o empirismo inglês

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O EMPIRISMO INGLÊS
Ricardo Vélez Rodríguez
Coordenador do Centro de Pesquisas
Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
[email protected]
A meditação filosófica inglesa pode ser caracterizada, como propôs Hegel (17701831), do ponto de vista da idéia ou leit-motiv que lhe é característico: a valorização da
experiência. Desenvolverei, aqui, os seguintes pontos: Num primeiro bloco, que intitularei
“Conceituação”, fixarei os aspectos básicos dessa idéia, que confere personalidade à
filosofia inglesa. A seguir, em cinco blocos, analisarei o processo constitutivo da mesma,
percorrendo várias etapas, desde a Idade Média até o século XIX.
1 – Conceituação.
Não há dúvida quanto à valorização do conceito de experiência no pensamento
inglês, já a partir da Idade Média. Hegel, nas suas Lições sobre a filosofia da história
universal, frisava que “(...) os princípios abstratos e universais nada representam para os
Ingleses, nem lhes dizem nada” 1.
Comentando a apreciação do pensador alemão, especificamente em relação ao
campo do direito, escreve Martin Laclau: “Referindo-se à Idade Moderna, (...) Hegel não
pode deixar de realçar, com certa admiração, o caso da Inglaterra, país dotado de uma
forte singularidade, que apresenta características que o diferenciam das restantes nações
européias que engloba sob a denominação genérica de mundo germânico. Assim, diz que
1
HEGEL, Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid: Alianza, 1982, p.
699.
a partir do momento em que foi conquistado por Guilherme da Normandia2, este país
beneficiou-se do singular privilégio de estar ocupado exclusivamente consigo próprio. E
adiante, referindo-se ao direito inglês, nota que nele não há nenhum princípio universal,
nem nenhum pensamento determinante. A Inglaterra, para ele, é o país da
particularidade, dos direitos totalmente concretos. Evidentemente, este apego da
mentalidade inglesa às singularidades da experiência e esta consideração não sistemática
da realidade, não poderiam deixar de suscitar, num pensador como Hegel, atraído pelas
altas abstrações da metafísica, um sentimento em que coexistem o interesse e certo
sentido crítico, que o levava a falar do atraso em que se encontrava o direito privado
inglês” 3.
Esse apego à particularidade leva o espírito inglês à valorização da experiência do
singular para, a partir daí, pela via indutiva, chegar à generalidade. A respeito frisa Laclau:
“O pensamento inglês tem uma raiz empírica e indutiva. O Inglês é um povo que ama as
suas tradições, especialmente apto para captar as facetas individuais e peculiares que
apresentam os diversos fenômenos, com certo desdém pelas abstrações, que tendem a
ser evitadas. Maitland4, o grande representante da escola histórica do século passado
[XIX], dotado de fina sensibilidade literária, que lhe permitia formular sínteses que se
tornaram lugares comuns, dizia, referindo-se ao comportamento inglês, que este se
caracterizava por continuar a esbarrar no modo empírico para, por fim, através de
sucessivos enganos alcançar a sabedoria: stumbling forward in our empirical fashion,
blundering into wisdom” 5.
À singularidade histórica apontada veio se somar, sem dúvida, a valorização da
experiência por parte da ciência árabe, que difundiu no Ocidente a tradição experimental
dos Gregos, bem como os conhecimentos matemáticos da Índia e da Pérsia, junto com
uma forma de entender a religião que não atrelava a razão à fé. Foi notável, na
emergência da ciência moderna, a retomada do saber antigo por parte dos estudiosos
medievais, possibilitada pelas traduções das obras mais representativas, efetivadas por
homens que freqüentaram as universidades espanholas (Toledo e Cordova). Entre esses
estudiosos cabe mencionar Michael Scott6 (1175-1232), Guilherme de Moerbecke (12151286), Geraldo de Cremona (morto em 1187), etc. A grande era das traduções, como
lembra Edward Grant (nasc. 1926), “foi precedida pelo retrocesso dos muçulmanos na
Espanha e a sua total derrota na Sicília ao longo do século XI. Com a queda de Toledo em
2
Guilherme da Normandia, o Conquistador (1028-1087), que submeteu a Inglaterra após a batalha de
Hastings (1066).
3
LACLAU, Martin. “Os pressupostos do pensamento jurídico inglês”. In: Nomos – Revista Portuguesa de
Filosofia do Direito e do Estado. Amadora, Nº. 3 – 4 (janeiro / dezembro 1987): p. 83.
4
Frederic William Maitland (1850-1906).
5
LACLAU, Martin. “Os pressupostos do pensamento jurídico inglês”. Art. Cit., p. 83.
6
Cf. DUNCAN, Archibald A. M., “Michael Scott”, in: BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica,
Chicago – London: Encyclopaedia Britannica Inc., 1972, vol. 20, p. 30-31. Quanto aos outros tradutores
medievais, cf. DUNCAN, Archibald A. M., “Michael Scott”, in: BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia
Britannica, Chicago – London: Encyclopaedia Britannica Inc., 1972, vol. 20, p. 30-31, p. 103-104; 122-125;
127-165; 205.
1085 e a captura da Sicília em 1091, uma Europa cristã dinâmica tomou posse de grandes
centros de erudição arábica” 7. Não podemos esquecer, aliás, outra janela de igual
importância, por onde entrou o saber da ciência antiga na Europa: a Abadia do Mont
Saint-Michel, na Normandia (França), que tinha ligações diretas com Bizâncio, sendo este
mais um caminho para a elaboração de traduções das obras de Aristóteles e dos escritos
remanescentes da Biblioteca de Alexandria 8.
2 – A valorização da experiência na obra de Robert de Grosseteste (11681253) e Roger Bacon (1220-1292) 9.
A Universidade de Oxford, surgida no final do século XII das escolas fundadas no
século IX pelo rei Alfredo o Grande (849-899) constituiu, junto com a de Paris, o arquétipo
da Universidade da Europa ocidental. Oxford se converteu rapidamente na caixa de
ressonância mais importante na valorização da ciência experimental. Retomando a
tradição da espiritualidade inglesa expressa na obra de Veda o Venerável (673-735),
monge de Jarrou, norte da Inglaterra, que conciliava a fé com a observação científica num
contexto de agostinismo mitigado10, Roberto de Grosseteste, sagrado bispo de Lincoln em
1253, desenvolveu, na Universidade de Oxford, importante trabalho de valorização da
ciência experimental. Como lembra Colin Ronan (1920-1995), Grosseteste ensinava que a
ciência “começou pela experiência dos fenômenos pelo homem”, sendo que a sua
finalidade consistia em: “(...) descobrir as razões para a experiência, encontrar suas
causas. Então tendo descoberto as causas – os agentes causais - o próximo passo seria
analisá-las, selecionando-as em suas partes ou princípios componentes. Depois disso, o
fenômeno observado deveria ser reconstruído a partir desses princípios, com base numa
hipótese, e finalmente a própria hipótese teria de ser testada e verificada – ou invalidada
– pela observação. Esses eram pontos de vista importantes, e o procedimento
recomendado era valioso, pois continha a base essencial de toda a ciência experimental”
11
.
O mais importante discípulo de Grosseteste, o igualmente franciscano Roger Bacon
prosseguiu na trilha da valorização da experiência científica, bem como da sua conciliação
com a fé. Empolgado pelas observações de Euclides (330-275 aC.), Claudio Ptolomeu (90168), Al-Haytham (965-1040) e do próprio Grosseteste, sintetizou as suas próprias
conclusões no terreno da óptica, no livro intitulado Opus Majus (1267). Eis o teor
evidentemente empirista de Bacon nesse trabalho, ao descrever a utilidade das lentes:
“(...) Então podemos dar forma a corpos transparentes e arranjá-los de tal maneira com
7
GRANT, Edward. La ciencia física en la Edad Media, ob. cit., p. 40.
Cf. GOUGENHEIM, Sylvain. Aristote au Mont Saint-Michel – Les racines grecques de l’ Europe Chrétienne.
Paris: Seuil, 2008.
9
Cf. CROWLEY, T. “Rev. Roger Bacon”, in: BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, ob. cit.,
vol. 2, p. 1000-1001. GRANT, Edward, La ciencia física en la Edad Media, ob. cit., p. 103-104.
10
Cf. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. (Tradução de José Enéas Fortes), Rio de Janeiro: Zahar,
1987, vol. II, p. 136-137.
11
RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit., vol. II, p. 139.
8
respeito à nossa vista e objetos de visão que os raios se curvarão do modo que
desejarmos e no ângulo que quisermos; poderemos ver o objeto perto ou à distância.
Assim poderemos ler as menores letras a uma incrível distância (...). Poderíamos também
fazer, aparentemente, com que o Sol, a Lua e as estrelas descessem até aqui embaixo” 12.
Ao mesmo tempo em que Roger Bacon valorizava a experiência externa como
ponto de partida da ciência, chamava a atenção para os obstáculos que se opunham a
esta (autoridade fraca e inepta, hábitos antigos, opinião popular sem instrução,
encobrimento da ignorância de alguém por uma aparência de sabedoria). O pensador
atendia, também, à defesa da experiência mística interior, tão objetiva e válida quanto a
externa 13. Nessa remota origem deita raízes a valorização da experiência interna, que
será retomada por John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), bem como pela
Escola Escocesa do Senso Comum e que chegará a influenciar os românticos franceses,
notadamente Madame de Staël (1766-1817) e Benjamin Constant de Rebecque (17671830) e o nosso primeiro pensador pátrio, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), na
defesa que faz da experiência da fé cristã 14.
3 – A valorização da experiência na crítica nominalista à Escolástica.
Este momento da meditação filosófica inglesa esteve representado pela obra de
Duns Scot (1270-1308) e de William Ockham (1280-1349). O primeiro firma a
independência da razão em relação à fé – contrariando, nesse ponto a convicção
escolástica da philosophia ancilla theologiae – e desenvolve a teoria da bipolaridade das
essências, que não seriam apenas universais, mas também individuais. Como frisa Carlos
Lopes de Mattos (1910-1993), esta teoria (chamada da haecceitas ou da estidade) “(...)
afasta da filosofia a preocupação exclusiva com as essências universais e transcendentes e
formula o início de uma concepção que atribui estatuto de ciência ao aqui e agora. Essa
legitimação racional do individual e do imediato parece continuar a tradição inglesa, já
evidenciada em Roger Bacon, de valorização da experiência” 15.
William Ockham, discípulo de Duns Scot, levou até as últimas conseqüências o
processo de crítica à Escolástica, deflagrado com a teoria da estidade. Retirou dos
universais todo fundamento ontológico, identificando-os somente com signos que
serviriam apenas para designar um conjunto de semelhanças abstraídas das coisas. López
de Mattos caracteriza, assim, as conseqüências que o nominalismo de Ockham trouxe
12
RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit., vol. II, p. 142.
Cf. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit.,vol. II, p. 141.
14
No seu exílio em Paris Silvestre Pinheiro Ferreira escreveu o livro intitulado: Theodicée ou traité de la
religion revelée, cujo original, inédito, foi preservado pela Academia de Ciências de Lisboa, segundo informa
Antônio PAIM em História das idéias filosóficas no Brasil, 3ª edição: Convívio; Brasília: INL – Fundação PróMemória, 1984, Prêmio Jabuti 1985, p. 16.
15
MATTOS, Carlos Lopes de. “Duns Scot – Ockham: vida e obra”. In: SCOTUS, João Duns, Escritos filosóficos,
(tradução de Carlos Lopes de Mattos), São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. IX. Cf. BRÉHIER, Émile, Historia de
la filosofia, Buenos Aires: Sudamericana, s/d, vol. II, p. 439 seg. .
13
para a filosofia ocidental: “A primeira era a transformação de toda ciência em
conhecimento empírico dos indivíduos, posto que, por um lado, só eles constituiriam a
verdadeira realidade e, por outro, porque os indivíduos são conhecidos principalmente no
plano da experiência. Para Ockham, o conhecimento conceitual ou abstrativo é confuso e
indeterminado, pois apreende apenas os caracteres comuns a vários objetos e deixa
escapar o que eles têm de particular e que os distingue dos demais. Outra conseqüência
do nominalismo consistiu no abismo criado entre o conhecimento científico (dos seres
individuais, concretos, encontrados na natureza) e os domínios do pensamento religioso”
16
.
4 – A valorização da experiência na obra de Francis Bacon (1561-1626).
A tradição empirista inglesa ganhou uma primeira sistematização na obra de Sir
Francis Bacon intitulada: Novum Organon (1620). A significação deste escrito do chanceler
do Reino foi instrumental ou lógica, a julgar pela apreciação de Voltaire (1694-1778) que,
nas suas Cartas filosóficas, escrevia referindo-se a Bacon: “A mais singular e a melhor das
suas obras é hoje a menos lida e a mais inútil: refiro-me ao seu Novum Scientiarum
Organon. É o andaime com que se construiu a nova filosofia; e quando esse edifício foi
levantado, ao menos em parte, o andaime não serviu para mais nada” 17.
Se bem é certo que o conceito de natureza com que Bacon trabalha é bastante
nebuloso, coube-lhe, no entanto, um duplo mérito: em primeiro lugar, ter assinalado o
caráter concreto e observável das formas naturais (corrigindo, nesse ponto, a física
aristotélica, que considerava a forma algo metafísico) e, em segundo lugar, ter formulado
os procedimentos metodológicos a serem seguidos, com vistas a uma observação rigorosa
e experimental das formas naturais. Bacon recolhia, assim, a melhor tradição britânica de
valorização da experiência, presente no pensamento de Grosseteste, Roger Bacon e os
nominalistas.
No trabalho em prol de assinalar a contribuição baconiana ao método
experimental, destaquemos o seu ponto de partida e o ponto de chegada. Em relação ao
primeiro, Bacon chama a atenção para os ídolos ou erros do espírito: idola tribus (ídolos
da tribo, consistentes na preguiça mental que nos leva a tecermos generalizações sem
prova empírica); idola especus (ídolos da caverna, erros originados pela inércia do
costume): idola fori (ídolos da praça pública, palavras que contribuem a falsear o nosso
conceito das coisas) e idola theatri (ídolos do teatro, procedentes do argumento dos
grandes sofistas) 18.
16
MATTOS, Carlos Lopes de. “Duns Scot – Ockham”, art. cit., p. IX.
Apud BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob cit., vol. II, p. 537.
18
BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit., v. II, p. 528 seg. ADAMSON, Robert e MITCHELL, John
Malcolm. “Francis Bacon”, in: BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, ob. cit., v. 2, p. 993999.
17
Em relação ao ponto de chegada do seu método, Bacon destaca os socorros com
que ajuda a razão a chegar a um resultado definitivo. Esses socorros consistem nas
prerrogativae instantiarum (ou prerrogativas dos fatos), nas instantiae migrantes (ou fatos
translatícios), nas instantiae ostensivae et clandestinae (ou casos em que a natureza está
no seu máximo de revelação ou no seu mínimo), nas instantiae monodicae et deviantes
(ou casos em que a natureza se revela de forma excepcional), nas instantiae divortii (ou
casos que nos revelam, desunidas, duas naturezas ordinariamente unidas), nas instantiae
crucis (ou fatos cruciais), nas instantiae lampadis (ou simples meios para alargar a nossa
informação), etc. 19
O fundamental da contribuição de Francis Bacon reside, portanto, na valorização
do método experimental, que seria largamente valorizado na Inglaterra ao longo do
século XVII, notadamente por parte de Robert Boyle (1627-1691), Isaac Newton (16421727) e em geral todos os cientistas que colaboraram no empenho da Royal Society de
Londres (fundada em 1645), no sentido de elaborar o catálogo dos fenômenos da
natureza. Essa circunstância, como diz Émile Bréhier (1876-1952), constituiu “um ensaio
para realizar a primeira exigência da ciência baconiana: a história” 20. A tradição de dar
valor à experimentação, impulsionada e sistematizada metodologicamente por Francis
Bacon, influiu decisivamente no abandono da perspectiva dinâmica na cosmologia,
tendência que se firma a partir de Galileu (1564-1642) e Newton, em prol da adoção da
perspectiva cinemática 21. Já não se tratava de indagar pelas causas ocultas da natureza,
mas de observar e mensurar os fenômenos, com a utilização do método experimental.
5 – A valorização da experiência na filosofia inglesa dos séculos XVII e XVIII:
Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), David Hume (17111776) e Thomas Reid (1710-1796).
Os mais destacados pensadores ingleses do período compartilham este leitmotiv: a
importância fundamental que atribuem à experiência como fonte de certeza. Isso aparece
claro na antropologia de teor mecanicista que inspira o Leviatã (1651) de Thomas Hobbes
(1588-1679). Na primeira parte do livro, o homem é apresentado como aparece para
quem o observa com critério empírico: ele é dotado de uma dupla tendência a se
apropriar aquilo que lhe convém e a rejeitar o que não lhe convém. O Estado, que na
filosofia política antiga e medieval era concebido como decorrente de uma tendência
natural do homem, é apresentado por Hobbes como ente artificial a ser construído pelos
próprios homens.
19
Cf. BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit., vol. II, p. 534-535. ADAMSON, Robert e MITCHELL,
John Malcolm, “Francis Bacon”, art. cit.
20
BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit., vol. II, p. 537.
21
Cf. LADRIÈRE, Jean, Éléments de critique des sciences et de cosmologie, Louvain: Université de Louvain,
1967, p. 140 seg.
Já na introdução ao Leviatã afirma o filósofo: “Do mesmo modo que tantas outras
coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela
arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial (...). E a arte
vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza,
o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou
Cidade (em latim civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura
e força do que o homem natural para cuja proteção e defesa foi projetado (...). Por último,
os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas,
reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o homem por Deus na
criação” 22.
Fica evidente, assim, o caráter experimental (artificial, diz Hobbes), da política,
tanto no plano de construir o Estado, como no que tange ao se conhecimento. Embora
John Locke tivesse haurido inspiração em fontes medievais do pensamento político inglês
e, através delas, tivesse recebido a influência aristotélica 23, não é menos certo o decisivo
influxo que sobre o seu pensamento teve a tradição empirista de Francis Bacon, Robert
Boyle e Isaac Newton. Nos seus estudos e trabalhos de medicina, outrossim, o filósofo do
liberalismo recebeu a influência do empirismo que animava a Thomas Sydenham (16241689) com quem, em 1668 e 1669, escreveu alguns opúsculos médicos 24.
Podemos estabelecer um paralelismo de cunho empirista entre as duas grandes
obras de Locke, O Ensaio sobre o entendimento humano 25 e os Dois tratados sobre o
governo 26. Assim como, a partir da experiência, podemos concluir que não há idéias
inatas, a experiência igualmente nos mostra que não há soberanos inatos. Assim como os
nossos conhecimentos devem ser construídos a partir de idéias simples, originadas da
experiência (externa ou interna), o Estado deve ser efeito de uma ação humana. E essa
ação é o pacto social, efetivado pelos cidadãos. Coube a Locke o mérito de ter deitado os
alicerces epistemológicos e políticos para a nova sociedade inglesa que emergiu da
Revolução Gloriosa de 1688. E esses fundamentos são calcados numa epistemologia
empirista e numa filosofia política acorde com essa forma de conhecimento.
22
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva), 4ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988, coleção “Nova
Cultural”, p. 5.
23
A influência de Aristóteles revela-se no conceito, utilizado por Locke, de que o homem busca
naturalmente o convívio social (lembrando o princípio aristotélico de que o homem é um “animal político”),
para ver garantidos os seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, que lhe garantem a
felicidade (eudemonía).
24
Cf. BRÉHIER, Émile. Historia de la filosofia, ob. cit., vol. II, p. 722.
25
LOCKE, John. Ensayo sobre el entendimiento humano. 1ª edição em espanhol (segunda reimpressão).
(Tradução de Edmundo O’ Gorman). México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
26
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Prefácio e introdução de Peter LASLETT, tradução de Julio
Fischer), São Paulo: Martins Fontes, 1998.
No pensamento de David Hume, expresso fundamentalmente na sua Investigação
sobre o entendimento humano 27, também aparece clara a valorização da experiência.
Hume critica os dois extremos em que pode cair a filosofia: o da teoria abstrata desligada
da vida, e o do espírito prático que somente olha para o dia-a-dia, menosprezando a
teoria. A verdadeira filosofia, considera Hume, deve ser, como ele diz, uma “geografia
moral” que nos permita classificar, com rigor científico todos, os elementos que integram
a nossa faculdade cognitiva. Na busca de objetividade nesse tipo de reflexão, o filósofo
formula a perspectiva transcendental: tudo quanto temos no nosso conhecimento é
representação da realidade, não a realidade mesma. Portanto, o estudo que deve ser
empreendido pela filosofia não é o da coisa em si, mas o da nossa faculdade cognitiva, no
ato de construir as representações a partir de instâncias apriori chamadas por Hume de
“hábitos”, que nos permitem associar idéias e elaborar juízos. Embora o nosso
conhecimento possa se elevar até representações abstratas, para Hume não há dúvida de
que todo ele provém da experiência (interna ou externa).
No caso de Thomas Reid (1710-1796), o mais importante pensador da denominada
Escola Escocesa do Senso Comum, a fidelidade à experiência é uma constante, embora o
seu pensamento tenha sido formulado no contexto de uma crítica abrangente à obra de
David Hume. Reid, que ocupou a vaga que Adam Smith (1723-1790) tinha deixado em
Glasgow como professor de Moral, escreveu três obras importantes: Investigação sobre o
pensamento humano, acerca dos princípios do senso comum (1764) e Ensaio sobre os
poderes intelectuais do homem (1788). Parte de uma crítica frontal à teoria de Locke,
Berkeley (1685-1753) e Hume acerca das idéias. Eles aceitavam o pressuposto de que o
objeto imediato do conhecimento é algo que está na alma e que recebe o nome de idéia,
ou (como dizia Hume), de impressão. Por esse motivo, no sentir do pensador escocês, eles
não conseguiram afirmar a existência de alguma realidade exterior à alma, da alma
mesma, ou das relações entre as coisas. “As idéias – frisava Reid – parece que possuem na
sua natureza algo que é hostil a outras existências” 28. O filósofo de Glasgow coloca em
dúvida a existência da idéia como objeto. “As idéias de cuja existência exijo a prova, não
são as operações da alma, mas os objetos supostos dessas operações” 29. Reid nega, a
seguir, a existência dessas “imagens de objetos exteriores” na alma.
O pensador escocês identificou, no contexto da experiência, certos princípios
decorrentes da própria constituição da nossa natureza, aos quais dá o nome de “princípios
do senso comum”. Por esse caminho, nitidamente experimental, Reid afirma a existência
real da alma e dos objetos exteriores que Hume negava, no seu entender. Trata-se de uma
espécie de vivência da nossa alma, que nos leva a aceitar a sua existência e a afirmar a dos
objetos externos. O filósofo escocês retoma, sem dúvida, a trilha da “experiência interna”,
27
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. (Tradução de Leonel Vallandro). 1ª edição.
São Paulo: Abril Cu8ltural, 1973, coleção “Os Pensadores”. Cf. JESSOP, Thomas Edmund. “David Hume”, in:
BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, ob. cit., vol. 2, p. 833-837.
28
SORLEY, W. R., Historia de la filosofia inglesa. (Tradução ao espanhol de Teodora Efrón e Julieta Gómez
Paz), Buenos Aires: Losada, 1951, p. 226-227.
29
SORLEY, W. R., Historia de la filosofia inglesa. Ob cit., p. 228.
aberta séculos atrás por pensadores de inspiração agostiniana como Beda, o Venerável e
Roger Bacon.
6 – A valorização da experiência na filosofia inglesa do século XIX: Thomas
Hill Green (1836-1882), Francis Herbert Bradley (1846-1924) e Bernard
Bosanquet (1848-1923).
Nada mais adequado para mostrar o peso que a valorização da experiência tem na
meditação inglesa do século XIX, do que expor, aqui, as idéias fundamentais dos idealistas
britânicos. O contraste seria evidentemente menor se tivéssemos decidido, por exemplo,
analisar o pensamento do teórico do utilitarismo, Jeremy Bentham (1748-1832) ou de um
liberal que sofreu a influência do positivismo como John Stuart Mill (1806-1873). Eles,
evidentemente, recolheram o legado empirista de Locke e Hume.
Thomas Hill Green 30 foi o primeiro, em Oxford, a se consagrar exclusivamente ao
ensino da filosofia. Tinha estudado a obra de Kant (1724-1804) e conhecia as idéias de
Hegel. As suas principais obras foram a Introdução ao tratado da natureza humana de
Hume (1874), os Prolegómenos à ética (1883) e as Lições sobre os princípios da
obrigação política (1866), sendo que estes dois últimos livros passaram a integrar o
currículo das Universidades inglesas alo longo dos cinqüenta anos seguintes.
Em que pese o fato da inspiração de Green em Kant e Hegel, o pensador inglês
ultrapassa o ponto de vista estritamente crítico dos filósofos alemães. Isto se dá em
função dos pressupostos de típico sabor empirista (herdeiros das teses da Escola Escocesa
do Senso Comum), em que se alicerça. Valorizando a experiência do eu interno, ao criticar
a modalidade do empirismo de Locke e de Hume, Green considera que: “(...) não
poderíamos ter nenhuma experiência da continuidade e do desenvolvimento de nossas
idéias e de nossas impressões, se não houvesse, em nós, um eu suscetível de efetivar a
unidade que estabeleça a ligação entre o que se produziu antes com o que vem a seguir.
Nada pode ser objeto da experiência fora da atividade coordenadora da mente” 31.
É interessante anotar, à margem da inspiração empirista de Green, a importância
por ele atribuída ao Estado no controle da vida econômica. Certamente aí encontramos a
influência hegeliana. Para Green, como frisa Harry Burrows Acton (1908-1974) 32, “(...) a
ação governamental não pode tornar os homens moralmente melhores, mas pode darlhes os meios para conseguir isso por si mesmos”. Green sentou, assim, as bases, na
30
Cf. ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, (coord). Las filosofias nacionales:
siglos XIX y XX. (Tradução de José Miguel Marinas e Eduardo Bustos). 3ª edição em espanhol. México: Siglo
XXI Editores, 1984. WRIGTH, Muriel H. “Thomas Hill Green”, in: BENTON, William (editor), Encyclopaedia
Britannica, ob. cit., vol. 10, p. 890.
31
ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon (coord.), Historia de la filosofia: las
filosofías nacionales – Siglos XIX y XX, ob. cit., p. 5.
32
ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”. In: BELAVAL, Yvon (coord.), Historia de la filosofia: las
filosofias nacionales – siglos XIX y XX, ob. cit., p. 9.
tradição política inglesa, da crítica ao laissez-fairismo, que John Maynard Keynes (18831946) desenvolveu a partir da década de vinte do século passado.
Francis Herbert Bradley chegou a ser, no sentir de Harry B. Acton. “(...) o filósofo
mais conhecido e mais discutido dos países de fala inglesa” 33. As suas principais obras
foram: Os pressupostos da crítica histórica (1874), Estudos éticos (1876), Princípios de
lógica (1883) e Aparência e realidade (1893). Muito influenciado por Thomas Green, o
seu pensamento representa uma original interpretação da filosofia hegeliana, do ponto de
vista da valorização da experiência. Na sua última obra, o pensador inglês salienta os laços
que unem o pensamento à realidade. Ao analisar a questão da aparência, Bradley examina
conceitos como os de coisas, qualidades, relações, espaço e tempo, causalidade, eu e
atividade. Esses conceitos, no sentir dele, implicam imposição de contradição entre si e
não devem ser aceitos. O conceito de realidade, que abarca a noção de coerência, exclui
esses conceitos situados no terreno da aparência. “Nosso critério – frisa Bradley – exclui a
incoerência e postula (...) a existência de uma coerência” 34.
Como apreender a realidade que é, fundamentalmente, harmonia? Para Bradley
não há dúvida: mediante a experiência sensível. Harry B. Acton sintetizou assim o
pensamento de Bradley a respeito: “A realidade não pode estar feita de uma pluralidade
de objetos reais desprovidos de qualquer relação entre eles, mas deve ser um todo cujas
diferenças se baseiam na harmonia. Além disso, deve ser experiência e, mais ainda,
experiência sensível. Para provar que a realidade deve ser experiência, Bradley recorre ao
argumento idealista bem conhecido, segundo o qual é impossível conceber qualquer coisa
fora de toda experiência. E para provar que deve tratar-se de experiência sensível, afirma
que somente a sensibilidade permite distinguir as diferenças sem que, por isso, possam
ser separadas do conjunto que as contém. Quase veladas pela nossa experiência
cotidiana, encontram-se experiências ao mesmo tempo diferentes e ligadas, que nos
antecipam o que deve ser a realidade última ou o Absoluto” 35.
Em relação a este ponto, afirma o próprio Bradley: “Isso nos sugere a idéia de uma
experiência total em que a vontade, o pensamento e a sensibilidade não formassem já
mais do que um só conjunto” 36. Harry B. Acton considera que Bradley se alicerça em
Hegel ao afirmar que quanto mais espiritual é uma coisa, mais real é; no entanto, o nosso
autor entende “(...) a palavra espiritual num sentido menos intelectual que o filósofo
alemão. Nosso hegeliano inglês – conclui Acton – está influenciado pela tradição empirista
como para não desejar se converter num metafísico racionalista”.
33
ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”. In: BELAVAL, Yvon (coord.), Historia de la filosofía: las
filosofias nacionales – Siglos XIX y XX. Ob. cit., p. 17.
34
BRADLEY, Francis Herbert. Appearence and Reality, cit. por ACTON, Harry Burrows, La filosofia
anglosajona. In: BELAVAL, Yvon (oord.), Historia de la filosofia: Las filosofías nacionales – Siglos XIX y XX.
35
ACTON, Harry Burrows. “La filosofía anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, (coord.), Historia de la filosofía: las
filosofías nacionales – Siglos XIX y XX, ob. cit., p. 17-18.
36
BRADLEY, Francis Herbert. Appearence and Reality, cit. por ACTON, Harry Burrows, “La filosofia
anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, Historia de la filosofia: las filosofias nacionales – Siglos XIX y XX, ob. cit.,
p. 18.
Contemporâneo e debatedor das idéias de Bradley, Bernard Bosanquet situa-se
mais perto de Hegel do que o seu concorrente. Foi autor de várias obras, entre as quais
Conhecimento e realidade (1885), Lógica ou morfologia do conhecimento (1888), Teoria
filosófica acerca do Estado (1889), Princípios da individualidade e do valor (1912) e Valor
e destino do individual (1913). Para Bosanquet, o mundo é um todo integrado por
elementos estreitamente inter-relacionados uns com os outros no conjunto do sistema.
Cada elemento, conseqüentemente, possui em si indícios dos outros elementos existentes
no sistema, de forma tal que o conhecimento do particular leva implícito o do geral, em
decorrência da inter-relação existente. A história, para Bosanquet, não é uma disciplina
muito rigorosa do ponto de vista da razão, que se prende ao conhecimento científico do
contingente. A experiência vivencial do todo, no entanto, supera os limites da razão, e
transcende em formas de conhecimento supra-científico, através da arte, da religião e da
filosofia. O idealismo de Bosanquet entronca de novo com a tradição empirista inglesa,
notadamente com a herança da Escola Escocesa do Senso Comum, ao relacionar
diretamente a apreensão do todo com o conhecimento, pela experiência, das suas
manifestações concretas. Estas somente se podem dar nela. No terreno da filosofia
política, Bosanquet reforçou a tendência hegeliana à valorização da intervenção do Estado
na vida social, que já tinha sido defendida por Bradley 37.
Conclusão.
Alicercei-me, neste artigo, no insofismável testemunho de Hegel, para quem as
filosofias nacionais integram momento fundamental da dialética da razão, porquanto
captam “o espírito da época”. Procurei ilustrar, à luz da análise feita pelo filósofo alemão,
a idéia ou leit-motiv que serviu de pano de fundo à meditação inglesa, desde as suas
origens medievais até o momento da sua consolidação no século XIX. Essa idéia, vimos, é a
da experiência. Ela aparece como fio condutor da filosofia, em que pese a variedade de
autores e tendências.
Se, por um lado, a análise das filosofias nacionais deve ser objeto de estudo da
história da filosofia, no sentir de Hegel, a inquirição, contudo, não pode parar aí.
Momento fundamental da dialética da razão constitui também a busca da identidade dela
consigo mesma, ao que só se pode chegar a partir da integração das várias filosofias
nacionais e dos vários sistemas, numa visão de conjunto. Tal visão, revelando as
diferenças históricas, deve explicitar, também, o fundo comum que as une, a força do
espírito humano na busca da sua identidade. Para utilizar a bela imagem criada por
António Braz Teixeira (nasc. 1936), o fato de ter pernas que repousam sobre a terra, não
tira à ave a capacidade de voar até os céus.
37
Cf. ACTON, Harry Burrows, “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, (coord.), Historia de la filosofia:
las filosofias nacionales – Siglos XIX y XX, ob. cit., p. 21-23.
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