selo "Hear Music", da rede de cafeterias
Starbucks. Ainda assim, apesar das modestas vendas, o CSS conseguiu
transformar-se em um grupo bem conceituado no mercado de shows, um
empreendimento rentável.
3.5.2 - Banda Calypso
Longe das grandes capitais nacionais, e muito longe do buzz gerado
pela imprensa paulistana sobre o Cansei de Ser Sexy, uma das bandas mais
rentáveis do país completa dez anos de atividade, com um crescimento
admirável, paralelo à decadência do mercado brasileiro de disco.
Cledivan Almeida Farias, conhecido desde o início de sua longa carreira
musical como Chimbinha, produtor e guitarrista atuante em diversas bandas
51
de guitarrada e brega (estilos populares do norte do Brasil), formaria uma
banda que venderia mais de 12 milhões de cópias e se tornaria um dos
maiores fenômenos da música popular brasileira, sem qualquer apoio (ao
menos no início) de gravadoras, rádios ou grandes corporações mídiáticas.
Nascido em uma família pobre no interior do Pará, Chimbinha cresceu
ouvindo as rádios AM da América Central, do Caribe e das Guianas, que
seriam influência determinante na concepção do estilo musical que
desenvolveria anos depois.
Iniciou a carreira musical em tocando em boates e bailes paraenses, e
pouco tempo depois, aos 16 anos, começou a participar como guitarrista em
bandas de lambada em estúdios de Belém. No começo ainda morador de
favela, Chimbinha foi galgando seu espaço, gravando com artistas
desconhecidos, de poucos recursos, e aos poucos se destacando entre os
guitarristas do mercado, até alcançar uma posição privilegiada como
instrumentista e produtor, sendo muito requisitado em segmentos musicais
populares em todo norte e nordeste.
Em 1999 foi convidado para produzir o Cd da cantora Joelma Mendes
e, insatisfeito com o repertório, decidiu ele mesmo se encarregar da
composição. Em meio a esse processo, os dois começaram a namorar, e
tiveram a idéia de montar uma banda, e batizá-la com o nome do estilo
musical resultante da mistura de ritmos que compunha o som do produtor:
Calypso.
À época de lançamento do primeiro Cd, o casal morava em um
apartamento de um cômodo na periferia de Belém. Chimbinha abandonou as
atividades de guitarrista de estúdio e passou a investir seu tempo na
divulgação da banda. Sem dinheiro para colocar suas músicas nas rádios
tradicionais, o músico aproveitou-se de um fenômeno característico de Belém,
as
chamadas
"rádios
de
poste".
Essas
rádios
eram
canais
não
regulamentados espalhados pelas ruas da cidade, os responsáveis fixavam
caixas de som nos postes e tocavam música o dia todo. Chimbinha distribuiu
discos nessas rádios, e como conseqüência, as rádios normais passaram a
52
tocar as músicas, a pedido do público, que ouvia a banda ao passar pela rua.
Essa popularidade resultava numa maior freqüência de shows, cuja receita era
reinvestida na divulgação da banda, em todos os canais imagináveis - carros
de som, lojas, festas, em alguns casos, diretamente para o público. A banda
diz ter distribuído gratuitamente 50 mil Cds, para alcançar o sucesso gerado
em torno do primeiro álbum.
A banda Calypso criou um sistema em que tem controle absoluto de
sua produção, distribuição e promoção. Com a popularização do grupo,
muitas rádios passaram a tocar suas músicas espontaneamente dentro e fora
do Pará, e Chimbinha passou a fabricar mais Cds, que ele entregava
diretamente às redes de lojas do norte. Ainda assim, continuava a promover o
trabalho, agora em rádios mais distantes. Para alcançar um público maior, que
não necessariamente freqüentava as lojas de disco e, com isso aumentar a
popularidade da banda e o público dos shows, o casal começou a vender por
canais menos convencionais, como supermercados populares ou camelôs. A
distribuição era feita por correio, Joelma anotava os pedidos feitos através do
escritório da banda, e Chimbinha enviava os produtos. No caso dos camelôs,
o produto era vendido aos chefes das redes de camelô, que constituem um
sistema organizado no norte e que, a partir desse momento, passaram a
desenvolver
fortes
relações
com
o mercado de música alternativa,
especialmente no Pará.
A banda Calypso inaugurou práticas de mercado que hoje são
populares entre produtores de música popular nas regiões Norte e Nordeste. A
crise das gravadoras gerou um cenário extremamente carente nessas regiões,
e os músicos e produtores foram forçados a buscar sistemas autosustentáveis. Os representantes do Tecnobrega Paraense, estilo musical que
caiu no gosto popular nos últimos anos em Belém, e chamou a atenção de
diversos estudiosos de mercado da música pela originalidade do modelo de
negócio, segue alguns dos passos ditados pela banda Calypso. Os produtores
têm no camelô fortes aliados. O comércio informal é o grande responsável
pela divulgação desses personagens. O artista que cai nas graças dos
"atravessadores", pessoas responsáveis por distribuírem os Cds aos camelôs,
53
fica conhecido, toca nos carros de som, e consegue, em virtude dessa "fama",
agendar um maior número de shows. A negociação entre o produtor e os
camelôs pode acontecer de duas maneiras: Através da venda de Cds
prensados pelo artista - Seguindo o modelo de Chimbinha, onde muitas vezes,
o próprio músico trabalha como atravessador -
num sistema similar à
distribuição em lojas de música ou supermercados; ou através da venda do
Cd "master", contendo as gravações originais, para o atravessador, que se
responsabiliza pela prensagem e distribuição nos camelôs. Esses canais
alternativos viabilizaram a existência de centenas de artistas que não poderiam
depender de gravadoras, como fora o caso da Banda Calypso no início.
O sucesso do grupo de Chimbinha e Joelma não demorou a extrapolar
as fronteiras do Norte e Nordeste do Brasil. Depois do bem-sucedido primeiro
álbum de 1999, e do registro ao vivo lançado em 2001, a banda já gozava de
grande reconhecimento, e fazia muitos shows em diversos estados. Até então,
toda a promoção da banda tinha sido feita apenas através de rádios, lojas ou
meios alternativos, como carros de som e camelôs. A decisão de usar a
televisão como meio de divulgação veio apenas em 2002. Apesar do
reconhecimento que o nome "Calypso" trazia, e do sucesso radiofônico, a
imagem dos integrantes ainda era muito pouco conhecida, o que provocou o
surgimento de diversos números "piratas", ou seja, outras bandas que se
vendiam ou eram divulgadas como "Banda Calypso". Essa necessidade de
reconhecimento visual fez com que a banda procurasse a divulgação
televisiva. As primeiras aparições foram no programa Gilberto Barros, na rede
bandeirantes. A partir daí ocorreu a consolidação do sucesso do grupo em
todo o território nacional. Segundo Chimbinha, quando a banda participou do
programa Domingão do Faustão, em 2005, já haviam vendido mais de 5
milhões de discos.
Em diversos lançamentos, a partir desse ano de 2005, a banda contou
com distribuição nacional da gravadora Som Livre, no entanto, toda a
produção musical e executiva, bem como a maior parte da promoção da
banda, é concentrada na figura de Chimbinha. O Calypso é hoje uma empresa
com mais de 200 funcionários, com marcas impressionantes: 18 títulos
54
lançados em Cd e 6 em DVD, mais de 12 milhões de cópias vendidas, e uma
média de 20 shows por mês.
A Banda Calypso é um exemplo de uso inteligente de sistemas
considerados inimigos do mercado (como é o caso dos camelôs e da pirataria
física), ou ainda ignorados pelas grandes gravadoras (carros de som, rádios
não regulamentadas), na criação de um sistema totalmente centrado no
artista, que é responsável por todas as etapas da produção e distribuição do
seu conteúdo. Mas o Calypso mostra, mais uma vez, que a chave é a
identificação dos pontos de contato entre artista e público.
55
4. O FUTURO
Novas visões e modelos
56
Esse capítulo trata de algumas das interpretações do mercado de
música digital que foram usadas como base na concepção deste trabalho.
Merecem maior destaque alguns pesquisadores: Andrew Dubber, da
Universidade de Birmingham, autor do livro "20 things you must know about
music online" e Gerd Leonhard e David Kusek, da Berklee Music College,
autores do livro "The future of music".
Antes de mais nada, é necessário identificar a partir de que momento,
ou de que mudança, surge aquilo a que nos referimos como "música digital".
O grande elemento transformador foi, no caso, a perda da necessidade de
suporte físico. No momento em que a música se transforma em informação
digital, uma série de características se alteram, e algumas das verdades sobre
as quais foi construída a indústria fonográfica perdem sentido.
As primeiras manifestações da cultura do MP3 já apontavam para uma
grande resignificação do sentido comercial da música. Na realidade dos
downloads e do compartilhamento online, um único arquivo fonte pode servir
de base para milhares de downloads - o que significa que, no mundo digital, a
escassez não existe quando se trata de fonograma. Esse fato, aliado ao modo
como o consumidor de música online adquire seus arquivos, que na maioria
das vezes é totalmente desligado do conceito de compra, faz com que a
música sofra uma mudança estrutural - perca o status de produto.
E a pergunta que surge daí, naturalmente, é: se a música não é mais
produto, o que ela se tornou? Ainda não existe uma resposta objetiva, mas
alguns apontamentos. E dentro de cada um destes apontamentos existem
meios de se desenvolver estratégias que façam sentido nos contexto atual.
Podemos tratar a música como serviço, aplicando a ela uma lógica similar à
usada na telefonia ou televisão; podemos entender também música como
conteúdo digital, e assim pensar em distribuição através de canais como
celulares e provedores de acesso à internet. A chave para o sucesso é
oferecer um serviço que seja mais ágil e vantajoso para o usuário que o
download ilegal.
57
No mundo das lojas de disco e das gravadoras, o indivíduo que
desejasse ouvir música tinha apenas dois caminhos possíveis: O rádio, onde
ele teria de se submeter à seleção musical que a programação oferecesse ou,
se desejasse ter o controle sobre o que escutar e quando, teria que comprar o
objeto oferecido e formatado pelas gravadoras, que pressupunha, além do
registro da música em si, a prensagem feita em vinil ou, posteriormente, em
Cd, dentro de uma embalagem impressa e montada, submetida a uma
logística de distribuição que resultava no produto exposto em loja, pelo preço
estipulado pelas necessidades do processo e dos agentes envolvidos,
contabilizando estoque e transporte, e que poderia então, ser adquirido.
Em um mundo digital, a música passa direto do registro do fonograma
para o consumo. Essa eliminação de intermediários provoca uma revolução
nas noções de preço e promoção de música.
A única barreira existente entre o consumidor final e o produtor de
conteúdo é o fazer-se conhecer, levar o indivíduo até o conteúdo, criar nele o
desejo pela obra em questão. Ou seja, a grosso modo, a promoção. Em se
tratando de música, só existe uma forma realmente eficiente de conquistar o
potencial consumidor: A audição.
Dubber (2007) fala sobre a única verdade imutável no consumo de
música - O processo Hear - Like - Buy (Ouvir - Gostar - Comprar). Esse
processo se mantém em todas as situações de consumo desde o início da
indústria. Mesmo nas redes peer-to-peer, e no universo do MP3. Mas apesar
de o sentido ser o mesmo, na nova realidade, a obtenção do produto nem
sempre se dá pela compra, ainda que o resultado seja a posse da música.
Partindo de um cenário onde não existe a escassez, e a principal
ferramenta de divulgação é a audição da música, o custo da promoção pode
ser drasticamente reduzido. O livro "20 things you must know about music
online" (Dubber, 2007) traz um exemplo bastante esclarecedor desse
processo: Um artista que, em 1995, fizesse uma prensagem de 1000 unidades
de seu Cd, daria 200 deles para diversos canais de divulgação, e esperaria,
com esse esforço, gerar demanda para a venda dos 800 restantes. Hoje, um
58
artista que faz a mesma prensagem de 1000 unidades, pode entregar um
milhão de arquivos com suas músicas para divulgação, e ainda vender as
1000 unidades.
O problema que se cria nesse sistema é que, se o consumidor busca a
música apenas, o benefício trazido pela promoção é exatamente o mesmo
trazido pelo produto físico, o que exclui a necessidade do disco. E se o
benefício trazido pelo download ilegal também é o mesmo, como viabilizar
financeiramente a produção musical? Como precificar esse conteúdo? As lojas
digitais ainda tomam por base os valores dos álbuns físicos, apesar de não
precisarem da mesma estrutura, e ainda assim, não geram receita suficiente
para a movimentação da indústria.
O livro "The Future of Music" traz alguns apontamentos nesse sentido.
Os pesquisadores da Berklee, analisando o comportamento que havia se
instalado no consumo de música desenvolveram, em 2005, o conceito "music
like water" (música como água). Segundo essa noção, a música nos meios
digitais flui livremente em quase todos os lugares e, em grande parte dos
casos, dá ao consumidor a sensação de ser gratuita. Essa visão prevê um
mundo onde o usuário passe 100% do seu tempo online, podendo assim, ter
acesso à musica em qualquer situação. Hoje essa relação, em muitos casos, já
é realidade. Os celulares mais recentes trazem essa possibilidade, não existe
mais limite entre o online e o offline, o ato de conectar-se perde o sentido, pois
nunca nos desconectamos.
No momento em que essa se torna a realidade do usuário, e a música
está facilmente disponível através desse canal, então a música passa a estar
presente a todo momento, "flui" livremente. Como se aproveitar desse
momento para criar um sistema lucrativo para os produtores de música é a
principal questão a ser discutida.
A metáfora "música como água", portanto, vai além de representar a
ubiqüidade com que se apresenta a música no mundo de hoje. Ela também
serve como apontamento para uma nova maneira de se pensar a economia
dos fonogramas. Se a música não exige mais um suporte físico, nem sofre de
59
escassez, e portanto, encontra dificuldades em ser precificada e vendida
seguindo o padrão de produto usado até então, podemos pensar em um
sistema onde a cobrança seja feita no acesso aos meios que levam à música.
Se os meios de acesso são provedores de acesso à internet e operadoras de
celular, poderia ser pensado um sistema em que essas empresas oferecessem
serviços organizados de música e cobrassem por isso um valor dissolvido nas
faturas existentes, já pagas pelos usuários. O mercado de música digital
representa hoje 3,7 bilhões de dólares, no sistema de lojas virtuais. Quase
metade desse valor vem do consumo via dispositivos móveis. Em alguns
mercados, como o Japão, a porcentagem do consumo por celular supera os
90%.
Existem atualmente no planeta cerca de 4 bilhões de telefones
celulares. Se pensássemos em converter metade desses usuários em
consumidores de música, uma parcela que soa perfeitamente plausível em um
mundo onde a capacidade de reprodução de arquivos de áudio é cada vez
mais presente nos telefones, e acrescentássemos uma taxa sobre o conteúdo
disponível de, por exemplo, 5 dólares anuais, para o acesso ilimitado a um
grande catálogo, teríamos um mercado potencial de 10 bilhões de dólares,
quase o triplo do total do mercado digital atual. Esse despretensioso cálculo,
naturalmente, encontraria uma série de empecilhos e distorções sociais e
mercadológicas, se fosse adaptado à realidade. Mas esse pensamento, mais
que uma estratégia, pode ser entendido como uma forma de encarar novas
possibilidades de mercado.
De volta à comparação com a água, podemos separar esse consumo
massivo, o consumo pela subscrição aos provedores de conteúdo, via
dispositivos móveis ou internet - a água que usamos em nossas casas para
beber, cozinhar, tomar banho ou limpar - de um consumo de produtos (agora
sim) exclusivos, com uma série de diferenciais, kits com informação exclusiva,
e benefícios ao fã que vão além da própria música, como camisetas, imagens,
vídeos, livros, vendidos como as águas engarrafadas são vendidas em
restaurantes e supermercados.
Essas abordagens representam, essencialmente, as possibilidades
vislumbradas por profissionais e estudiosos da indústria fonográfica. O
60
contexto atual vem colocando essas idéias em teste, conferindo ao mercado
grande dinamicidade, e valorizando a criatividade, cada vez mais necessária
num cenário em que o mercado ainda se encontra em decadência. Desde a
idealização do conceito de "música como água", diversos serviços de
subscrição foram colocados em prática, com maior ou menor sucesso, mas
que em nenhum momento despontaram como soluções para a crise. No
entanto os entendimentos do comportamento de consumo trazidos por essas
evoluções se mostram especialmente valiosos diante da instabilidade.
O
maior
dos
reveses
na
conquista
de
modelos
econômicos
verdadeiramente eficientes para se trabalhar a música digital ainda é a
eficiência dos sistemas ilegais de download e, naturalmente, a gratuidade que
eles oferecem.
Tomando como ponto de partida a dificuldade de precificação dos
conteúdos de informação nas mídias atuais, uma recente corrente de
pensadores, jornalistas e escritores envolvidos com o mercado digital têm
flertado com a idéia de modelos econômicos baseados no custo zero de
conteúdos digitais, na chamada "economia da abundância. Uma das figuras
de destaque a teorizar sobre o assunto é o escritor americano Chris Anderson,
editor-chefe da revista americana Wired, e um dos mais populares pensadores
da economia digital - autor do aclamado livro "A Cauda Longa". Anderson
lançará, no dia 6 de julho de 2009, o livro "Free", no qual propõe práticas a
partir das quais pode-se viabilizar economicamente a gratuidade de uma série
de produtos. A convergência de mídias e o planejamento de sistemas de
compensações financeiras paralelas aos custos do produto são o centro da
teoria.
Em se tratando do mercado de música, Anderson cita como exemplo,
entre outros a Banda Calypso, e seu sistema de distribuição gratuita de discos
para o público, compensado pela vasta audiência dos shows, e o novo modelo
do tecnobrega, que entrega Cds "gratuitos" junto do ingresso do show, que,
novamente em compensação, passa a custar um pouco mais caro. Outro
exemplo citado é o do lançamento, em 2007, do álbum "Planet Earth", do
cantor e multi-instrumentista Prince, que foi distribuído gratuitamente junto à
61
uma edição de domingo do jornal londrino Daily Mail, com tiragem de 2,8
milhões de exemplares. O artista teria, a princípio, perdido dinheiro,
licensiando o conteúdo do disco 0,36 dólares, quando o valor tradicional seria
de 2,00 dólares. Mas a promoção gerada pela distribuição teria compensado a
atitude, pois o músico lotaria 21 shows na região nos meses seguintes. Da
mesma forma, o Daily Mail também teria tido prejuízo na operação, uma vez
que o custo da produção e distribuição adicional gerado pela adição dos Cds
seria inferior ao lucro obtido com as vendas. No entanto, o dirigente da
publicação justificou a atitude pelo fato de o projeto ter valorizado a marca do
jornal, que passou a atrair mais anunciantes.
O fato é que, cada vez mais, proliferam-se as opiniões de que a
gratuidade da música é uma opção viável. A busca é por um sistema que,
além de ser gratuito, ou pelo menos passar ao usuário essa sensação, possa
ser mais atraente e eficaz que os sistemas ilegais de download.
62
6. CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Música e a economia do grátis
63
O primeiro ponto a ser exposto nessas considerações finais é a
constatação, desenvolvida ao longo deste trabalho, de que no entendimento
do consumidor assíduo de música, o jovem, que tem sido nas últimas décadas
o motor dessa indústria, o usuário de internet que se relaciona com áudio em
formato digital, a música já é gratuita. Para a maioria absoluta desses
indivíduos, que desenvolveram seus hábitos junto com o crescimento das
redes de relacionamento, dos programas peer-to-peer, do formato MP3 e do
iPod e iPhone,
não existe relação de compra e venda de arquivos, o
download parece livre de qualquer relação comercial.
As tentativas da indústria de legalizar esse consumo através das lojas
virtuais mostraram-se surpreendentemente eficazes, levando-se em conta as
perdas sofridas com o boom das redes de compartilhamento, mas mesmo o
crescimento destes sistemas não foi capaz de compensar as constantes
quedas que as gravadoras vem sofrendo ano após ano. O sistema de venda
de arquivos digitais funciona quase como um eufemismo do fim da relação de
produto que se tinha com a música, uma forma de atenuar uma verdade
dolorosa, ou um meio de desacelerar um processo inevitável.
A autonomia trazida pela internet apresenta ao ouvinte uma série
incontável de alternativas aos sistemas "oficiais", que entregam o mesmo
benefício, ou benefícios muito semelhantes sem nenhum custo. Se os
softwares descendentes do Napster apresentam como contraponto ao
volume de informação uma péssima organização, e a falta de confiabilidade
dos arquivos, os incontáveis blogs dedicados a disponibilizar discos e
discografias em MP3 apresentam informação de alta qualidade - tanto no que
diz respeito à qualidade sonora quanto à imagens e informações relativas ao
conteúdo musical, sendo muitas vezes superior a lojas como a iTunes Music
Store. Neste contexto, o caminho "legítimo" se apresenta ao consumidor
como uma opção muito menos interessante.
As diversas campanhas capitaneadas pelas gravadoras nos últimos
anos alternam entre o educativo e o ameaçador, em slogans como "o
compartilhamento de arquivos mata a música" e "pirataria é crime". No
64
entanto, a imagem pública da indústria é extremamente negativa, o que
contribui para a falta de eficácia dessas iniciativas, que se soma à carência de
alternativas oficiais realmente atraentes.
Num cenário como esse, onde a circulação de conteúdo ilegal é imensa
e bem organizada, e o usuário é soberano, a única alternativa realmente capaz
de ser bem-sucedida, é a criação de um serviço legal que seja realmente
atraente para o consumidor - principalmente, mais atraente que as alternativas
ilegais. Entretanto, as possibilidades referentes ao download de arquivos
parecem ter se esgotado. Que tipo de solução poderia ser encontrada em
novos formatos?
Certamente existem várias respostas, complexas e possivelmente
eficazes. No entanto, ao cabo das análises aqui desenvolvidas, e da
observação do mercado e do consumo, uma das possibilidades chama
atenção em especial.
A música na web pode chegar ao usuário de duas formas principais download e streaming. O download é a primeira e mais tradicional dessas
formas, e consiste na transferência de um arquivo de áudio de um servidor
virtual para o disco rígido do computador do usuário, que o executa através de
um software específico para reprodução, no caso de música ou vídeo. O
streaming, por sua vez, surgiu como forma de viabilizar programas online de
rádio - consistia na execução, em uma determinada página da internet, de um
arquivo de áudio hospedado em um servidor virtual, mas que tocava no
navegador, sem a necessidade de se copiá-lo para o computador pessoal.
Devido à lentidão das conexões de internet à época de seu nascimento, os
áudios exibidos dessa forma tendiam a ter baixa qualidade, e não raro eram
interrompidos várias vezes durante a execução. Depois da popularização das
conexões de banda larga, contudo, passaram a surgir canais mais
interessantes que utilizavam o streaming como atrativo principal, dessa vez
com uma qualidade muito mais próxima dos arquivos de MP3.
Diversos
canais
fundamentados
nessa forma de execução se
popularizaram, podemos citar alguns como o Pandora, um site fundamentado
65
no auto-intitulado "Projeto Genoma da Música" (Music Genome Project), que
sugeria programações musicais a partir de artistas indicados pelo usuário,
cruzando informações de um banco de dados de características musicais,
fruto de pesquisas do referido projeto. A execução das músicas era feita
sempre por meio do streaming. Outro site de funcionamento parecido, mas
que se tornou ainda mais popular foi o Last.fm, que funcionava em um
sistema relativamente parecido, que indicava programações musicais aos
usuários, e as tocava por streaming. A diferença é que, neste caso, o
cruzamento de referências era feito a partir do comportamento dos ouvintes
que freqüentavam o site e buscavam os artistas de sua preferência. O mais
popular dos sites de streaming, porém, não é fundamentado em exibição de
música, mas sim de vídeo. O YouTube mostrou-se uma das criações mais
populares e poderosas da web. E mostrou também o potencial da música
nesse sistema de exibição, pois não só a música é um dos temas mais
procurados e exibidos no YouTube, mas ele mesmo se tornou uma importante
fonte de consumo musical.
Estes sistemas, no entanto, tem alguns problemas determinantes em
relação consumo de música como acontece atualmente. Primeiro, todos os
projetos citados tem pouca funcionalidade no que se trata de um dos
conceitos mais importantes na música digital: A playlist. Em um momento no
qual a noção mais importante do relacionamento entre indivíduo e música é o
controle, é absolutamente determinante que se possa ter um sistema
organizado, ágil e facilmente acessível de playlists. A carência de controle
nesses sistemas é tratada um diferencial no caso da Last.fm e do Pandora,
que tem como pretensão apresentar novos conteúdos ao usuário, mas é
justamente isso que impede esses sistemas de serem encarados hoje como
fonte primaria de consumo de música.
Outro fator que impede os sistemas de streaming disponíveis de
superarem o download como fonte primaria de consumo de música é a falta
de portabilidade. A popularização de iPods e celulares com suporte para MP3
fez com que a música se tornasse totalmente móvel, passível de ser apreciada
em todos os lugares e situações. Os sistemas criados envolvendo o streaming,
66
até pouco tempo atrás, não tinham condições de acontecerem fora do
navegador de internet de um computador pessoal, uma série de barreiras
tecnológicas impediam a utilização do sistema em formatos portáteis.
Depois das inovações trazidas pelas últimas gerações de smartphones
e aparelhos com a tecnologia 3G, essa portabilidade tornou-se viável, e
começam a surgir novas gerações de softwares e sistemas de streaming mais
atraentes e mais condizentes com a realidade do usuário contemporâneo. A
tendência é que, com a popularização cada vez maior do streaming, a partir da
elaboração de um sistema adequado às necessidade atuais, o download
desapareça ou, pelo menos, deixe de ser a principal forma de consumo de
música em formato digital. Essa mudança pode representar, para indústria,
uma oportunidade de gerar um esquema legítimo e lucrativo, tornando legal a
maior parte do consumo de música.
Os serviços mais recentes de streaming, entre os quais podemos citar o
francês Deezer, e o sueco Spotify, apresentam soluções cada vez mais
completas para o consumidor contemporâneo, e o fazem de forma legítima, a
partir de acordos com a indústria. O Próprio YouTube, em 2008, já revertia
parte de sua arrecadação em publicidade a empresas com vídeos
cadastrados, que apresentavam grande número de exibições.
Ainda não existe um sistema unificado para a remuneração referente ao
streaming de músicas, cada um dos serviços desenvolve seus próprios
acordos, que podem ou não ir ao encontro dos interesses das gravadoras. No
entanto, o streaming já apontava ser uma possível fonte de renda antes desse
novo formato - as distribuidoras digitais usavam sites de streaming para
promover conteúdos musicais de forma remunerada - o que fez com que as
gravadoras se sentissem mais confortáveis com o streaming do que se
sentiam com o download. Além do fato de que, para esses produtores, a
simples exibição da música parece ser menos ofensiva, ou menos prejudicial
do que uma relação em que o usuário passa a possuir a música.
O fato é que, de uma forma ou de outra, o streaming vem tendo boa
aceitação tanto do mercado quanto dos usuários. Do ponto de vista do
67
usuário, existem vantagens nítidas - O streaming não pressupõe o tempo de
espera do download, a música pode ser executada diretamente, a partir do
acesso ao canal onde ela está disponibilizada, e não ocupa espaço no disco
rígido de seus computadores pessoais. Se as desvantagens antes associadas
ao streaming (má qualidade de áudio, carência de playlists eficientes, ausência
de portabilidade) deixam de existir, ele passa a ser uma possibilidade
extremamente atraente ao usuário. Do ponto de vista dos produtores de
música, qualquer iniciativa online que apresente uma alternativa viável de gerar
lucro é válida.
Outros serviços de música que tem por base a sensação de
"gratuidade" se proliferaram em diversos canais nos últimos anos. Dois
exemplos interessantes são o projeto Nokia Comes With Music e o sistema
de Download Remunerado, desenvolvido pela gravadora Trama no Brasil.
No caso da Nokia, a idéia é embutir no custo do aparelho de celular um
preço referente ao download de músicas inclusas no programa. O celular
oferece um catálogo vasto (3,6 milhões de músicas, segundo a campanha de
divulgação do novo sistema), dentro do qual o usuário do aparelho pode fazer
downloads ilimitados por um ano. A remuneração das gravadoras é feita com
base num acordo que estima uma média de downloads possíveis por usuário,
e remunera as empresas envolvidas de acordo com o tamanho do catálogo
disponibilizado.
No
sistema
atualmente
usado
pela
Trama,
o
do
Download
Remunerado, um patrocinador compra o projeto em troca de espaço
publicitário no site TramaVirtual, e os músicos e produtores participantes
recebem de acordo com o número de downloads efetuados. Esse sistema vale
para o portal de artistas independentes criado pela Trama, onde os artistas se
cadastram livremente, e recebem com base exclusivamente na quantidade de
downloads efetuados. O sistema, no entanto, não envolve nenhum dos artistas
efetivamente contratados pela gravadora. O catálogo oficial da Trama não
está disponível nem para streaming nem para download. A exceção só
acontece no caso do projeto Álbum Virtual, no qual um artista do casting da
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gravadora disponibiliza todo o disco, incluindo capa, encarte, rotulo e afins,
para download gratuito (mediante cadastro) no site da Trama. Nesse caso, o
patrocínio é vendido separadamente para cada álbum participante do projeto.
Nestes dois últimos projetos, no entanto, o usuário tem poucas
vantagens em relação ao download ilegal. A única vantagem absolutamente
nítida é a presença de uma fonte "legítima" e, talvez no caso do Álbum
Virtual, a presença das imagens que compõe o disco. As desvantagens, no
entanto são as diversas limitações impostas por esses serviços. No caso do
Nokia Comes With Music, além do serviço estar atrelado à compra do
aparelho, o catálogo, por maior que seja, jamais será tão completo quanto o
disponível ilegalmente na web. Outro agravante é a presença de tecnologias
DRM em todos os arquivos adquiridos nesse sistema. Uma música adquirida
pelo aparelho de celular só pode ser executada nele mesmo, não podendo ser
compartilhada, transferida para computadores ou MP3 players, nem gravada
em Cd. Esse bloqueio é contrário à idéia de portabilidade da música que,
apesar de estar armazenada em um dispositivo móvel, não pode ser
transportada para nenhum outro meio.
No caso do Download Remunerado, o catálogo é extremamente
limitado, composto basicamente de bandas absolutamente independentes e,
justamente por isso, quase completamente carentes de divulgação e pouco
atraentes para os consumidores. Mesmo o Álbum Virtual, que oferece artistas
que já possuem alguma base de fãs interessados, nunca oferece mais que
alguns poucos artistas simultaneamente, além de cada lançamento ser
disponibilizado por um período curto de tempo. Não bastassem essas
limitações, se a hegemonia o streaming de fato se converter em uma
realidade, todos os serviços baseados no download se tornarão obsoletos.
A precificação no streaming ainda não encontrou um modelo definitivo
mas, em boa parte dos casos, assemelha-se mais ao sistema de remuneração
do rádio que à venda de música. É acordado com a empresa produtora do
fonograma um valor por execução, pago depois de um determinado tempo de
atividade do sistema, de acordo com o número de vezes que cada música foi
69
ouvida. A fonte de renda desses programas varia de acordo com cada
concepção, havendo sistemas que cobram uma taxa de subscrição do
usuário, que a partir dela tem acesso a todo o catálogo, e sistemas baseados
na venda de espaços publicitários. A criação de um software completo e
organizado com base no streaming, no qual o consumidor possa facilmente
administrar playlists, acessá-las em diversos suportes e encontrar um catálogo
extremamente vasto, que possa remunerar produtores, artistas e gravadoras,
o mercado de música tomará rumos absolutamente novos.
Nos últimos meses, tem ganhado grande popularidade no mundo digital
um software sueco desenvolvido com base numa plataforma de streaming. O
Spotify funciona agregando servidores virtuais de música com um sistema
peer-to-peer, que reconhece arquivos de áudio armazenados nas máquinas de
cada usuário e possibilita a audição desses arquivos, o que permite o acesso a
um grande catálogo. São oferecidos dois modelos de consumo: O modelo
"Free", em que o usuário pode utilizar o programa gratuitamente, sendo
exposto a mensagens publicitárias de 20 segundos, com intervalos de cerca
de meia hora, e o modelo "Premium", no qual o usuário paga uma taxa mensal
e pode usufruir do serviço livre de publicidade.
O software é disponibilizado no site da empresa, e pode ser instalado
em diversos computadores, o usuário configura uma conta pessoal, a partir da
qual pode acessar seu conteúdo independente da máquina em que se
encontra. Da mesma forma, o software já existe em versão móvel, compatível
com o sistema operacional Google Android, disponível em diversos aparelhos
de telefonia móvel. Especula-se que dentro de alguns meses sejam
disponibilizadas versões compatíveis com o iPhone e com outras plataformas
móveis, como o Windows Mobile. O Spotify conta com boa aceitação da
indústria fonográfica, tendo firmado acordos com as quatro majors e com
diversas gravadoras e distribuidoras independentes de conteúdo online.
As apostas em relação ao novo programa têm animado tanto à indústria
quanto aos críticos e estudiosos do mercado, além de ter tido excelente
aceitação de público nos países em que já está em operação - a versão
70
gratuita já está em pleno funcionamento na Suécia, Noruega, Finlândia, Reino
Unido, França e Espanha, tendo alcançado a marca de um milhão de usuários
já no quarto mês de atividade.
Como o cenário se consolidará nos próximos anos, se o streaming
superará o download, se as gravadoras sobreviverão nos novos sistemas, ou
se a música mudará de foco, sendo subsidiada pelas empresas de acesso
digital, não se pode saber, só se pode especular. No entanto, alguns fatores
marcantes podem ser indicadores de uma mudança de rumo. Entre eles, o
fato de, pela primeira vez na história, as quatro grandes gravadoras acordarem
em ter seu conteúdo disponível em um sistema online e gratuito. Outro ponto
que pode ser entendido como favorável à possível soberania do streaming é o
fato de que a Apple, hoje uma das mais importantes ditadoras de tendências
musicais, reduziu a capacidade de armazenamento dos modelos mais
recentes de iPods e iPhones, sugerindo a diminuição da necessidade de
armazenamento de arquivos.
O site hypebot.com, importante agregador de notícias do mercado
musical, propôs a seguinte previsão, na ocasião em que foi divulgado o
lançamento da versão para o Google Android do Spotify:
"Quando a versão para iPhone for lançada, e o Spotify se expandir nos
EUA - ambos são inevitáveis - todo o cenário se alterará, e todos seguirão o
Spotify, ao invés do iTunes." (Bruce Houghton, editor do site hypebot.com e
presidente da agência Skyline Music)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, V. Folks and cowboys: aesthetical of Brazilian country music.
Monroe, LA USA: Wea Books, 2001
DUBBER, A. 20 things you must know about music online. Birmingham, UK,
2007. Disponível em: < http://newmusicstrategies.com >
GOMES CORRÊA, T. Mercado da música, disco e alienação. São Paulo:
Expert, 1987
KUSEK, D.; LEONHARD, A. The future of music. Boston, MA USA: Berklee
Press, 2005
MIDANI, A. Música, ídolos e poder. São Paulo: Nova Fronteira, 2008
ANDERSON, C. Free! Why $0.00 Is the Future of Business. Wired Magazine,
Issue 16.03, USA, fev. 2008. Disponível em: <
http://www.wired.com/techbiz/it/magazine/16-03/ff_free >
ANDERSON, C. The Long Tail. Wired Magazine, Issue 12.10, USA, out. 2004.
Disponível em: < http://www.wired.com/wired/archive/12.10/tail.html >
http://www.hypebot.com
http://newmusicstrategies.com
http://www.musicthinktank.com
http://sethgodin.typepad.com/seths_blog/
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ANEXOS
Entrevista: Chimbinha por Ricardo Calil, revista Trip edição 175,
Março de 2009.
Chimbinha - O líder da Calypso não fica parado e já pensa em reinventar outra vez o
negócio da música
Como foi sua infância no interior do Pará?
Foi muito boa e difícil ao mesmo tempo. Eu tinha uma família muito humilde. Meu pai
trabalhava numa serraria, minha mãe era dona de casa. Nós somos sete irmãos. Não foi fácil
para meu pai sustentar todo mundo. Quando viemos para Belém, eu já tinha uns 10 anos.
Fomos morar numa invasão, tipo uma favela. Aí papai foi trabalhar na feira como vendedor de
peixe e eu fui ajudá-lo.
A música já tinha entrado em sua vida nessa época?
Desde que eu me entendo por gente, eu já estava com o violão na mão. Meu irmão Pedro era
músico. Ele foi a pessoa que eu ouvia tocar todos os dias. Quando ele deixava o instrumento,
eu pegava e ficava tocando. Meu irmão tocava rock, mas eu já sabia que gostava de música
caribenha, das lambadas internacionais que tocam no Pará.
Como essas músicas caribenhas chegavam até você?
Pelas rádios AM. Lá no interior não pegava FM. Minha avó tinha um rádio grande. Ela tentava
sintonizar as estações, ficava chiando até parar na música. Às vezes era rádio do Caribe, da
Guiana Francesa. Não pegava rádio do Sul. A gente ficava ouvindo música o dia todo, até
tarde da noite. Aquilo foi entrando na minha cabeça.
E acabou influenciando na sua música?
Influenciou na minha vida toda. Hoje a Banda Calypso existe por conta dessa influência que
vem de criança. Até hoje eu ouço rádio AM para escutar essas músicas, até hoje elas me
inspiram.
Era seu irmão quem lhe ensinava as notas ou você aprendia sozinho?
Com uns 10 anos de idade, já comecei a tirar música sozinho. Eu escutava no rádio, ia
pegando e tocando em cima do que eu ouvia. Bastava ouvir duas vezes e eu já sabia tocar.
Mas, quando a música era mais difícil, quando tinha alguma nota dissonante, ele me ensinava.
Com 12 anos, comecei a tocar numa banda de baile por indicação do meu irmão. Mas
continuei trabalhando na feira com meu pai. De dia eu ia pra feira, à tarde ia pro colégio,
dormia um pouco; quando dava meia-noite, eu já estava na festa tocando. Estudei até a sexta
série. Muito pouco, né?
Você já tinha responsabilidade de levar o dinheiro pra casa?
Tinha. De comprar o material escolar dos meus irmãos, a comida lá de casa. Meu pai perdeu
três dedos, ficou difícil trabalhar, e ele tem problema de vista. Eu tinha que trabalhar. Era tipo
o chefe da casa, como até hoje.
E o apelido Chimbinha, de onde surgiu?
Rapaz, isso é complicado para falar. [risos]. Ai, meu Deus do céu. Eu vou contar. O povo me
chamava não era de Chimbinha, era de bichinha [risos]. Era moleque, tocava com essa banda
em uma boate. a gente chamava assim antes, não sei nem como chamam hoje.
Puteiro?
73
Deve ser. A gente tocava muito nesses bares onde as mulheres iam fazer programa. Eu era
molequinho mesmo, era mais novo que meu filho [que tem 12 anos]. O dono da banda
mandava as mulheres darem em cima de mim, de brincadeira. Eu ficava triste, chorava muito.
Daí ele me chamava de bichinha. Teve um dia que falei que não ia mais tocar. Daí ele disse
que ia mudar meu apelido para Chimbinha. Eu gostei. Chimbinha é carinhoso. Depois é que eu
descobri que Chimbinha é trocadilho de bichinha. Mas aí o apelido já tinha pegado.
O que vocês tocavam na banda?
Banda de baile tem que tocar tudo que está na moda. Na época, era Roupa Nova, Zé
Ramalho, Sandra de Sá, Alceu Valença, Elba Ramalho, José Augusto. De internacional, a
gente tocava o que estava nas rádios: Brian Adams, Rod Stewart, Dire Straits, U2 [começa a
lembrar as músicas no violão: “Every Breath You Take”, do Police, “Sweet Child of Mine”, do
Guns N’ Roses, “Alagados”, do Paralamas].
E quando você passou da banda para o estúdio?
No finzinho dos anos 80, começo dos 90. No começo foi difícil para pegar os clientes. O
sucesso na época era a lambada, e já havia uma banda muito boa de Belém que dominava as
gravações. A gente só gravava aqueles cantores que não tinham condição de gravar com eles.
Mas, numa dessas, um cantor com
que eu gravei estourou. Foi o Roberto Vilar. Daí o povo começou a me chamar para gravar e a
vida da minha família melhorou um pouco. Nós ainda morávamos na favela, mas já tinha
chegado água e luz. Só não dava para comprar uma casa ainda.
Eu li que você participou de uns mil cds como guitarrista.
Por aí. Não tenho o número exato. Tocava todos os ritmos que pedissem. E não gravava só
aqui. Gravava em Recife, Fortaleza, Manaus. Eu fiquei de 90 até 99 no estúdio, gravando dia e
noite sem parar. Entrava nove da manhã e saía às três da madrugada todos os dias.
Carga puxada para um garoto, né?
Muito puxada. E até hoje eu sinto isso, porque não consigo dormir. Eu me adaptei com essa
vida. Hoje durmo muito pouco. Quando eu consigo dormir quatro horas é uma vitória.
Mas você não sente falta de ter feito mais coisas na adolescência? De dançar com as garotas,
em vez de tocar no palco?
Não, eu gostei de tudo. Se tivesse que voltar, faria tudo igual. Foi muito bom. Aprendi muito.
Mas teve muito sacrifício, não estudei do jeito que meu pai queria. O sonho dele era ver a
gente formado. Mas hoje ele é feliz, porque a gente pode lhe dar uma vida que ele nunca
sonhava. Se eu fosse formado em direito, por exemplo, não sei se seria um bom advogado.
Porque eu gosto muito do que eu faço. Eu nasci para ser músico e tocar isso que eu toco.
Como você saiu do estúdio para criar a Banda Calypso?
Em 99 um amigo meu, o Kim Marques, me apresentou à Joelma, que queria gravar seu
primeiro disco e precisava de um produtor. Eu ouvi o repertório e não gostei das músicas.
Comecei a correr atrás de letras com a Joelma, a fazer música com meus parceiros. Foram
dois ou três meses até encaixar um repertório bom. Nesse tempo, nós começamos a namorar.
Quando chegamos ao estúdio, eu fiz a proposta de a gente fazer uma banda. E a Joelma
topou. Ela disse: vamos botar o nome de Calypso, que vocês usam muito no estúdio. Mas eu
disse que o nome era muito difícil, o povo não ia acertar. Daí um dia chega um amigo meu, o
Bispo Júnior, e diz: “Chimbinha, eu achei o nome pra tua banda: Calypso! Todo mundo fala
que tu é o rei do calipso”. Falei pra Joelma: “Esse nome é bom mesmo”. Ela reclamou que
estava sem moral, mas ficou Calypso. No começo, os locutores chamavam de Colapso,
Calistro, Calypson, e pensavam que a gente era banda de forró. Deu um trabalho do caramba
pro povo assimilar. Mas hoje todo mundo sabe o que é a Banda Calypso, que calipso é um
ritmo. Quer dizer, é uma mistura de muitos ritmos que a gente chama de calipso. Vamos
completar dez anos de banda, e a gente mesmo não sabe qual é o som que a gente tira.
Mas quais ritmos você identifica no som da banda?
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A gente usa um pouco do carimbó, lambada, merengue, cacicó, zouk e até uma pitada do
calipso caribenho. Tem uma percussão meio afro. Eu não sabia o que era o kuduro. Quando
eu fui para Angola tocar, ouvi o ritmo e disse: “A gente toca isso desde criança. O Calypso
toca sem conhecer”. A gente também vai muito em cima do rock, a caixa do twist com uma
guitarra do chacundum, outra guitarra de reggae, outra de funk. Coloco sempre duas, três,
quatro guitarras em cada música. Quando a gente vê a soma, tá um som legal pra caramba.
E onde que entra a guitarrada? É influência também?
É sim. Foi o mestre Vieira quem inventou. Ele pegava a música caribenha e solava a melodia
com a guitarra no lugar da voz. Ouvi muito ele. Também sou fã do Aldo Sena. Era meu mestre
e depois virou parceiro. Mas minha guitarra também tem outras influências, como o Renato,
dos Blue Caps, e o guitarrista que acompanhava o Roy Orbinson. Misturei tudo isso e botei a
minha pegada.
E o processo de conquista da Joelma, como é que foi?
Quando vi a Joelma pela primeira vez, eu não falei com ela. Era muito tímido. Eu pensei: “Será
que ela é uma pessoa boçal? Eu não vou falar nada para ela não me tratar mal”. Passei reto.
Depois ela disse que pensou a mesma coisa de mim: “É muito boçal, nem fala direito com a
gente!”. Aí o Kim convidou a gente para almoçar um camarão com açaí num restaurante aqui
de Belém. Ele saiu para atender o telefone, eu fiquei na mesa sozinho com a Joelma, e ela
começou a conversar comigo. Quando fui levá-la em casa, ela me convidou para fazer o
repertório do disco. Eu morava longe demais, e o ônibus ia só até nove da noite. Se perdesse,
era só no outro dia às seis da manhã. Eu acabei dormindo na casa dela e fui ficando. Quando
vi já tava junto. Foi assim que aconteceu. E estamos juntos até hoje, graças a Deus.
Em Belém existem as rádios de poste, que ficam tocando música em alto-falantes na rua. Eu
ouvi dizer que elas foram muito importantes para vocês no começo da carreira. Como foi essa
história?
Eu me emociono quando me lembro disso. Esses dias agora andando em Belém. passei numa
rua e comecei a chorar. De felicidade, de alegria, mas também daquele sofrimento que eu
passei no começo. A gente morava na Cidade Velha, num quartinho de quatro por quatro, só
tinha uma cama e um fogão. Quando a gente lançou o primeiro disco, eu falei: tenho que parar
de gravar como músico de estúdio para divulgar esse CD. Eu saía de casa cedo, às sete da
manhã. Não tinha dinheiro pra comer, passava o dia tomando água. Também não tinha
dinheiro para pegar ônibus, então ia a pé para as rádios. Se você visse as distâncias, ia ter
pena de mim [risos]. Mas não tinha como eles tocarem a gente. Porque, pra tocar numa rádio,
ou você está muito estourado ou então você tem que fazer promoção.
Pagar jabá?
Não chegava a ser jabá, porque não tinha grana. Era armar uma promoção com o diretor da
rádio, por exemplo comprar mil camisetas pra sortear. Mas eu estava sempre liso. Não sabia
mais o que fazer. Um dia, quando eu ia para casa, eu escutei essas rádios de poste tocando
música. Aí tive um estalo. Passei
a divulgar nosso disco nessas rádios. Daí a cidade todinha começou a tocar a Banda Calypso
nos postes.
Em menos de três meses, estavam todas as rádios normais tocando também. Porque as
pessoas que ouviam no poste ligavam e pediam nossa música. Eu distribuí de graça 50 mil
CDs do nosso primeiro disco, para loja, carro de som, rádio de poste, pro público. Aí a banda
estourou no primeiro disco. A gente fazia show e não ficava com o dinheiro. Sobravam R$ 2,
3, 4 mil por semana, a gente fazia CD e dava pro povo.
Você está falando das rádios. Mas antes disso você deve ter batido à porta de muitas
gravadoras para lançar o disco, né?
É, esse disco eu mandei pra muita gravadora. Quando a banda estourou, eu fui numa
gravadora famosa de São Paulo. O diretor me perguntou: “Por que você não me mandou um
disco desses para eu lançar?”.
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Eu respondi: “Eu mandei, procura aí que chegou em outubro de 99”. A secretária foi pesquisar
e viu que tava lá o disco. Não era pra ser. Se eu tivesse lançado o disco com uma gravadora,
não teria dado tão certo, porque tem artista com mais prioridade, eles não iriam trabalhar tão
bem.
O cara da gravadora deve ter se arrependido, porque perdeu muito dinheiro.
Muitos se arrependeram. Eles já me falaram. Agora tenho amigos nas gravadoras. E acho que
tá difícil hoje a gravadora sobreviver com essa pirataria. A gente mesmo, que é independente e
não tem tanto investimento quanto uma gravadora, já está sofrendo. Antigamente a gente
tirava tudo da venda do CD, hoje tira do show. A gravadora ainda paga produtor musical, um
cara para escolher repertório, outro para fazer arranjo, paga a divulgação. Então as gravadoras
foram muito prejudicadas. Se não tomarem uma medida contra a pirataria, eu não sei aonde
isso vai chegar.
Mas a piataria não ajudou a divulgar a Banda Calypso no começo?
Olha, é difícil falar mal da pirataria porque eu fui ajudado por ela. Mas no nosso começo não
existia essa pirataria de internet que tem hoje, de baixar música de graça. Na época a pirataria
era só de CD. Isso ajudou bastante a gente. Mas hoje a gente lança o disco, amanhã tão
baixando. Atrapalha as vendas. As pessoas não sabem o quanto a gente investe, mesmo
sendo independente. Para vender por R$ 9,99 para o consumidor final, temos que vender para
a distribuidora por um preço muito mais barato. Temos que pagar os direitos autorais dos
compositores, os músicos, o estúdio, a arte. Hoje nós temos mais de 200 funcionários, temos
que funcionar como uma gravadora e cuidar da divulgação. Tudo dessa parte quem
administra sou eu. Então todo o dia fico falando em três telefones. Quando tá difícil tocar em
todas as rádios, eu sofro muito. Aí eu vou visitar o diretor da rádio, peço uma força, volto outro
dia. Até que eu consigo.
Isso até hoje?
Hoje é que eu faço mais.
Depois de vender 12 milhões de discos?
Agora é que é a hora. Há alguns anos, o povo tinha que tocar Calypso porque tava fervendo
mesmo. Hoje, tem rádio que não toca.
Muita gente diz que a Banda Calypso inventou um novo modelo de negócio, com essa história
de não ter gravadora, de vender disco em show ou em supermercado, de fazer distribuição via
camelôs. Esse esquema foi ideia sua?
Foi uma ideia da necessidade. Eu não parei para bolar. Fui fazendo. Como não tinha
gravadora, era a gente que fazia a distribuição no começo. A Joelma ficava no telefone tirando
os pedidos. Eu ia no correio e mandava pro Brasil todo. Começou assim.
Esse modelo acabou sendo imitado por muitas bandas, principalmente aqui no Pará, não é?
A maioria dos artistas daqui faz isso. Hoje não existe gravadora no Norte e no Nordeste, só no
Rio e em São Paulo. Então tivemos que fazer isso aqui para viver de música, porque as
gravadoras foram embora daqui. E, se continuar desse jeito, elas vão embora do Brasil.
Você soube que um jornalista americano chamado Chris Anderson, editor da revista Wired,
citou a Banda Calypso no livro Free!, sobre a economia gratuita?
Nunca ouvi falar. Mas que coisa boa. É muito bom esse modelo. Acho que os artistas mais
conhecidos também podiam fazer, como Zezé di Camargo, a turma da MPB. Na hora em que
um deles de nome entrar, vai dar uma força para a gente continuar mais alguns anos com esse
modelo.
Você acha que não vai durar muito mais?
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Acho que esse modelo deu certo por dez anos. Mas já está mudando. Hoje ninguém consegue
vender disco em loja. Algumas bandas já fazem o seguinte: na compra de um ingresso para o
show, leva um CD de graça. Esse é o modelo que estão usando.
O Calypso vai usar também?
Não sei. Se fecharem as lojas todas, vamos ter que fazer isso.
A crise atingiu o Calypso?
A gente tá trabalhando menos porque nós quisemos. Nasceu a Yasmin, meu filho precisa
muito de mim nesse momento, porque tá entrando na adolescência. A gente precisa viver
mais um pouco. Antes a gente
fazia 25 shows por mês, hoje a gente faz 16. Ainda é muita coisa. A gente toca de quinta a
domingo, toda semana. Tem terça e quarta para resolver as coisas da banda e outros
negócios. A Joelma tem loja de roupa, fábrica de roupa. Eu tenho uma pequena fazenda no
Pará, onde estou criando gado.
Vocês começaram a estourar no começo do anos 2000, mas só chegaram à TV há uns três
anos. Por quê?
Eu não queria nem fazer televisão no começo, eu queria era mostrar a cara da banda. Quando
nós estouramos, todo mundo conhecia nosso som, mas ninguém conhecia minha imagem ou
a da Joelma. Aí começaram a surgir bandas piratas se passando por nós. Às vezes me
ligavam e diziam: “Hoje tem show
de vocês aqui em Goiânia!”. Eu dizia: “Não, meu amigo, estou com show marcado hoje em
Pernambuco”. E o cara: “Mas eu estou vendo a faixa de vocês, o nome de vocês”. Aí eu ia lá
ver e era uma banda se passando por nós, com uma loira e um rapaz na guitarra. Daí a Joelma
falou: ou a gente vai para a televisão ou tem que criar uma marca. Deixa eu pintar uma coisa
aqui no teu cabelo, como o Pepeu Gomes fez no começo da carreira.
Então foi ela quem inventou a famosa mecha loira?
É. Mas eu não gostava daquilo de jeito nenhum. Fiquei uns seis anos com a mecha, injuriado.
O pessoal falava: a Banda Calypso é aquela com o menino da mechinha. Mas não teve jeito:
os outros fizeram, virou moda. E não resolveu. Então falamos: “Agora temos que ir pra TV”.
Mas, rapaz, foi difícil chegar. Fizemos dois programas do Raul Gil, mas não foi o suficiente.
Quando lançamos o terceiro disco, fomos convidados várias vezes para o programa do
Gilberto Barros na Bandeirantes. Daí o povo começou a conhecer nossa imagem no Brasil.
Depois de um tempo fomos convidados para fazer o Faustão. Eu me emocionei muito, porque
a gente já tinha vendido mais de 5 milhões de cópias e ainda não tinha ganhado disco de
ouro, de
diamante. Aí a fábrica que prensou os discos fez uma homenagem pra gente no Faustão.
Vocês precisaram vender 5 milhões de cópias para serem notados pela TV?
É, fizemos dois anos de Gilberto Barros até sermos chamados pelo Faustão. Fomos
chamados pela Globo quando vendemos 600 mil cópias de DVD e 1,2 milhão de CDs em um
só mês.
Foi preconceito que a banda sofreu?
Sofre até hoje.
O preconceito vem da chamada elite intelectual, que rotula vocês de brega?
É isso. Tudo no Brasil que atinge a massa, que mexe com o povão, que leva a multidão, é
brega para essa turma que se diz elite, mas queria estar no nosso lugar. Não é nem odiar, é ter
inveja do trabalho, porque não conseguiu chegar lá.
Você fica chateado quando os críticos dizem que a música do Calypso é de má qualidade?
Nunca ninguém falou isso na minha cara. Se falarem, eu vou respeitar a opinião do cara. Tem
muita coisa de que eu não gosto, mas tiro o chapéu. Não gosto de metal nem de tecnobrega.
O sujeito faz um jingle no computador falando o nome de sua aparelhagem e toca nas próprias
festas, nos carros de som, aluga rádio pra tocar também. Deixaram de tocar a gente. Eu não
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curto muito esse som de coisas eletrônicas. Gosto de música com instrumentos. No
tecnobrega, o jingle virou a própria música. Mas eles fazem sucesso, e o sucesso tem que ser
respeitado.
Em uma pesquisa recente do Datafolha, a Banda Calypso foi apontada como a banda mais
popular do Brasil, na frente de Zezé di Camargo e Luciano. Como vocês receberam essa
notícia?
Primeiro ligou o rapaz da Folha de S.Paulo dizendo que queria fazer uma matéria com a gente.
Daí eu me perguntei: “Será que isso aí é uma pegadinha?”. Eu falei pro repórter: “Tô gravando
agora, daqui a pouco eu ligo pra você”. Em seguida me telefona o Zezé e diz: “Chimbinha,
você é o artista mais popular
do Brasil, e eu tô colado em ti!”. Aí vi que era verdade. Quando o cara ligou de volta, dei a
entrevista, porque já tinha garantia.
Eu li que seus melhores amigos na música são Zezé di Camardo, Leonardo e Bruno (do Bruno
& Marrone). Você se identifica com essas figuras que saíram do nada e ascenderam
socialmente pela música?
É a mesma história, a mesma conversa. A gente fala das coisas da roça, da época de baile,
brincamos, fazemos piada. Isso é que é bom. Não fomos criados em berço de ouro. Não
temos aquela viagem. Às vezes, quando o cara é de um nível social diferente, com um
conhecimento diferente do meu, ele fica
viajando, e a conversa não bate.
Você acha que eles falam de cima para baixo?
Eles querem ser diferentes da gente, superiores. Mas com esses meus amigos é o mesmo
padrão, o mesmo nível, a mesma linguagem. Todos somos felizes com o que aconteceu nas
nossas carreiras, agradecemos muito a Deus.
Além da fama, o sucesso trouxe bastante dinheiro. Vocês têm casas em Alphaville, Belém,
Recife. Têm fazenda, já tiveram avião. Como você lida com esse dinheiro que entra?
Do dinheiro que a gente ganha, metade ou mais é para reinvestir no trabalho. A gente tem hoje
um bom ônibus para transportar a banda e vários cenários para apresentar um show bonito. O
dinheiro também é para cuidar da nossa família e ajudar algumas pessoas que a gente acha
que merecem. Nós temos um trabalho social, mas não gostamos de divulgar.
No mês passado, surgiu uma história curiosa na Internet, dizendo que vocês foram
recomendados para o Nobel da Paz.
Nós não fomos informados disso. Fui saber aqui em Belém. Ligou um cara para nosso
escritório se dizendo bispo, querendo indicar a gente como embaixadores da paz. Não era o
Nobel, mas de repente virou isso. Mandei o nosso pessoal investigar quem é o cara. Pode ser
que estejam querendo usar o nome da banda, porque ele tá querendo comprar nosso show no
Mangueirão. Acho que é uma roubada. O cara deve estar se passando por bispo para comprar
nosso show mais barato.
Você acha que seus filhos, que vivem com todo o conforto, vão valorizar o que eles têm hoje
tanto quanto vocês?
A gente sempre conversa com eles, mostrando como a gente era antes e o que Deus está nos
Proporcionando hoje. Eu espero que eles deem valor, porque foi tão difícil chegar, e é ainda
mais difícil se manter.
Você imagina o Calypso durando quanto tempo?
Enquanto eu tiver vida, enquanto eu estiver neste mundo.
O Calypso depende da dupla Chimbinha e Joelma. Se algum dia o casamento terminar, a
banda acaba?
Nunca pensei nisso. Nem é bom pensar. Nós nunca brigamos. Eu sou muito calmo. Quando
tem uma discussão, eu saio. Quando volto, está tudo calmo. Nos momentos em que a banda
passa por uma situação difícil, como quando caiu nosso avião [em novembro passado,
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matando o produtor e o piloto da banda], um dá força para o outro. Se um dia, Deus nos livre,
acontecer alguma coisa, a banda vai passar alguma
dificuldade, mas não vai acabar não, porque a gente ama a banda. Ela é a nossa vida, tanto a
minha quanto a dela. É uma missão. E nosso trabalho ajuda muita gente. Minha família precisa
da banda, a família dela também. Só se for uma coisa muito grave mesmo, o que é difícil
acontecer. Eu vivo pra Joelma, ela vive pra mim, e a gente vive pra banda.
A Joelma é admirada por muitas pessoas, desejada por muitos homens. É difícil ser casado
com uma musa?
O público tem um respeito grande pela gente, por saber que a gente é casado. Nunca
ninguém faz gracinha com a Joelma quando ela tá no palco. E ninguém faz comigo.
O pior momento da banda foi a queda do avião?
Nós passamos alguns momentos difíceis. Você sabe. trabalhar com o ser humano é
complicado. A gente tem dois, três dias de folga por semana. Aí os meninos da banda estão
livres para fazer qualquer coisa. Numa dessas folgas, em 2006, o pessoal começou a beber, e
um dançarino da banda caiu da sacada de um hotel e faleceu. Aquele momento foi muito
triste. A gente estava indo pros Estados Unidos fazer o Brazilian Day e tinha o compromisso
de tirar o visto. Não deu para ir ao enterro dele. Aí alguns desses programas de fofoca na TV
ficaram a semana toda condenando a gente. E depois o outro momento difícil foi a história do
avião. Foi pesadíssimo. Perdi dois amigos, dois funcionários. O produtor que morreu era meu
braço direito, vivia 24 horas comigo. Eu fiquei arrasado. Até hoje não consigo falar. Nós
tivemos que refazer a casa das pessoas onde caiu o avião. Eu não quis esperar a perícia.
Falei: “Vamos ajeitar logo, imagina ficar sem casa”.
Você é religioso?
Eu creio muito em Deus. Eu ia muito à igreja evangélica. Agora com o trabalho fico até sem
tempo, então a gente faz nossos cultos aqui em casa. Tem uns irmãos que oram com a gente,
de vez em quando vêm uns pastores.
Você viveu muito na noite. Nunca experimentou drogas?
Não, porque eu andava com pessoas muito humildes. Além de não terem condição de
comprar, eram Pessoas com família de base muito religiosa. Quase todo mundo que tocava
comigo era evangélico. E na Banda Calypso também é assim até hoje. Não tinha espaço pra
droga. Eu fui beber depois dos 20 anos. Tomar cerveja, uísque. Mas depois parei com isso, só
tomo vinho. Foi o médico que me receitou, e eu acabei gostando.
Você se considera um guitar hero?
Não. Eu nem me considero um bom músico. Não estudei. Toco muito de ouvido. Quando vou
gravar e o pessoal fica lendo partitura, fico com muita vergonha. Todo mundo com seus
arranjos, e eu vou criando a levada na hora. Só sei ler cifra. Vou cifrando ou escuto de primeira
e de segunda já vou gravando.
O estúdio é o lugar onde você se sente mais realizado?
Quando eu estou no estúdio, esqueço de tudo. Desligo o telefone e me concentro mesmo.
Quando estou aqui fora, é funcionário que te colocou na Justiça, a música que não está
tocando, a carreta que não saiu
com o equipamento. No estúdio parece que não existem problemas. Pode estar o mundo se
acabando que eu estou em paz.
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Entrevista: André Midani por Pedro Alexandre Sanchez e Laura
Mattos, Folha de São Paulo, 21 de maio de 2003
Folha - Na indústria fonográfica, é unânime a afirmação de que não existe jabá no Brasil. É
verdade?
André Midani - Não, o jabá existe. Acho que o jabá sempre existiu. Não é uma coisa nova,
nem particular da indústria fonográfica. É uma coisa universal, acho que desde que o homem
começou a existir. Sempre se ouve falar "vamos acabar com a prostituição", "vamos acabar
com as drogas", "vamos acabar com o jabá" _que é uma corrupção, não é? O mundo nasceu
corrupto e acabará um belo dia na miséria da sua corrupção.
Tendo dito isso e indo ao mercado musical, o jabá, porquanto eu saiba, já existe desde o
século 19, quando o grande astro da música era a ópera. Havia um grande terreno de ensaio
dos novos tenores e sopranos que estavam para ser descobertos, em Marselha, na França.
Lá, os empresários de novos talentos da época compravam 50, 80, cem lugares dos teatros e
davam de graça para as pessoas aplaudirem muito. Era uma forma de jabá. Isso é inerente ao
negócio, existe desde o início da música como setor lucrativo.
Quando cheguei no Brasil, em 55, o jabá não existia do jeito que possa ser pensado hoje. Mas
havia meios de pressão, desde aquela época. Tal como ele é hoje, e em quantidades talvez
menores do que agora, o jabá começou, creio, em 70, 71 ou 72.
Eu tinha uma parte grande dos artistas importantes daquela época, então não tinha tanta
preocupação. Fazia sucesso no rádio porque os artistas genuinamente faziam sucesso.
Mas num belo dia um colaborador meu chegou dizendo que estava havendo um movimento
segundo o qual o pessoal do rádio gostaria que se reconhecessem seus méritos. Ele foi
conversar com eles e voltou me dizendo que tínhamos que tomar certo cuidado, porque se
havia formado uma rede entre vários programadores importantes de Rio e São Paulo. Eu
disse: "O que me importa?".
Tive a precaução de telefonar para alguns artistas e explicar o que estava acontecendo, que
eu não estava a fim de entrar naquilo e que estava dando a instrução de não participarmos. Os
artistas apoiaram, aplaudiram. Para minha surpresa, uns dias depois a gente saiu de
programação.
Folha - Saiu literalmente, por completo?
Midani - Não me lembro direito mais, mas a imagem que tenho é de que os nossos discos de
sucessos naquele momento _havia um de Chico Buarque, por exemplo_ saíram de
programação. Aguentei uma semana, duas semanas. Na terceira não deu mais para aguentar,
porque os próprios artistas chegaram dizendo: "Pelo amor de Deus, como vai ficar essa
história?, a gente está fora do ar". Era uma preocupação legítima deles.
Então foi, creio, a primeira vez que isso aconteceu. Dali por diante houve altos e baixos, e o
jabá estava instalado. Tomei uma atitude bastante pragmática, dizendo: se esta é a regra do
jogo, lá vou eu com a regra do jogo.
Folha - Quais eram as regras do jogo?
Midani - As regras eram lamentáveis, porque, como em muitas coisas aqui no Brasil, não eram
profissionais. Eu tinha vindo em 55 do México, onde o jabá rolava com grande despudor. Mas
lá, um dia, estava eu na sala de um diretor de companhia, competidor meu, e tocou o telefone.
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Era um jabazeiro, e meu colega disse, com o palavreado mais vulgar: "Dei meu compromisso
com você de tocar X vezes por dia e você não está tocando. Ou você toca ou você sai do
rádio, porque eu vou lhe colocar para fora".
No México, pelo menos, havia uma regra (ri): toco cinco vezes por dia, lhe pago tanto e agora
você tem que tocar. No Brasil se tentou várias vezes negociar isso, de as rádios tocarem o
que as gravadoras queriam, o que seria justo dentro desse esquema injusto. Mas aí sempre se
deu um jeitinho aqui, outro lá, e o fato é que a indústria perdeu muito rapidamente o controle
sobre o que se tocava. Pagava e não sabia se ia tocar.
Folha - É o que acontece até hoje?
Midani - Não, piorou. Hoje não estou muito a par, mas piorou. Não me lembro direito, mas
devo ter tido várias interferências dentro da indústria, no sentido de dizer "vamos parar com
esse negócio".
Minha próxima interferência formal já foi mais tarde, acho que em 78 ou 79, já na Warner.
Estava lançando Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que como integrantes dos Novos Baianos
haviam sido os protegidos e queridos do Chacrinha. De repente recebo a notícia de que o
Chacrinha disse que, se não pagássemos, Baby e Pepeu não apareceriam em seu programa.
A coisa mais inteligente que achei por bem fazer foi denunciar isso nos jornais. Em termos de
companhia, isso me custou caro.
Fui aos jornais, dizendo factualmente que Chacrinha queria cobrar dinheiro para passar os
artistas no programa _jabaculê. Isso me custou a adesão à causa do Chacrinha de outros
meios de comunicação. Rádios e outros programas de TV passaram a cobrar também.
Agora, como é que a indústria se manifesta nessa história? Vamos dizer que existem cinco
importantes companhias na indústria. Várias vezes os presidentes das companhias de discos
foram se reunir para tentar chegar a um acordo. Essas coisas acontecem em momentos de
crise do mercado ou de crise financeira, quando você vê que o orçamento para o jabá é tão
grande que realmente desestabiliza um pouco sua economia interna.
Folha - Você pode quantificar o peso dos orçamentos das gravadoras destinados ao jabá?
Midani - Gostaria de dar uma porcentagem, mas o conceito de publicidade mudou muito no
decorrer dos anos. Na época em que isso começou, a verba publicitária era 5% das vendas,
em geral. Na época do Chacrinha, com certeza era alguma coisa como 10%. Até o momento
em que eu estava militando, ou seja, até dois anos atrás, os orçamentos publicitários variavam
entre 12% e 16%. E na última vez que vi ou ouvi falar de números, entre o jabá que você dava
e alguma regalia, podia chegar a representar 70% das verbas de publicidade.
Folha - O jabá então é a principal fatia da publicidade?
Midani - É, e asfixia a indústria. Na minha época brasileira não chegava a asfixiar, era mais
uma questão moral: o que é isso, o cara já ganha seu dinheiro e ainda quer ganhar para tocar
disco meu? Se não houvesse meu disco ele não teria uma estação de rádio, o ponto de
partida é esse, o absurdo.
Pensava que se as cinco companhias se levantassem juntas, em um ano, sem grandes
prejuízos, botavam as rádios que praticavam jabá fora do mercado.
Folha - Isso não acontecia por falta de capacidade de articulação da indústria fonográfica?
Midani - Pode-se dizer exatamente isso. No sentido do jabá e das pressões, a indústria
fonográfica, mais no Brasil que em outros lugares, é uma indústria muito frágil.
Folha - É refém das rádios?
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Midani - É refém de muitas coisas, mas, nesse sentido, é refém do jabá.
Folha - O esquema montado pelos programadores no início não tinha a participação dos
donos das emissoras?
Midani - Não. O que aconteceu é que os funcionários de rádio não ganhavam e não ganham
muito dinheiro. São salários modestos. Então no início o disc-jóquei encontrou nessa manobra
um meio de ganhar um pouco mais. Isso foi cegamente apadrinhado pelos donos das rádios.
Eles ficavam contentes, pois não tinham que aumentar os salários. Começaram a fechar os
olhos, porque era conveniente para eles. Mas, na medida em que a soma de dinheiro foi
ficando maior, os donos começaram a pensar: "Mas e eu nessa história?".
Então houve decisões, por certos donos de rádio, de dizer: "Tudo bem, mas o dinheiro é
meu". Entraram em contato com as companhias de disco e disseram: "A partir de agora quem
manda na programação da rádio não é meu programador ou meu disc-jóquei. Sou eu".
Passaram acordos que, no início pelo menos, foram acordos comerciais. Aí, sim, era uma
relação profissional.
Tutinha, da Jovem Pan, por exemplo, gostava do disco ou não. Se ele não gostasse do disco
não pegava acordo financeiro com a companhia, não havia jeito. Já não se pode chamar isso
de jabá, é uma relação comercial como outra. Tutinha, pelo menos, era um grande
profissional. Não sei como está hoje, mas era. Se não gostava do disco dizia: "Não toco". Se
gostava, então se sentava lá para uma negociação. E ele fazia isso de uma forma profissional:
"Vou tocar tantas vezes por dia, vou fazer um especial". Armava-se quase que uma operação
de marketing genuína.
Folha - Então você tinha que agradar e também pagar?
Midani - Mas a regra desta vida tem sido essa. Evidentemente há um lado obscuro nessa
história, do porquê da fragilidade das companhias de disco. O óbvio é o resultado comercial, o
resultado promocional. Mas, se pelo lado dos presidentes e diretores havia grandes ressalvas
sobre a prática, o jabá representava para muitas pessoas dos departamentos de promoção
com rádio uma possibilidade de dizer: "Toma dez, mas eu fico com dez". Você se reencontra
com um câncer estabelecido dentro da companhia. Isso lutava contra qualquer política
encontrada por qualquer companhia para eliminar o jabá.
Folha - Então havia gente dentro das gravadoras fazendo acordos clandestinos com gente das
rádios?
Midani - Até um momento houve o pagamento em espécie. Não havia recibo, nada. Então
certos divulgadores na segunda-feira pegavam uma bolada de dinheiro lá e iam distribuir. E
guardavam uma parte para eles. Se estabelecia uma cumplicidade entre representante da
gravadora e representante da rádio.
Aí veio um outro elemento. Até os anos 80 _vamos colocar 85 como uma data hipotética_, a
lucratividade de uma companhia de discos era uma coisa desejada, como em qualquer
negócio. Mas me refiro agora às relações entre os presidentes das companhias e as matrizes
das multinacionais. Nos anos em que trabalhei na Philips, uma vez por ano ia à Holanda e
dizia: "O ano foi assim". Quando muito a cada três meses a gente mandava um relatório. As
companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de cada conglomerado.
Folha - Por que isso se modificou nos anos 80?
Midani - A coisa começou a degringolar quando as companhias de discos e seus
conglomerados foram comprados por megainvestidores que tinham suas ações no mercado
de Wall Street. Paulatinamente a indústria fonográfica, que era talvez uma indústria de
relações públicas, de imagem, passou a ser um centro de lucro completo.
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Na medida em que o mercado de Wall Street começou a encurtar os prazos, os investidores
começaram a ficar mais sedentos. Isso impossibilitou aos presidentes dos conglomerados de
terem políticas de compaixão com seus negócios. Cada vez Wall Street foi mais nervosa
quanto aos resultados semestrais, depois trimestrais, depois mensais. Se deu uma variação,
por pequena que fosse, as ações já ficavam nervosas. Dali então foi: "Dá lucro! E já!". Na
medida que isso foi penetrando na indústria fonográfica se instalou uma pressão sobre os
dirigentes locais, daqui e do resto do mundo, cada vez mais feroz.
O cara que está sentado aqui recebe telefonemas a cada três dias: "Como é que está esta
semana?". Ele pira daqui. É "não quero saber, eu quero os números". Eu estive do outro lado,
sei bem como é esse negócio (ri).
Folha - Ou seja, a indústria foi sendo cada vez mais pressionada, por um lado por Wall Street
e por outro pelas rádios locais?
Midani - A situação é hoje tão incompreensível como era então. Como é possível que cinco
companhias poderosas não possam se sentar e dizer: "Acabou", e acabou? Várias vezes
tentei isso, e sempre me dei mal. Eu ia lá, propunha o acordo. Uma semana depois, tal pessoa
furava o acordo. Aí outros todos furavam também, eu continuava e me dava mal a cada vez.
Houve uma vez, por exemplo em que não fui eu que liderei o movimento. Quando a corda
roeu, todo mundo disse: "Foi o Midani". Paguei pelo pecado que fiz e outras vezes paguei
pelo pecado que não fiz. Um dia vi que não tinha nenhum talento para ser um crucificado,
então fui tentar organizar isso dentro da companhia para que pelo menos fosse uma coisa
mais objetiva e profissional.
Folha - Por que esses acordos nunca deram certo?
Midani - Só posso entender que em determinado momento uma determinada companhia está
numa situação de fragilidade orçamentária, e então a tentação do diabo é muito grande.
Sempre há um nessa situação. Há, por exemplo, o caso recente da Abril Music. Essa
companhia entra no mercado, paga o que tiver que pagar para poder tocar e desestabiliza as
outras companhias. O prejuízo da Abril foi de milhões e milhões de reais em cinco anos.
Evidentemente, esse dinheiro foi para a contratação de artistas em demasia, para formar um
catálogo, o que é compreensível. Mas a sede de ter sucesso imediatamente fez com que a
companhia fosse uma grande catalisadora da tormenta jabazeira.
Mas uma vez é a Abril, outra vez é outra empresa que está em situação complicada, outra é
uma mudança de gerência... Sempre há um acidente que impossibilita a tranquilidade do
trabalho.
Folha - Também por pressão do esquema organizado, dos divulgadores?
Midani - Não, porque se as cinco companhias se entendessem e aguentassem um tempo eu
suponho que a situação se tranquilizaria. Se não toda, porque toda corrupção é impossível,
pelo menos parcialmente, que não seja um câncer como o de que todo mundo se queixa hoje.
Folha - Marcos Maynard sempre negou que fizesse jabá na Abril.
Midani - Essas pessoas sempre dizem que não é jabá, mas é simplesmente um jogo de
palavras.
Folha - O sucesso ficou necessariamente condicionado a esse esquema?
Midani - Temo dizer que sim. A gente não sabe se é a galinha ou se são os ovos, mas isso
veio a ser agravado pelo que poderia se dizer uma falta de novos talentos genuínos. Não sei
se é verdade ou não, mas se poderia dizer que, na visão da indústria, isso foi agravado por
uma certa falta de talentos novos, pouco preparados ainda. Então veio um novo tipo de
executivo, o cara que faz o artista, escolhe as músicas, bota dentro do estúdio. É música pré-
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fabricada para o sucesso. Nos anos 80, os produtores passaram a dizer: "Nós fazemos o
artista".
É uma coisa completamente antípoda da minha atitude quanto ao artista. Não vou dizer que
tenho razão, mas são estilos absolutamente opostos. Telvez, dentro das minhas loucuras, eu
tivesse gostado de dizer: "Vou fazer um artista". Mas eu não tinha capacidade nenhuma de
fazer, então nunca me meti nisso. Se há uma pessoa que nem canta muito bem nem canta
muito mal, nem tem muita personalidade nem tem pouca personalidade, o que eu vou fazer
com ela? Não sei trabalhar assim, nunca foi meu estilo.
A partir do momento em que um artista é fabricado, necessariamente o investimento em
publicidade e marketing começa a tomar uma importância desmedida.
Folha - Profissionais de rádio afirmam que não se toca uma música só por causa de jabá.
Dizem que é preciso haver um respaldo de audiência. Com dinheiro, qualquer coisa toca no
rádio?
Midani -Quando surgiu o rock dos anos 80, o rádio estava absolutamente fechado a esse tipo
de música. O rádio é um sistema eminentemente conservador. Quando lançamos a bossa
nova, o rádio achou que era um absurdo, o mesmo aconteceu com a tropicália. O homem do
rádio não vê a música pelo que ela é, vê o anunciante, que vai tirar sua publicidade se a rádio
baixar de audiência.
No rock dos 80, existiram algumas músicas de Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Titãs e
Ultraje a Rigor que furaram o bloqueio natural. Foi uma surpresa. Ficamos com a música
"Inútil", do Ultraje, quatro, cinco ou seis meses sem tocar. Um belo dia, começou a tocar.
Acho que o rock não sofreu efeitos de jabá para impedi-lo de penetrar. Os programadores
devem ter achado que era um sopro novo nas suas programações.
Folha - Aí o jabá entrou como elemento para fortalecê-lo?
Midani - Com certeza. Se me perguntar quais lembranças eu possa ter do meu jabá, posso
dizer: paguei por toda aquela linha de frente que eu tinha.
Folha - A geração dos anos 80 contou muito com o programa do Chacrinha para fazer
sucesso. Como terminou sua briga com ele?
Midani - A gente coloca o Chacrinha, mas ele também foi uma pessoa que fechou os olhos
para seu filho, Leleco Barbosa. Leleco era quem fazia a programação do Chacrinha, e foi uma
das pessoas mais militantes, se se pode dizer isso, desse caso.
Não me lembro direito de como acabou, levou um tempo. Certamente houve a turma do
deixa-disso, amigos comuns, artistas dos quais Chacrinha gostava muito e estavam
trabalhando na Warner. Um dia, recebi um recado de que ele gostaria de se reconciliar. Creio
que a gente almoçou, ele fingiu que não houve nada, eu também fingi que não havia nada.
Ficou aquela mútua hipocrisia. Chacrinha me convidou ao programa dele para receber um
prêmio, as pazes foram feitas e não tinha mais problema, sempre nos amamos muito.
Folha - Os grandes nomes de sucesso pagam jabá?
Midani - Até hoje. Hoje estou realmente afastado, mas até um ano atrás era assim. Havia
números, que eram estupendos. Nos anos do milagre brasileiro do início do governo FHC, se
nos Estados Unidos o custo de lançar uma música no rádio com esse tipo de ajuda
promocional era de US$ 300 mil por uma canção, no rádio brasileiro era de R$ 80 mil a R$ 100
mil, na época em que um dólar era um real. Ou recebi informações erradas, ou esses números
são reais.
Folha - Para uma rádio não seria vantajoso tocar a nova música de artista de grande sucesso?
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Midani - Não hesito em dizer que, a não ser honrosas e poucas exceções, como Roberto
Carlos, não importa o tamanho dos artistas. Tem que pagar. A honra e o prazer são coisas que
não existem mais.
Folha - Mesmo a rádio correndo o risco de prejudicar sua própria audiência?
Midani - É, mas a partir do momento em que o sistema funciona dessa maneira, não tem
como. Uma toca porque alguém deu dinheiro, outra também toca o mesmo cara, então todo
mundo vai. Hoje, a indústria fonográfica vive um momento de crise estrutural (por causa da
mudança de tecnologia), criativa (porque raramente se pega um artista que já está pronto no
primeiro disco) e econômica (por recessão).
Folha - O que você acha de uma lei de criminalização do jabá?
Midani - Acho que é indispensável, porque se você paga jabá e não tem recibo você não pode
deduzir essa despesa do seu Imposto de Renda. Não pode entrar como despesa operacional.
Hoje o meio radiofônico e o meio fonográfico estão cheios de subterfúgios para isso. Se você
comprovar que esse dinheiro não foi usado para isso, mas para jabá, não acontece nada,
porque não existe uma lei que diga que subornar é contra a lei e dá cana. Não se tem nem
esse elemento.
Quando comecei a trabalhar nos Estados Unidos, a primeira coisa que recebi em minha mesa
foi o chamado livro branco. Eram diretrizes de como se deve comportar com ética, e eu tinha
que assinar que na minha gerência nenhum país que estava ligado a mim em nenhum
momento ia fazer práticas de suborno. Lá é lei.
Folha - E lá jabá é considerado uma forma de suborno?
Midani - Então, o que é? Aqui não é considerado dessa maneira, mas é claro que é. É uma
questão vernacular: eu lhe pago para você falar bem de mim no seu jornal ou na sua rádio,
mesmo que você não goste da minha cara, eu aumento o preço e você acaba falando bem de
mim. Isso é suborno. Se chama jabá, suborno ou campanha promocional (ri), moralmente é um
suborno.
Folha - Quais outros prejuízos a prática de jabá pode trazer ao mercado musical?
Midani - Hoje em dia eu diria que não tenho nada contra o jabá. Tudo depende do que se faz
com esse jabá. É um pouco como a Rifle Association nos Estados Unidos. Eles dizem que o
fuzil não mata, que quem mata é quem puxa o gatilho. É um raciocínio incrível, né? Vamos
supor que nos idos de 70 a situação fosse como é hoje. Eu teria botado jabá em cima de
Caetano, Gil, Chico, desse pessoal todo. E todo mundo teria aplaudido, porque valia a pena.
Começa a ficar pior quando você faz uma outra viagem: pega um artista que não tenha
nenhuma qualidade que não seja a de ser bonitinho, empurra uma meia dúzia de canções
feitas por quilo, e depois coloca dinheiro por cima.
Tudo depende do que você faz com o jabá. Se for colocar o famoso jabá em cima do que
poderíamos chamar uma causa nobre, graças a Deus poder convencer essas pessoas de
tocar uma coisa que é boa. Se era para botar jabá em cima de Raul Seixas, por exemplo, não
me lembro, mas botei com muito prazer, porque estava convicto que esse menino era
fantástico. Há cores nessa história, não no lado ético, mas do lado empresarial, objetivo.
Folha - Se emplacasse, a lei anti-jabá seria boa para quê?
Midani - É bom que exista a lei, não só do jabá do disco, mas no geral. Este país está
permeado de jabá, não só do fonográfico. É uma sociedade cancerosa com o jabá. O país é
jabazeiro.
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Folha - Além de dinheiro vivo, o jabá também incluía "mercadorias"?
Midani - O que for. Dinheiro, drogas, prostitutas que eram levadas até o cara no fim-desemana. Isso já não creio que exista hoje em dia na indústria.
Folha - Há quem defenda não a criminalização do jabá, mas sim sua legalização e
regulamentação. O que você acha disso?
Midani - Mas aí se está violando o que se chama de as forças do mercado. Como se vai fazer
isso? Determinar quanto se paga para um artista novo, quanto se paga para um veterano?
Folha - Seria mais difícil do que coibir?
Midani - É claro. Dali a pouco ia precisar de uma Ecad [órgão responsável pela cobrança de
direitos autorais] para controlar isso, uma Ecad do jabá. São coisas ingênuas.
Folha - Também não seria ingênuo acreditar numa lei de criminalização?
Midani - Mas é assim que se faz. A lei sempre é um suporte, um sofá sobre o qual você pode
se sentar quando necessário. Há 10 ou 15 anos, os políticos roubavam muito, mas nem se
sabia disso. Aí veio um ciclo em que começou a se saber, estamos entrando num ciclo em
que começa a custar caro. Acho que ainda vai ser um grande negócio ser um político honesto.
O que a gente pode desejar é que se minimize essas coisas. Acabar com isso não dá.
Folha - Gravadoras e rádios em geral são vistas como as vilãs desse esquema todo, enquanto
os artistas às vezes aparecem até como vítimas. Mas eles não são coniventes?
Midani - Posso dizer que, uma vez que se faça um acordo, muito artista deve saber. No
passado, quem pagava o jabá era o empresário do artista. De onde ele recebia a grana? Da
gravadora, obviamente. E o artista estava ciente. O artista sempre sabe. O que ele diz é que
não quer se meter em briga de gente grande, "não estou aqui para pagar pelas brigas de
vocês". É objetivo assim.
Demais anexos (relatórios de mercado e pesquisas) no Cd- Rom.
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