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Resenha: HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado: A construção do
sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
Rodrigo Elias Caetano Gomes – Graduando em História – Universidade
Federal Fluminense
PORTUGAL E A ENCRUZILHADA CULTURAL
Muito se tem discutido – principalmente após meados dos anos 60 –
acerca da história cultural, ou como se quis chamar à época, História das
Mentalidades, porém, sabe-se que esta “modalidade” da História já era
discutida e desenvolvida sistematicamente desde o final do século XIX,
ganhando novo fôlego nos anos 30 do século seguinte com Bloch, Febvre e
“companhia”. Porém, foi a partir dos anos 1960 que começou a ser
desenvolvida uma historiografia mais atenta às questões relacionadas mais
diretamente com o povo no movimento da história, tendo aí impulso a temática
da cultura popular.
No ambiente acadêmico brasileiro, esta questão só começou a se
desenvolver sistematicamente nos anos 1980, sobretudo com trabalhos de
Laura de Mello e Souza, já preocupada com as mentalidades e incorporando
ao seu trabalho as preocupações que envolviam a cultura popular. É nesta
historiografia que se insere o trabalho de Jacqueline Hermann, No reino do
Desejado, trabalho que inaugura na historiografia luso-brasileira uma visão de
conjunto do sebastianismo, fenômeno político-religioso-sócio-cultural de grande
importância na longa duração do mundo português, visão que nega toda uma
historiografia moldada no preconceito em relação aos setores populares da
sociedade e identificados em grande parte com uma tradicional historiografia
das “idéias”, calcada sobretudo no mapeamento do discurso letrado-acadêmico
e na exclusão e estigmatização das manifestações culturais da “gente comum”.
Em trabalho de rara erudição, Jacqueline Hermann dá conta de copiosa
bibliografia, combinando também fontes de orígens diversas e tipos variados,
tendo sempre como objetivo a identificação e análise crítica do mito sebástico
desde o seu início, identificado com a apropriação, feita após a derrota dos
portugueses liderados pelo rei d. Sebastião em Alcácer-Quibir, das trovas do
sapateiro de Trancoso, Gonçalo Annes Bandarra, versos que adquiriram ao
longo do período barroco em Portugal sentido profético, anunciando a volta do
Desejado para um tempo de alegria e glória à frente do Quinto Império,
anunciado por Daniel no Velho Testamento, que daria fim à dominação
castelhana no reino luso, procurando identificar também este fenômeno como
fruto da circularidade cultural, apontando inclusive para a transformação que
ele sofre sob a pena de Antônio Vieira, onde sebastianismo se torna, na
ambigüidade barroca, em joanismo.
Primeiramente, a autora se preocupa – seguindo uma ordem diacrônica –
em analisar os mitos fundadores do destino imperial de Portugal, concluindo
que estes se confundem com os mitos fundadores do próprio reino, como o
milagre de Ourique, quando d. Afonso Henriques teria recebido do próprio
Cristo a missão de guiar os cristãos, estando à frente do império português.
Através de uma narrativa envolvente, Hermann faz uma incursão à história de
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Portugal, passando também pela análise do conteúdo sagrado da monarquia
naquele reino, que teve como fundador da dinastia de Avis o Messias de
Lisboa, além de ter tido um infante santo, fazendo também um pertinente
exame dos estudos de Marc Bloch e Ernst Kantorowicz, de onde resulta uma
original conclusão, a de que o caráter sagrado da monarquia lusitana estaria
estreitamente ao ideal militar-crusadístico medieval, sempre identificado com
os mitos fundadores do império.
É ainda nesta incursão que Jacqueline Hermann resgata o intrincado
labirinto no qual se insere a produção das trovas de Gonçalo Annes Bandarra,
ainda na primeira metade do século XVI, havendo aí, segundo a autora,
influências de um substrato cultural marcado pelo gosto do maravilhoso
medieval, cuja orígem é difícilmente identificavel, porém sendo claramente
observável a presença de um messianismo judaico popular – ainda que a base
para aquela religião fosse essencialmente escrita – cujo expoente seria um
cristão-velho (!), este inserido e com toda a sorte de relacionamentos com uma
comunidade cristã-nova.
Para a autora, “ao analisar as trovas de Bandarra procurando tomá-las
como parte de uma conjuntura de insegurança e transição que vai muito além
das fronteiras lusitanas, podemos afirmar que seus escritos encontraram em
Portugal um espaço privilegiado de recepção e reprodução em face do sucesso
inicial dos descobrimentos portugueses, por um lado, e da desventura de
Alcácer-Quibir, por outro”(p. 72).Nos Sonhos ou Visões de Bandarra, ficariam
inscritas tradições que seriam apropriadas, posteriormente, como a profecia do
destino de um império.
Posteriormente, Hermann faz um minucioso exame do evento que traria a
Portugal um futuro temido e indesejado, a perda de sua soberania e a união
com a Espanha sob a égide da União Ibérica, segundo alguns o maior
fenômeno político do período barroco. A autora, através de uma cuidadosa
análise de fontes e de numerosa bibliografia, traça um elaborado panorama da
situação política de Portugal na segunda metade do século XVI, culminando
com o próprio drama de vida e morte do rei d. Sebastião, o Desejado, drama
este que teria começado antes do seu próprio nascimento, estando já o reino o
esperando como única esperança de sobrevivência política, cujo ocaso viria
com a fatídica campanha no norte da África, onde o destino imperial impusera
ao jovem monarca uma pena por ele não aventada: a derrota.
A partir daí, Hermann consegue reconstruir toda a rede de intrigas que
envolveu políticos e religiosos da mais alta estirpe em vários reinos europeus e
africanos, destacando a astúcia e sagacidade do mui católico Filipe II de
Espanha, tio do monarca português, que utilizando-se de estratégias políticas
dignas do século de Nicolau Maquiavel conseguiu concretizar seu plano de
dominação da Península Ibérica. É também neste contexto que a autora dá voz
à comoção popular que toma conta das ruas de Lisboa e do resto do reino
desde o fracasso na última jornada sebástica passando pela melancolia que se
torna estrutural durante todo o período de dominação espanhola, identificando
neste contexto a produção de d. João de Castro, célebre antonista – partidário
de d. Antônio, prior do Crato e primo de d. Sebastião, pretendente ao trono
português, que teria se proclamado rei e resistido por algum tempo o domínio
filipino – que teria se apropriado pela primeira vez do messianismo de Bandarra
sendo o primeiro a dar forma na cultura letrada ao sebastianismo.
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De forma análoga, Jacqueline Hermann tratará da apropriação letrada de
crenças diversas, indo desde a cultura artesã apocalíptica, que teria grande
parte de seus valores fincados na idade média, passando pelas formulações
populares acerca do ciclo arturiano e pela apropriação que João de Castro
fizera dos Sonhos de Bandarra, até as influências que Antônio Vieira recebera
dos escritos de Manuel Bocarro, cristão-novo e apóstata que teria combinado a
tradição mágico-hermética em voga no alvorecer da Revolução Científica com
a astrologia, prevendo de forma “científica” a restauração de Portugal. Estava
formado o contexto onde “tanto a profecia como as ciências mágicas lusitanas
procuravam no além o reencontro de uma história de lutas vitoriosas e homens
corajosos, herdeiros de um destino já traçado, escolhido por Deus e inscrito em
Ourique”(p. 219).
Merece especial atenção a análise que a autora faz da obra milenarista do
inaciano Antônio Vieira. Jacqueline Hermann analisa com muita propriedade o
discurso barroco vieirista no que concerne à transformação do sebastianismo
em joanismo, onde Antônio Vieira rompe com a tradição iniciada em 1578,
segundo a qual o próprio d. Sebastião voltaria e lideraria não só o reino
português mas todos os cristãos, e inaugura uma tradição milenarista que
identificará o advento do Quinto Império sob a direção do próprio d. João IV,
fundador da dinastia de Bragança, restaurador do reino e protetor de Antônio
Vieira.
Porém, este tema mereceria maior atenção do que o dispensado pela
autora, não no que diz respeito ao cuidado empregado à matéria, mas à própria
inserção do milenarismo no próprio discurso barroco vieirista. Jácqueline
Hermann, apesar de fugir do estereótipo criado por Alfredo Bosi que quase
consegue enxergar em Antônio Vieira um opositor do sistema colonial, deixa de
observar no conjunto da obra de Antônio Vieira a continuidade existente entre
as Escrituras, a história, a interpretação do presente e a projeção do futuro –
que deveria corresponder à situação inicial, onde se insere perfeitamente o
messianismo joanista do pregador inaciano.
Porém, este fenômeno não ficará restrito aos círculos eruditos, sendo
prova disso os “embusteiros” que se fizeram passar pelo encoberto d.
Sebastião, sendo todos de orígem popular e nem por isso desconhecendo a
pompa real e utilizando-se dela inclusive como forma de carnavalização da
situação de dominação estrangeira. Insere-se neste ponto a crítica da autora à
concepção de Diogo R. Curto, que enxerga nestes movimentos fatos isolados,
sem conexão alguma e provas somente de um suposto “atraso” na concepção
política destes setores subalternos. As mulheres também teriam desenvolvido,
segundo Hermann, grande papel na conformação da crença sebástica, porém
sempre marcada pela presença do espaço privado, das relações também
privadas neste mundo onde a rua era ambiente essencialmente masculino.
Examinando estes autores do século XVII, que correspondem à
formulação “letrada” do fenômeno milenarista português e observando as
construções e apropriações populares em torno do mito do encoberto
português, a autora conclui – dentro da mais perfeita concepção hermenêutica
– que este se trata de um “fenômeno múltiplo, complexo, fascinante e por
vezes incidioso aos olhos da história, sempre encoberta por novas e possíveis
grades de leitura, sua busca estará sempre limitada, parafraseando o grande
historiador Carlo Ginzburg, pelo embate entre provas e possibilidades, pelos
vários sentidos dos mitos, emblemas e sinais”(p. 248).
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Desta forma, Jacqueline Hermann, através de uma narrativa cativante que
oferece ao leitor a possibilidade de mergulhar na aventura de um povo em
busca de sua identidade política, concebe o império Português como uma
verdadeira encruzilhada cultural, onde se encontrariam as mais variadas
tradições culturais, políticas e religiosas, que, no momento em que se depara
com a dissolução do próprio tecido onde este encontro se dava, formula no
messianismo político sua resistência, resistência esta que seria apropriada e
reapropriada em contextos diversos e conferiria plurivocidade ao mito
sebástico.
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