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DIÁRIO
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ROBERT K. WITTMAN
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DAVID KINNEY
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Alfred Rosenberg
e os Segredos Roubados
do Terceiro Reich
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Prólogo: A Caixa-Forte
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palácio na montanha erguia-se acima de uma parte de campos
bávaros ondulados tão bela que era conhecida como Gottesgarten – «o Jardim de Deus».
Visto das aldeias e explorações agrícolas junto ao rio que serpenteava lá em baixo, o Schloss Banz atraía a atenção. As suas alas
majestosas de pedra brilhavam com um dourado luminoso sob a
luz do Sol e um par de espirais de cobre, delicadamente afuniladas,
erguia-se acima da sua igreja barroca. O local tinha uma história
de mil anos: como entreposto comercial, como castelo construído
para resistir a exércitos, como mosteiro beneditino. Fora pilhado e
destruído na guerra e reconstruído de uma forma extravagante para
a família real dos Wittelsbach. Reis e duques, e uma vez o próprio
Kaiser Guilherme II, o último imperador da Alemanha, tinham
honrado os seus salões opulentos. Agora, na primavera de 1945,
o colosso era um posto avançado de uma força operacional tristemente célebre que passara a guerra a saquear a Europa ocupada
para glória do Terceiro Reich.
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À medida que a derrota se aproximava, na sequência de seis
anos de guerra extenuantes, os nazis, por toda a Alemanha, tinham
andado a queimar arquivos sensíveis do governo antes de os documentos poderem ser apreendidos e usados contra eles. Mas os
burocratas que não conseguiam tomar a decisão de destruir os seus
documentos optavam, em vez disso, por os esconder em florestas,
em minas, em castelos e em palácios como este. Por todo o país,
havia bibliotecas imensas de segredos à espera de que os Aliados os
encontrassem: registos internos pormenorizados que lançavam luz
sobre a tortuosa burocracia alemã, sobre a estratégia de guerra impiedosa das forças armadas e sobre o obsessivo plano dos nazis para
limpar a Europa dos seus «elementos indesejáveis», de uma vez por
todas e para todo o sempre.
Na segunda semana de abril, os soldados do Terceiro Exército
norte-americano, comandado pelo general George S. Patton e do
Sétimo Exército norte-americano, do general Alexander Patch, invadiram a região. Desde a travessia do Reno, algumas semanas antes,
os dois homens tinham acometido através das orlas ocidentais do
país destruído, retardados apenas por pontes demolidas, bloqueios
de estrada improvisados e bolsas de resistência tenaz1. Atravessaram
cidades reduzidas a escombros pelas bombas aliadas. Passaram por
aldeões de olhos encovados que não agitavam a suástica nazi mas
lençóis e almofadas brancos. O exército alemão estava praticamente
desintegrado. Hitler iria estar morto dentro de três semanas e meia.
Pouco depois de terem chegado à região, os Americanos encontraram um aristocrata extravagante que usava monóculo e botas
altas, bem engraxadas. Kurt von Behr passara a guerra em Paris,
a saquear coleções de arte privadas e a pilhar mobiliário vulgar de
dezenas de milhares de imóveis de judeus em França, na Bélgica
e nos Países Baixos2. Imediatamente antes da libertação de Paris,
ele e a mulher fugiram para Banz com um enorme carregamento
de tesouros pilhados, num comboio de onze automóveis e quatro
camiões de mudanças.
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Agora, Von Behr queria fazer um acordo.
Dirigiu-se à cidade próxima de Lichtenfels e contactou um oficial do governo militar chamado Samuel Haber. Ao que parece, Von
Behr habituara-se a viver como um rei sob os tetos ricamente pintados do palácio3. Se Haber lhe concedesse autorização para ficar
lá, Von Behr mostrar-lhe-ia um esconderijo secreto de documentos
nazis importantes.
O americano ficou intrigado. Com as informações operacionais
com grande procura e os julgamentos dos crimes de guerra no horizonte, as forças aliadas tinham recebido ordens para procurar e
guardar todos os documentos alemães que conseguissem encontrar.
O exército de Patton tinha uma unidade de informações militares
(G-2) dedicada a essa tarefa4. Só em abril, as suas equipas especializadas iriam capturar trinta toneladas de ficheiros nazis.
Seguindo a sugestão de Von Behr, os Americanos subiram a montanha e transpuseram os portões do palácio para se encontrarem com
o aristocrata. O nazi fê-los descer cinco andares até um subterrâneo,
onde, selado por detrás de uma parede falsa de betão, se encontrava
escondido um riquíssimo filão de documentos confidenciais nazis.
Os ficheiros enchiam uma enorme caixa-forte. O que não cabia no
interior estava espalhado pela sala, em pilhas.
Depois de ter entregado o seu segredo, Von Behr – apercebendo-se aparentemente que a sua jogada o não salvaria dos estragos da
derrota humilhante da Alemanha – preparou-se para abandonar
o palco com elegância. Envergou um dos seus uniformes extravagantes e acompanhou a mulher até ao quarto, na propriedade.
Erguendo duas flûtes de champanhe francês com cianeto, brindaram ao fim de tudo. «O episódio», escreveu um correspondente
americano, «teve todos os elementos do melodrama que os líderes
nazis pareciam apreciar.»
Os soldados encontraram Von Behr e a mulher caídos no seu ambiente luxuoso. Enquanto examinavam os corpos, deram uma vista
de olhos à garrafa meio vazia que ainda se encontrava na mesa.
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O casal escolhera uma colheita rica em simbolismo: 1918, o ano
em que a sua querida pátria fora deitada por terra, no final da Primeira Guerra Mundial5.
Os documentos que se encontravam na caixa-forte pertenciam a
Alfred Rosenberg, o principal ideólogo de Hitler e membro antigo
do Partido Nazi. Rosenberg testemunhou os primeiros dias do partido, em 1919, quando os nacionalistas alemães profundamente zangados descobriram um líder em Adolf Hitler, o bombástico e errante
veterano da Primeira Guerra Mundial. Em novembro de 1923, na
noite em que Hitler tentou derrubar o governo bávaro, Rosenberg
marchou até uma cervejaria de Munique, a Bürgerbraükeller, um passo atrás do seu herói. Esteve presente em Berlim, uma década mais
tarde, quando o partido subiu ao poder e começou a esmagar os seus
inimigos. Esteve na arena, a combater, enquanto os nazis remodelavam toda a Alemanha à sua imagem. Esteve lá, no final, quando o
curso da guerra se inverteu e toda a visão deformada se desmoronou.
Na primavera de 1945, quando os investigadores começaram a
folhear o enorme acervo de documentos ocultos – que incluía duzentos e cinquenta volumes de correspondência oficial e pessoal –,
descobriram algo notável: o diário pessoal de Rosenberg.
O relato foi manuscrito ao longo de quinhentas páginas, algumas
entradas num bloco de apontamentos encadernado, mais em folhas
soltas. Começava em 1934, um ano depois da subida de Hitler ao
poder, e terminava uma década depois, alguns meses antes do final
da guerra. Dos homens mais importantes que ocuparam os mais elevados cargos no Terceiro Reich, só Rosenberg, Joseph Goebbels, o
ministro da Propaganda, e Hans Frank, o brutal governador-geral
da Polónia ocupada, deixaram diários desses6. Os outros, incluindo
Hitler, levaram os seus segredos consigo para a cova. O diário de Rosenberg prometia lançar luz sobre o funcionamento do Terceiro Reich da perspetiva de um homem que, durante um quarto de século,
atuara nas mais altas esferas do Partido Nazi.
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Fora da Alemanha, Rosenberg nunca foi tão célebre como Goebbels, ou Heinrich Himmler, o cérebro das SS, as forças de segurança, ou Hermann Goering, o coordenador da economia e comandante da força aérea de Hitler. Rosenberg teve de rivalizar e lutar
com esses gigantes da burocracia nazi pelo tipo de poder que pensava merecer, mas contou com o apoio do Führer desde o começo até
ao fim. Ele e Hitler concordavam plenamente quanto às questões
mais fundamentais e Rosenberg fora indefetivelmente leal. Hitler
nomeou-o para uma sucessão de cargos de chefia no Partido Nazi e
no governo, elevando o perfil público de Rosenberg e garantindo-lhe uma influência de longo alcance. Os seus rivais em Berlim
odiavam-no, mas as bases do partido viam Rosenberg como uma
das figuras mais importantes da Alemanha: ali estava um grande
pensador que o próprio Führer escutava.
As impressões digitais de Rosenberg iriam ser encontradas num
número significativo dos crimes mais nefandos da Alemanha nazi.
Orquestrou o roubo de obras de arte, arquivos e bibliotecas de
Paris a Cracóvia e Kiev – o saque que os Homens dos Monumentos
aliados andaram a procurar em castelos e minas de sal da Alemanha,
como é sabido.
Em 1920, incutiu na mente de Hitler a ideia insidiosa de que
havia uma conspiração judaica mundial por detrás da revolução
comunista na União Soviética e repetiu essa afirmação, incessantemente. Rosenberg foi o paladino proeminente de uma teoria que
Hitler utilizou para justificar a guerra devastadora da Alemanha
contra os Soviéticos, duas décadas depois. Quando os nazis se preparavam para invadir a União Soviética, Rosenberg jurou que a
guerra seria «uma revolução mundial de limpeza», que exterminaria, por fim, «todos aqueles germes de infeção racial do povo judeu
e dos seus bastardos7». Durante os primeiros anos da guerra no
Leste, em que os Alemães fizeram o Exército Vermelho recuar até
Moscovo, Rosenberg dirigiu uma autoridade de ocupação que aterrorizou os Países Bálticos, a Bielorrússia e a Ucrânia, e o seu minis—7—
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tério colaborou com os cruzados genocidas de Himmler enquanto
massacravam judeus por todo o Leste8.
Nomeadamente, Rosenberg lançou os alicerces do Holocausto.
Começou a publicar as suas ideias tóxicas sobre os judeus em 1919
e, como diretor do jornal do partido e autor de artigos, panfletos e
livros, disseminou a mensagem de ódio do partido. Mais tarde, foi o
delegado do Führer para questões ideológicas, e em cidades e vilas de
todo o Reich era acolhido por multidões que agitavam bandeiras e
o aclamavam. A sua obra-prima teórica de 1930, Der Mythus des 20
Jahrhunderts («O Mito do Século XX»), vendeu mais de um milhão
de exemplares e era considerado, juntamente com o Mein Kampf
(A Minha Luta), de Hitler, um texto central da ideologia nazi editado em 1925-26. Nos seus escritos pesados, Rosenberg foi buscar
ideias antiquadas sobre raça e história do mundo a outros pseudointelectuais e fundiu-as num sistema de crenças políticas idiossincrático. Os líderes locais e distritais do partido diziam-lhe que faziam
milhares de discursos com as suas palavras sempre à mão. «Aqui»,
gabou-se Rosenberg no seu diário, «encontravam, simultaneamente,
orientação e material para o combate9.» Rudolf Höss, o comandante
do campo da morte de Auschwitz, onde foi exterminado mais de
um milhão de pessoas, afirmou que haviam sido as palavras de três
homens em especial que o tinham preparado psicologicamente para
levar a cabo a sua missão: Hitler, Goebbels e Rosenberg.10
No Terceiro Reich, um ideólogo podia ver as suas filosofias serem
postas em prática, e a de Rosenberg teve consequências mortais.
«Repetidamente, sou invadido pela ira quando penso no que este
povo judaico parasita fez à Alemanha», escreveu no diário, em 1936.
«Mas, pelo menos, tenho uma satisfação: ter feito a minha parte na
denúncia desta traição11.» As ideias de Rosenberg legitimaram e racionalizaram o assassínio de milhões de pessoas.
Em novembro de 1945, um Tribunal Militar Internacional extraordinário reuniu-se em Nuremberga para julgar os mais notórios
sobreviventes nazis por crimes de guerra – Rosenberg contava-se en—8—
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tre eles. A acusação baseou-se na enorme quantidade de documentos
alemães capturados, pelos Aliados, no final da guerra. Hans Fritzsche, acusado de crimes de guerra devido ao seu papel como chefe
da Divisão de Imprensa do Ministério da Propaganda, disse a um
psiquiatra prisional, durante o julgamento, que Rosenberg desempenhara um papel fundamental na formação das filosofias de Hitler,
na década de 1920, antes de os nazis subirem ao poder. «Na minha
opinião, teve uma influência tremenda sobre Hitler durante o tempo
em que este ainda pensava em algumas coisas», disse Fritzsche, que
seria absolvido em Nuremberga mas condenado mais tarde a sete
anos de prisão por um tribunal de desnazificação alemão. «A importância de Rosenberg existe porque as suas ideias, que eram apenas
teóricas, se tornaram uma realidade nas mãos de Hitler [...] O que
é trágico é as teorias fantásticas de Rosenberg terem sido realmente
postas em prática».
Em certa medida, defendeu Fritzsche, recaía sobre Rosenberg «a
culpa principal de todos aqueles que estão aqui sentados no banco
dos réus12».
Em Nuremberga, Robert H. Jackson, o chefe da equipa de acusação norte-americana, incriminou publicamente Rosenberg de ser
o «sumo sacerdote intelectual da “raça dos senhores”13». Os juízes
consideraram o nazi culpado de crimes de guerra e, a 16 de outubro de 1946, a vida de Rosenberg terminou, a meio da noite, na
ponta de uma corda.
Durante as décadas seguintes, os historiadores que tentavam compreender os comos e porquês do maior cataclismo do século iriam
debruçar-se sobre os milhões de documentos salvos pelos Aliados
no final da guerra. A documentação sobrevivente era extensa – registos militares secretos, inventários pormenorizados de pilhagens,
diários pessoais, documentos diplomáticos, transcrições de conversas
telefónicas, memorandos burocráticos arrepiantes que discutiam assassínios em massa. Em 1949, depois de os julgamentos terem terminado, os procuradores americanos fecharam os seus gabinetes e
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os documentos alemães capturados foram enviados para uma antiga
fábrica de torpedos nas margens do rio Potomac, em Alexandria,
Virgínia. Aí, foram preparados para a sua inserção nos National Archives. Fizeram-se microfilmes e, por fim, a maior parte dos originais
foi devolvida à Alemanha.
Mas aconteceu algo à maior parte do diário secreto de Rosenberg.
Nunca chegou a Washington. Nunca foi transcrito, traduzido e pesquisado, integralmente, pelos estudiosos do Terceiro Reich.
Quatro anos depois de ter sido retirado da caixa-forte do palácio
bávaro, o diário desapareceu.
N OTA S
1 After Action Report, Third US Army, 1 August 1944 – 9 May 1945, Vol. I: The Operations, p. 337.
2 Dreyfus e Gensburger, Nazi Labour Camps, p. 9, p. 130.
3 Marguerite Higgins, «Americans Find Nazi Archives in Castle Vault», New York Herald Tribune,
24 de abril de 1945.
4 After Action Report, Third US Army, 1 August 1944 – 9 May 1945, Vol. II: Staff Section Reports,
p. G-2 47.
5 Higgins, «Americans Find Nazi Archives».
6 Os diários de Himmler que chegaram até nós terminam em 1924. Muitas figuras menores do
Terceiro Reich deixaram diários.
7 Office of the U.S. Chief of Counsel for the Prosecution of Axis Criminality, Nazi Conspiracy
and Aggression, Vol. 5, pp. 554-57.
8 Ver Ernst Piper, «Vor der Wansee-Konferenz: Ausweitung der Kampfzone», Der Tagesspiegel,
11 de dezembro de 2011.
9 Diário de Rosenberg, 23 de agosto de 1936.
10 Gilbert, Nuremberg Diary, pp. 267-68.
11 Diário de Rosenberg, 23 de agosto de 1936
12 Goldensohn, The Nuremberg Interviews, pp. 73-75.
13 Alegações finais de Robert Jackson, chefe da equipa de acusação americana, Trial of the Major
War Criminals, Vol. 19, p. 416.
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